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Maria Cristina Fernandes: Para o legado da CPI ultrapassar 2022

Além do roteiro de 2022, CPI tem que proteger o país contra novas pandemias

Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico

É preciso blindar o país contra novas pandemias Não é porque genocida rima com querida que o presidente Jair Bolsonaro cairá ou deixará de cair. Nem se a PEC 5 tivesse sido aprovada ontem na Câmara o procurador-geral da República deixaria de ser omisso na denúncia contra o presidente da República.

Depois do fracasso da frente ampla contra Bolsonaro, o relatório é a principal herança do Congresso para as eleições. Desperdiçá-la é perda de tempo e dinheiro. A CPI deixa um legado eleitoral relevante para 2022 tenha o relatório 10 ou 11 crimes.

De estimativas como a do sanitarista e fundador da Anvisa Gonzalo Vecina colhe-se que 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas. O genocídio se sustenta na robustez da tragédia que poderia ter sido evitada, mas divide juristas de todos os matizes e não assegura aceitação da denúncia contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional.

A comissão ofereceu um roteiro que facilita a vida dos marqueteiros. Tá tudo ali, das imagens do presidente tirando a máscara de uma criança de colo aos relatos pungentes dos familiares das vítimas, deixadas para o fim, como em toda CPI, para fazer da comoção um motor da aprovação do relatório.

Uma pandemia com mais de 600 mil mortes, porém, é uma tragédia grande demais para que tenha 2022 como o limite de seu horizonte. Até porque novas pandemias virão. Das 206 páginas do relatório dedicadas às providências da CPI da Covid, 91 se destinam à proposição de projetos de lei e no apoio à celeridade daqueles que já tramitam no Congresso.

São 17 novas propostas e outras 11 em tramitação. Do combate à divulgação de notícias falsas à inclusão de ilegalidades do combate a pandemias no rol de crimes hediondos, passando pela pensão de crianças e adolescentes órfãos da covid-19 há de tudo lá. O que falta são propostas capazes de blindar a gestão de pandemias futuras contra insanidades.

Tome-se, por exemplo, o Plano Nacional de Imunizações. Criado em 1973, o PNI foi, em grande parte, o motor da reputação que o Brasil desfrutava em vacinas até o vírus do bolsonarismo. Foi a base institucional para a história de adesão dos brasileiros à vacinação que, para além dos números, se traduz no dito popular: de graça, até injeção na testa. Se o Estado oferece cuidados, não há por que rejeitá-los.

A evolução da curva da vacinação da covid-19 é uma demonstração disso. Depois que as vacinas passaram a ser ofertadas com planejamento adequado, a imunização só cresce, tendo levado o Brasil a passar os Estados Unidos no percentual de imunizados. O problema foi o que aconteceu antes disso.

O relatório é farto na descrição do atropelamento do PNI. O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, contou que o programa poderia ter mantido seu protagonismo não fosse o boicote bolsonarista. O mundo começou a vacinar em 8 de dezembro de 2020 e aplicou 4 milhões de doses até o fim daquele mês.

O Brasil teria como ter aplicado 60 milhões de doses no ano passado e 100 milhões até maio de 2021, mas o governo postergou o prazo para setembro. O resultado é que em julho deste ano o Brasil, que tem 2,8% da população, somava 13,2% de todas as mortes do mundo.

Se o PNI tivesse um conselho gestor, com a presença não apenas de sanitaristas e imunologistas, mas de representantes dos Três Poderes, em condições de mobilizá-los, a insanidade não teria dado as cartas.

O Congresso votou os recursos de combate à pandemia e o Supremo garantiu a autonomia da federação, mas o Executivo atropelou o PNI. Um conselho com mandato seria capaz de dar-lhe status de programa de segurança nacional imune aos humores de plantão.

Gonzalo Vecina lembra que o programa tinha um conselho, majoritariamente de médicos, até Bolsonaro tomar posse e desmontá-lo junto com outros 31 “covis de petistas”. Fosse um conselho votado e aprovado pelo Congresso ele não poderia tê-lo feito de uma canetada.

Por mais que o PNI seja enraizado nas práticas sanitárias do país, foi a completa autonomia do Executivo nas deliberações que empoçou os 81 e-mails com a oferta de 70 milhões de doses da Pfizer durante seis meses. Um programa de imunização gerido por um colegiado não permitiria que um ministro da Saúde como Eduardo Pazuello voltasse atrás de um protocolo de intenções para a compra de 46 milhões de doses da Coronavac com desfaçatez que coube numa frase: “É simples assim: um manda e o outro obedece”.

Um conselho gestor do PIN aprovado pelo Congresso como legado desta CPI certamente neutralizaria o raio de ação de um filho de presidente, como o vereador Carlos Bolsonaro, que tomou parte nas discussões com a direção das grandes farmacêuticas.

O Brasil sabe vacinar e tem um povo que entende a importância da imunização. E é este binômio que poderia ter sido melhor protegido pelo relatório. Assim como o Sistema Único de Saúde. Se algo avançou no SUS ao longo da pandemia foi a centralização de dados para a elaboração de um prontuário eletrônico para todos os seus usuários, projeto que ainda está em curso sob o nome de ConecteSUS.

A CPI se desenrolou paralelamente à discussão do edital do leilão da tecnologia 5G. Mas não fez gestões para influenciar o edital de maneira a exigir que o vencedor forneça tecnologia capaz de integrar Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais de Saúde e prontuários hospitalares.

Colocar o maior dos insanos na cadeia inibiria a volta dos que ainda não foram. Mas a CPI precisa ir além se pretende contribuir para a blindagem do país contra novos vírus, estejam eles no populismo da extrema-direita ou na microbiologia.

Foro privilegiado

A capitulação de Paulo Guedes ao teto furado guarda mais relação com a necessidade de o ministro manter o foro privilegiado do que com uma conversão das convicções do ministro. Está marcado para o dia 10 de novembro o depoimento de Guedes sobre sua offshore. Mais do que o afastamento de sua conta na Ilhas Virgens Britânicas, o que importa é se houve ou não movimentação da conta. É em torno deste ponto que se mobilizam os parlamentares.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/para-o-legado-da-cpi-ultrapassar-2022.ghtml


Bruno Carazza: O arco do fracasso

Um passeio por um monumento à corrupção

Bruno Carazza / Valor Econômico

A confiança cega na tecnologia às vezes nos coloca em perigo. Aproveitando a “semana do saco cheio” na escola dos filhos, uma folga no trabalho e a queda nos índices de transmissão de covid-19, partimos de Belo Horizonte para um passeio de uma semana entre Petrópolis e Paraty, no Rio.

Depois de três dias de chuva na Cidade Imperial, coloquei no Google Maps o destino final do Caminho Velho da Estrada Real e simplesmente fui seguindo as indicações do percurso mais curto.

Após serpentearmos a Serra dos Órgãos pela BR-040, o aplicativo determinou que pegássemos a BR-493 à direita na entrada de Duque de Caxias. Por exatos 71,8 km, trafegamos por uma via duplicada, em ótimo estado de conservação, plana, com poucas curvas - e praticamente deserta.

Se este escriba fosse um pouco mais zeloso, poderia ter se informado sobre as condições da estrada que iria percorrer. Basta iniciar a digitação no Google da expressão “Arco Metropolitano” que o site de buscas já completa automaticamente: “é perigoso”. Chegando a Paraty, todas as pessoas para as quais contamos o trajeto percorrido criticaram nossa imprudência.

Felizmente nossa travessia ocorreu sem sobressaltos, mas a experiência de dirigir quilômetros e quilômetros no melhor estilo “Brasil visto de baixo” por uma das rodovias menos seguras do país me inspirou a conhecer melhor sua história.

O Arco Metropolitano do Rio de Janeiro foi uma das principais obras de infraestrutura executada pelo ex-governador Sérgio Cabral, com forte apoio do governo federal nas administrações Lula e Dilma. A ideia de construir um grande anel viário para desafogar o trânsito na capital fluminense, conectando as rodovias Rio-Santos (BR-101, ao sul), Dutra (BR-116), Washington Luís (BR-040), Rio-Teresópolis (BR-116) e Rio-Vitória (BR-101, ao norte), remonta à década de 1970, mas só começou a sair do papel no tempo das vacas gordas do boom das commodities e da euforia com o pré-sal.

Incluído na primeira edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007, o então chamado Arco Rodoviário previa ligar, até o final de 2010, o porto de Itaguaí ao Complexo Petroquímico do Rio (Comperj) em Itaboraí, construído pela Petrobrás. O valor orçado foi de R$ 756 milhões, suficiente para duplicar 48km de vias federais já existentes, além da abertura de um trecho virgem de 74km.

Em 1º de julho de 2014, quando a “mãe do PAC”, Dilma Rousseff, já no final do seu primeiro mandato, inaugurou a obra ao lado do governador Luiz Fernando Pezão (Cabral havia renunciado pouco antes), apenas o trecho entre Duque de Caxias e Itaguaí estava concluído - justamente o trajeto que eu percorri na semana passada. Àquela altura, já tinham sido consumidos quase R$ 2 bilhões de recursos públicos, em valores da época. Até hoje a obra total não foi concluída.

Para além das planilhas orçamentárias que pesquisei ao chegar em casa, vou me ater ao que vi no caminho. Não sou engenheiro, mas não há no terreno nenhuma característica aparente que possa justificar aditivos contratuais que tenham praticamente triplicado o custo inicialmente previsto. A região entre a BR-040 e a Rio-Santos é uma imensa planície, praticamente desabitada, que deve ter exigido muito menos trabalho de terraplanagens, construção de viadutos e desapropriações do que normalmente as estradas em áreas montanhosas e densamente povoadas exigem.

Também chama a atenção no Arco Metropolitano a surreal sequência de postes de iluminação com painéis solares no seu canteiro central. Segundo auditoria da Controladoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, foram contratadas 4.310 unidades alimentadas por energia fotovoltaica. Considerando os 71,8km da rodovia, é um poste a cada 30 metros nos dois lados da pista - contratados, em valores de 2014, ao preço unitário de R$ 22,5 mil.

O que poderia demonstrar um cuidado especial com o conforto dos motoristas noturnos ou a sustentabilidade ambiental do empreendimento converteu-se em retrato do fracasso da segurança pública fluminense: passados sete anos da inauguração do sistema de iluminação, é difícil encontrar um exemplar com o jogo completo de painéis, fiação, lâmpadas e baterias, quando não é o caso de o poste inteiro ter sido levado por quadrilhas especializadas nesse tipo de crime.

Relatório produzido pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) no mês de julho chama a atenção para o fato de que o Arco Metropolitano registrou um aumento de 20% nas ocorrências de roubo de cargas entre janeiro e maio deste ano, frente a uma redução de 12% no Estado como um todo. Essa talvez seja uma explicação para o reduzido número de caminhões que encontrei. A esperança da entidade é que a concessão do trecho à iniciativa privada, prometida pelo governo federal para 2022, traga mais segurança ao transporte na região.

A construção do Arco Metropolitano ficou a cargo das construtoras Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Christiani-Nielsen, OAS, Camargo Corrêa, Oriente e Delta. Denúncias de superfaturamento e desvios de recursos públicos na sua construção estão presentes em inúmeros depoimentos e acordos de delação premiada firmados nas várias fases da Operação Lava Jato.

Apesar de a corrupção ainda figurar como uma das maiores preocupações do brasileiro em todas as pesquisas de opinião realizadas, o tema não aparece nos discursos e pronunciamentos de praticamente todos os pré-candidatos à Presidência.

Por meio de mudanças na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de diversos projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional e da inação de entidades de controle como Ministério Público, Tribunais de Contas, Polícia Federal e Controladoria-Geral da União, celebrou-se o sonhado “acordo nacional, com o Supremo, com tudo” de Romero Jucá (será que ele voltará no ano que vem?).

Nos tribunais das redes sociais, qualquer pessoa que critique o desmonte do sistema de combate à corrupção no Brasil é logo condenado como lavajista, antidemocrático e fascista.

Pelo menos eu e minha família sobrevivemos ao Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, um exemplo de nosso fracasso.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/o-arco-do-fracasso.ghtml


Alex Ribeiro: BC trava batalha para controlar expectativas

Projeções de inflação do mercado superam a meta do ano que vem

As expectativas de inflação para 2022, principal alvo da política monetária, subiram a 3,6% na última semana, sofrendo o seu primeiro descolamento expressivo em relação à meta do ano, de 3,5%. Como o Banco Central deve reagir?

Aparentemente, não foi uma alta isolada das expectativas de inflação. Outros indicadores antecedentes sinalizam que, nos próximos dias e semanas, as projeções do mercado tendem a subir um pouco mais. A média das estimativas dos analistas privados já chegou a 3,64%, um indicador de que a distribuição das expectativas dos analistas pende para valores acima da mediana, de 3,6%.

A dinâmica também parece desfavorável. A mediana das expectativas dos analistas que atualizaram as suas projeções de inflação nos últimos cinco dias já se encontrava em 3,67%. Ou seja, quem renovou as suas estimativas mais recentemente já está prevendo inflação ainda maior para o ano que vem.

A alta das expectativas preocupa, por várias razões. Uma delas é que sinaliza o quanto da alta recente da inflação, causada sobretudo por preços de alimentos, energia e produtos industriais, é temporária ou permanente. Uma ala dos analistas diz que esses são choques de oferta passageiros, aos quais o Banco Central não deve reagir com muito vigor. Outros dizem que há o risco de esses choques se perpetuarem, contaminando outros preços da economia.

O principal motivo de preocupação, porém, é que a alta da expectativa de inflação significa um certo descrédito dos analistas do mercado de que o Banco Central vai se empenhar suficientemente para entregar a meta de inflação no ano que vem.

Na teoria, o BC tem todos os instrumentos à disposição para fazer a inflação ficar dentro do objetivo em 2022. Altas de juros feitas agora atingem o seu efeito máximo nos índices de preços justamente no próximo ano-calendário. Se o mercado realmente acreditasse que o Banco Central vai fazer o que for preciso para cumprir o seu mandato, não iria prever inflação acima da meta.

Então o Banco Central deve ser mais duro com os juros simplesmente porque as expectativas de inflação subiram? Na teoria, não é tão automático. A meta do BC é a inflação, e não as expectativas de inflação. As projeções de inflação do mercado importam para a política monetária apenas na medida em que influenciam as projeções de inflação do BC e o balanço de riscos para a inflação.

Um exame do histórico das expectativas de inflação mostra que não é incomum as expectativas se descolarem um pouco da meta do ano seguinte. Na verdade, essa é mais a regra do que a exceção. Em abril de 2020, por exemplo, o mercado projetava uma inflação de 3,4% para 2021, abaixo da meta, que é de 3,75%. O Banco Central baixou os juros nos meses seguintes, mas foi mais devagar do que muitos queriam e resistiu aos apelos de economistas para levá-los a zero. Acabou adotando o “forward guidance”, que é a promessa de não subir os juros mesmo em situações em que normalmente subiria.

Em abril de 2019, a projeção de inflação para o ano seguinte, 2020, estava exatamente na meta, de 4%. Esse é um evento muito raro, que só havia acontecido dez anos antes, em 2009. De 2010 a 2016, ficou sistematicamente acima da meta, no período da grande desancoragem das expectativas. O mercado considerava o então presidente do BC, Alexandre Tombini, tolerante com a inflação e achava que a presidente Dilma Rousseff interferia nas decisões de política monetária.

Em 2017 e 2018, a situação foi inversa, e as projeções estavam abaixo da meta de inflação - embora com uma distância não tão grande. Setores do mercado entendia que o então presidente do BC, Ilan Goldfajn, tinha um comportamento assimétrico, combatendo com mais vigor a inflação acima da meta do que abaixo dela.

E agora, qual é a explicação para as expectativas de inflação estarem acima da meta? Há vários determinantes para as expectativas de inflação de curto prazo, como a taxa de câmbio, o preço das commodities e o nível de ociosidade da economia. Mas, para um prazo tão longo quanto 2022, o que importa mesmo é a postura da política monetária e, em menor grau, a situação fiscal do país.

Quando há dúvida sobre a capacidade de o governo colocar as contas públicas em ordem, o mercado começa a achar que o Banco Central terá que manter os juros baixos para reduzir os encargos da dívida pública. As expectativas de inflação podem sair fora da meta porque o mercado acha que o Banco Central não vai manipular os juros para controlar a inflação.

Hoje, o Banco Central é independente e quase ninguém acha que seus dirigentes sejam lenientes com a inflação. Mas muitos analistas acham que o Comitê de Política Monetária (Copom) se comprometeu demais, no comunicado e na ata da sua última reunião, com um cenário de normalização parcial de juros, ou seja, que não retiraria completamente os estímulos monetários à economia.

O BC já procurou corrigir esse erro na comunicação - o seu presidente, Roberto Campos Neto, disse que o cenário central contempla uma normalização parcial dos juros, mas ressaltou que não há nada escrito na pedra. “O único compromisso que o BC tem, é bom reforçar, é perseguir o centro da meta de inflação no horizonte relevante”, disse o diretor de Política Monetária do BC, Bruno Serra Fernandes. “Ajuste parcial não é compromisso.”

As declarações mais incisivas dos dirigentes do BC, porém, não foram suficientes para impedir a alta das expectativas de inflação. Economistas de mercado esperam que, na reunião da semana que vem, o Copom reformule a sua comunicação.

Pouquíssimos esperam que o Copom aperte o passo da alta de juros, já que o comitê sinalizou de forma bastante explícita que precisaria uma mudança muito grande de cenário para subir os juros mais do que o 0,75 ponto percentual prometido. Campos Neto se comprometeu a avisar antes se o cenário tiver mudado tanto. Mas é provável que a sinalização de alta parcial de juros seja temperada com o compromisso de fazer o que for necessário para cumprir a meta.


Bruno Carazza: Às cegas

Sem conhecer seus cidadãos, governo se perde na pandemia

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia inicia seus trabalhos nesta semana e assim o espetáculo da política se arma, com a plateia, dividida, pronta para acompanhar cada lance com balde de pipoca e refrigerante.

Apurar responsabilidades diante da maior tragédia social da história brasileira recente, com quase 400 mil mortos até o momento, sem dúvida é necessário - e mais do que isso, é algo que se faz urgente há tempos. Mas apenas isto não basta.

Seguindo o roteiro de outras CPIs do passado, preparem o F5 de seus teclados para atualizar, em curtos espaços de tempo, as notícias em tempo real dos depoimentos, denúncias e manobras de ambos os lados da política buscando incriminar ou isentar o presidente da República pelo colapso na saúde.

Independentemente do veredito final da CPI - isso se ela vier a chegar a algum desfecho, visto que a maioria das investigações morre sem qualquer conclusão -, é muito provável que continuaremos sem discutir as causas estruturais de nosso fracasso e as lições que podemos extrair desta crise.

A chegada ao Brasil do novo coronavírus expôs de modo flagrante muitas das nossas fragilidades. Do desequilíbrio fiscal que reduziu a margem de manobra para políticas de resgate social e econômico à distribuição irregular de leitos de UTI ao longo do território nacional, a pandemia demonstrou que as falhas do governo atual apenas agravaram problemas que são crônicos no Estado brasileiro.

Na polêmica conversa com o senador Kajuru, Bolsonaro pedia sua ajuda para “fazer do limão uma limonada”. Na lógica do inquilino atual do Palácio do Alvorada, a frase significava usar a CPI atual para se blindar e, ainda por cima, colocar na mira ministros do STF e governadores e prefeitos que lhe desagradam.

Além da apuração dos responsáveis pela CPI, a verdadeira limonada a ser extraída diante de centenas de milhares de vidas e milhões de empregos perdidos é corrigir as deficiências que nos empurraram ainda mais fundo no precipício atual.

Das múltiplas dimensões que precisam ser estudadas, em “homenagem” à recente decisão governamental de sepultar de vez a realização do Censo em 2021, direcionarei aqui o foco para a questão do uso de dados e da tecnologia para obter resultados melhores nas políticas públicas.

Há poucos dias o Ministério da Saúde informou que em torno de 1,5 milhão de pessoas ainda não apareceu para tomar a segunda dose de vacinação. Dezenas de estudos de economia comportamental realizados mundo afora demonstram que a taxa de comparecimento cresce de maneira significativa caso o cidadão receba uma cutucada (“nudge”) por ligação telefônica ou mensagem de texto lembrando-o de retornar ao posto de saúde na data certa.

Essa alternativa simples, barata e altamente eficaz poderia estar sendo adotada em massa em todo o país caso o SUS dispusesse de um prontuário médico digital abrangente e atualizado de toda a população - mas isso não existe em escala nacional.

No caso do sistema de transportes urbanos (um dos principais vetores de contaminação das pessoas mais pobres), estratégias de ação podem ser traçadas com a utilização de dados do fluxo de passageiros, frequência ao longo do dia e itinerários. Essas informações estão disponíveis para a maioria das prefeituras das grandes cidades brasileiras, pois são utilizadas para a auditagem e cálculo de reajuste de tarifas das empresas de ônibus. Com uma articulação com o empresariado, soluções podem ser construídas para minimizar o sofrimento de milhões de pessoas mesmo após a pandemia.

Outra dimensão que não podemos deixar passar em branco é a falência do sistema público de ensino no país. Passado mais de um ano do início da pandemia - com a omissão injustificável dos ministérios da Educação, das Comunicações, da Cidadania, da Ciência e Tecnologia e de todas as demais pastas que deveriam coordenar uma resposta à situação - a maioria das secretarias estaduais e municipais não foram capazes de utilizar e fornecer respostas tecnológicas para diminuir o abismo entre os alunos mais pobres e seus semelhantes mais ricos que frequentam o sistema privado.

Para não ficar só no que deveria ou poderia ter sido feito, vai aqui um exemplo concreto de como o governo pode explorar o potencial revolucionário da tecnologia em benefício dos brasileiros.

Na terça-feira eu fazia uma caminhada pelas ruas da Savassi, em Belo Horizonte, quando fui parado por um vendedor de balas, que me pedia ajuda para comprar comida. Respondi com o tradicional “me desculpe, mas estou sem carteira” (o que naquele dia era a mais pura verdade, pois eu só tinha o celular e um cartão de crédito no bolso da bermuda). Ele, porém, me respondeu: “Você pode me pagar com Pix”.

Implantado pelo Banco Central em novembro de 2020, o novo sistema de pagamentos instantâneo contava, em março passado (último dado disponível), com 75,6 milhões de pessoas físicas e 5 milhões de empresas cadastradas. Naquele mês circularam pelo Pix R$ 101,8 bilhões de pessoa para pessoa, R$ 85,7 bilhões entre empresas, R$ 28,4 bilhões de empresas para indivíduos e R$ 21,5 bilhões no sentido contrário.

O sucesso do Pix, que em poucos meses se popularizou e chegou até mesmo às camadas mais pobres de nossa população, não vem por acaso. Essa inovação foi desenvolvida cuidadosamente pelos técnicos do Banco Central ao longo dos últimos anos, com todos os seus aspectos tecnológicos e regulatórios discutidos amplamente com o sistema financeiro, não sendo interrompido pelas eleições ou pela troca de comanda na instituição.

Trata-se, infelizmente, de um ponto fora da curva. Basta lembrar que, após o lançamento da primeira etapa do auxílio-emergencial, o ministro da Economia se surpreendeu com os quase 40 milhões de “invisíveis” que teriam sido descobertos pela equipe econômica.

Com a decisão de não realizar o Censo Demográfico neste ano, Paulo Guedes reafirma que o governo brasileiro prefere continuar conduzindo o país às cegas.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Andrea Jubé: 'Deus poupou-me do sentimento do medo'

Centro já descartou Huck e Moro como presidenciáveis

Vamos tratar aqui de três presidentes: pela ordem, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, e Jair Bolsonaro. Este passou recibo, com firma reconhecida, de que sentiu a mão fria do “impeachment” roçar-lhe as costas na semana passada, quando o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) desferiu-lhe duas bordoadas: confirmou a ordem de instalação da CPI da pandemia, e o restabelecimento dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A CPI da pandemia, se não tem o impedimento do presidente como alvo, provocará enxaquecas palacianas. Lula, por sua vez, desponta hoje como a principal ameaça à reeleição de Bolsonaro. Mas, remarque-se que a política muda como as nuvens - ou como o humor presidencial.

Bolsonaro está mal humorado, e deixou o azedume transparecer na “live” de quinta-feira, quando o STF sacramentou a investigação contra seu governo, e a elegibilidade de Lula. “Só Deus me tira da cadeira presidencial, e me tira, obviamente, tirando a minha vida", vociferou.

Em recado velado, porém, audível, ao Congresso, ao STF e à oposição, acrescentou, com ênfase, que salvo a prerrogativa divina, “o que nós estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar, mas não vai mesmo. Não vai mesmo, tá ok?” Nesse trecho cifrado, Bolsonaro aludiu à ameaça de “impeachment”.

O temor do impedimento ronda o Planalto há meses, e vai e volta em ondas, como o mar. Ou como a pandemia, para ser exata. A primeira onda deu-se em junho do ano passado, quando Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), foi preso, o que acendeu a luz amarela no Palácio. O episódio teve o condão de suspender a sucessão de atos antidemocráticos pelo fechamento do Congresso e do STF, que Bolsonaro, e sua militância, estimulavam.

A segunda onda se consumou há algumas semanas, quando o Centrão redobrou a pressão pela saída do chanceler Ernesto Araújo, em paralelo ao recrudescimento da pandemia. Para não passar recibo, Bolsonaro improvisou uma ampla reforma, aproveitando-se para se livrar do incômodo ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos três comandantes das Forças Armadas, que, pela sua percepção, não o respeitavam como comandante-em-chefe, conforme prescreve a Constituição Federal.

Nessa ampla reforma o medo do “impeachment” ganhou nome e sobrenome: Flávia Arruda, a elegante e discreta ministra da Secretaria de Governo, cuja nomeação selou a aliança de Bolsonaro com o Centrão raiz: o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, e o PL de Valdemar Costa Neto.

Quando os generais Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto decidiram finalmente ceder e entregar a articulação política para o Centrão, uma semana antes do domingo de Páscoa, o primeiro nome lembrado foi o do senador Eduardo Gomes (MDB-TO), que tinha o padrinho mais forte do mercado: o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Mas toda a força de Flávio empalidece diante da caneta de Arthur Lira (PP-AL), que despacha os requerimentos de “impeachment”. Por isso, os dois generais concluíram que o novo ministro tinha de ser egresso da Câmara, e abençoado por Lira. Ontem Flávia admitiu em uma “live” promovida pela XP Investimentos, que recebeu o convite de Bolsonaro para assumir o cargo, mas tratou do assunto com Lira, e com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Com Flávia Arruda, Bolsonaro reforçou a blindagem contra o “impeachment” com uma segunda camada. A primeira camada é o vice-presidente, Hamilton Mourão. Num cenário de instabilidade quase permanente, nenhum deputado ou senador calejado de crises quer apear um ex-deputado do poder para passar a caneta para um general. “Ele não inspira confiança”, reconheceu um cacique do Centrão em conversa com a coluna.

Um cacique do Centrão é categórico ao rechaçar qualquer risco de “impeachment”, a começar porque falta o elementar: povo na rua. “Impeachment” depende de dois motivos: o político e o jurídico. A pandemia complica o elemento “povo na rua”, mas isso não basta para revisar a fórmula basilar dos impedimentos presidenciais: motivo político, primeiro; depois, o jurídico. “O motivo jurídico se arruma, no [Fernando] Collor foi o Fiat Elba, com a Dilma [Rousseff], foram as pedaladas, mas tem que ter o ingrediente da sociedade cobrando”, explica o líder do centro.

Nessa quadra, cresce a corrida pela terceira via capaz de quebrar a iminente polarização entre Lula e Bolsonaro. A novidade é que embora ainda figure nas pesquisas, o nome do apresentador Luciano Huck foi alijado das conversas de bastidores no Centrão. Com Lula no jogo, a convicção unânime é de Huck refugou. Por ora, o ex-juiz Sergio Moro também não é levado a sério como presidenciável, apesar da boa performance nas pesquisas.

Sem Huck e Moro, o nome que mais empolga no momento é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, do DEM. Na pesquisa Ipespe realizada no Estado de São Paulo, encomendada pelo Valor, Mandetta alcançou 6% no cenário com o governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, disputando, sem João Doria.

Entretanto, o DEM também já colocou no radar de presidenciáveis o nome do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que larga com alguma vantagem em relação ao correligionário: ocupa cargo de visibilidade nacional, e é mineiro, representante do segundo maior colégio eleitoral, berço de presidentes da República, desde a política café-com-leite, até Tancredo neves e Itamar Franco.

Para citar os mineiros, faz falta a Bolsonaro um conselheiro político do quilate de Tancredo Neves, que serviu a Juscelino Kubitschek. Tancredo ajudou o poeta Frederico Schmidt a redigir para JK um pronunciamento que se tornou famoso ao repelir uma rebelião militar. A frase mais forte proclamava: “Deus poupou-me do sentimento do medo”.


Sergio Lamucci: O cenário negativo para a renda dos mais pobres

O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados, mais afetados pela pandemia

O cenário para a renda dos brasileiros mais pobres em 2021 é bastante negativo. Com a piora da pandemia da covid-19 e o avanço lento da vacinação, a atividade econômica foi prejudicada no primeiro semestre, resultando na continuidade da fraqueza do mercado de trabalho, num ano em que o auxílio emergencial será bem menor do que em 2020. A desigualdade de renda, nesse quadro, voltará a crescer.

Um estudo da Tendências Consultoria Integrada estima que haverá neste ano um aumento de 1,2 milhão de domicílios nas classes D e E, definidas como as que têm rendimento mensal domiciliar de até R$ 2,6 mil. Com isso, essas faixas de renda deverão passar a responder por 54,7% do total de residências no país.

 “O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados”, aponta o trabalho, ressaltando que “o caráter regressivo da pandemia permanece desproporcional” para as pessoas de menor nível de escolaridade.

“A piora do balanço de riscos para a atividade econômica deve restringir o ímpeto de contratações, sobretudo no segmento de serviços, cuja tendência de crescimento deve ser interrompida, à vista do recrudescimento do isolamento social em diversas localidades do Brasil.” A consultoria revisou recentemente a estimativa para a expansão do PIB em 2021 de 2,9% para 2,7%. Ainda que a nova versão do programa que permite a suspensão do contrato de trabalho ou a redução de jornada e de salários (o BEm, a ser reeditado em breve) deva contribuir para sustentar o emprego formal, a renovação do auxílio emergencial não deverá conter a alta dos desempregados, avalia a Tendências.

O auxílio emergencial atingiu um valor total de R$ 293 bilhões em 2020, o equivalente a 4% do PIB. De abril a agosto, o valor médio foi de R$ 600; de setembro a dezembro, de R$ 300. Em alguns meses, alcançou 67,9 milhões de pessoas, equivalente a um terço da população. Neste ano, o Congresso aprovou R$ 44 bilhões para o benefício fora do teto de gastos, a ser pago em quatro parcelas, com um valor médio de R$ 250. Se o benefício em 2020 foi amplo demais, neste ano pode haver o problema oposto - o valor é mais baixo, atenderá a menos pessoas e valerá por um prazo mais curto.

“Diante do menor auxílio emergencial e da perspectiva de recuperação moderada do mercado de trabalho, a massa total de renda deve recuar 3,8% em 2021”, impedindo a manutenção no mesmo nível de 2020, diz a Tendências. Essa é a variação prevista em termos reais, já descontada a inflação. No conceito da consultoria, a massa total considera o rendimento de todos os trabalhos, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltado para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência), os benefícios previdenciários e outras fontes de renda. No ano passado, o indicador cresceu 5,2%, fortemente impulsionado pelo auxílio emergencial. Neste ano, haverá uma ressaca mais intensa da massa de renda no Norte e Nordeste, após o enxugamento dos repasses emergenciais, aponta a Tendências.

A expectativa dos analistas é que a retomada da economia ocorrerá no segundo semestre. Com o avanço da vacinação, as medidas de restrição à mobilidade tendem a ser relaxadas. Na visão da Tendências, a economia brasileira deve manter trajetória de gradual recuperação em 2021, sem uma melhora plena do mercado de trabalho, devido a fatores como “o agravamento da pandemia, os recentes sinais de fraqueza de grandes setores, a redução do arsenal de políticas anticíclicas e as incertezas da agenda de política econômica”.

Num primeiro momento, a retomada da atividade deve favorecer as classes sociais mais altas, segundo a Tendências. “A elite do funcionalismo público sente menos os efeitos da crise, já que a dinâmica econômica pouco interfere em seus salários e planos de carreira”, aponta o estudo, observando também que a maior concentração de empregadores no topo da pirâmide social propicia um rápido reequilíbrio financeiro das famílias. “Com rendimento atrelado aos ganhos de suas empresas, os donos de negócio buscam recuperar o padrão histórico de lucro, antes de reajustar salários de empregados e recontratar”, diz a Tendências.

Para as classes D e E, as perspectivas são desanimadoras. “A mobilidade social das classes D e E deve ser reduzida nos próximos anos, acompanhando um fenômeno típico de países com alta desigualdade de renda”, avalia a consultoria. “O maior entrave ao crescimento da renda dos estratos sociais mais pobres é a educação não revertida em produtividade. O ingresso no mercado de trabalho é o principal meio de redução da pobreza, mas não é condição suficiente para superá-la.”

A Tendências observa que o mercado de trabalho brasileiro é fortemente caracterizado por baixas remunerações, elevadas desigualdades entre grupos de população ocupada, altas taxas de informalidade e marcante heterogeneidade entre os setores produtivos. “O alto nível de desemprego, a falta de ganho real no salário mínimo, o elevado grau de informalidade e a subutilização dos trabalhadores devem impedir ganhos elevados de renda nas classes D e E.” Nas projeções da Tendências, depois de crescer 23,4% em 2020 em termos reais, na esteira do auxílio emergencial, a massa de renda das classes D e E deve cair 14,4% em 2021, crescendo a uma média de apenas 0,85% de 2022 a 2025, em estimativas que já descontam a inflação. Já a massa de rendimentos da classe A, que subiu 1% em 2020, vai ter aumento real de 2,8% neste ano e de 5,6% no ano que vem, com um avanço próximo a 4,5% nos três anos seguintes, estima a consultoria.

Para escapar desse cenário negativo para a renda, é fundamental primeiro acelerar a vacinação. Isso permitirá afrouxar as medidas de restrição à mobilidade social, beneficiando em especial a recuperação do setor de serviços, o maior empregador da economia. Também é essencial a renovação imediata dos programas de empréstimos a micro e pequenas empresas e de proteção ao emprego, para dar fôlego às companhias de pequeno porte. Se a recuperação da atividade continuar a patinar, uma nova extensão do auxílio emergencial deverá ser necessária, o que será um desafio num quadro de penúria das contas públicas.


Bruno Carazza: Bancarrota blues

Muda discurso sobre Meio-Ambiente, mas não a prática

Tomada ao pé da letra, há uma enorme evolução entre o discurso proferido por Jair Bolsonaro na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, bem no início do seu mandato (22/01/2019), e a carta enviada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na última quarta-feira (14/04), confirmando presença na Cúpula de Líderes sobre o Clima.

Em sua primeira viagem internacional, o novo presidente brasileiro apresentou-se à elite mundial com uma fala de meros 6 minutos e 37 segundos. Na ponta do lápis, foram 741 palavras - pouco mais do que uma página de Word. Já a carta enviada para Biden na semana passada, ao contrário, não economizou no texto; foram sete laudas, e diferentemente da apresentação na Suíça, quando desperdiçou a chance de apresentar os principais planos para o seu governo, Bolsonaro na missiva para o americano tratou de apenas um assunto: o meio ambiente.

Para além do tamanho do texto, houve uma mudança de tom. Em Davos, o presidente brasileiro apresentava o patrimônio natural brasileiro como um ativo a ser negociado. “Temos a maior biodiversidade do mundo e nossas riquezas minerais são abundantes. Queremos parceiros com tecnologia para que esse casamento se traduza em progresso e desenvolvimento para todos. Nossas ações, tenham certeza, os atrairão para grandes negócios”, afirmou, anunciando que o Brasil estava de braços abertos para o mundo.

A carta para Joe Biden é muito mais cautelosa. Começa reiterando “o compromisso do Brasil com os esforços internacionais de proteção ao meio ambiente, combate à mudança do clima e promoção do desenvolvimento sustentável”. Em seguida, faz um retrospecto dos avanços do país na área, frutos dos governos anteriores - embora não deixe isso explícito, não deixa de ser um fato importante para quem sempre criticou seus antecessores na área ambiental.

Por fim, Jair Bolsonaro apresenta planos muito mais elaborados do que simplesmente obter parceiros para explorar as riquezas da floresta: intensificar o combate ao desmatamento ilegal e as queimadas, acelerar a implementação de um mercado de créditos de carbono e estimular o pagamento por serviços ambientais para que proprietários de terra se sintam incentivados a manter a floresta em pé, entre outras medidas.

Comparando os dois textos, seríamos levados a concluir que o presidente brasileiro mudou, finalmente se conscientizando da seriedade da questão ambiental e dos imensos ganhos que o país pode obter ao assumir um maior protagonismo nessa área. Só que não (#sqn, como se diz nas redes sociais).

Quem mudou, na verdade, foi o mundo. E a reunião que começa na próxima quinta-feira (22/04), tendo o presidente dos Estados Unidos como anfitrião num encontro de 40 líderes mundiais, revela isso.

Há cinco anos o Global Risks Report, pesquisa realizada junto a centenas de especialistas do setor privado, governos e sociedade civil, aponta os danos causados pelo aquecimento global como o evento com maior probabilidade de ocorrência no curto prazo. Para 2021, embora a pandemia se apresente, por motivos óbvios, como tendo o maior impacto, a falha na ação climática, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos naturais aparecem, junto com as armas de destruição em massa, como os “top-five” riscos medidos pelos seus efeitos potenciais sobre o planeta.

O atual movimento político na direção da antecipação das metas celebradas no Acordo de Paris, contudo, não se deve apenas a uma preocupação crescente com a questão climática. Há uma revolução econômica e tecnológica em curso, e ele traz em seu âmago a questão ambiental - para o bem ou para o mal.

O barateamento da produção de fontes limpas de energia, como eólica e solar, combinado com o desenvolvimento de baterias mais potentes, recarregáveis e leves, prenunciam um futuro próximo menos dependente da queima de derivados do petróleo e do gás natural.

Além disso, o aprimoramento dos mercados de crédito de carbono - que nos últimos meses têm batido recordes sobre recordes - tem sinalizado para as companhias de energia e a indústria pesada que o custo de poluir será cada vez mais salgado. Para completar, fundos de investimentos bilionários estão adotando a sustentabilidade em suas políticas de governança e premiam empresas responsáveis na área ambiental.

Há também o lado sombrio dessa história, que é o protecionismo. Os dados mais recentes da Organização Mundial do Comércio revelam que em 2018 foram apresentadas 663 notificações de práticas desleais de comércio que tinham como pano de fundo questões ambientais. E no âmbito da União Europeia já se discute abertamente uma proposta para proteger empresas locais contra a concorrência de produtos provenientes de países que não descarbonizarem as suas economias.

Voltando à carta de Bolsonaro para Biden, John Kerry, responsável pela ação climática no governo americano, tuitou na sexta que a mudança de tom do presidente brasileiro foi importante, mas é preciso demonstrar “resultados tangíveis”. E quando se vê o que o Palácio do Planalto propõe de concreto, prevalece a velha agenda do que há de mais retrógrado no agronegócio, no garimpo e nas madeireiras.

Basta conferir a pauta prioritária encaminhada pelo governo aos novos presidentes da Câmara e do Senado em fevereiro deste ano: nela constam propostas de mineração em terras indígenas (PL nº 191/2020), regularização fundiária na Amazônia (PL nº 2.633/2020) e flexibilização das regras de licenciamento ambiental (PL nº 3.729/2004).

O discurso pode ter melhorado, mas na prática a visão do governo brasileiro continua sendo aquela demonstrada de forma nua e crua pelo diretor Marcus Vetter no documentário “O Fórum”. Nos bastidores do encontro de Davos em 2019, Bolsonaro responde da seguinte maneira à preocupação do ex vice-presidente americano Al Gore com o desmatamento no Brasil: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas. E gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Andrea Jubé: Está em curso uma operação de minimização de danos

Objetivo de parte dos ministros é salvar Lava-Jato

A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu ontem o salvo-conduto para que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorra à Presidência da República em 2022, prerrogativa que lhe foi negada pela mesma Corte em 2018.

“Três anos depois” - dirá o PT, repetindo o comentário irônico do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas à nota de repúdio divulgada pelo ministro Edson Fachin.

O relator da Lava-Jato reagiu à revelação, no livro de memórias do general, de que a cúpula do Exército atuou para pressionar a Corte a barrar a candidatura do petista naquele ano.

Em contrapartida, o voto de Fachin blindou a Lava-Jato, como fez questão de deixar claro o presidente do STF, Luiz Fux. Em seu voto, ele explicitou que os efeitos do julgamento de ontem não são “sistêmicos”, e que a operação está preservada.

O julgamento de ontem foi uma operação de redução de danos: se a maioria do plenário confirmar, na semana que vem, a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos contra Lula, conforme decisão da Segunda Turma, somente nesta hipótese a Lava-Jato estaria à deriva.

A maioria em torno da parcialidade de Moro anularia integralmente os processos contra Lula. A prevalecer exclusivamente a declaração de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, os processos serão retomados no juízo federal do Distrito Federal ou em São Paulo, conforme tese levantada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Nessa hipótese, entretanto, é pouco provável que haja tempo hábil para nova condenação que tornasse Lula novamente inelegível. “A candidatura de Lula agora é de difícil reversão”, sentenciou o secretário-geral do PT e advogado de formação, deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Ele avalia que o julgamento de ontem evidenciou que foi montada uma “farsa” para inviabilizar a candidatura de Lula em 2018.

“Ele só foi julgado lá atrás porque tinha um juiz suspeito, a incompetência é derivada da suspeição”, afirmou. Nem a defesa de Lula nem a cúpula petista espera para a próxima semana a reedição do placar de 8 a 3 em relação à análise da imparcialidade de Moro. Contudo, há expectativa por um placar favorável de 6 a 5. Três votos contra Moro são conhecidos por causa do julgamento na Segunda Turma: os de Gilmar, Lewandowski e Cármen Lúcia. A aposta para formar maioria volta-se para os votos de Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. A conferir.

Talvez para evitar que à demora de três anos se somasse mais uma semana, os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, e Ricardo Lewandowski anteciparam ontem os seus votos, tornando fato consumado a decisão em relação à incompetência da 13ª Vara Federal para julgar os processos contra Lula. Do contrário, o impasse se estenderia até a retomada do julgamento no dia 22. O suspense ficou reservado ao desfecho da suspeição de Moro.

A esperança também move os petistas, embalados por uma declaração sintomática de Fachin, em agosto do ano passado, de que a candidatura presidencial de Lula em 2018 “teria feito bem à democracia”.


César Felício: A aposta de Lula no front externo

Apoio internacional é arma para se esquivar de mazelas

Em uma charge do jornal suíço “Neue Zürcher Zeitung”, publicação que está longe de ser de esquerda, o presidente Jair Bolsonaro foi retratado dentro de uma escavadeira, derrubando uma árvore. Atrás do presidente, em um gigantesca escavadeira vermelha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva prepara-se para remover o rival, enquanto um pequenino tucano revoa apavorado.

Nesta semana, o francês “Le Monde” publicou um extenso material em que busca demonstrar que a Operação Lava-Jato foi muito influenciada por integrantes do governo e da Justiça dos Estados Unidos.

Em conversa por WhatsApp com o jornalista John Lee Anderson, da “New Yorker”, publicada dia 13, Lula pontificou: “É preciso que os países ricos esqueçam as divergências para discutir a produção de vacinas e a vacinação de todos”. Ao falar com o espanhol “El País”, no mês passado, abusou da soberba. “A Europa desapareceu na política. Tudo são comissões. Comissão para isto, comissão para aquilo... todos uns burocratas”, e arrematou: “Sejamos sinceros, meu tempo foi o melhor momento da América Latina desde Colombo”.

Se no Brasil o ex-presidente até o momento evitou conversar com veículos de imprensa de expressão nacional, salvo quando as entrevistas são conduzidas por jornalistas com quem tem afinidade pessoal no momento, no exterior o petista tem se sentido à vontade para falar, mesmo quando é contestado de modo mais contundente, como foi o caso de sua entrevista para a portuguesa “RTP” ou a italiana “Tg2 Post”. Na última, chegou a fazer um mea culpa, algo muito raro, por não ter extraditado o terrorista Cesare Battisti. O episódio faz com que sua imagem na Itália seja pior do que a que desfruta em outros países. Sobre Battisti, ele disse que se surpreendeu com a delação do italiano. “Mi sono sbagliato” [eu estava errado] disse Lula, na tradução livre feita por portais daquele país.

As entrevistas de Lula lá fora são semeaduras em um terreno já arado e adubado faz tempo. Um paciente trabalho de cultivo de relações fez com que o ex-presidente tenha vencido no exterior a disputa de narrativa com os artífices da Lava-Jato. O relato que prevalece é que a principal liderança de oposição ao atual presidente brasileiro foi alvo de perseguição judicial e política. Ele não é visto como o presidente em cujo governo se desenvolveu o maior esquema de corrupção conhecido no planeta.

Sua tarefa é ainda mais facilitada pelo fato de o Brasil ter um presidente como Bolsonaro. Segundo levantamento feito pela consultora política Olga Curado, com apoio da Universidade Federal de São Carlos, um grupo de sete publicações (“New York Times”, “Le Monde”, “El País”, “Der Spiegel”, “The Guardian”, “Economist” e “Washington Post”) editaram 1.179 matérias sobre o Brasil. Destas, 92% ressaltando aspectos negativos do país.

Em 52% dos casos, eram matérias sobre erros de gestão de Bolsonaro na condução da pandemia. Em 23% das situações, notícias sobre a fragilidade das instituições, em função de atos e palavras do presidente. Foi a tal personagem, com este tipo de imagem no exterior, que Sergio Moro serviu como ministro por um ano e meio. Não há como a Lava-Jato ser vista de maneira positiva no âmbito internacional, já que a sua consequência política concreta se chama Jair Messias Bolsonaro.

Isso contribui para que o ex-presidente se esquive de responder pelas mazelas de sua gestão e do governo da sua sucessora. Mais: ele se apresenta de volta ao cenário pautando o debate que lhe interessa.

É evidente que o brasileiro médio pouco se importa com a imprensa internacional e provavelmente nunca leu nada sobre o Brasil apresentado a estrangeiros. Mas Olga Curado ressalta que para o público doméstico a cobertura internacional de Lula serve como um reforço de argumento àqueles que já têm simpatia pelo presidente.

No imaginário de certos públicos, a grande mídia nacional carece da credibilidade que possui a mídia estrangeira, supostamente não envolvida com as circunstâncias domésticas. São validadores. Auditores independentes, por assim dizer.

Se os bolsonaristas lançam mão de blogueiros para responder ao noticiário negativo, Lula prefere dar recados em inglês, francês, espanhol ou italiano do que se submeter ao escrutínio da grande imprensa nacional.

O prestígio internacional de Lula é escorado no passado. Estão com ele ex-mandatários que foram seus contemporâneos, como o francês Nicolas Sarkozy e o espanhol José Luis Zapatero, o paraguaio Fernando Lugo, o equatoriano Rafael Correa e o panamenho Martín Torrijos. Os quatro últimos reunidos no Grupo de Puebla, que soltaram no mês passado uma nota definindo a decisão do ministro Luiz Edson Fachin em anular as sentenças de Curitiba como “um sopro de esperança no restabelecimento do devido processo legal”.

Mas Lula também tem seus aliados do presente. Ter sido recebido pelo papa Francisco não é trivial. E um conterrâneo, do pontífice, o presidente argentino Alberto Fernández soltou no dia 11 uma série de tuítes que, caso fossem de autoria de um general brasileiro, provocariam de certo uma crise com o Supremo, uma vez que publicados na antevéspera de um julgamento na corte.

“Vemos com preocupação que pretende reiniciar-se a perseguição a Lula utilizando as mesmas más práticas já usadas”, afirmou o argentino. “Dar marcha a ré na decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal por pressões midiáticas e políticas significaria um retrocesso institucional para o Brasil e um dano incalculável para os que reivindicam o Estado de Direito como base de sustentação à democracia”.

Correntes como esta para Lula são importantes porque há uma possibilidade de que ele se torne em 2022 um candidato a presidente que polarize com Bolsonaro tendo que se defender na Justiça de modo constante. O julgamento de ontem no STF, em que venceu por 8 a 3, em nada indica vida tranquila. O voto de Fux, por exemplo, sugere que a suspeição de Moro não é tema pacificado. Pode fazer uma campanha em meio a petições, liminares, alegações iniciais, alegações finais, sustentações orais, pronúncias, agravos, quem sabe sentenças em primeira instância. O petista precisará usar a vitimização como uma estratégia perene.


César Felício: Bolsonaro e os ungidos do Senhor

Presidente deve redobrar aposta conservadora

Na Assembleia de Deus - Ministério de Madureira no Parque Jandaia, em Guarulhos, só se admitiu a presença no culto do domingo a quem se apresentou de máscara e com álcool gel. Foi feito um rodízio para cumprir o protocolo de se garantir a lotação de apenas 25% da capacidade do templo. O frequentador é convidado por mensagem de aplicativo a comparecer. Quem vai em um culto, precisa aguardar uma semana para ser chamado de novo. Antes, havia fiéis que batiam ponto no templo todos os dias. A empolgação de cantos de louvor não existe mais, para evitar a emissão de partículas de aerosol.

É muito difícil convencer um religioso praticante que, mesmo com a adoção de todos estes cuidados, não há segurança sanitária para se promover a aglomeração em um evento fechado. Como de fato não há, por mais protocolos que se adotem.

A ilusão de que se pode driblar o vírus com cautelas, profilaxias e precauções, no entanto, é por demais persuasiva. E para os fiéis, há uma estrada aberta para se acolher como verdadeira a narrativa de que não passam de preconceito contra os religiosos os bloqueios à realização de cultos, referendada por governadores, prefeitos, ministros do Supremo Tribunal Federal e pelo consenso do entendimento científico,

O julgamento dessa semana no Supremo Tribunal Federal, portanto, reforça a estratégia bolsonarista de que existe um movimento “cristofóbico”. Estratégia na qual, por motivos diversos, se incorporam o ministro Kassio Nunes Marques, o advogado-geral da União e o procurador geral da República.

O presidente se apoia no Centrão, nos militares e no mercado para governar, não raro colaborando para jogar estes grupos um contra o outro. Para ganhar eleição, entretanto, ele depende do fundamentalismo cristão. É um conceito que transcende o protestantismo: abarca também movimentos leigos conservadores da Igreja Católica e as correntes denominadas “carismáticas” do catolicismo.

Houve um tempo, o da hegemonia na Câmara dos Deputados de Eduardo Cunha, em que os interesses do fundamentalismo cristão iam para a linha de frente do Parlamento. O lobby fundamentalista teve mais sucesso, entretanto, em barrar a agenda dita progressista e identitária do que propriamente em impulsionar a pauta conservadora.

Com o advento de Bolsonaro, este lobby deixou de dar o tom no Congresso, ao menos por agora, e cresceu sua influência de modo excepcional no Executivo. Começa a ofensiva este ano sobre o Judiciário, da qual a polêmica sobre os templos abertos é o primeiro movimento.

Um dos mecanismos de fidelização é a ocupação de espaços estratégicos. O antropólogo Ronaldo Almeida, livre-docente da Unicamp e especialista no tema, está mapeando o aparelhamento da máquina pública pelo fundamentalismo cristão. O mapeamento é parte de uma pesquisa que em breve aparecerá com mais detalhes em publicações especializadas.

É enganoso tomar como exibição de força evangélica apenas o fato de terem hoje cinco ministros na Esplanada (Luiz Eduardo Ramos, Onyx Lorenzoni, Milton Ribeiro, Damares Alves e André Mendonça). Nem todos deste grupo estão onde estão por serem evangélicos.

Chama mais a atenção de Almeida a qualidade dos espaços ocupados. Por meio do MEC e do ministério de Damares, o fundamentalismo tem como tocar sua pauta de modo transversal. Na Funai, os evangélicos conquistaram a área que cuida de indígenas isolados, ponto nevrálgico para a expansão missionária na região Norte.

No próximo ano, o da eleição presidencial, ninguém segura Bolsonaro, acredita Almeida. Ele procurará avançar com a agenda conservadora com toda força que tiver, para sedimentar seu apoio no segmento que em 2018 entregou a ele dois de cada três votos.

“Ele não vai parar um instante sequer de tentar fidelizar este público”, aposta o antropólogo. Até porque existem rachaduras no apoio fundamentalista a Bolsonaro, já perceptíveis a olho nu.

“A pandemia traz um problema para Bolsonaro entre os evangélicos, porque há uma incidência maior de mortes exatamente nas áreas em que a concentração de fiéis é maior. Quando Bolsonaro muda de tom em relação às vacinas, também está de olho nisso”, comenta o reverendo André Mello, da Igreja Presbiteriana da Aliança, em Florianópolis. Há lideranças evangélicas morrendo.

Bolsonaro chegou ao poder retratado por fiéis como um ungido do Senhor. E em um ungido do Senhor não se toca, e nem se cobra ao Altíssimo pelo fato de pessoas por vezes tão destituídas de mérito terem recebido o chamado para este papel. Ao ungido do Senhor se obedece. Só há um detalhe: o ungido do Senhor pode perder esta condição.

Mello afirma que em sua rede de contatos são frequentes as comparações de Bolsonaro com o rei Saul. É uma comparação simplesmente terrível no meio evangélico. Pelas mãos do profeta Samuel, Saul foi ungido para ser o primeiro rei do povo de Israel. Antes de receber a unção, Saul era apenas um pastor da menor tribo dos judeus que andava em busca de alguns jumentos perdidos. A autoridade de Saul foi aceita porque provinha de Deus, mas o monarca pecou contra o Senhor. Soberbo, ele envolveu Israel em guerras inúteis contra vizinhos poderosos e passou por cima da autoridade dos profetas, sem demonstrar arrependimento. Perdeu a condição de ungido, que foi transferida para Davi. Israel passou a estar sob juízo do Senhor. Nada poderia dar certo para o povo escolhido nas mãos do rei errado.

A metáfora indica que nada, nem mesmo o apoio evangélico, é monolítico ou incondicional. Cultivar essa base precisa ser um esforço permanente do presidente.

Doria

Por motivos que ainda não estão claros, o governador paulista João Doria não colhe dividendos em sua imagem depois do inegável sucesso de sua administração em produzir uma vacina que tem se mostrado eficaz, até o momento, contra a pandemia. A pesquisa Ipespe divulgada pelo Valor, se confirmada por futuros levantamentos, debilita dramaticamente sua articulação para concorrer à Presidência.


Maria Cristina Fernandes: Rejeição empresarial a presidente se mantém ascendente

Propaganda de apoio do PIB nacional com jantar em São Paulo foi tiro que saiu pela culatra

Se o jantar oferecido pelo dono da empresa de segurança Gocil, Washington Cinel, ao presidente da República tinha por objetivo propagandear o apoio desfrutado por Jair Bolsonaro no meio empresarial, o tiro saiu pela culatra. Grupos de WhatsApp de grandes empresários e investidores amanheceram indignados com a percepção vigente sobre o encontro. A avaliação é de que o Palácio do Planalto foi bem sucedido em passar a percepção, que asseguram equivocada, de que Bolsonaro tem apoio na elite econômica do país. A reunião, dizem, limitou-se a um punhado de empresários e banqueiros que responde a um dos critérios ou a ambos: são do núcleo duro raiz do bolsonarismo e estão sempre a assediar o presidente de plantão. A casa que sediou o jantar é um reflexo simbólico desta percepção. Vizinha do ex-deputado Paulo Maluf, nos Jardins, em São Paulo, a casa um dia pertenceu a um dos grandes industriais do país, José Ermírio de Moraes, e hoje é do empresário da segurança privada, ramo que cresceu junto com violência decorrente da falta de rumos do país.

A posição do grande empresariado e da grande finança estaria bem mais refletida, na visão deste interlocutor, em iniciativas como a Coalizão Brasil e a Concertação pela Amazônia, motivadas pelos equívocos da política ambiental brasileira, ou mesmo o apoio ao manifesto dos economistas por saídas para a pandemia. Essas mobilizações reúnem CEOs de grupos como Itaú, Klabin, Gerdau, Amaggi, Natura, Ambev, Gávea e Marfrig. Jantares do gênero são comuns em momentos de descrença sobre o apoio empresarial a um presidente em crise, mas a baixa representatividade do encontro de quarta-feira saltou aos olhos. A política dos “campeões nacionais” e a fartura do BNDES poupou a ex-presidente Dilma Rousseff de quóruns tão pouco representativos, o que não a impediu de cair.

A tentativa do presidente da República de ressuscitar o antipetismo para fisgar de volta o apoio empresarial perdido, diz este interlocutor, tampouco surtirá efeito. Entre aqueles que, de fato, ditam os rumos da economia nacional, este discurso não adiciona um único voto para o presidente da República em 2022. Uma parte deles reconhece que se o PT estivesse no poder o país não teria afundado tanto e a grande maioria recebe esse discurso do presidente da República como um estímulo redobrado para a busca por uma terceira via. A presença do ministro Paulo Guedes tampouco sensibilizou os empresários que ficaram de fora do jantar. Se o ministro da Economia já não empresta prestígio ao presidente da República, a recíproca também é verdadeira. Guedes hoje é visto como ministro de um país imaginário onde todos gostariam de viver, mas que, infelizmente, ninguém acredita existir senão em seus devaneios.

Apesar do incômodo gerado pelo jantar, cuja divulgação teve o empenho pessoal de ministros palacianos, não haverá mobilizações adicionais para mostrar o azedume com este governo. E o principal motivo é a pandemia. Os CEOs críticos ao bolsonarismo estão recolhidos em suas casas porque temem aquilo que o presidente despreza, a agressividade da covid-19. Cresce, porém, neste grupo, a percepção de que Bolsonaro, no limite, chegará a 2022.

O cerco da imprensa internacional a Bolsonaro reflete-se no comportamento dos parceiros internacionais desses empresários. Edições das duas principais publicações financeiras do mundo, “The Economist” e “Financial Times”, mostraram que o dano à imagem internacional do presidente é irreversível. A revista trouxe uma charge contestando que a resposta brasileira à pandemia seja conduzida por um cabeça-oca, mas sim por um “ignorante, teimoso e arrogante”. Já o jornal da City londrina trouxe uma reportagem sob o título “Bolsonaro mais isolado do que nunca” em que uma dirigente da Organização Pan-Americana de Saúde reportou preocupação com o espraiamento das variantes brasileiras por 15 vizinhos das Américas. É a percepção do Brasil como ameaça global que cresce no mundo e preocupa os grandes empresários brasileiros.

Não há, por outro lado, percepção sobre saídas fáceis à vista. Há empresários deste meio que se aproximaram do vice-presidente Hamilton Mourão por conta de sua atuação no Conselho Nacional da Amazônia mas não há qualquer mobilização real para apear o presidente da República do poder por conta da percepção de que o Congresso quer mantê-lo no cargo. O artigo do vice-presidente publicado na terça-feira, 6, no jornal “O Estado de S. Paulo” (“O que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas”) foi lido como uma manifestação clara de que Mourão não endossou o comportamento de Bolsonaro na recente crise militar e que subscreve a atuação estritamente constitucional das Forças Armadas em defesa das instituições nacionais.

Um dos empresários descrentes do bolsonarismo diz ter sido procurado por ministro de origem militar em busca de sua percepção sobre a conjuntura. O constrangimento do ministro ante seu pessimismo lhe deixou a impressão de que os militares deste governo têm a consciência de que estão em nau à deriva. Ante reclamações de que o Supremo Tribunal Federal estica a corda com o presidente, este empresário responde que o limite da tensão, na verdade, foi alargado lá atrás pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas com o tuíte ameaçador sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com o beija-mão promovido pelo mesmo general aos pré-candidatos à Presidência da República em 2018. Este empresário não mantém contato com o vice-presidente Hamilton Mourão. Tem a convicção de que, assim como o ex-ministro do TSE Herman Benjamin estava com a razão quando dizia que a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer deveria ter sido cassada por excesso de provas, é preferível dois impeachments em cinco anos a um crime de responsabilidade por dia.


Maria Cristina Fernandes: A boiada entalada na porteira

Liberação de cultos embute disputa pela vaga no Supremo

A velocidade com a qual fluem os cadáveres da covid-19 é inversamente proporcional ao represamento dos embates produzidos na pandemia pelo processo que o ministro do Meio Ambiente, na reunião ministerial revelada há um ano, chamou de “passar a boiada”. Parlamentares, ministros, juristas e, principalmente, o presidente da República se valeram da pandemia para impor sua agenda sobre um país de ruas esvaziadas e cidadãos crescentemente amedrontados pelo vírus. São tantos e tão gordos os animais que estão a passar pela porteira que a boiada entalou.

Os rebanhos mais visíveis estão no Executivo, mas vêm dos Três Poderes. No Judiciário, a disputa pela substituição do ministro Marco Aurélio Mello congestionou a porteira. As tratativas para a escolha influenciam a pauta e movem os arranjos internos no Supremo Tribunal Federal. A sessão de ontem foi um exemplo disso. Estava em pauta a liberação de cultos religiosos, mas o que estava em jogo mesmo era a ofensiva do ministro Kassio Nunes Marques sobre as prerrogativas de Gilmar Mendes como principal interlocutor do presidente no preenchimento das vagas dos tribunais.

O próprio Nunes Marques foi submetido pelo presidente a um beija-mão de Mendes em outubro do ano passado antes de sua nomeação. Agora se arvora a disputar espaço com aquele que avalizou sua escolha. Está em jogo a sobrevivência política e a liberdade de Bolsonaro e de seus filhos. Por isso são tão gordos os bois que se espremem na porteira. O presidente vê no agrado aos evangélicos o caminho para a mobilização de uma base de eleitores que, durante a pandemia, ficou ainda mais dependente espiritualmente das lideranças religiosas. É a aposta que faz para neutralizar, neste segmento, danos sobre sua imagem advindos do genocídio que podem atingi-lo até mesmo antes da eleição.

A escolha de Nunes Marques foi marcada pela tentativa de Bolsonaro de construir um condomínio de lealdades com Mendes e o Centrão. O aval dos evangélicos à nova escolha só demonstra um presidente mais isolado e menos confiante nos demais poderes. Foi ante este isolamento que Nunes Marques resolveu ganhar terreno. Primeiro na suspeição de Sergio Moro e agora, na liberação de cultos religiosos.

O procurador-geral da República, Augusto Aras viu o pêndulo de forças se mexer, saiu da sombra de Gilmar Mendes e passou a disputar com o advogado-geral da União, André Mendonça, que tem a preferência de Bolsonaro, o apoio de Nunes Marques. Ambos apresentaram sua candidatura ontem defendendo o direito de os fiéis morrerem pela fé. Mendonça foi chamado de delirante por Mendes e Aras, de cambiante. Já se sabem derrotados, mas imaginam ganhar, mesmo perdendo, a gratidão dos evangélicos e do presidente a quem buscam agradar.

O desespero pela vaga vai além e ameaça avançar, na próxima semana, sobre o habeas corpus que anulou os julgamentos da 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba. Nunes Marques ganhou apoio de Aras para a tentativa de reverter a anulação decidida pelo ministro Edson Fachin e alimenta a esperança de ter o voto de Luiz Fux. No limite, porém, pode conseguir mais um voto, de Marco Aurélio Mello, mas dificilmente será capaz de reverter a decisão que recolocou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no jogo.

Contra as provocações de Nunes Marques, bancadas por Bolsonaro, Mendes tem o poder de mandar de volta para a primeira instância os processos contra o senador Flávio Bolsonaro, onde não demoraria a sair um mandado de prisão. Dificilmente o fará antes que a vaga no STF esteja definida. Como disse ontem em seu contundente voto em defesa da ciência, “os bobos ficaram fora da Corte”.

Até o voto contra a suspeição, Nunes vinha aderindo ao pelotão dos garantistas da Segunda Turma. Interessa a Mendes que continue a fazê-lo, mas, principalmente, que a próxima vaga não seja preenchida por alguém com os (ou a falta de) predicados de Nunes Marques. Por isso, limitou-se a mostrar ao presidente o custo de voltar a nomear um ministro cujo único ativo seja o de se lhe mostrar leal.

O Judiciário não é o único Poder a estreitar a porteira. O jogo no Orçamento é um boi gordíssimo. Se o presidente sancioná-lo do jeito que está incorre em crime de responsabilidade. Se vetá-lo, os parlamentares o lembrarão dos mais de 100 pedidos de impeachment engavetados na mesa diretora da Câmara. Mas o Centrão esticou a corda nas emendas porque não pretende pautar a cassação do presidente e confia no acolhimento, pelo Tribunal de Contas da União, de que dois e dois são cinco.

Enfrentarão a rebeldia dos técnicos do TCU que, no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, enfrentaram sindicância interna por não terem alertado sobre a criatividade criativa. Não o fizeram porque nunca o haviam agido com tanto rigor em relação a outros governos, mas agora, escaldados, não abrirão mão de denunciá-la. A saída apontada é a renovação da calamidade pública, a mesma que permitiu ao governo gastos de mais de R$ 600 bilhões incapazes de impedir que a pandemia atingisse o atual descalabro. Terá sido, certamente, o genocídio mais caro da história.

Os parlamentares, liderados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), esperam compensar o rombo em sua imagem, provocado pelo Orçamento, com a mudança no projeto de compra privada das vacinas. Mantiveram a doação de metade das doses ao SUS mas introduziram a esperteza de importação sem aval pela Anvisa, o que impedirá a repartição.

O projeto, aprovado pela Câmara, segue para o Senado. Agradará a uma parte dos empresários, especialmente aqueles que ainda estão na canoa de Bolsonaro, mas não a todos. É, porém, um tiro no pé para as campanhas eleitorais de renovação dos mandatos parlamentares. O eleitor não gostará de saber que perdeu um parente porque um endinheirado lhe tomou o lugar na fila da vacinação. Os parlamentares se associaram à barbárie bolsonarista e, para evitar a reprimenda do eleitor, estão dispostos até mesmo a mudar o sistema eleitoral. É um dos próximos bois que está por chegar à porteira, mas está longe de ser o último.