Fim do auxílio é demonstração de que não há contrato social
O jornalista e escritor Nelson Rodrigues escreveu que o Fla-Flu, o clássico dos clássicos, começou 40 minutos antes do nada. A hipérbole rodrigueana, usada para definir o caráter épico da rivalidade entre dois times de futebol, acabou sendo incorporada como síntese do antagonismo de ideias que caracteriza o debate dos problemas nacionais. Se a discussão de um tema relevante vira um Fla-Flu, é porque não há racionalidade, ou melhor, honestidade intelectual de uma ou das duas partes, uma forma de impedir mudanças que reduzam ou eliminem seus privilégios.
Numa sociedade profundamente desigual, marcada pela prática da escravidão (oficial, fator de acumulação de capital durante quase 400 anos, e dissimulada desde a abolição, em 1888), há poucos consensos, logo, não existe contrato social. Não há pacto social num país onde a maioria negra (56% da população) é discriminada pela minoria não negra.
Não há entendimento social se pouco menos de um quarto da população (50 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (com menos de dois dólares por dia), e todos conhecemos essa realidade há pelo menos quase 20 anos, afinal, graças a um dos poucos consensos de nossa história, criou-se nesse período um programa de transferência de renda para lidar com o problema – o Bolsa Família é excelente, cuida das consequências de políticas equivocadas que seguem provocando tanta miséria e desequilíbrio entre nós, brasileiros.
Não se pode falar em contrato social se metade dos adolescentes está fora do ensino secundário. Tampouco, é razoável afirmar que estejamos sob uma sociedade pactuada, uma vez que que 35 milhões de pessoas não possuem acesso à água tratada e 100 milhões (de uma população de 210 milhões) não têm coleta de esgotos. O pior: os números, compilados pelo Instituto Trata Brasil a partir de dados oficiais, referem-se apenas às cem maiores cidades.
Sem saneamento básico, não há saúde. Sem saúde, não há cidadania. Junte-se esta precariedade à outra (a baixa qualidade do ensino fundamental público), o que temos? Que futuro aguarda o país com a 5ª população do planeta, habitante do 4º maior território em terras contínuas?
Formadores de opinião espantam-se com a facilidade com que outras nações, não apenas as ricas, respondem prontamente a situações de emergência, como a enfrentada nesta pandemia. “Por que não conseguimos resolver rapidamente questões simples que afligem milhões de nossos compatriotas?”, indagam-se os cidadãos de bem.
Não é preciso pensar muito para concluir que nossa dificuldade está no fato de o Brasil não ser uma nação – como a palavra “brasil” não significa coisa alguma (foi tirada de pau-brasil), seu significado depende da construção de uma nação, daí, a insistência do titular desta coluna em chamar este país de Ilha de Vera Cruz, a primeira denominação dada pelos invasores portugueses.
Numa nação, a distância entre ricos e pobres é muito menor, todos (ou quase todos) têm acesso às mesmas oportunidades, a maioria dos cidadãos compartilha dos mesmos valores culturais e aspirações, independentemente de sua renda e origem étnica.
Um exemplo do quão distante este território povoado por 210 milhões de viventes está de ser uma nação: o auxílio emergencial criado em abril para assegurar a sobrevivência de mais de 60 milhões de brasileiros, surpreendidos repentinamente pela parada súbita de seu ganha-pão nesta crise sanitária, expira em 31 de dezembro.
Amanhã, alguns milhões de brasileiros vão brindar a chegada de 2021 e da segunda década do século XXI com champagne e espumante, enquanto outros milhões dormirão sem saber como cuidar da família ou de si próprios no ano “novo”. Para estes, 2020 não acaba nessa quinta-feira. Ademais, a segunda onda da covid-19, apesar do silêncio negligente das autoridades, já é uma realidade, cujos efeitos econômicos serão iguais ou piores que os do primeiro surto – não custa lembrar: por causa da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve recuar algo em torno de 4,5%, segundo previsão da maioria dos analistas consultados pelo Banco Central.
Ora, virar o ano sem resolver esse grave problema é a prova inequívoca de que não só a classe política mas toda a sociedade não se importam com a crise humanitária que se avizinha. Onde estão os intelectuais das universidades públicas e fora dela, os sindicatos, as centrais sindicais sempre dispostas a parar o país em defesa os trabalhadores, as elites empresariais pensantes (das que só vivem às custas do Estado não se deve esperar nem cumprimento de “bom dia”), as lucrativas instituições financeiras que se “comoveram” tanto com o primeiro capítulo da tragédia pandêmica, os artistas que se mobilizaram para cuidar de seus pares em situação menos favorável, uma vez que o isolamento social lhes tirou a possibilidade de trabalhar? Cadê os manifestantes que foram às ruas em 2013 exigir educação e saúde públicas de qualidade?
No país onde não há carência de problemas a serem resolvidos, o tema mais controverso, o que inflama discursos, provoca cizânia, separa amigos de infância e resulta até em divórcio, não é o racismo estrutural, esta infâmia, ou a situação dos cidadãos sem-auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro, mas a privatização, a venda de empresas estatais ao setor privado. Por que a classe média brasileira é tão suscetível à proposta de redução do Estado como produtor de bens e serviços?
Quando estourou o mega-escândalo de corrupção na Petrobras, em 2014, não demorou para que se promovesse um “abraço” na sede da estatal, no Rio. Não houve protesto contra as malfeitorias realizadas, responsáveis por desvio de recursos estimado em R$ 20 bilhões. Não houve sequer mobilização para que o acionista majoritário que nos representa na companhia – a União – melhorasse a governança da maior empresa do país. Por isso, leitor, duvide da palavra “estratégica” quando alguém defender as estatais.