Presidência

Eugênio Bucci: A responsabilidade da esquerda

Em vez de se defender pela negativa, deve partir para a autocrítica pública, aberta e radical

“Ma non vivere di lamento
come un cardellino accecato”
Giuseppe Ungaretti

Está certo que o contexto lá fora não ajuda. Polônia, Hungria, Áustria, Rússia, Turquia, Estados Unidos e outros países mostram a ferocidade de um novo conservadorismo raivoso: nacionalista, xenófobo e autocrático. Quanto às plataformas autointituladas “progressistas” (esse adjetivo meio curinga), descambam em farsas bonapartistas e métodos sangrentos, como na Nicarágua ou na Venezuela. Nesses casos, o bonapartismo é tão farsesco e a sanguinolência tão metódica que os resquícios de “progressismo” já vão longe, como a poeira deixada pelas patas do cavalo de Simón Bolívar. O tal “progressismo” se degrada em ditaduras que não cultivam nenhum valor humanista.

Também no Brasil, o cenário não ajuda. Nas eleições do ano passado, as agremiações de esquerda não foram meramente derrotadas: foram sentenciadas a uma desmoralização prolongada, condenadas ao papel incômodo de motivo de chacota, de ódio ou de desprezo intelectual. Os militantes que ainda não perceberam a tragédia que os engoliu se refugiam num gregarismo messiânico. Põem a consciência para hibernar, em pleno verão, enquanto uma nova direita brucutu, herdeira da ala mais fascista da ditadura militar, vai tomando posse das fantasias tanáticas de milhões de brasileiros. Essa direita hostiliza a imprensa, escarnece da cultura dos direitos humanos e agora dá as cartas.

Definitivamente, o contexto não ajuda. O entorno é adverso. A intuição do militante socialista o impele na direção de um único verbo: resistir. Acontece que, nesta hora, a intuição reativa induz a erro, é má conselheira. A saída é contraintuitiva: a esquerda – e o PT especialmente – precisa demolir os muros dentro dos quais se encolheu. Em lugar de se defender pela negativa, deve partir para a autocrítica – pública, aberta e radical.

Aí está a única agenda que conta, a única que pode abrir novas pontes de diálogo com a sociedade e reafirmar os valores da solidariedade e da liberdade além do mercado. Debater os erros programáticos, os estelionatos eleitorais e os crimes de corrupção cometidos durante os governos liderados pelo PT fará bem ao PT e à esquerda. Sem isso não haverá superação. Recusar essa agenda significará validar as infâmias dos que querem varrer os socialistas da terra brasileira, como numa confissão de culpa de amplo espectro. Ou a esquerda parte para a sua autocrítica, ou será fossilizada.

Mas como partir para a autocrítica? Quem mais se opõe à ideia é a direção do PT, sob a alegação de que isso favoreceria a direita e exporia o partido a uma expiação em praça pública. Sofisma. Em lugar do debate franco, a cúpula petista propõe o mutismo, que só faz agravar o isolamento. Em vez de esclarecer o que interessa ao campo democrático, insiste na repetição dos bordões vazios que servem apenas para tergiversar (como matraquear que o PSDB cometeu os mesmos “erros”, etc.). Nada poderia ser pior para a esquerda do que o silêncio devocional.

A cúpula prefere, como nos versos de Ungaretti, “viver se queixando, viver de lamentações, de lamúrias, de resmungos, como um pintassilgo cego”. As “aristocracias” do trabalhismo e seu instinto (equivocado) de preservação talvez sejam o maior entrave para o futuro da esquerda. Há cem anos, na Europa, a “aristocracia operária”, apegada a seus privilégios mesquinhos, escreveu páginas de traição na história da social-democracia. Agora, por um capricho dessa mesma história, algo de parecido aprisiona o PT. Um processo de autocrítica radical ameaçaria o lugar cativo da elite partidária e esta, classicamente, prefere o naufrágio a perder suas acomodações nas cabines de primeira classe.

Está cada vez mais explícita a dificuldade que certas camadas dirigentes têm em promover a democracia interna. Há décadas, agrupamentos de esquerda (não todos) padecem desse déficit democrático muito particular, que decorre diretamente dos obstáculos criados por “aristocracias” sindicais ou partidárias contra a democracia interna. Agora, quando seus aparelhos estrebucham, a “aristocracia” teima. O que farão, então, os partidos de esquerda? O que fará a esquerda? Saberá compreender a responsabilidade que lhe cabe?

Organizações de esquerda que não se renovam, não fomentam a alternância dos seus quadros dirigentes e não dinamizam a democracia interna são incapazes de liderar a modernização da sociedade e o aprimoramento do Estado de Direito. Não por acaso, quando instalados no governo, no Parlamento ou em cargos públicos, alguns dos agentes dessas organizações terminam por aboletar-se em feudos dentro do Estado e aí reproduzem, com poucas adaptações, os vícios ancestrais do patrimonialismo. Nesse ponto, é bom sublinhar, as práticas corruptas e o déficit democrático andam de mãos dadas (mesmo que às escondidas).

E agora? O PT vai abrir a discussão? Vai reciclar seu corpo dirigente? Vai punir internamente (mas publicamente) os filiados que, em funções partidárias ou públicas, cometeram crimes de corrupção? O partido enfrentará a sua quota de déficit democrático? Ainda nesse tópico, fará a crítica pública das ditaduras da Venezuela e da Nicarágua? E as outras agremiações de esquerda? Entrarão abertamente nesse debate?

Se a resposta a essas perguntas for “não”, a esquerda brasileira perderá a chance de se credenciar como oposição consequente ao governo direitista de Jair Bolsonaro. Ficará choramingando em suas catacumbas imaginárias e pondo a culpa nos outros, sempre nos outros, como os pintassilgos cegos e os adolescentes mimados.

No fim, a democracia também sairá perdendo, porque sem uma esquerda respeitada a democracia se enfraquece. Se a esquerda não se libertar do seu silêncio obsequioso, será corresponsável por mais esta: o encolhimento da cultura democrática.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


William Waack: Quem sabe faz a hora

Por uma ironia da História, o refrão ‘esperar não é saber’ pode mudar de mãos

Momentos decisivos na história são raros e o Brasil acabou de entrar num deles. A eleição de Bolsonaro foi só a preparação para o que vem agora: um País que, se quiser sair da mediocridade e estagnação, terá de confrontar a si mesmo.

O novo presidente prometeu libertar o Brasil de amarras que levaram gerações para serem confeccionadas. E que podem ser resumidas numa constatação preocupante: a sociedade brasileira falhou na tentativa de construir um Estado de bem-estar social nos moldes de países europeus. Nossa geração de riquezas não comporta um Estado de bem-estar social com o qual sonhamos.

Criamos um marco regulatório e legal que é um verdadeiro compendio de aspirações sociais, e que atribui ao Estado distribuir e garantir essas benesses e direitos codificados em leis. Esse papel garantiu a explosão de custos do setor público que financiamos através de aumentos de impostos nos últimos 30 anos (agora no nível do insuportável) e endividamento (beirando também o insuportável). Tudo junto mais a baixa produtividade são o famoso “custo Brasil”, que torna o País pouco competitivo.

O principal desafio de curto prazo é conhecido: lidar com as contas públicas, o que significa reformar a Previdência. Os principais obstáculos políticos são bem conhecidos também. Bolsonaro tomou posse graças a uma onda transformadora de amplo alcance e raízes profundas (ainda que em parte disfarçadas pelo repúdio ao petismo). O “mandato” conferido por esse fenômeno político para “defender a liberdade”, “acabar com corrupção e privilégios” e “fazer o Brasil crescer” é amplo para funcionar como inspiração, mas precisa ganhar contornos práticos e diretos imediatamente.

A combinação dos dois discursos de Bolsonaro no dia da posse é elucidativa. Ele reconhece que precisa do Congresso para governar e preferiu não esbravejar com o Legislativo – ao contrário, confia em velhas mãos (leia-se Rodrigo Maia como presidente da Câmara). Mas continua tratando de galvanizar o eleitorado como forma de manter a “temperatura” política necessária para, eventualmente, lidar numa posição de força com os senhores legisladores. Não parece que haverá em breve qualquer grande separação entre “palanque” e “governo”.

Ocorre que há sempre um limite para o nível de ebulição e efervescência políticas e o capital acumulado em termos de votos na recente eleição é erodido pelo tempo, que não é o cronológico. É o tempo da consagrada expressão alemã do “momentum”, a rápida conjunção de fatores estruturais e circunstanciais que abrem às vezes oportunidades únicas para alcançar objetivos amplos e difíceis.

Claro, seria muito mais elegante e refinado reescrever a Constituição (quem sabe tornando-a liberal) ou realizar uma ampla reforma política (a mãe de todas as reformas), mas isso significaria perder o ritmo e se deixar sufocar pelo peso monstruoso da crise fiscal, que já está paralisando serviços essenciais de saúde e segurança em vários Estados. O Brasil não é um país com mentalidade predominantemente liberal. Ao contrário: aqui a burocracia é encarada por muitos como proteção e não como obstáculo. O lucro é visto como pecado, e se alguém ficou rico é porque alguém ficou pobre.

O “ponto de equilíbrio” entre mudança e “status quo” no qual nos encontramos é o da instabilidade política, insegurança jurídica, estagnação econômica e mediocridade generalizada. Momento decisivo é empurrar o País para fora disso aí. Oportunidades desse tipo não se apresentam muitas vezes. E que ironia da História: cabe agora a um outro conjunto de forças políticas entoar o velho refrão – “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.


O Globo: Bolsonaro defende sociedade sem discriminação e amarras ideológicas

Presidente anunciou ainda que vai combater corrupção, criminalidade, irresponsabilidade econômica e a submissão ideológica

Por Carolina Brígido e Daniel Gullino, de O Globo

BRASÍLIA — Em discurso proferido na cerimônia de posseno Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro disse que vai lutar por uma sociedade sem discriminação ou divisão, com respeito às religiões, e sem amarras ideológicas. Ele também se comprometeu com a proteção da democracia brasileira e com a construção de uma sociedade mais justa.

— Reafirmo meu compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão — disse, em discurso com dez minutos de duração..

Ele aproveitou para conclamar aos parlamentares que o ajudem no combate à corrupção, à irresponsabilidade econômica e à submissão ideológica. Bolsonaro defendeu um pacto entre a sociedade e os Três Poderes para guiar sua gestão.

Leia a íntegra do discurso de Jair Bolsonaro como presidente.

— Aproveito este momento solene e convoco cada um dos congressistas para me ajudarem na missão de restaurar e de reerguer nossa pátria, libertando-a definitivamente do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica _ disse, concluindo mais tarde: _ A irresponsabilidade nos conduziu à maior crise ética, moral e econômica da nossa história — declarou.

Presidente Jair Bolsonaro ao lado da mulher, Michelle, durante desfile de carro aberto Pablo Jacob / Agência O Globo

Emocionado, Bolsonaro chorou durante o desfile de carro aberto. O presidente eleito estava acompanhado da mulher, Michele e do filho, Carlos, vereador pelo Rio de Janeiro RICARDO MORAES / REUTERS

O 1º Regimento da Cavalaria de Guarda do Exército, popularmente conhecido como Dragões da Independência, acompanhou o desfile do presidente eleito Jair Bolsonaro CARL DE SOUZA / AFP

Desfile de carro aberto terminou no Congresso Nacional, onde Bolsonaro foi recebido pelos presidentes da Câmara e do Senado PILAR OLIVARES / REUTERS

 

O novo presidente também voltou a defender o fim da “ideologia de gênero” nas escolas. Segundo ele, a educação será voltada para preparar o aluno para o mercado de trabalho, e não para a militância.

— Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã. Combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas — disse.

Bolsonaro declarou que sua equipe foi elaborada de forma técnica, “sem o tradicional viés politico que tornou o Estado ineficiente e corrupto”. Na economia, ele prometeu que o governo não gastará mais do que arrecada e que os contratos e as propriedades serão respeitados. E que, no setor agropecuário, haverá “menos regulamentação e burocracia”.

— Realizaremos reformas estruturantes que serão essenciais para a saúde financeira e a sustentabilidade das contas públicas, transformando o cenário econômico e abrindo novas oportunidades. Precisamos criar um ciclo virtuoso para a economia, que traga a confiança necessária para permitir abrir nossos mercados para o comércio internacional, sem o viés ideológico — afirmou.

No discurso, ele lembrou do atentado que sofreu durante a campanha e da cirurgia no intestino à qual foi submetido depois da facada. Ele atribuiu sua vitória a Deus e aos brasileiros, que se uniram em um “esforço cívico” para torná-lo presidente da República.

O novo presidente disse que seu governo vai priorizar a educação, a infraestrutura, o saneamento básico e o respeito aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Ele acrescentou que o “cidadão de bem” merece ter ao seu alcance meios para se defender, sem citar diretamente o porte de arma. Ele ainda homenageou policiais e militares, pelo trabalho de garantir a segurança dos cidadãos, e anunciou que as categorias serão valorizadas em sua gestão.

Bolsonaro também lembrou dos 28 anos que foi deputado federal. Ele disse que no Congresso travou “grandes embates” e também acumulou experiências e aprendizados que colaboraram com seu crescimento e amadurecimento. Quando assinava seu termo se posse, alguém na plateia perguntou se era um casamento. Bolsonaro respondeu que estava se casando com o público, composto de parlamentares.


Bruno Boghossian: Por um ano baseado em fatos reais

Encerramos um 2018 encharcado de invencionices e informações distorcidas

A mentira sempre foi um combustível barato para eleições e máquinas de propaganda política. O ano que termina agora ficou encharcado de invencionices e informações distorcidas. É bom elencar alguns fatos para que possamos permanecer no mundo real em 2019.

1) Embora muitos produtores façam sua parte pela preservação ambiental, o agronegócio, mineradoras e madeireiras têm responsabilidade especial sobre o desmatamento. Tratar isso como lenda, como fazem alguns ruralistas, é autorizar a emissão de carteirinhas de devastação.

2) O impacto da ação humana sobre as mudanças climáticas, aliás, já foi objeto de pesquisas científicas com critérios rigorosos. Integrantes do próximo governo preferem considerar a questão uma fantasia ideológica da esquerda. Pode-se discordar das políticas implantadas para enfrentar o problema, mas negá-lo não levará a lugar algum.

3) Impor rédeas à atuação de professores não vai melhorar a educação. Há várias razões pelas quais nossos alunos mal sabem fazer contas. Nenhum deles gastou seu tempo em rodas de leitura de Marx.

4) O novo governo pode alcançar bons acordos ao buscar novos caminhos para sua agenda comercial. Se decidir bater de frente com a China em um teatro de alinhamento com os EUA, o Brasil pode perder muito.

5) Não é “matando idosos” que se resolverá o buraco nas contas da Previdência. Governantes e parlamentares precisam, de uma vez, ter coragem para enfrentar grupos privilegiados e tornar o sistema mais justo para evitar que o país quebre.

6) A revisão do financiamento do Sistema S não fará mal se mantiver os serviços prestados aos trabalhadores, acabando com seu uso político e com a perpetuação de dirigentes.

7) Reescrever o passado à força não muda a realidade. Dias depois da eleição, Jair Bolsonaro disse que a população estava começando a entender que “não houve ditadura” no Brasil entre 1964 e 1985.

Vamos torcer para que 2019 seja um ano baseado em fatos reais.


Daniel Aarão Reis: Ninguém solta a mão de ninguém

A melhor atitude é se preparar para a luta. Haverá que lidar com as políticas do novo governo, defender-se delas, lutar contra elas

Diante de um perigo iminente, várias alternativas podem ser imaginadas. A primeira, a mais fácil, é a fuga. O problema é que nem sempre a fuga é possível. A segunda é ignorar o risco, fingir que não existe. Não costuma funcionar. O perigo tem uma existência objetiva, não desaparecerá se for ignorado.

As democracias estão em perigo em todo o mundo. Não suscitam a confiança que já foram capazes de despertar. Nem incentivam a participação consciente, como deveriam fazê-lo.

Não é um fenômeno apenas brasileiro. É perceptível entre nossos vizinhos e mesmo nos Estados Unidos e na Europa, berços históricos do regime democrático. Ressurgem os fantasmas dos instáveis e sombrios anos 1930, quando os corporativismos estatais, o nazifascismo e o socialismo autoritário pareciam imbatíveis.

O mundo mudou muito, sem dúvida. Contudo, a revolução informática e o processo de globalização reintroduziram em larga escala a instabilidade, subvertendo numa velocidade inaudita situações sólidas, culturas consideradas estabelecidas para sempre. Vão para o ralo não apenas bens materiais, mas concepções de vida, modos de se relacionar, afetos, sentimentos. O processo acentuou-se depois da crise iniciada em 2008: os responsáveis pela especulação desenfreada que a provocou ficaram impunes. Como usual, pagaram os trabalhadores e assalariados. O resultado é a cólera das gentes, inquietação e medo, sobretudo entre os que não encontram um lugar ao sol e, não o encontrando, não mais se encontram consigo mesmos, como se estivessem deslizando para fora da sociedade, rumo a lugar nenhum.

Este é o caldo de cultura para a emergência dos “salvadores da pátria”, líderes messiânicos, que se apresentam como capazes de mudar “tudo o que está aí”. Suas propostas têm a força da clareza e da simplicidade, canalizando angústias e ódios.

Os partidos tradicionais, mesmo os reformistas, parecem incapazes de detê-los. Tornaram-se máquinas eleitorais aristocratizadas, privilegiadas, dependentes de financiamentos privados. Perdidas suas bases estáveis e históricas, pulverizaram-se, mais interessados na autorreprodução do que nas propostas de mudanças desejadas pelas maiorias. A cada eleição, aumenta a distância entre representantes e representados. Distendem-se os laços entre a cidadania e o regime representativo. Uma vai deixando de ver no outro sua expressão política organizada. A abstenção, o voto nulo e o voto em branco atestam a tendência.

No Brasil não tem sido diferente. E se tornou difícil encarar as questões em jogo.

Marcos Nobre, em recente artigo, analisou duas atitudes diante da vitória de Jair Bolsonaro. Os “amansadores” pensam que a “fera” será domesticada. Outros acreditam que as instituições serão capazes de “enquadrá-lo”. Um processo de “lulização” estaria em curso. Se Lula virou suco, por que o mesmo não poderia acontecer com Bolsonaro?

A hipótese não é nem um pouco provável, considerando-se o dinamismo adquirido pelas forças conservadoras e a disposição do “salvador da pátria” eleito.

A melhor atitude é se preparar para a luta. Haverá que lidar com as políticas do novo governo, defender-se delas, lutar contra elas. A necessária e urgente renovação da democracia não dependerá das instituições existentes — frágeis — nem dos partidos políticos, que rodam em esferas próprias, magnetizados pelas disputas eleitorais.

A defesa dos valores democráticos, nos próximos anos, estará nas mãos dos cidadãos, que deverão contar consigo mesmos para defender a própria noção de cidadania, essencial a qualquer vida democrática. Sem sinistrose e sem bravatas. Com serenidade e firmeza. A melhor tradução da política não é a conciliação sem princípios. Ao contrário: é a explicitação, regrada, dos conflitos.

A imagem que as lutas vindouras evoca é a das pessoas em passeatas nas ruas, mãos nas mãos, braços nos braços, cruzados e apertados, com medo nas tripas e coragem na alma. Ousadas, determinadas, solidárias.

E nestas lutas ninguém soltará a mão de ninguém.


Luiz Carlos Azedo: Quem é quem no governo

‘A muvuca será protagonizada pelos núcleos político e ideológico, que são os principais eixos da articulação com o Congresso e a sociedade’

Concluída a formação de sua equipe de governo, a chave para que o presidente eleito Jair Bolsonaro consiga implementar as medidas mais importantes do seu programa, a começar pelo ajuste fiscal e a reforma da Previdência, é a sua relação com o Congresso. Até agora, sustentou a promessa de não ceder ao toma lá, dá cá, loteando a Esplanada dos Ministérios entre os partidos que o apoiam, mas não conseguiu ainda viabilizar candidaturas robustas para o comando do Senado e da Câmara. A conversa de que não vai interferir na disputa é lorota: se tiver força, viabilizará aliados de confiança no comando do Congresso.

Bolsonaro montou um governo com cinco eixos: o militar, o econômico, o político, o ideológico e o técnico. Por enquanto, quem dá as cartas na administração são a troica de generais Augusto Heleno (GSI), na foto acima, Carlos dos Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Fernando de Azevedo e Silva (Defesa); na equipe econômica formada pelo ministro da Fazenda, Paulo Guedes, destacam-se o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o presidente do BNDES, Joaquim Levy, e o presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, todos muito bem blindados na política. No núcleo técnico, o superministro da Justiça, Sérgio Moro; o ministro de Minas e Energia, Bento Costa e Lima, e o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, os dois últimos, militares.

A muvuca no governo será protagonizada pelos núcleos político e ideológico, que são os principais eixos da articulação com a política e a sociedade, e dos problemas com o Congresso. No núcleo político, o ministro da Casa Civil, que coordena a transição, ainda não conseguiu formar uma base suficientemente robusta e coesa para aprovar o ajuste fiscal e a reforma da Previdência. Os ministros do Desenvolvimento Social, Osmar Terra (PMDB-RS); da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MT); e da Saúde, Luiz Mandeta (DEM-MS); têm amplo apoio político no Congresso à frente das respectivas pastas, mas são porta-vozes de interesses segmentados e/ou corporativistas. Além disso, não darão muito pitaco na relação com o Congresso, a cargo de Lorenzoni e do general Santos Cruz.

O grande balacobaco é a pauta ideológica do governo, na qual as estrelas serão os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o ministro da Educação, Ricardo Velez Rodrigues. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, condenado por improbidade administrativa, já foi abatido na pista. Ambos são pautados pelo filósofo Olavo de Carvalho e pelos filhos de Jair Bolsonaro, principalmente o deputado federal eleito por São Paulo com a maior votação do país, Eduardo Bolsonaro. Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro, teve que baixar a bola por causa do escândalo protagonizado por seu ex-assessor Fabrício Queiroz, que mantinha uma caixinha fabulosa no seu gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa fluminense. Vivíssimo, Queiroz tomou chá de sumiço, já faltou a dois depoimentos e ninguém sabe por onde anda.

Combustão
Do ponto de vista eleitoral, a pauta ideológica do governo Bolsonaro mira o PT como inimigo principal. É extremamente conservadora do ponto de vista dos costumes, mas continua sendo uma pauta identitária, com sinal trocado. A pauta do país são a violência, o desemprego e a saúde pública, a infraestrutura e o ajuste fiscal, principalmente, temas sobre os quais o governo precisará dar respostas objetivas. Nesse aspecto, a relação com o Congresso é fundamental. A pauta ideológica tem combustão espontânea no parlamento, mas o mesmo não acontece com as demais tarefas do governo. As raposas políticas que sobreviveram ao tsunami eleitoral de outubro passado sabem disso, entre as quais, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que sonha com a reeleição, e o ex-presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que está costeando o alambrado para voltar ao comando do Congresso.

Um capítulo à parte no jogo político são os três filhos de Bolsonaro, Eduardo, Flávio e Carlos, que cuida da comunicação, que terão protagonismo político imprevisível. Até agora, não desceram do palanque eleitoral e volta e meia criam constrangimentos para o pai, mas nem por isso perderam a condição de interlocutores diretos do presidente da República. A bancada do PSL também vai dar trabalho, porque chega com muita gana de dar as cartas no Congresso, o que naturalmente não é fácil para quem ainda está arrumando a mudança.

Bolsonaro montou um governo em bases inéditas, sem compartilhar o poder com os partidos. Está à sombra das Forças Armadas, em razão da forte presença militar no Palácio do Planalto. Não está claro se gerenciará o governo pela demanda da sociedade, o que depende muito do desempenho dos ministros das atividades-fim, ou se adotará uma estrutura vertical, na qual os ministros da área meio, sobretudo os militares, funcionarão como correias de transmissão. Uma coisa, porém, é certa: continuará se relacionando diretamente com seus eleitores pelas redes sociais, e se digladiará com a imprensa sempre que for criticado.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-quem-e-quem-no-governo/


Alberto Aggio: A irrupção da antipolítica

A ‘não realização’ da democracia aos olhos, ouvidos e coração dos cidadãos é sua origem

Desde 2013 a sociedade brasileira vem sendo impactada pela antipolítica. Por diversas formas, um sentimento negativo em relação à política foi se avolumando até atingir o coração da disputa eleitoral de 2018. O que era latente acabou sendo promovido a uma espécie de paradigma, moldando uma verdadeira revolta da sociedade contra a política.

Da erosão do sistema de representação avançou-se celeremente para o rechaço integral à atividade política, considerada nosso grande mal. Capturada pelo sistema de Justiça, a corrupção sistêmica que se realizou durante os governos petistas, promovida pelo partido majoritário e por seus aliados, é considerada sua causa maior. Mas é necessário incluir aí o até então principal partido de oposição ao PT, o PSDB, que não ficou distante desse descalabro, como vem sendo comprovado dia após dia.

No processo eleitoral recente, a antipolítica assumiu o papel de irmã gêmea do antipetismo, ampliando sua negatividade para a esquerda, a social-democracia e mesmo para a democracia. O rechaço acabou se espraiando, fazendo emergir até um anti-intelectualismo que levou de roldão intelectuais, artistas e jornalistas, especialmente aqueles que tiveram algum protagonismo na sociedade desde os anos da redemocratização. Todos passaram a ser vistos como atores contaminados pela corrupção ou por interesses mesquinhos ou mesmo partidários.

A antipolítica estabeleceu, independentemente da cor ideológica de quem a vocalizava, uma solução impostergável: a ideia de que sem mudar, já e radicalmente, não haveria alternativa para o País. E mudar significava deslocar a “velha classe política” e pôr em seu lugar “o novo”, o que quer que isso pudesse significar.

Essa narrativa de condenação dos últimos 30 anos sustentou a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL) e de alguns governadores de Estado que, aparentemente, sugiram do nada, selando a reviravolta. Em cinco anos se passou da consigna “sem partido” à sedução generalizada de seleção das novas elites governamentais em setores externos à política organizada, chegando ao extremo de um governador eleito pretender encaminhar a escolha dos quadros de primeiro escalão por meio de empresas headhunter.

O casamento da antipolítica com o pensamento que sustentou regimes totalitários não é raro na História. Não há como negar que o pensamento marxista, desde suas origens e na vigência do chamado “comunismo histórico”, expressou uma fragilidade intrínseca em relação à política, em especial à política democrática. Por outro lado, é largamente conhecida a ojeriza do nazismo à política tout court. A assertiva de J. Goebbels, para quem os partidos seriam o grande mal, já que eles “vivem dos problemas da política e não buscam resolvê-los”, não deixa dúvidas. Ambos exemplificam a temeridade incrustada em opções estratégicas sustentadas na antipolítica.

Cenários de crise e de degradação favorecem a antipolítica na conquista de espaços de poder. Na Europa, por exemplo, a crise da democracia tem origem no colapso fiscal do Estado de Bem-Estar Social, concomitante ao avanço da globalização. Isso propagou uma onda negativa de questionamento dos Estados nacionais e depois da União Europeia. A crise da democracia transformou-se, então, numa crise da política. É aí que surgem os atores da antipolítica do nosso tempo, chamados de forma ligeira de “populistas”.

O problema é, contudo, mais profundo e complicado. Envolve aspectos essenciais a respeito da crença na democracia e em suas possibilidades de reinvenção. O pano de fundo de onde emerge a antipolítica é, na verdade, a “não realização” da democracia aos olhos, ouvidos e ao coração dos cidadãos. Isso porque, como demonstrou Tocqueville, a democracia quer garantir a todo ser humano tudo o que se deseja, teoricamente sem nenhum limite – essa a sua “promessa”. Contudo ela funciona unicamente se os desejos estiverem dentro de certos limites. Em outras palavras, a democracia constrói e reforma instituições para mediar desejos, apetites e sentimentos para garantir seu funcionamento. Mas, no essencial, empurra os indivíduos a desejarem para além dos seus limites e assim põe em perigo constante a própria sobrevivência daquele tipo de cidadão que ela não pode dispensar. Em síntese, o espectro da antipolítica espreita permanentemente o percurso de construção da democracia moderna.

Mesmo numa conjuntura problemática, a democracia tem possibilitado aberturas tanto ao que se poderia chamar de hiperdemocracia (a democracia como critério para tudo) quanto ao hiperpluralismo (uma ampliação ilimitada de sensibilidades que invadem o espaço público). Mas, conforme Giovanni Orsina (La Democrazia del Narcisismo, 2018), a emergência de uma cultura narcísica, ao subjetivar todas as atividades, vem alterando o sentido do individualismo moderno. Essa cultura é uma obsessão baseada na incapacidade de perceber a própria pessoa e a realidade como duas entidades separadas e autônomas, de distinguir o que está dentro do que está fora, em suma, o objetivo do subjetivo.

A repercussão disso na política é devastadora. O cidadão, o individuo democrático, fechado em si mesmo, passa a não escutar mais, refuta interpretações e avaliações da realidade que venham de fora dele. Sua relação com o mundo é inteiramente determinada pelo filtro de uma perspectiva subjetiva não educada nem amadurecida pelo confronto. Onipotente, é incapaz de imaginar o futuro a não ser como espelho do desejo, sem mediações, avesso à política.

A irrupção da antipolítica nas sociedades contemporâneas, e no Brasil em particular, não pode ser reduzida ao “fantasma do populismo” nem ao maniqueísmo do embate entre democracia e fascismo. Recuperar a política como um desígnio moderno, sem polarizações estéreis, é o desafio do tempo presente.


Bernardo Mello Franco: O acordão de Temer com o Supremo

O presidente trocou o aumento dos ministros pelo fim do auxílio-moradia. Foi um acordão explícito, daqueles que são fechados quando ninguém se importa com as aparências

Saiu tudo conforme o combinado. A cinco semanas de deixar o poder, Michel Temer sancionou o aumento dos salários do Supremo. No mesmo dia, o ministro Luiz Fux revogou a própria liminar que garantia a farra do auxílio-moradia dos juízes. Foi um acordão explícito. Daqueles que só são fechados quando ninguém mais se importa em manter as aparências.

Temer chancelou o aumento dos capas-pretas para R$ 39,2 mil, além das mordomias do cargo. O Supremo prometeu compensar o gasto extra com cortes no orçamento da TV Justiça. Será uma medida cosmética. O problema está no efeito cascata do reajuste, estimado em R$ 4 bilhões por ano.

O presidente acendeu o pavio e vai deixar o palácio pela porta de emergência. A bomba explodirá no colo do sucessor. Ele dividirá a conta com os novos governadores, incluindo os que herdarão estados falidos, como Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Ao assumir o cargo, Temer pediu sacrifícios para equilibrar as contas. Seu último gesto vai na contramão do discurso de austeridade. É mais um sinal de que ele está menos preocupado com os cofres públicos do que com o próprio futuro.

Em janeiro, o presidente perderá o foro privilegiado e a blindagem negociada com os deputados. As denúncias da Procuradoria-Geral da República deverão ser remetidas à primeira instância. Um bom motivo para não negar o agrado natalino dos juízes.

Do lado do Supremo, a canetada de Fux escancarou que houve uma troca. Ao revogar o benefício que ele mesmo havia estendido aos colegas, o ministro restabeleceu o óbvio: não faz sentido o Estado pagar auxílio-moradia a juízes que têm imóvel próprio na comarca em que trabalham.

O curioso é que Fux não via problema no penduricalho até ontem. Bastou o aumento sair para que ele passasse a considerá-lo inadequado. “A Constituição é um documento vivo, em constante processo de significação e ressignificação”, justificou o ministro. Pode ser, mas certas autoridades são mais vivas do que qualquer documento.


Gil Castello Branco: É a sociedade digital, estúpido!

O capitão cristão fortaleceu-se na internet como oposição ao ‘sistema’

Após vencer a Guerra do Golfo, Bush era favorito absoluto para ganhar as eleições de 1992 contra o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. O marqueteiro de Clinton, James Carville, apostou que, com a economia em recessão, Bush não era invencível e cunhou a frase que explicou o resultado: “É a economia, estúpido!”.

Bolsonaro é um case de marketing. Candidato pelo então minúsculo PSL, sem apoio dos partidos tradicionais, sem dinheiro, criticado de forma contundente pela maioria dos acadêmicos, artistas e veículos de comunicação (nacionais e internacionais), com acesso ínfimo ao horário eleitoral e, ainda, em claro confronto com a “ordem” vigente (ideológica, econômica e política), venceu com 57,8 milhões de votos.

O sociólogo espanhol Manuel Castells, estudioso dos movimentos sociais na era da internet, diz, há anos, que o modelo democrático conservador está esgotado. A indignação começa nas redes sociais e transborda para as ruas e urnas. De fato, em 2013, cerca de 1,3 milhão de pessoas protestaram no asfalto externando a insatisfação popular que já era evidente na internet. O reflexo nas urnas demorou, mas chegou...

À época, inúmeras raposas da política brasileira disseram que os interesses eram difusos e que faltava uma “causa” aos manifestantes. Ignoraram grande parte das infinitas razões do descontentamento. Bolsonaro — até então um deputado inexpressivo, com posições e frases polêmicas —, ao contrário, viajou pelo Brasil e pelo mundo virtual, personificando a insatisfação social “contra tudo e contra todos”. Conforme pesquisa da FGV, 78% dos brasileiros não confiavam nos políticos e nos partidos. Por outro lado, a sociedade confiava nos militares (45,8%) e na Igreja (61,5%). O capitão cristão fortaleceu-se na internet como oposição ao “sistema” enquanto os políticos discutiam como distribuir verbas dos fundos partidário e eleitoral, tempo de televisão e palanques nos estados. Alguns ainda defenderam colegas corruptos, que já estavam presos ou que deveriam estar.

A carcomida estrutura política brasileira desprezou a era digital: o Facebook do maior partido brasileiro em número de filiados, o MDB, é curtido por apenas 79.659 pessoas, enquanto o do Nas Ruas, criado pela sociedade civil, tem 770.075 curtidas. O PSDB coligou-se com o Centrão para tornar-se o “campeão” de minutos no horário eleitoral, mas morreu longe da praia. O seu Facebook tem 1,3 milhão de curtidas, enquanto o do movimento Vem Pra Rua Brasil possui mais de dois milhões. O PT, recriminado pelo rapper Mano Brown por “não falar a língua do povo”, também não se destaca na linguagem virtual. O seu Facebook tem 1,5 milhão de curtidas, praticamente a metade das 3,1 milhões do Movimento Brasil Livre, que se insurgiu contra o aumento das passagens em São Paulo. A título de comparação, o Facebook de Jair Bolsonaro é curtido por 8,7 milhões de pessoas...

Nas outras redes, não é muito diferente. O Twitter de Bolsonaro tem 2,3 milhões de seguidores contra 1,1 milhão de Haddad. No Instagram, os 6,8 milhões de seguidores de Bolsonaro superam a soma dos que seguem todos os outros recém-candidatos a presidente.

Os dados são relevantes, pois, no ano passado, em pesquisa da FGV, quase a metade dos entrevistados (49,5%) disse que se informa sobre política no Facebook, Twitter, WhatsApp, blogs e sites.

Nas campanhas eleitorais, nada será como antes de 2018. O país possui 139 milhões de internautas e 120 milhões de contas de WhatsApp. Existem 220 milhões de smartphones para 209 milhões de habitantes.

Na Grécia Antiga, a sociedade se reunia na Ágora, a praça do povo, para debater com os arcontes, embaixadores e generais. A cidadania agora é tratada nas redes sociais, às vezes à revelia do que desejam os partidos políticos, seus dirigentes e muitos dos que pensavam ter ingerência sobre o pensamento da sociedade brasileira.

Para os que ainda não entenderam como Bolsonaro venceu, sugiro adaptarem a frase do marqueteiro de Clinton, James Carville. É a sociedade digital, estúpido!

 


Maurício Huertas: Procura-se o sucessor de Jair Bolsonaro (mas, já???)

O Brasil - e a política tradicional, principalmente - é mesmo um caso a ser estudado. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) nem tomou posse e já se discute quem será o seu sucessor, em 2022.

Isso porque, na campanha de 2018, Bolsonaro afirmou ser contra a reeleição, então já aparecem com altíssima cotação na bolsa de apostas dos especuladores eleitorais os nomes do futuro ministro da Justiça, juiz Sérgio Moro, e do recém-eleito governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

A imprensa cobrou de Moro a afirmação de que "jamais entraria na política". Ele reafirmou, ontem, que "jamais será candidato", mas que entra para o Ministério como um "técnico". É o tipo de declaração que o perseguirá para sempre. O tucano João Doria que o diga. Foi carimbado de "mentiroso" e "sem palavra" por ter largado a Prefeitura de São Paulo com apenas um ano e três meses de mandato, contrariando promessa anterior.

O problema é alguém achar que o futuro político se define assim, com tamanha antecedência. Basta verificar o histórico das eleições presidenciais. Excetuando-se as reeleições tranquilas de FHC e Lula, barbadas para qualquer apostador, os outros resultados foram muito mais inesperados. Ou alguém imaginava em 1989 que Fernando Collor sofreria impeachment, seria substituído pelo vice Itamar Franco e, aí sim, ainda mais surpreendente, seu sucessor seria Fernando Henrique Cardoso?

E depois das vitórias fáceis de FHC em 1994 e 1998, alguém apostaria que o PT seria eleito e reeleito quatro vezes consecutivas?

Durante o governo Lula, alguém arriscaria dizer que a "técnica" Dilma Rousseff seria o poste de plantão para a sucessão presidencial? E depois que Michel Temer assumiria após outro impeachment?

Para encerrar, quem arriscaria dizer, em novembro de 2014, com Dilma recém-reeleita (naquela disputa acirradíssima com Aécio no 2º turno) que, quatro anos depois, o novo presidente seria Jair Bolsonaro - na época só mais um dos personagens preferidos para o bullying dos humoristas do programa CQC?

Vivendo e aprendendo. Ou não.


José Nêumanne: Bolsonaro, o 'mito', derrotou a 'ideia' Lula

Os quase 60 milhões de eleitores que votaram no capitão só queriam se livrar do ladrão

Desde 2013 que o demos (povo, em grego) bate à porta da kratia (governo), tentando fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “todo poder emana do povo” (artigo 1.º, parágrafo único), mas só dá com madeira na cara. Então, em manifestações gigantescas na rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste de Lula, de plantão no palácio, fez de conta que a atendia com falsos “pactos” com que ganhou tempo. No ano seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci), grande parte dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro para manter a força.

Na dicotomia da época, o PSDB, que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao quarto, mas numa eleição que foi apertada, em que o derrotado obtivera 50 milhões de votos. Seu líder, então incontestado, Aécio Neves, não repetiu o vexame dos correligionários derrotados antes – Serra, Alckmin e novamente Serra – e voltou ao Senado como alternativa confiável aos desgovernos petistas. Mas jogou-a literalmente no lixo, dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe restava do mandato. O neto do fundador da Nova República, Tancredo Neves, deixou de ser a esperança de opção viável aos desmandos do PT de Lula e passou a figurar na galeria do opróbrio ao ser pilhado numa delação premiada de corruptores, acusado de se vender para fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment interrompeu a desatinada gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo demiurgo de Garanhuns, Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo, ficando, porém, atolado na própria lama.

Foi aí que o demos resolveu exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias apelaram para a força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa, substituídas as propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em bilhões do fundo eleitoral, no controle do horário político obrigatório e impunes por mercê do Judiciário de compadritos, elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.

Em janeiro, de volta pra casa outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não reeleja ninguém” para entrar nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões partidários embolsaram bilhões, apostaram no velho voto de cabresto do neocoronelismo e pactuaram pela impunidade geral para se blindarem. Mas, ocupados em só enxergar seus umbigos, deixaram que o PSL, partido de um deputado só, registrasse a candidatura do capitão Jair Bolsonaro para conduzir a massa contra a autossuficiência de Lula, ladrão conforme processo julgado em segunda instância com pena de 12 anos e 1 mês a cumprir. O oficial, esfaqueado e expulso da campanha, teve 10 milhões de votos a mais do que o preboste do preso.

Na cela “de estado-maior” da Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da própria cara hirsuta, este exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas e desprezo pela sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da Ficha Limpa, iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito da maior cidade do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e, por fim, portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na guerra suja contra a ditadura. Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao absurdo de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido livrar-se dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a ignorância apregoada pela arrogância.

Com R$ 1,2 milhão, 800 vezes menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro anos, oito segundos da exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de Alckmin na TV, carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos debates, Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em que falou o que o povo exigia ouvir.

A apoteose triunfal do “mito” que derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais. Inspirou a renovação de 52% da Câmara; elegeu governadores nos três maiores colégios eleitorais; anulou a rasura na Constituição com que Lewandowski, Calheiros e Kátia permitiram a Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o intervalo na carreira longeva de coveiros da república podre.

O nostálgico da ditadura, que votou na Vila Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência, coibir o furto em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário em privilégios da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos nos livros postos na mesa para figurarem no primeiro pronunciamento público após a vitória, por live. Ali repousavam a Constituição e um livro de Churchill, o maior estadista do século 20.

Não lhe será fácil cumprir as promessas de reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado anteontem. Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica do presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à renúncia e o outro ao impeachment.

Talvez o ajude recorrer a boas cabeças da economia que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano Real e a equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também quer se livrar em favor da desejável igualdade.

*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor


Bruno Boghossian: PT e esquerda saem defasados do ciclo que elegeu Bolsonaro

O PT e a esquerda saíram defasados do ciclo político que elegeu Jair Bolsonaro. O movimento de oposição ao novo governo deve preservar a relevância dos partidos derrotados, mas seu futuro dependerá de uma correção de rumos.

As principais marcas da eleição deste ano foram a renovação e a repulsa à política tradicional. Os petistas apostaram no caminho inverso: tentaram reciclar o governo Lula e formaram uma tropa composta especialmente por veteranos.

No PT, a atualização de quadros no Congresso ficou bem abaixo da média. Dos 56 deputados eleitos pela sigla, só quatro podem ser considerados novidades. Quarenta já estavam na Câmara, oito são deputados estaduais e outros quatro exerceram cargos relevantes nos últimos anos.

Embora o partido seja um dos únicos com uma vida partidária que estimule o surgimento de novos nomes, os petistas parecem ter perdido o bonde de 2018. Fernando Haddad, derrotado na corrida presidencial, desponta como principal aposta para recuperar o tempo perdido.

O presidenciável do PT enfrentará algumas barreiras nesse processo. Estará sem mandato (o que reduz o alcance de sua voz), enfrentará resistências de parte da burocracia da própria sigla e terá Ciro Gomes como concorrente na esquerda pelo papel de protagonista da oposição.

O maior desafio, no entanto, deve ser a reconfiguração de uma agenda partidária que parece obsoleta. O PT acreditou que a lembrança dos bons momentos do país sob Lula seriam suficientes na campanha, mas ignorou demandas sociais que foram os trampolins da eleição de Bolsonaro: a intolerância com a corrupção e o combate à violência.

A vitória de Haddad no Nordeste confirma o forte peso do legado petista de combate à miséria. A derrota nas demais regiões mostra que essa pauta se tornou insuficiente.

O desempenho de Bolsonaro no poder vai determinar se o anseio por renovação ficará vivo. Em quatro anos, o PT pode apresentar um novo estilo ou apostar numa onda retrô.