Pedro Fernando Nery
Pedro Fernando Nery: É preciso pensar em formas de financiar o SUS
Com o envelhecimento da população, é preciso pensar em formas de financiar o SUS
Pedro Fernando Nery / O Estado de S. Paulo
Neste mês, comemoramos o aniversário do Sistema Único de Saúde (SUS). Sua contribuição na resposta à pandemia fez muitos levantarem os lemas #DefendaOSUS ou #VivaOSUS, populares nas postagens de vacinação. Mas, para além das hashtags que sinalizam virtude, o que significa defendê-lo? Se normalmente se evocam como ameaças o fantasma do fim de gratuidade ou a participação do setor privado (que já é abundante no sistema), há um desafio muito mais concreto: o envelhecimento da população. O custo de um sistema já deficiente irá estourar: como arranjar os recursos para defendê-lo?
É um elefante na sala que ainda não debatemos enquanto sociedade. O Brasil é um dos países que envelhecem mais rapidamente no mundo, como mostram as projeções de medidas como a idade mediana da população ou a taxa de idosos. A desgraça da pandemia representa uma óbvia exceção, mas em breve a tendência deve retornar: cada vez menos crianças nascendo de um lado, e idosos vivendo mais.
Esta grande conquista, fruto do avanço da medicina e do próprio SUS, pressiona políticas públicas cujo financiamento foi pensado em um outro Brasil. Com menos jovens entrando na força de trabalho, temos menos contribuintes para gerar os recursos utilizados na Previdência ou no SUS, ambos demandados em especial pelos idosos.
Segundo as Nações Unidas, a proporção de idosos na população brasileira irá quadruplicar de 7% para 28% em apenas 50 anos (entre 2010 e 2060). Em outros países, esse processo será muito mais longo, tanto porque começaram a envelhecer primeiro, quanto porque vão envelhecer mais devagar do que o Brasil – que não conta, por exemplo, com fluxos imigratórios relevantes. A ONU estima que França e Suécia levarão quatro vezes mais tempo: 200 anos para quadruplicar a população de idosos de 7% para 28%. Para EUA e Reino Unido, a estimativa é superior a 150 anos.
Doenças cardiovasculares já são a principal causa de morte no Brasil e em vários países. Com uma população mais idosa, a incidência desse tipo de doença irá aumentar. Com ela, a demanda por serviços do SUS. O Brasil caminha para ser um País de cardíacos.
Economistas chamam de “imposto do pecado” (sin tax) uma possível solução. Esse imposto serviria para desencorajar o consumo de certos produtos, ao torná-los mais caros. Entende-se que esse consumo traz custos não pagos apenas pelo consumidor direto, recaindo sobre o conjunto da sociedade (por exemplo, onerando um sistema de saúde gratuito e universal). Além de álcool e cigarros, modernamente se fala em imposto do pecado para produtos com alto teor de açúcares e gordura. Esses produtos seriam caros demais para a saúde pública para serem baratos para o consumidor.
Há certa ambiguidade no objetivo: reduzir a demanda pelos produtos (reduzindo também o custo para a saúde pública lá na frente) ou arrecadar mais para custear o sistema. No início do governo, o ministro Paulo Guedes defendia a inclusão do imposto do pecado na reforma tributária. Já que o esforço em muitas propostas de reforma é de unificar a alíquota de todos os produtos e serviços da economia, exceções seriam abertas nesses casos – por exemplo, para que a alíquota seja menor na venda de uma bicicleta do que na venda de uma cerveja.
Dificilmente, porém, o imposto do pecado tem potencial para reduzir de forma significativa a demanda ou aumentar a arrecadação, a não ser que sua alíquota seja proibitiva. Tende a afetar mais os pobres e gerar reação da indústria e do comércio. Intervenções mais atuais apontam para “nudges”, medidas sem custo e que, com base na psicologia, tentam induzir o consumidor a fazer melhores escolhas (por exemplo, diminuindo a visibilidade de alguns produtos no supermercado ou reduzindo tamanho de pratos). O impacto também parece limitado.
Dificilmente escaparemos de redução em outras despesas ou aumento em tributos para fazer frente a esta gradual nova realidade, mas ela deveria poder ser atenuada. O #DefendaOSUS precisa deixar de ser festivo e evoluir para uma discussão madura sobre como empreender a grande ousadia de disponibilizar saúde gratuita a todos em um País de renda média que envelhece.
Amanhã é o Dia Mundial do Coração.
*Doutor em economia
Pedro Fernando Nery: Salário dos militares do governo pode chegar a R$ 80 mil com teto duplex
Militares não se aposentam. Foi assim que sempre argumentaram as Forças Armadas para se livrar da equiparação das regras previdenciárias com civis.
Militares se aposentam: e os ministros militares do governo são aposentados. É o que buscou a Defesa para se livrar do limite remuneratório (conhecido como teto). Argumenta-se que esses generais devem poder receber acima do limite/teto acumulando “aposentadoria” e o salário de ministro.
Estariam, assim, incluídos nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU) que permitem – excepcionalmente nesses casos – que o teto remuneratório seja dobrado, aplicado separadamente a cada um dos pagamentos, e não à soma deles (aposentadoria+salário).
Deixa de valer, assim, o limite de R$ 39,2 mil, o salário de ministros do Supremo que é a remuneração máxima no serviço público. Com a dobra do limite feita, o chamado “teto duplex” iria para quase R$ 80 mil. É 70 vezes o soldo dos recrutas. A mudança decorre de uma portaria do Ministério da Economia (que, aliás, não diz como vai pagar, violando a Lei de Responsabilidade Fiscal).
Militares da reserva com cargos no governo serão beneficiados, porque até então o acúmulo de salário e aposentadoria esbarrava no teto. Agora, o limite será o teto dobrado. Haverá aumentos para o presidente, mas principalmente para os generais. Segundo jornais, o vice Mourão receberia mais de R$ 63 mil mensais a partir de agora, os ministros Braga Netto, da Defesa, R$ 62 mil; Heleno, da Segurança Institucional, R$ 63 mil; e Ramos, da Casa Civil, R$ 66 mil.
A alegação para a portaria seria o cumprimento de uma decisão do STF, que permitiu que o limite remuneratório de R$ 39,2 mil seja observado separadamente para aposentadoria e para salário. Seria, assim, um limite para cada vínculo. Mas militar na reserva perde o vínculo?
A Constituição prevê que a aposentadoria afasta o vínculo com o empregador, seja na iniciativa privada ou no governo. Só que militares sempre justificaram que não se aposentam, que há apenas uma “transferência para a reserva remunerada”, que seguem à disposição do Estado e que podem ser convocados.
O TCU também havia decidido em anos recentes que, “na hipótese de acumulação de aposentadoria com a remuneração decorrente de cargo em comissão, considera-se, para fins de incidência do teto constitucional, cada rendimento isoladamente”. A expressão usada é aposentadoria, o que não se aplicaria aos generais.
Mesmo no STF, a discussão no julgamento da questão não parece ter levado em conta os militares. Por exemplo, o ministro Lewandowski, para quem o teto de R$ 39,2 mil sobre aposentadoria+salário violaria a dignidade da pessoa humana, observou que a aposentadoria é contraprestação por décadas de contribuição.
Mas militares não contribuem para a transferência para a reserva (ou “aposentadoria”), porque esta não seria um benefício (já que ainda estão à disposição etc.). Não é exagero do colunista: nenhum dos generais na reserva contribuiu sequer com um centavo em qualquer mês da carreira militar para o que agora querem considerar uma aposentadoria.
O argumento de que militar não se aposenta foi usado historicamente para evitar a imposição de idades mínimas para aposentadoria (90% sai da ativa com menos de 55 anos, 50% antes de 49), de contribuições de aposentados (como no serviço público civil) e de cálculo de aposentadoria com base na média salarial (como no INSS). Militares ainda têm a integralidade: vão para a reserva com 100% do maior salário. “Os militares nunca tiveram e não têm um regime previdenciário” escreveu Mourão em 2017 no texto “Por que os militares não devem estar na reforma da Previdência?”. O vice prometeu doar o dinheiro.
Agora, para pegar carona nas decisões do TCU e do STF autorizando o limite duplo para aposentados que recebem salário, o governo editou portaria estendendo o limite duplo para “militares na reserva”. As decisões não trataram desses casos, que exigiriam uma emenda à Constituição – já que é controverso o status dos militares da reserva. Qual o limite dos generais?
*Doutor em economia
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Pedro Fernando Nery: Lula x Bolsonaro - Um guia para não se perder em comparações enganosas
Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais
Já começam as comparações descabidas de indicadores dos governos Lula e Bolsonaro. As comparações enganosas entre candidatos que governaram em períodos diferentes são populares em anos eleitorais, com cada grupo de apoiadores usando da falácia que melhor lhe cabe. Nesta coluna proponho um guia para o leitor não se perder por aí.
Vários indicadores relevantes do Brasil são afetados por tendências de longo prazo. Assim, diferenças entre o governo A e o governo B podem ter menos a ver com qualidades ou defeitos dos governantes e mais com a mera passagem do tempo. Um tipo particularmente popular – e irritante – é a comparação nominal de preços. Ela não faz sentido porque há a tendência de preços crescerem no tempo, e a inflação impede que simplesmente se compare reais em um período com reais muitos anos depois.
Comecemos essa análise sem ajustar valores pela inflação, o que economistas chamariam de valores nominais. Esses valores serão maiores no governo Bolsonaro do que no governo Lula – como era no governo Lula em relação ao governo FHC (objeto preferido de comparação de petistas em eleições passadas). Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais.
Por exemplo, apoiadores de Lula vão gostar de difundir os dados sobre preços de gasolina ou gás, cesta básica ou carne. O tiro sai pela culatra para as variáveis em que valores maiores são positivos. Defensores de Bolsonaro poderão comparar os valores do salário mínimo e do Bolsa Família – nominalmente maiores, até porque foram reajustados para contemplar a inflação.
Mesmo quando se desconta o efeito da inflação, o que chamamos de valores reais, ainda há razão para desconfiança nas comparações. Há um progresso natural em várias políticas públicas, além de uma tendência de aumento do gasto público ao longo dos anos. Dessa forma, a campanha de Bolsonaro poderá apresentar um valor real maior para o salário mínimo (R$ 1.100 x R$ 900) ou para o Bolsa Família/auxílio.
O gasto público como um todo também é maior no governo Bolsonaro – seja em termos absolutos ou seja em relação ao PIB. Isso vale mesmo para antes da pandemia: em Lula em geral esteve abaixo de 17% do PIB, em Bolsonaro sempre acima de 19%. O gasto social (Seguridade) aumentou: R$ 960 bilhões em 2019 x R$ 670 bilhões em 2010. Ao contrário dos estereótipos, o governo Lula apresentava gasto total menor, a dívida era mais baixa e se produziam superávits primários (economia de impostos para abater a dívida). Mesmo antes da pandemia, a projeção era de déficits para todo o “austero” governo Bolsonaro.
Chegamos a um outro tipo de tendência: as demográficas. O envelhecimento da população, que aumenta o gasto com Previdência, explica parte da alta do gasto entre os governos Bolsonaro e Lula (ou entre Lula e FHC, ou até entre Temer e Dilma). A mudança do número de jovens tem impacto ainda no número de homicídios, com tendência de queda (44 mil em 2020, 50 mil em 2010).
Na demografia ainda se observou nesse ínterim o crescimento da população em idade ativa. Por conta dessa tendência, por enquanto ainda é normal haver cada vez mais pessoas trabalhando (população ocupada), o que permite a um governante dizer que criou X milhões de empregos em relação a um antecessor. É possível que, mesmo com a pandemia, ao fim do governo Bolsonaro haja mais empregos em relação ao governo Lula, inclusive com carteira assinada. O mesmo para o PIB, espécie de agregado de trabalhadores.
Há outros avanços na sociedade relacionados ao progresso da ciência e tecnologia, da queda da mortalidade infantil ao aumento de acesso à celular.
Como comparar então governos diferentes? A leitura pode ser melhor usando taxas (para a variação de uma variável, como o salário mínimo, ou para uma proporção, como o desemprego). Para parte do eleitorado taxas são menos interessantes, e é então improvável que campanhas abram mão dos paralelos menos sofisticados.
Nesse tipo de análise, economistas se preocupariam também com a influência de fatores externos (como os preços das commodities que exportamos ou os juros internacionais), que podem ajudar ou atrapalhar um governo e responder por muito do seu êxito ou fracasso (como uma correnteza para um remador).
Há assim, na academia, os estudos que tentam isolar dos resultados econômicos de um país diversas influências, na busca pelo “contrafactual” de um conjunto de políticas (para o responder o que teria acontecido se um governo agisse diferente). Um tipo de análise em voga é o chamado “controle sintético”, em que um país é comparado em um período com um grupo de países semelhantes, para conjecturar o que teria acontecido de qualquer jeito ou o que decorre das ações, por exemplo, da política econômica ou do negacionismo em uma pandemia.
Preços aumentam, nosso país envelheceu, a tecnologia progride. Boa sorte ao leitor: a temporada das comparações impertinentes está começando.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Pedro Fernando Nery: Novo IDH verde expõe hipocrisia dos países ricos
É justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta
Esta é a semana do Dia da Terra: vale aproveitar a ocasião para conhecer o novo IDH, que ajusta o tradicional índice de desenvolvimento humano para “pressões planetárias” (IDHP). Assim, além de informações sobre renda, educação e saúde, o novo IDH contempla a emissão de carbono e a pegada ecológica por habitante. Mensura então o quanto o desenvolvimento de um país pressiona a Terra, expondo vários países ricos – que despencam no ranking do IDH.
Peguemos o exemplo da Noruega, diversas vezes considerado o país de maior qualidade de vida, número 1 na classificação do indicador. As ruas de suas cidades têm ciclovias e estações para carregamento de carros elétricos. Sua política externa é preocupada com a mudança climática, sendo marcante o episódio da suspensão das doações ao Fundo Amazônia com o aumento do desmatamento no governo Bolsonaro. O novo IDH a constrange.
É que a Noruega perde nada menos do que 15 posições no indicador com os ajustes feitos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Não deve voltar ao topo do ranking tão cedo: em parte porque o país é um grande produtor de petróleo. Digamos que os painéis solares de Oslo são viabilizados pela riqueza de suas exportações, que vira por exemplo combustível fóssil queimado em outros países.
Dessa forma, o novo IDH expõe de forma clara uma certa hipocrisia que já era criticada. Sobre a convivência da agenda verde dos noruegueses com a venda de petróleo de suas gigantescas reservas para o resto do mundo, o jornalista Michael Booth comparou a Noruega ao “traficante de drogas que não usa seus produtos”.
O vexame também é de outros países, o que talvez explique a baixa cobertura da imprensa internacional para o novo IDH, ou a tímida divulgação do próprio Pnud (que embora disponibilize os dados, optou por não divulgar o ranking reclassificado). O rico que mais perde é Luxemburgo, caindo mais de 130 posições.
O Brasil ganha dez posições no novo IDH, menos do que vários países latino-americanos, muitos dos quais são os que mais ganham posições no IDHP entre países do mundo todo. Vários vizinhos nossos ganham mais que 20 posições. Seriam, para usar a definição oficial, países cujo desenvolvimento humano atual não pressiona o planeta e a desigualdade entre gerações. Segundo a ONU, esse IDH verde “deve ser visto como um incentivo para transformação. Em um cenário ideal, em que não houvesse pressões no planeta, o IDHP seria igual ao IDH”.
Vale frisar que o novo indicador, como o tradicional, tem limitações. Pode-se alegar que medidas sintéticas perdem a utilidade quando incorporam informações demais. E sempre haverá informações a incorporar. Por exemplo, a nova número um é a Irlanda, cuja prosperidade está em algum grau associada ao seu papel cada vez mais relevante de paraíso fiscal – em prejuízo de outros países.
Assumidamente experimental, o novo IDH verde gera um ranking com curiosidades. Quando a sustentabilidade entra na conta, o Brasil é considerado mais desenvolvido que a Austrália, o México desbanca os Estados Unidos, o Sri Lanka ultrapassa a Coreia do Sul. A Costa Rica, que mais ganhou posições, supera em desenvolvimento humano a Islândia. Portugal ganha da Finlândia. E o Panamá surge na frente do Canadá no novo IDH.
A diplomacia dos países desenvolvidos poderia ser desafiada com a nova abordagem. Além da Noruega, os Estados Unidos é outro país que cai muito na reclassificação. Por mais desastrosa que seja a atual política ambiental brasileira, por que deveria se dar tanto status às críticas de países cuja emissão por habitante é, respectivamente, quatro vezes ou oito vezes maiores que a nossa?
O IDH verde poderia ser um trunfo então para os países mais pobres, que deram menos causa à mudança climática e podem sofrer mais com ela (por conta dos efeitos na agricultura, por exemplo). Se vão ter seu crescimento econômico limitado pelos esforços de mitigação nos próximos anos, é justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Pedro Fernando Nery: Deveríamos falar em vacinar primeiro a população negra
Negros têm probabilidade maior tanto de morte quanto de internação do que brancos
A campanha de vacinação se iniciou pelos idosos, com taxas maiores de mortalidade. Estudos recentes para o Brasil têm mostrado que há outro grupo demográfico mais tendente a morrer de covid, bem como de se infectar e também de perder renda na pandemia. Se concordássemos em priorizá-lo na imunização, estaríamos falando de vacinar primeiro a população negra.
Aceito recentemente para publicação no periódico BMJ Global Health, um estudo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros promove uma detalhada descrição das diferenças sociais e raciais na pandemia (Li et al., 2021). De instituições como o Ipea e as Universidades de São Paulo e Oxford, a pesquisa faz uso de uma informação que só está disponível para os pacientes do Estado de São Paulo: o CEP. Assim, foi possível combinar o dado com outras pesquisas com informações espaciais.
Indivíduos de áreas mais pobres chegam a ter probabilidade 60% maior de morte do que aquelas de áreas mais ricas (que predominam nas internações no início da pandemia, mas não depois). E negros têm probabilidade maior tanto de morte quanto de internação do que brancos.
Parte da diferença parece associada ao tipo de hospital do paciente (público x privado), mas não toda. Negros apresentam maior probabilidade de morrer mesmo nos hospitais particulares.
A versão definitiva do trabalho ainda não está disponível, mas um pré-print foi publicado em dezembro e explicado por um dos principais autores – o economista Rafael Pereira, craque do Ipea em estudos espaciais: “A vulnerabilidade à covid-19 é fortemente moldada por diferenças de saúde preexistentes na incidência de comorbidades e por condições socioeconômicas, que afetam a capacidade dos indivíduos aderirem ao distanciamento social e a intervenções não farmacológicas, e acessarem serviços de saúde”.
A população negra e aqueles com menor nível educacional são mais afetados por se ocuparem mais em trabalhos com contato face a face com outros. Enquanto isso, brancos têm maior probabilidade de estarem em teletrabalho.
Assim, não é surpreendente também que os dados de telefones celulares na capital paulista indiquem que são nos bairros de maior população branca que há maior adesão ao isolamento social, que também dura por mais tempo nesses casos.
Por sua vez, a evidência de presença de anticorpos em doadores de sangue – mais um tema do estudo – parece confirmar uma taxa maior de contágio entre a população negra. Já outra pesquisa, do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP, mostra que a mulher negra é mais vulnerável à perda de renda na pandemia (Fares et al., 2021). Homens brancos perdem menos.
Passada a vacinação de idosos, não parece haver um critério consistente para a continuação da campanha. Grupos organizados têm conseguido prioridade, e em vários lugares vemos sendo vacinados jovens pouco expostos, apenas porque possuem nível superior em áreas como educação física, nutrição, veterinária ou psicologia – pegando carona na vacinação dos profissionais de saúde da linha de frente.
A prioridade para idades mais altas funcionou como um critério simples razoavelmente bem alinhado com os riscos da pandemia. Com o avanço da campanha, com as novas variantes e com as evidências existentes, faz sentido pensarmos em outro? Ou as prioridades vão ser dominadas pelos lobbies das carteirinhas, em prejuízo dos expostos que não podem ser organizados por conselhos ou associações?
Se negros perdem mais renda com as medidas sanitárias, se estão mais expostos ao contágio pelas diversas razões listadas e se correm maior risco de morte, não é absurdo pensar que essa parte da população seja prioridade – ainda que haja sobreposição entre baixa renda e raça nas vulnerabilidades na pandemia. A precedência para a população negra chegou a ser defendida nos EUA por Melinda Gates.
É ideal um homem de 40 anos em teletrabalho ser vacinado antes de um entregador de 25 anos? A alocação inteligente das vacinas pode reduzir mais rapidamente tanto o contágio quanto as mortes, assim como as taxas de pobreza. Devemos buscar vacinar os vulneráveis primeiro.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Pedro Fernando Nery: Após a queda de Trump, quem será o 'Biden brasileiro'?
Caberá ao Biden nacional combater a desigualdade de renda e abrir um futuro de maior produtividade para a economia
Pela ocasião da alta votação de Joe Biden em 2020, que reuniu um amplo espectro de apoio para derrotar Trump, muito se especulou sobre quem seria “o Biden brasileiro”. Perto da marca dos 100 primeiros dias do novo presidente americano, já é possível vislumbrar quais temas quer transformar. Um que destoa é o da infância, com uma espécie de renda universal infantil. Quem será o Biden brasileiro?
Biden já conseguiu sancionar uma de suas propostas de campanha: o pagamento de US$ 250 mensais para a maior parte das crianças e adolescentes americanos, com valor ampliado para US$ 300 no caso das crianças de até seis anos (1.ª infância). Não se exige que pais não tenham emprego.
Os valores passam a ser decrescentes para famílias com maior renda. Para outro limite de renda, não há direito ao pagamento (uma renda equivalente à do décimo mais rico dos americanos). Como poucas crianças estão em famílias no topo da distribuição de renda, o benefício é semiuniversal.
É uma grande mudança: os EUA estão entre poucos países desenvolvidos a não possuir esse benefício. Uma renda universal para crianças, ou semiuniversal, é praticada em boa parte da OCDE e é parte integrante do modelo de Estado de bem-estar social europeu – só parcialmente importado por essas bandas. Mesmo países de tradição anglo-saxônica pagam o benefício, como Austrália e Canadá.
Como seria se o Brasil replicasse a iniciativa americana? Evidentemente os valores de US$ 300 mensais estão distantes de nossa realidade. Mas comparando com a renda per capita dos dois países, o plano de Biden equivaleria no Brasil a dobrar o benefício variável do Bolsa Família – hoje de R$ 41 por criança.
Significaria também estendê-lo para milhões que não recebem benefício algum, por não serem de famílias pobres o suficiente para receber o Bolsa nem ricas o suficiente para declarar imposto de renda (que gera um benefício indireto: a dedução por dependente).
Sempre cabe ressaltar que 4 a cada 10 crianças brasileiras viviam na pobreza mesmo antes da pandemia, com número piores para as que vivem somente com a mãe, as negras, as na 1.ª infância. Entre estas, no cálculo de Naercio Menezes, metade continua abaixo da linha da pobreza mesmo recebendo o Bolsa Família – tamanha a insuficiência de renda. Nos EUA, estima-se que a taxa de pobreza infantil caia agora à metade.
Da Universidade de Columbia em Nova York, o Centro de Pobreza e Política Social estima que o retorno da nova política de proteção social americana será de oito vezes o seu custo para o contribuinte, pelos seus efeitos poderosos sobre o desenvolvimento infantil. O retorno vem no futuro de mais impostos arrecadados (porque o benefício amplia as possibilidades de o adulto de amanhã conseguir emprego, e emprego com melhores salários) e menos gastos (inclusive com saúde e até segurança pública e justiça, dada a triste vulnerabilidade do público beneficiado).
Propostas responsáveis de uma renda universal infantil foram feitas no Brasil em anos recentes por pesquisadores associados ao Ipea. Versões tramitam no Congresso. Em 2019, especulou-se que o governo Bolsonaro apresentaria uma proposta. Nicholas Kristof, articulista do The New York Times, resumiu a dificuldade que esse tipo de proposta tem em angariar apoio da sociedade: crianças não escrevem colunas, não votam e não contratam lobistas.
Rosa DeLauro, deputada americana que autorou o projeto da Lei da Família Americana – base do programa de Biden, acredita que a pandemia expôs a vulnerabilidade desse grupo da população e permitiu a aprovação da proposta. Ela advogou pelo benefício por 18 anos. DeLauro, como Biden e Nancy Pelosi (presidente da Câmara), integram o grupo de democratas católicos – influenciados pela doutrina social.
Mas lá, ao contrário daqui, conservadores também aderiram à pauta. Mitt Romney, o republicano vencido por Obama nas eleições presidenciais de 2012, apresentou proposta de renda universal infantil permanente, ainda mais ousada que a de Biden (que é por ora apenas temporária). Justificou o projeto da Lei de Segurança das Famílias tanto pela redução da pobreza como pela promoção dos casamentos.
Outros conservadores americanos interessados nesse tipo de benefício argumentam pela diminuição de divórcios, aumento da natalidade, redução de abortos e maior estabilidade nos lares. Pauta que deveria ser abraçada pelos defensores da família.
Com a solução apenas temporária para o auxílio emergencial de 2021, o debate sobre proteção social segue aberto no Brasil. Caberá ao Biden brasileiro liderar uma transformação do Orçamento, combatendo desigualdade de renda geracional e abrindo um futuro de maior produtividade para a economia.
*Doutor em economia
Pedro Fernando Nery: A falácia dos deveres que recai sobre os brasileiros mais pobres
A contrapartida de direitos são os tributos, que aparecem fartamente na Constituição
O argumento é recorrente. Os brasileiros mais pobres já possuem benefícios demais: a própria Constituição citaria “direitos” dezenas e dezenas de vezes, mas “deveres” somente em um punhado de ocasiões. Com tantos direitos sem deveres correspondentes, o arranjo seria insustentável. O argumento é falacioso: a contrapartida de direitos são os tributos, eles são fartamente previstos na Constituição e incidem mais justamente sobre os mais pobres – aqueles que teriam direitos demais.
Comecemos com um Ctrl+F na Constituição. Tributos e seus tipos – impostos e contribuições – aparecem mais de 300 vezes. São eles os espelhos dos direitos, e não um termo genérico como “dever”. O direito à saúde é concretizado com contribuições sociais. O direito à educação é efetivado com impostos. E assim vai.
No Brasil, muitos desses tributos, ou deveres, recaem sobre quem ganha menos, que paga a conta indiretamente quando compra um produto. Na verdade, os mais pobres pagam mais em tributos indiretos do que os mais ricos, quando considerado o peso dos tributos em proporção à renda de cada grupo.
Essa distribuição é muito diferente da de vários países desenvolvidos, que exigem mais esses deveres dos mais ricos. Mesmo uma reforma da tributação sobre o consumo, como a PEC 45, pode atenuar a situação, ao distribuir melhor a carga entre o que é consumido pelos mais bem posicionados na distribuição de renda e os mais vulneráveis. Estudo da economista Débora Freire conclui que essa reforma tributária traria “ganhos de bem-estar” para as famílias mais pobres, pelo seu efeito nos preços.
Para que as elites tenham mais deveres, são importantes também medidas relacionadas à tributação da renda. Embora a Constituição demande tratamento igual entre os cidadãos em geral, e progressividade no Imposto de Renda em particular, o fato é que ele é regressivo para rendas mais altas: quanto mais se ganha, menos se paga (a alíquota efetiva chega a 5% para o grupo que ganha mais de R$ 300 mil). Isso porque para este dever muitos pagam 0% em relação a certas rendas, isentas legalmente de pagar o IR – em provocação à Constituição.
Temos também muitos problemas com isenções ou outros auxílios a empresários de setores específicos da economia. Estes ficam dispensados de seus deveres constitucionais parcial ou totalmente, por um prazo definido ou indefinidamente. São os chamados gastos tributários (renúncias, benefícios fiscais): um montante que eleva a nossa dívida com pouca clareza sobre suas vantagens em termos de políticas públicas.
Um passo, ainda que tímido, foi dado semana passada para que os deveres sejam distribuídos de forma mais igualitária. Com a nova Emenda Constitucional n.º 109, decorrente da PEC emergencial, uma nova lei complementar passa a ser exigida regulamentando a criação desses benefícios fiscais, regras para avaliação e um plano para sua redução. É importante que a regulamentação do tema enquadre mecanismos que dão menos deveres a grupos mais prósperos, como isenções no IR ou tributação do patrimônio favorecida, abaixo dos limites da Constituição.
É verdade que em nosso pacto social é possível identificar direitos em excesso, mas a evidência é de que isso não ocorre entre os mais pobres. Se consideramos deveres os tributos, consideremos agora o gasto público como uma aproximação de direitos. Os dados apontam que transferências do governo são regressivas quando dividimos a população – por exemplo – em cinco grandes grupos de renda: isto é, quanto menos pobre cada quinto da população, mais recursos recebem.
De tal forma que para o quinto mais rico pesam em sua renda os recursos recebidos do governo quase o mesmo tanto que para os mais pobres. Como mostra estudo da antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, esse padrão é muito divergente do de países da OCDE, em que o gasto é muito mais direcionado aos mais vulneráveis.
Como evidencia o debate do auxílio emergencial, uma larga parcela da população está, na verdade, com poucos direitos. Centenas de economistas lançaram no último fim de semana uma carta que chamou atenção pelas cobranças quanto à pandemia, mas que também defende de forma contundente uma reforma no sistema de proteção social – exatamente pela cobertura insuficiente.
Muito mudou no País desde que Roberto Campos fez a crítica que seria popularizada nas décadas seguintes – de que a Constituição prevê direitos demais e deveres de menos. À época, ainda não haviam sido montados os mecanismos legais que hoje distorcem tanto nosso sistema tributário em benefício de quem está no topo. Que as mudanças que esperam nosso País nos próximos anos se orientem por uma verdade inconveniente: são os mais ricos que têm deveres de menos.
*Doutor em economia
Pedro Fernando Nery: O que o PIB não vai contar sobre a realidade do País
Crescimento em 2021 não vai refletir situação material de boa parte da população nos próximos meses
O Brasil deve crescer em 2021. Possivelmente a alta do PIB será a maior em mais de dez anos. Entretanto, de forma incomum, o crescimento do PIB nos próximos meses deve coincidir com elevações do desemprego e da pobreza – a recordes. O PIB não vai contar boa parte da história.
Vale entender melhor como o PIB tem se comportado. A atividade econômica no Brasil, em 2020, sofreu uma queda menor que a de outros países – em boa parte pelos efeitos do auxílio emergencial. O País chegou a subir posições na lista de maiores economias do mundo, para o 8.º lugar – segundo os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).
A imprensa deu grande ênfase a outro resultado, o de que o Brasil teria na verdade perdido posições nesse ranking, e inclusive saído do top 10. Isso só ocorre em uma comparação menos apropriada, que refletisse menos a variação do PIB e mais a forte queda do real, que diminuiria o valor do nosso PIB em outras moedas.
A comparação mais comum, porém, levando em conta o poder de compra das moedas, teria o Brasil ganhando posições – como nas estimativas do FMI em que supera França e Reino Unido. Afinal, em um dia em que o dólar sobe muito os brasileiros não ficam necessariamente mais pobres.
Se o Brasil ganhou posições na comparação internacional do PIB em 2020, e em 2021 deve crescer bem mais do que na média da última década, qual é então o problema?
O problema é que o crescimento da economia nos próximos meses não deve alcançar tanto os trabalhadores informais, os desempregados, os fora da força de trabalho. O agravamento da pandemia afetará o emprego informal e também o formal. E o orçamento do auxílio emergencial será um sexto do que foi em 2020.
Mesmo quando a curva de mortes voltar a níveis menores, muitos ainda estarão afetados pela crise. São trabalhadores de ocupações que demorarão para registrar a normalidade de 2019, ou de empresas que já não existem mais. Ainda que se beneficiem pelo auxílio emergencial reduzido, o novo valor só será pago por alguns meses. Depois, voltaremos ao Bolsa Família, que na ausência de reformas é uma rede incapaz de segurar a alta da pobreza extrema que vai ocorrer.
A divergência entre a situação mostrada por indicadores da atividade econômica como o PIB e indicadores do mercado de trabalho e renda já ocorre há alguns meses. Com a redução do auxílio emergencial ao fim de 2020, e a sua suspensão na virada do ano, milhões de famílias tiveram uma queda significativa de renda. A situação da pandemia manteve o mercado de trabalho difícil. Mas tudo que indicava que o PIB vinha crescendo.
O Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), divulgado ontem e considerado uma prévia do PIB, sugere que em janeiro deste ano a economia já estava em patamar próximo do de janeiro de 2020. Mas pelo menos alguns milhões não recuperaram seus empregos, e a pobreza está em alta (o que melhorará um pouco, é verdade, com o novo auxílio, ainda que reduzido).
Veja o leitor que o mero retorno da economia ao nível pré-pandemia, por ocorrer depois de uma queda, significa uma variação positiva: crescimento. Essa espécie de “efeito sanfona” do PIB também acontecerá em outros países, que apresentarão crescimento forte sem que haja melhora das condições de vida em relação a 2019.
Em especial, PIB crescendo com pobreza crescendo significa aumento da desigualdade. A sociedade deve querer então outras bússolas para este ano que não o PIB. Ele certamente vale a torcida, mas por condições atípicas não vai refletir a evolução da situação material de boa parte da população nos próximos meses.
Para onde devemos olhar então? A taxa de desemprego é agora outro indicador problemático, porque muitos que deixaram de trabalhar não estão necessariamente procurando ativamente uma vaga – porque não querem se contaminar pelo vírus. Eles não são computados na taxa de desemprego. Pelos dados do Google, a procura por vagas até subiu após o fim do auxílio emergencial, mas a piora da covid e as medidas restritivas devem continuar mantendo parte dos sem emprego em casa.
Assim, a taxa de desemprego tradicional, mesmo aumentando, ainda não vai absorver todo o drama. A imprensa deve passar a divulgar mais estimativas da taxa que contemplem essa população que queria trabalhar, mas não está na busca (desemprego oculto, sombra). Idealmente, o IBGE poderia já fazer essa projeção ao divulgar os resultados da Pnad.
Devemos dar ênfase também às estimativas de taxas de pobreza e de pobreza extrema, que não foram preocupantes em 2020 por conta do amplo auxílio emergencial – que, sabemos, acabou naquele formato. O complicador aqui é outro: essas não são projetadas mensalmente pelo governo. Vale ficar de olho, portanto, no trabalho da academia – como o da FGV Social.
Com a bússola errada será mais difícil chegarmos ao lugar certo.
*Doutor em economia
Pedro Fernando Nery: Para onde vai o dinheiro que o governo gasta com os Estados?
A discussão sobre um novo benefício social é também uma discussão federativa
O valor recebido por habitante em pagamentos federais é três vezes maior no Rio de Janeiro do que no Pará. Os pagamentos do governo federal por pessoa são 50% maiores no Rio Grande do Sul do que no Rio Grande do Norte. O gasto com cada cidadão no Distrito Federal é 25 vezes maior do que no Amazonas.
Na última semana, defendi na coluna a necessidade de reformas que orientem os gastos públicos para os mais pobres. Um ponto de partida é examinar para onde vai o gasto no espaço. Façamos isso para o gasto direto do governo – deixando para a próxima oportunidade a discussão do gasto indireto, as renúncias de impostos.
A maior parte do gasto federal corresponde a algum tipo de transferência, isto é, um pagamento mensal diretamente na conta de uma pessoa física. São salários de servidores, benefícios de regimes de previdência (aposentadorias, pensões), benefícios trabalhistas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (seguro-desemprego, abono salarial) e benefícios assistenciais (Bolsa Família, BPC). O grau de contrapartida desses pagamentos, portanto, varia.
Em 2019, somaram R$ 1 trilhão e 100 bilhões – algo como 80% da despesa primária total do governo federal. Por sua natureza, é mais fácil identificar a distribuição regional desses gastos. Por exemplo, quanto vai para cada Unidade da Federação (UF). Como elas possuem populações muito diferentes em tamanho, é pertinente dividir o gasto em cada UF pela sua população. Daí decorrem os dados do primeiro parágrafo, que apontam para como a União distribui seus recursos em termos per capita e como o dinheiro federal afeta as economias locais.
Se é de se esperar que o gasto federal em cada lugar seja diferente porque cada Estado tem um número de habitantes diferente, não é tão óbvio que o gasto por habitante seja divergente. E talvez seja surpresa para o leitor que, sim, ele é muito divergente. Isso ocorre por diversas razões, algumas mais legítimas (Estados mais envelhecidos possuem mais aposentados) outras nem tanto. É o caso da proteção social muito atrelada ao emprego formal, que resulta em pouco gasto justamente em regiões mais pobres.
É o caso também das despesas relacionadas ao funcionalismo, que geram dispersão nos dados pela desigualdade na distribuição espacial de órgãos federais – já que seus servidores são mais bem remunerados em termos relativos e há um contingente elevado de aposentados e pensionistas que se beneficiou de regras favorecidas de inatividade. Parece haver, por exemplo, uma desproporção de militares das Forças Armadas no Rio de Janeiro.
Assim, os pagamentos anuais por habitante vindos do governo federal são de R$ 65 mil no Distrito Federal (o maior), mas de R$ 2.500 no Amazonas (o menor). Fecham o top 5 Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Estados mais desenvolvidos parecem ser mais bem servidos de órgãos federais e receber benefícios sociais de maior valor, como da previdência urbana e do FAT, associados ao emprego formal. Regiões menos industrializadas, com maior desemprego e informalidade, recebem pouco deles, se apoiando na assistência – o Bolsa Família é o mais recebido, e de valor bem baixo.
Amazonas e Pará, que são os mais preteridos, destoam de outros Estados pobres por duas razões. Ao contrário de Estados do Nordeste, recebem pouco da previdência rural, que paga benefícios bem maiores que o Bolsa Família, de um salário mínimo. O fato pode se explicar por terem a Floresta Amazônica em seus limites, limitando a economia rural. Isso sem possuir uma vantagem de outros Estados amazônicos: o de serem ex-territórios federais, que contam com o custeio pela União de ex-servidores locais, com salários maiores – fonte relevante de entrada de recursos.
Já o caso do Distrito Federal parece em algum grau condizente com a prosperidade observada em outras localidades administrativas que lideram os indicadores de renda de suas regiões. É assim em condados da Virgínia vizinhos ao Distrito de Colúmbia (que sedia Washington), ou mesmo Bruxelas, base para órgãos decisórios da União Europeia. Pode-se discutir, porém, o tamanho do prêmio salarial do serviço público federal, assim como o nível das contribuições previdenciárias de aposentados e pensionistas (civis e militares).
Com os avanços da tecnologia da informação, poderia ser saudável uma desconcentração maior que a existente hoje de órgãos da administração indireta para Estados pobres, reduzindo a parcela da arrecadação consumida em Brasília e com efeitos positivos sobre essas economias locais, em arranjo mais próximo do europeu.
O experimento do auxílio emergencial questionou nosso modelo de gasto público. Com critérios de pobreza e baseado na ausência de emprego formal, as transferências per capita foram muitíssimo maiores no Nordeste e no Norte. A discussão sobre um novo benefício social é também uma discussão federativa.
*Doutor em economia
Pedro Fernando Nery: De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família
Seja via o benefício ou por novo programa social, a população infantil deve ser prioridade do governo
De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família. Embora efetivo em combater a extrema pobreza, o programa só recebe 2% das despesas primárias do governo federal. Para ser expandido, diante da grave restrição fiscal, precisa ocupar espaço de outras políticas mais caras e menos voltadas aos mais pobres – sejam elas pagas pelo Estado diretamente (gasto) ou indiretamente (renúncia de tributos). Poderá a pressão por mais recursos pelos órfãos do auxílio emergencial mobilizar as reformas que permitam a expansão do Bolsa?
Cerca de 50 milhões dos beneficiários do auxílio emergencial não eram beneficiários do Bolsa Família. Como possuem dificuldade de acessar o mercado de trabalho formal – afinal um pré-requisito do auxílio é não ter emprego com carteira –, não são tão alcançados pelo gasto com benefícios previdenciários ou trabalhistas. Eles pressionarão pelo aumento da cobertura da assistência social. Já os beneficiários do Bolsa Família receberam pagamentos bem maiores com o auxílio emergencial. Eles pressionarão pelo aumento do tíquete médio (de R$ 190 por família, mas com piso de meros R$ 41 mensais).
Na pesquisa do Poder360, a rejeição do presidente caiu a 30% no auge dos pagamentos do auxílio. Ele foi reduzido e depois encerrado. Agora, semanas após o encerramento, a rejeição já subiu ao patamar de 50%. Essa trajetória acompanha a montanha russa na renda dos beneficiários, que em alguns casos subiu muito em 2020 e agora cai ao menor nível em anos.
Assim, um desdobramento do auxílio emergencial poderia ser uma mudança no gasto público no Brasil. Esse legado se soma a outros – o mais comentado é o aumento expressivo da dívida pública com os pagamentos. Há ainda um legado positivo, decorrente da elevação temporária da renda dos mais pobres. Como a variação não resultou apenas em aumento na compra de alimentos, pelo menos parte do auxílio de 2020 tem efeitos mais duradouros. É o caso da aquisição de remédios ou do desenvolvimento da infraestrutura do domicílio (gastos com eletrodomésticos e construção que podem melhorar na habitação condições de saúde, de desenvolvimento infantil e de inclusão digital).
Ugo Gentilini, líder global para assistência social do Banco Mundial, analisa o legado que os benefícios temporários da pandemia podem deixar para a rede de proteção social permanente dos países que os implementaram. Condizente com as curvas de popularidade no Brasil e a pressão de um ano pré-eleitoral, Gentilini especula: “O fato de a covid-19 ter alcançado pessoas anteriormente sem cobertura – incluindo grandes parcelas de trabalhadores do setor informal – pode gerar um novo eleitorado exigindo proteção social, possivelmente aumentando a sustentabilidade política de programas de grande escala”.
O economista avalia ainda que a pandemia testou preconceitos associados a transferências de renda, o que pode ter desmistificado os benefícios para segmentos da sociedade. Afinal, a academia e a tecnocracia já sabem há tempos que não procede que os pagamentos sejam mal utilizados e que sejam relevantes para desincentivar o trabalho ou estimular o aumento de famílias.
Para o Bolsa Família, é especialmente importante o reajuste dos valores do benefício variável e da linha de pobreza que dá acesso a ele. Este é o benefício voltado para ajudar crianças. Seja via Bolsa Família ou por novo programa baseado nele, a população infantil deve ser prioridade. Há um notório elevado retorno para a sociedade de garantir o desenvolvimento destes futuros trabalhadores – e o Brasil gasta muito menos de seu PIB do que países ricos com benefícios a famílias com crianças.
Os Estados Unidos, uma exceção, agora discutem seriamente um benefício universal infantil, com apoio inclusive de republicanos estrelados.
Nenhum outro benefício se mostrou no Brasil tão capaz de chegar aos mais pobres, nem de perto, o que dá azo à revisão de outras políticas para que uma transferência de renda como o Bolsa ocupe mais espaço. Não apenas os gastos diretos deveriam ceder recursos, como também os indiretos: as políticas públicas baseadas em corte de tributos para segmentos específicos tidos como “estratégicos”. Como provocou recentemente Carlos Góes, estratégicos são os pobres.
Poderia o auxílio emergencial ser um catalisador dessas reformas, antes associadas apenas à pauta de ajuste fiscal? Gentilini reflete que os avanços na proteção social historicamente aconteceram diante de inesperadas janelas de oportunidade – mas elas se fechariam rapidamente. O debate atual não deve se limitar apenas à renovação temporária do auxílio, mas a mudanças profundas no Orçamento que permitam a expansão da proteção social com responsabilidade fiscal. Quem sabe os mais pobres ganhem mais um ou outro centavo.
*Doutor em economia
Pedro Fernando Nery: O auxílio emergencial salva vidas?
Sem o auxílio emergencial talvez tivéssemos vivido a pandemia de forma mais parecida com o México, que não implementou nenhum benefício relevante; lá, como aqui, o presidente minimizou a pandemia
No debate sobre uma nova rodada do auxílio emergencial, tem-se apontado que o benefício teria sido exagerado em 2020. É que ele teria provocado um aumento da renda das famílias mais pobres, ao invés de apenas repor a renda perdida – um exagero que afetaria negativamente a própria economia diante da alta dívida pública. O argumento elide um ponto importante do auxílio emergencial – o seu caráter sanitário. Para além dos dados de renda, devemos nos perguntar: o auxílio salvou vidas?
Na sexta-feira, perguntado sobre a prorrogação do benefício, o presidente da República respondeu “cobra de quem determinou ficar em casa”. O raciocínio não deixa de ser coerente: o auxílio de fato foi concebido para ajudar as pessoas a ficarem em casa. A fala do Presidente ajuda a conjecturar o que teria acontecido sem um auxílio emergencial vigoroso: a perda de renda forçaria as pessoas a circular em busca de uma ocupação.
Além disso, tornaria parte da população um prato cheio para a desinformação. É muito mais fácil acreditar em mentiras no WhatsApp e se indignar contra as medidas de distanciamento quando há o medo de perda de renda na família. Na economia comportamental, chama-se de “viés de confirmação” a tendência que temos de selecionarmos as informações mais convenientes para os nossos valores.
Outro lembrete do negacionismo de autoridades brasileiras foi dado no domingo, quando o general ministro-chefe da Secretaria de Governo declarou que “o tal do fique em casa foi um erro”. Sem o auxílio emergencial talvez tivéssemos vivido a pandemia de forma mais parecida com o México, que não implementou nenhum benefício relevante. Lá, como aqui, o presidente minimizou a pandemia: neste caso o esquerdista Andres Manuel López Obrador (AMLO), coadunando com a “teoria de ferradura” (que prescreve que extremos do espectro ideológico não se afastam, mas se encontram).
O México, com AMLO e sem auxílio, conseguiu simultaneamente conquistar um aumento expressivo da pobreza e um número elevado de óbitos. A taxa de mortes é de 1.400 por milhão de habitantes, a maior da América Latina. Supera a brasileira de 1.100 por milhão, embora sua população seja mais jovem. A taxa mexicana aqui resultaria em dezenas de milhares de mortes a mais.
De fato, estudo do economista Marcos Hecksher (Ipea) mostra que muitos países da América Latina estão entre os piores do mundo quanto ao índice de mortes na pandemia – quando se pondera pela demografia, mais favorável do que em países com maior proporção de idosos (como os europeus). Entre os vizinhos que desbancam o Brasil, nenhum parece ter instituído proteção social relevante.
Um estudo divulgado no fim de janeiro pelo Instituto de Economia do Trabalho (IZA, da Alemanha) quantificou como na Itália vouchers instituídos na pandemia diminuíram de forma relevante a mobilidade dos cidadãos (Deiana et al., 2021): “programas de auxílio que mitigam a ruptura econômica da pandemia podem fomentar a observância de medidas de distanciamento social, limitando as necessidades de mobilidade de públicos-alvo e nutrindo a crença do público de que a gestão da crise é adequada e justa”.
Poderia se especular que um auxílio emergencial robusto poderia ter o efeito contrário, ao aumentar o poder de compra de tal forma que as pessoas se deslocariam mais para consumir como nunca antes – mas esta evidência não foi colocada. Para outros países, os resultados têm mostrado que mais ajuda é igual a mais isolamento.
Nos Estados Unidos, identificou-se que as medidas de distanciamento são menos cumpridas pelos mais pobres, e o equivalente do auxílio emergencial lá aumentou o distanciamento social (Wright et al., 2020). Com dados de smartphones, outros pesquisadores chegam a falar em “privilégio do distanciamento social” (Dasgupta et al., 2020). Já a análise de 241 regiões de 9 países da América Latina e na África mostrou que pobreza está associada a maior mobilidade (Bargain e Aminjonov, 2020).
Por aqui, os psicólogos Jéssica Farias e Ronaldo Pilati, da UnB, aplicaram questionários a mais de 2 mil pessoas para entender os fatores que influenciariam o respeito às medidas preventivas. Em uma exploração inicial, os desempregados e os de menor salário estariam mais inclinados a não respeitar.
Quanto à renda, o Brasil destoou do resto da América Latina, que observou em maior ou menor grau aumentos da pobreza: aqui, ela caiu por conta do auxílio. Por sua vez, o México ganhou quase 10 milhões de novos pobres – alcançando “níveis alarmantes de insegurança alimentar, particularmente nos domicílios com crianças”, avaliou neste mês o Centro para o Desenvolvimento Global (Blofield et al., 2021)
Se a redução temporária da pobreza é considerada por alguns um retrocesso do auxílio, que o seu impacto potencial sobre as mortes entre em consideração.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Pedro Fernando Nery: Como a pandemia afetará os nascimentos no País?
Brasil pode perder não só os brasileiros que faleceram, mas ainda os que deixaram de nascer
Foram quase 40 mil nascimentos a menos registrados neste janeiro na comparação com o janeiro anterior. Os dados são do Portal da Transparência do Registro Civil, e representariam uma queda de 15% no número de nascimentos no Brasil. Possivelmente, refletem o endurecimento da pandemia no 1.º semestre de 2020. O título da coluna pode ser distópico, mas há algo a observar nos próximos meses: como a pandemia afetará os nascimentos no País?
A queda teria ocorrido em 25 Estados e no Distrito Federal. Essa análise inicial e apressada poderia estar superestimando o impacto da pandemia nos nascimentos (por exemplo se houver uma defasagem grande entre os nascimentos e os registros no atual contexto). Porém, os mesmos dados indicam mais registros de óbitos em janeiro, compatível com a covid-19 – um alta também de 15%.
A redução de 15% no número de nascimentos não está distante da registrada inicialmente em dezembro na Itália (22%) – o primeiro país a sentir duramente os efeitos do vírus depois da China. Em um exercício simplório, se essa redução se mantivesse nos próximos meses, refletindo o avanço da primeira onda da pandemia em 2020, teríamos um primeiro semestre de 2021 com 200 mil bebês a menos.
O medo do contágio nos hospitais, a insegurança sobre os riscos do vírus a gestantes e recém-nascidos e a incerteza quanto a salários e empregos são explicações possíveis para o adiamento de gestações planejadas. Não é possível ainda afirmar para nenhum país qual seria a magnitude do fenômeno, e outras dúvidas se colocam.
O que em inglês tem se chamado de baby bust, será seguido posteriormente por um baby boom, um grande número de nascimentos – como ocorreu em vários países após a Segunda Guerra Mundial? Haverá um represamento nos nascimentos ou planos das famílias terão sido afetados para sempre? Os adiamentos estão somente à espera da vacina ou também à espera dos empregos?
A questão econômica, e não apenas a sanitária, é especialmente importante diante de uma pandemia que é pior para as mulheres. As que já têm filhos tiveram o desafio das escolas fechadas. Muitas se ocupavam no setor de serviços, particularmente afetado pelo isolamento social. A geração de emprego formal foi até positiva para homens na pandemia, mas negativa para as mulheres.
Demógrafos acompanham atentamente a evolução da taxa de fertilidade, que no Brasil e em muitos países já vinha em forte queda. Tem, assim, implicações futuras sobre a educação (mais recursos por aluno), a violência (menor número de jovens potenciais criminosos), a previdência (menos contribuintes), a economia (menos trabalhadores), a defesa (menos recrutas).
O paralelo inicial na demografia para analisar essa questão na atual pandemia seria a gripe espanhola, a partir de 1918. Ali observou-se a queda na fertilidade e um subsequente baby boom. A situação vai se repetir? Hoje é sabido que muitas mulheres têm filhos mais tarde – o adiamento para idades com fertilidade menor poderia levar parte delas a acabar não tendo filhos ou a ter famílias menores.
Em estudo publicado em dezembro, pesquisadores de Bangladesh, Estados Unidos e Reino Unido sugerem que o boom depois da gripe espanhola pode não se repetir. Eles avaliam que a alta mortalidade daquela pandemia fez com que muitas mulheres a tenham experimentado de perto – na família, na vizinhança – o que as estimulariam a ter mais filhos (Ullah et al., 2020). Os pesquisadores ressaltam que em epidemias e desastres naturais mais recentes os efeitos foram menores e variaram em cada episódio (como as epidemias de SARS em Hong Kong, zika no do Brasil, e ebola na África Ocidental).
Raquel Coutinho e outros pesquisadores das Universidades Federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio Grande do Norte (UFRN) apontam outra razão para que o pós-covid não seja equivalente à da pandemia de 1918. Para eles, o contexto atual “pode ter implicações distintas daquelas observadas em outros episódios registrados na história de alta mortalidade, sobretudo no que se refere ao possível aumento do número de nascimentos após o período de crise, já que os valores correntes com relação às normas sociais do tamanho ideal de família são bem diferentes do contexto da gripe espanhola” (Coutinho et al., 2020).
À revista Time, Dowell Myers – da University of Southern California – apontou que as taxas de natalidade seriam um “barômetro do desespero” no caso dos adultos jovens, pois refletiria a falta de otimismo com o futuro. Elas podem ser mais uma medida do custo humano da pandemia que castiga o nosso País. Os brasileiros que perdemos podem ser não só os que faleceram, mas também os que deixaram de nascer.
*DOUTOR EM ECONOMIA