Pedro Fernando Nery

Pedro Fernando Nery: O Brasil de Jajá

‘Política econômica também é política’, resume incoerências que Jailison apontava

Perdemos o (muito) jovem economista Jailison Silveira. Auditor do Tesouro Nacional, ocupou cargos importantes no Ministério da Economia. Era vice-presidente da Associação dos Servidores do Tesouro Nacional (ASTN), de que foi um dos fundadores. Com sua liderança, a associação rapidamente se diferenciou das demais organizações do funcionalismo. Parecia menos pautada pelo simples corporativismo e mais pelo debate propositivo, em que pregava o ajuste fiscal coerente.

A entidade que Jailison criou questionava a reforma da Previdência: não por ser contrária a ela, mas porque deveria ser igualmente abrangente com os militares. Questionava o ajuste fiscal, não por negar sua necessidade, mas pela sua ênfase unicamente nas despesas, ignorando frequentemente privilégios concedidos que deterioram a arrecadação. As tais incoerências.

O Brasil de Jailison está bem presente, entre outras documentos, na publicação que elaborou junto com outros auditores do Tesouro para as eleições de 18. Chamado 18 diretrizes para um ajuste fiscal coerente, a contribuição se fundamentava na noção de que falta conhecimento da sociedade sobre as políticas públicas que financia.

A necessidade de avaliação permanente dos subsídios concedidos pela União, da ordem de 5% do PIB em 2017 – a maior parte em “gastos tributários” (a faculdade de pagar menos imposto, normalmente de forma permanente, dada a certos grupos). O imperativo de reformar a Previdência, mas incluindo de verdade os militares. As distorções nos salários do funcionalismo.

O combate à burla do teto remuneratório feita pelas verbas falsamente indenizatórias (como auxílio moradia). A ineficiência dos gastos com saúde às vésperas de veloz envelhecimento da população. A inadequação dos gastos diante das metas para a educação básica do Plano Nacional de Educação (PNE).

Por uma ampla reforma tributária, que diminuísse a participação dos tributos indiretos que pesam sobre o consumo dos pobres e aumentasse a participação dos tributos diretos sobre a renda dos ricos. Que ampliasse a progressividade do sistema tributário e diminuísse a desigualdade injusta de tributação entre empregados na CLT e profissionais com pessoa jurídica. Que limitasse as possibilidades de deduções com gastos particulares que diminuem o imposto de renda pago pelo topo da pirâmide, enquanto faltam gastos públicos nas mesmas áreas para a base.

A reformulação das regras fiscais, para reduzir a dívida pública. O tratamento desta dívida com maior transparência, combatendo as fake news oportunistas e contraproducentes para a sociedade.

Nesse sentido, as contradições da política fiscal impediriam a formação de consensos e maiorias, já que a percepção de que há favorecidos pelo Estado brasileiro reduziria, para a população, a legitimidade das medidas de ajuste, comprometendo o próprio processo decisório.

O mote que dava a organização que concebeu sintetiza as incoerências que apontava: “política econômica também é política”.

Na academia, Jailison vinha de um mestrado na UFRJ e cursava o doutorado da PUC-Rio, infelizmente interrompido. Na carreira tão curta, foi coordenador geral de modelagem econômica na Secretaria de Política Econômica, onde também foi chefe de divisão de economia e legislação. No Tesouro, atuou em duas referências da Esplanada: a coordenação de estudos econômico-fiscais e a coordenação de planejamento estratégico da dívida pública.

Para os amigos e colegas, ficarão mesmo a lembrança e a inspiração do Jajá idealista, batalhador e irreverente.

*Doutor em economia


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Pedro Fernando Nery: Edaíquistão

Não será possível instituir uma renda básica melhor que o Bolsa Família depois da crise, sem combatermos os nossos 'e daís'

“Perigo de dano irreparável ou de difícil reparação”. Diante disso, a liminar foi concedida no meio da pandemia, realocando milhões de reais do orçamento da Seguridade Social. Mais dinheiro para a Saúde comprar respiradores? Não, tampouco para a Assistência pagar o auxílio emergencial. Ao contrário, a decisão diminui o dinheiro disponível para as duas áreas. O juiz federal decidiu que os juízes federais não precisam pagar as novas alíquotas progressivas da reforma da Previdência.

Confisco foi a razão para considerar inconstitucional trecho da Emenda Constitucional discutida pelos constituintes ao longo do ano passado. O tema espera julgamento no STF. A liminar do juiz dada neste mês no processo 1009622-08.2020.4.01.3400 é em favor da sua própria categoria – embora seja verdade que o mesmo tratamento foi dado a outras categorias em outras ações.

O argumento é simples: como a alíquota progressiva exige contribuições maiores de quem ganha mais, aqueles no teto remuneratório terão uma alíquota efetiva de quase 17% para a Previdência. Somada ao imposto de renda, a tributação total sobre o salário superaria 40%.

Há dois problemas no argumento. Um primeiro é comparar a contribuição com o salário atual, e não com a renda a ser recebida: a aposentadoria continuará sendo pelo último salário para quem ingressou antes de 2003. Independentemente do salário médio ao longo da vida e do valor das contribuições, a aposentadoria é 100% do maior salário. O subsídio pode ser de milhões de reais por pessoa. Não à toa, o regime dos servidores continuará ostentado déficits financeiros bilionários anualmente e déficit atuarial da ordem de trilhão (a Constituição demanda o equilíbrio, mas o texto é preterido por um princípio na decisão judicial).

O retorno ao investimento é altíssimo: se produto semelhante estivesse disponível no mercado, os demais cidadãos fariam os aportes felizes, sem jamais pensar que estão sendo confiscados. A confusão existe porque a contribuição previdenciária na prática é híbrida, ora parece aporte ora tributo.

O MPF defendeu em 2018 a fixação de uma tese sensata: aumentar a contribuição previdenciária do servidor seria constitucional, desde que se apresentem estudos financeiros e atuariais mostrando a sua necessidade. Não sendo o caso, haveria o tal confisco.

Um segundo problema no argumento do confisco é ignorar que os trabalhadores do setor privado estão sujeitos a tributação muito maior, inclusive para pagar os benefícios do setor público, sem que se fale em confisco. Como mostrou Bernard Appy neste jornal na excelente coluna de fevereiro “Quem paga imposto no Brasil?”, o produto do trabalho de um celetista chega a ser tributado em mais de 60%. A conta considera não apenas a contribuição previdenciária e o imposto de renda, como os tributos indiretos federais e estaduais (ICMS, PIS-Cofins, IPI) sobre sua produção, que diminuem o que ele levará para casa.

Parte desses tributos fecham o déficit de mais de R$ 40 bilhões por ano dos servidores. Não é este o verdadeiro confisco? Como a previdência do funcionalismo integra a Seguridade Social, o buraco é custeado por contribuições como a Cofins – competindo com Saúde e Assistência. E daí?

As ações sobre o tema no Supremo, hoje com relatoria do ministro Barroso, eram no passado julgadas por Joaquim Barbosa, que expunha esse argumento. Entendia que na ausência do aumento da contribuição do servidor, a conta iria para os demais. Incluindo os filiados ao INSS, que teriam a obrigação de custear os benefícios do regime sem o direito de usufruí-los: “partilhar o déficit com as pessoas naturais e jurídicas privadas é injusto e abusivo.” Mesmo com a elevação da reforma da Previdência, menos de 20% das despesas são custeadas diretamente pelos servidores.

Os argumentos de servidores federais sobre confisco na reforma da Previdência são embalados por duas indignações. Uma é a subtributação da renda de profissionais liberais de alta renda pejotizados. Serviços pagam menos impostos que produtos, e a PJ ainda pode-se distribuir lucros e dividendos para a pessoa física sem pagar IR (E daí?). O juiz olha para o advogado e se sente injustiçado.

A outra é a exclusão de Estados e Municípios da reforma (E daí?). Juízes estaduais, que já ganham mais pela farra das verbas indenizatórias, ficaram a princípio dispensados da alíquota progressiva da reforma. A associação dos federais se mobilizou para não ter e pagá-la também.

Não será possível perenizar o auxílio emergencial e instituir alguma renda básica melhor que o Bolsa Família depois da crise sem combatermos nossos “e daís”. Consolidar a reforma da Previdência nos tribunais, reformar a tributação sobre a renda e eliminar verbas indenizatórias devem fazer parte da busca por recursos no pós-pandemia.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Por um teto de pobreza

A lógica é intuitiva: se houver criança na pobreza, outras despesas podem esperar

Três de cada 5 mães solo vivem abaixo da linha da pobreza. Esta trágica estatística se manteve estável nos últimos anos, como informa anualmente o IBGE na pesquisa Síntese de Indicadores Sociais. Embora o Dia da Mães possa ter sido de menos escassez este ano por conta do auxílio emergencial – que alcança mais mães e paga valores maiores que o Bolsa Família –, o benefício tem prazo para acabar. Mães e seus filhos cairão de novo na pobreza, e até na extrema pobreza. Uma PEC pretende erradicar essa situação intolerável: imitando o teto de gastos, cria um teto de pobreza infantil.

Metas de pobreza foram instituídas na década passada no Canadá, na Nova Zelândia e no Reino Unido (nestes dois últimos, especificamente, para a pobreza entre crianças). Se o teto de gastos estabelece limites para a despesa, o teto da PEC 11 estabelece anualmente limites para a pobreza infantil. Se o descumprimento do teto de gastos aciona gatilhos para controlar a despesa (como proibição de aumentos salariais), o descumprimento do teto de pobreza igualmente acionaria gatilhos para que metas fossem cumpridas.

No Brasil, cerca de 40% das crianças de até 14 anos vive abaixo da linha de pobreza do Banco Mundial. É a faixa etária mais afetada pela pobreza no País, de forma desproporcional. A situação é pior para as crianças negras na primeira infância: cerca 60% vive na pobreza, e 20% na pobreza extrema. As estimativas são do pesquisador Daniel Duque (Ibre-FGV), usando os dados recém-divulgados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE.

Na PEC 11, há dois tetos para a taxa de pobreza infantil. Enquanto ela estiver acima de 10%, aciona-se o gatilho para que mais crianças sejam acolhidas no Bolsa Família. Hoje, somente podem receber benefícios aquelas de famílias que vivem com menos de R$ 6 por dia para cada pessoa. E enquanto a taxa de pobreza entre as crianças estiver acima de 30%, aciona-se o gatilho para que o valor do Bolsa seja maior: hoje ele é inferior a R$ 1,50 por dia. Como ocorre com as regras orçamentárias, a desobediência levaria a crime de responsabilidade.

Não haveria elevação de déficit ou dívida. Na PEC, de iniciativa de 27 senadores – Alessandro Vieira o primeiro autor –, um fundo anticíclico custearia a elevação de gasto, e sua principal receita seria uma tributação progressiva sobre os ganhos de grandes instituições financeiras. Os lucros passariam a ser reinvestidos na infância. A PEC faculta ainda que qualquer despesa da União seja revertida para o combate à pobreza infantil, concretizando uma previsão que já consta da própria Constituição de 88: a de que o direito à vida, à alimentação e à saúde das crianças é prioridade absoluta. A lógica é intuitiva: enquanto houver criança na pobreza, outras despesas podem esperar. O ajuste fiscal ganha sentido.

A ênfase de variados governos em anos recentes na infância, e em particular na primeira infância, vem de uma florescente literatura científica evidenciando o retorno para sociedade do investimento nesta fase da vida. Evitar que crianças vivam em um ambiente de estresse e privações em uma época-chave para o seu desenvolvimento levaria a cidadãos mais prósperos e aptos a contribuir para a sociedade no futuro – combatendo a pobreza e a desigualdade de forma mais estrutural.

É evidente, porém, que transferências de renda não bastam. É essencial facilitar a inclusão no mercado de trabalho dos pais, especialmente das mães – frequentemente muito jovens (uma agenda que, infelizmente, ainda é encarada no Brasil como “perda de direitos”). São igualmente fundamentais o investimento na educação infantil e em práticas de desenvolvimento infantil – uma bela referência é o Mais Infância Ceará. O próprio fundo a ser criado pela PEC 11 (Fundo Anticíclico de Combate à Pobreza) se destina à premiação de Estados e municípios com avanços na área social.

Mesmo o teto inferior de pobreza infantil, de 10%, é conservador: ainda implicaria 4 milhões de crianças vivendo abaixo da linha da pobreza. O número talvez impressione porque naturalizamos por tempo demais nossa situação. Ter 40% de crianças na pobreza significa 17 milhões de pessoas. Negligenciamos uma Holanda inteira. O que vamos fazer até o próximo Dia das Mães?

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: New Deal verde

Ao seguir outros países, Brasil poderia superar a imagem de pária na questão ambiental

Se o polêmico plano de obras do atual governo foi chamado de Plano Marshall, fora do Brasil a referência tem sido outra, o New Deal. Dos Estados Unidos à União Europeia, continua se falando no New Deal Verde. Referência ao investimento maciço do governo americano depois da Grande Depressão de 1929, o verde do novo New Deal revela os ambiciosos objetivos de descarbonização da sociedade. A nova geração de programas de infraestrutura é voltada para enfrentar a mudança climática.

Popularizado ao longo de 2019 pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez, o plano já foi incorporado pela candidatura de Joe Biden – o opositor democrata contra Trump nas eleições de novembro. Biden chegou a sugerir que já neste ano o Congresso aprovasse o programa, em uma nova rodada de estímulos fiscais contra a crise do coronavírus. Seu plano é gastar quase US$ 2 trilhões em uma década em investimentos.

Na União Europeia, o plano, anunciado em dezembro e mantido após a pandemia, compartilha do objetivo de Biden de zerar as emissões líquidas de carbono até 2050. Sem o “New” da versão americana, o Deal Verde (Pacto Ecológico na tradução oficial) foi introduzido pela Comissão Europeia como “uma nova estratégia de crescimento”.

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão, o comparou ao esforço de levar o homem à Lua. A previsão era de despender ¤ 1 trilhão em dez anos, entre recursos públicos e privados. A Comissão já sinalizou que manterá o plano, e 17 ministros da área ambiental na Europa escreveram carta aberta em abril pedindo que o plano de investimentos verde seja parte central da recuperação da crise da covid-19. O novo governo eleito para a Coreia do Sul também promete associar a retomada a um New Deal Verde.

De fato, no ano que passou, chegou-se a falar em um New Deal Verde Global. Um editorial do jornal britânico The Guardian pedia que essa fosse uma nova missão para o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Já a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) defende que a iniciativa poderia acelerar o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

Evidentemente, a aspiração de redesenhar a infraestrutura é acompanhada de preocupações quanto ao seu financiamento. Foi o New Deal Verde americano que fez crescer, à esquerda do Partido Democrata, o movimento autodenominado Teoria Monetária Moderna (MMT). Ele se diferencia da ala do partido que exige maior tributação dos mais ricos, porque preconiza que o Estado americano pode se financiar simplesmente emitindo moeda.

Aqui, o anúncio do Pró-Brasil – o referido Plano Marshall do governo federal – renovou o debate sobre o teto de gastos. Contudo, caso a opção do País seja por elevar o investimento público, há ainda espaço abaixo do teto, se houver disposição para agendas difíceis como a redução da remuneração de servidores que tiveram jornada reduzida ou a focalização do abono salarial.

Se for para gastar acima do teto de gastos com os projetos, há a interpretação de que é possível fazê-lo, porque a Emenda Constitucional n.º 95 não incluiu o investimento entre as limitações do art. 109 (que inclui a proibição de aumento de salários ou aposentadorias). Uma terceira opção que mantém a essência do teto é a proposta do teto duplo, em que o investimento estaria limitado somente a um teto superior, e liberado de um teto inferior, voltado às despesas correntes.

Permitir o investimento público foi formalmente uma das justificativas da PEC da reforma da Previdência. Caso o debate deixe de ser interditado e decida-se prosseguir com um programa de infraestrutura (diante do diagnóstico de que o rumo anterior não será mais possível e o setor privado não conseguirá sozinho liderar uma recuperação à pandemia em V), que ele se beneficie dos erros de programas anteriores e se molde à geração dos New Deals Verdes. Ele teria, assim, focos claros como energia verde, mobilidade urbana, saneamento e infraestrutura eficiente, mirando o objetivo de reduzir a poluição. Ao seguir o caminho de outros países, poderia superar a imagem de pária na questão ambiental que afugenta o próprio investimento privado do Brasil.

Na semana passada, foi realizada edição online do Diálogo sobre o Clima de Petersberg. A nova diretora do FMI, Kristalina Georgieva, foi enfática ao apontar que a quarentena não pode significar um pause nas medidas contra a mudança climática (“a outra crise existencial que encaramos”). Ela recomendou investimentos contra as duas crises, para que a saída da crise da saúde não seja o prelúdio de uma nova crise, a ambiental: “Devemos fazer tudo em nosso poder para promover uma recuperação verde”.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Como boas ideias morrem

O que será da mãe solo quando o auxílio emergencial acabar?

Um contrato de trabalho em que se trabalha apenas algumas horas por dia, em que o empregador não precisa pagar os 20% sobre o salário para o INSS nem depositar o FGTS. O valor a receber é acordado individualmente e livremente entre as partes. Não há 13º e a demissão sem justa causa não dá direito à multa ou aviso prévio. Parece improvável? Esse é um contrato de trabalho difundido no Brasil e usufruído sobretudo pelas elites, já usado por variados profissionais destacados.

É o contrato de estágio. Ele é popular entre os jovens adultos das parcelas mais ricas da população: acrescenta linhas ao currículo e permite que se trabalhe nas grandes empresas. O trabalhador ganha experiência e conhecimento, inicia sua rede de contatos, descobre no que é bom e o que não lhe interessa, o que se pode fazer e o que não é bem visto. Frequentemente é porta de entrada para carreiras prósperas.

Esta inserção facilitada no mercado de trabalho é voltada apenas para aqueles que conseguem seguir na educação formal, como os que cursam faculdade. Por isso, este contrato de trabalho ultraflexível é mais comum para os mais ricos do que para os mais pobres.

Compare dois jovens de 20 anos: um está na faculdade, o outro não pode estudar. Este não terá o acesso facilitado ao mercado de trabalho: a ele se aplicam todas as previsões dos demais trabalhadores, inclusive os encargos.

O contrato regular implica que é proibido contratá-lo se ele não for capaz de gerar R$ 2 mil por mês para a empresa. É uma barreira muito alta para um jovem sem experiência saído de um sistema educacional deficiente. A barreira corresponde ao valor mínimo que custa o contrato tradicional de carteira assinada, conforme a legislação.

Como a produtividade desse trabalhador tende a ser menor do que este valor, na matemática implacável do empregador esse trabalhador não compensa. Afinal, não há currículo e, ao contrário do estagiário, sequer há um curso como referência para sinalizar seus interesses.

Este trabalhador irá para onde não existe a barreira: as pequenas empresas, que contratam informalmente, ou vai se ocupar por conta própria, se não estiver no desemprego ou no desalento.

Não à toa, a taxa de desemprego e de informalidade do jovem brasileiro é altíssima. Mesmo em 2014, quando o desemprego total estava baixo, a taxa era 7 vezes maior para a faixa etária mais jovem em relação à mais velha. A mulher jovem, a quem a legislação e a jurisprudência trazem mais restrições, tem situação pior – simplesmente porque é fértil.

Por isso, muitos países diferenciam a legislação que rege o trabalho do jovem. Quando os encargos são iguais, como no Brasil, a razão custo-produtividade vai ser maior para os mais jovens do que para os mais velhos. A legislação igual faz na verdade o mais jovem custar mais do que os demais trabalhadores. Um tratamento antiisonômico que deveria ser considerado inconstitucional.

Às vésperas do Dia do Trabalho, morreu uma nova possibilidade de contratar jovens que não estudam. A um custo menor e com alguma liberdade para acordar valores (entre pacotes de demissão), caiu a MP do Trabalho Verde e Amarelo, que permitia que o jovem pobre fosse contratado com condições mais favoráveis, se não tão favoráveis quanto às do jovem rico.

Polêmica desde a sua edição, a MP recebeu mesmo em sua versão final ataques virulentos e foi objeto de manipulações tão grosseiras de alguns articulistas que fariam brilhar os olhos do cidadão mais antiimprensa. Uma deputada ligada a um sindicato não teve constrangimento em dizer com clareza que era contra a mudança porque ela poderia incentivar a contratação de jovens, em prejuízo dos trabalhadores já estabelecidos.

Se a substituição não era permitida na MP, de fato foi corriqueiro ao longo da sua tramitação a preocupação de que com a medida acabasse sendo melhor contratar jovens do que chefes de família. Só que fora do condomínio são os jovens frequentemente os chefes de família, comumente uma mãe solo. A mesma que vai poder receber o auxílio emergencial dobrado: jovens desempregados receberão em peso o novo benefício. Damos com uma mão, tiramos com outra.

O Trabalho Verde e Amarelo ganhou esse nome nas eleições para simbolizar um novo contrato, em oposição ao tradicional, simbolizado pela carteira de trabalho azul. Um erro trágico: a MP acabou associada às cores do bolsonarismo e prejudicada pela polarização. É mais fácil gritar contra o que simboliza o presidente do que contra a boa intenção de empregar jovens excluídos. O tema terá que voltar: afinal, o que será da mãe solo quando o auxílio emergencial acabar?

*DOUTOR EM ECONOMIA


Pedro Fernando Nery: A desigualdade planejada

Sentenciamos os mais pobres a um futuro pior ao empurrá-los para a periferia distante

A história humana é marcada pela tensão entre os benefícios de nos aglomerarmos em cidades e os custos das doenças infecciosas. Assim observou Matthew Yglesias, do jornal Vox, sobre o coronavírus. Já no ótimo livro Cidade Caminhável, pré-covid, o urbanista Jeff Speck pontificara sobre as vantagens do adensamento, criticando as espaçadas cidades americanas baseadas em desenhos tidos como mais salubres.

Os ganhos econômicos da cidade densa podem ser vislumbrados em um “experimento” do governo americano no século passado, que pagou para que famílias pobres se mudassem para partes ricas de sua cidade. Como mostrou Raj Chetty, de Harvard, a nova vizinhança se mostrou fundamental para a mobilidade social. Isto é, o bairro em que uma criança cresce afeta o seu salário quando adulto.

Ainda que o mecanismo não seja completamente compreendido pelos economistas, especula-se que estar mais próximo de melhores serviços e de pessoas mais escolarizadas e de maior renda contribua para o resultado. Assim, cidades com regras rígidas de construção, ao empurrar os mais pobres para periferias distantes, os sentenciariam a um futuro pior.

Ninguém deve fazer isso tão bem quanto a aniversariante do dia, Brasília. Passadas seis décadas da sua inauguração, sua utopia de igualdade deu lugar a umas das capitais mais desiguais do Brasil. Seu zoneamento rígido faz com que parte expressiva da população tenha de viver bem longe do seu Plano-Piloto. A partir dali, garimpam oportunidades em uma economia em que boa parte da renda é distribuída pelo instrumento elitista do concurso público.

As anedotas são abundantes. Mais de 300 mil pessoas moram em Águas Claras ou em Águas Lindas. A primeira é espécie de zona franca das restrições do distante Plano-Piloto, vendida por corretores de imóveis como a “Manhattan do Cerrado”. Edifícios altos, próximos uns dos outros, sem os enormes descampados do plano de Lúcio Costa. Dos anos 90 para cá, Águas Claras virou destino de uma elite que não está disposta aos preços inflados do avião. “O coronavírus chegou em Brasília, já fez dois concursos e financiou um apartamento em Águas Claras”, diz a piada.

Os nomes são parecidos, mas Águas Claras contrasta com Águas Lindas. A primeira tem o IDH da Noruega, a segunda, o da Palestina. Ali moram os que rumaram para Brasília, mas não conseguiram lugar nos quase 6 mil km2 do Distrito Federal. Águas Lindas já é o quinto município mais populoso de Goiás. É um dos mais violentos do Brasil, com taxas de homicídios que rivalizam com as da Baixada Fluminense.

Dentro do DF, a cidade planejada convive com o que pode ser a maior favela do Brasil: se chama Sol Nascente. De ocupação recente, ela se situa nas imediações da cidade-satélite de Ceilândia. Ceilândia foi criada nos anos 70, com a realocação de populações que ocupavam áreas públicas no Plano-Piloto, no âmbito da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI, que batizou a cidade). O Sol Nascente é a Ceilândia da Ceilândia.

Ceilândia aparece nos versos de Faroeste Caboclo, a famosa canção de Renato Russo de 1987 (é o lugar onde o protagonista é assassinado). O filme, de 2013, porém, não foi filmado lá: para imitar as condições da cidade-satélite brasiliense na época, as cenas foram filmadas nas ruas sem asfalto do Jardim ABC. Essa “nova Ceilândia” fica formalmente em um município goiano. A apenas 2 km dali, ergue-se um gigantesco condomínio, franquia do Alphaville na capital de maior PIB per capita do País.

Há exatos dez anos, Niemeyer afirmava que a evolução do desenho igualitário para uma cidade desigual o entristecia, no que avaliou como “divisão intolerável”.

Após o trauma da pandemia e diante do remédio do distanciamento social, o economista Tyler Cowen receia que esse tipo de zoneamento excludente ganhe ímpeto, à medida que fortaleça o movimento conhecido como Nimby (“no meu quintal não”, em inglês). São os que defendem regras rígidas para as construções a fim de evitar a desvalorização dos seus imóveis e mais trânsito na vizinhança – às vezes, também com alegadas preocupações ambientais.

Já no polo contrário, a visão liberal se preocupa com a redução da oferta de imóveis que pressiona o preço dos aluguéis, e com o espraiamento decorrente que afasta os mais pobres de oportunidades. O êxito no combate à pandemia de metrópoles densas como Hong Kong e Cingapura deverá ser o contraexemplo contra a brasilianização.

Este é um ano de eleições municipais: a experiência de Brasília mostra que elas podem importar tanto para a desigualdade quanto o que se decide no Congresso Nacional.

* DOUTOR EM ECONOMIA


Pedro Fernando Nery: O direito sem trabalho

O difícil equilíbrio entre buscar o melhor para os trabalhadores formais sem ampliar o desemprego é missão que persistirá ao fim da pandemia

O ministro Lewandowski revisitou ontem sua decisão da semana passada contrária à medida provisória do governo que pretendia salvar 8,5 milhões de empregos. O País chega assim à 6.ª regra sobre redução de salários desde o início da pandemia – ou desde 22 de março. No início, não podia (1). O governo editou então uma MP incompleta que provocou reações (2), e revogou a nova regra no mesmo dia (3). Depois editou a MP certa (4), mas o ministro do STF deu liminar restringindo (5). Ontem, voltou atrás (6). Na quinta-feira, o Supremo se reúne para decidir (7?). A controvérsia da redução da jornada e salários é mais uma a opor juristas e economistas, que enxergam no direito do trabalho o direito sem trabalho.

A MP em questão se aproxima do chamado lay-off, adotado em outros países na pandemia e prescrito pela própria Organização Internacional do Trabalho (OIT). A fim de preservar os empregos em um momento em que as receitas despencam, os empregadores poderiam propor a redução da jornada dos funcionários, ou mesmo suspender os contratos, com redução proporcional do salário. O governo, com o seguro-desemprego, reporia a renda dos trabalhadores, parcial ou totalmente (no caso dos menores salários).

O problema é que a Constituição consagra a irredutibilidade do salário: só pode reduzir salário com redução da jornada se for por negociação sindical, não individual. Aí começou a discussão. A regra se aplica em uma pandemia imprevista pelo constituinte, que impede a própria realização de assembleias? Ou cria-se se uma exceção, já que o vírus exige urgência e a mesma Constituição prescreve a “busca do pleno emprego”? Ainda, se o governo repõe a renda perdida, vale a proibição, que visava a proteger o trabalhador? Ou tanto faz se o governo paga ou não? E se o governo só repõe parte?

Lewandowski, sorteado relator, decidiu sozinho, aplicando um confuso meio-termo. Poderia sim haver a redução da jornada e dos salários por acordo individual, mas a negociação coletiva via sindicato deveria depois confirmar. Havendo silêncio, fica valendo. Criou-se então quatro cenários. A empresa e o trabalhador fazem o acordo: o sindicato pode topar, não topar, topar nos termos de nova negociação. Ou pode ainda topar exigindo uma “contribuição” da empresa.

A decisão foi mal recebida: a insegurança jurídica, e o medo de exigência de contribuições extorsivas a depender do sindicato, levaria parte dos empregadores a simplesmente demitir. A Constituição proíbe a redução dos salários e jornada, mas não a redução a zero. O tal direito sem trabalho.

Além do trabalhador sacrificado pelo patrão, perderia o restante da sociedade, que contaria com uma recuperação do PIB mais lenta no pós-pandemia, com empregos destruídos e negócios desorganizados. O ministro se defendeu, e disse que queria proteger as minorias. Talvez imaginasse casos em que empresas em boas condições usariam o acordo para reduzir salários, em prejuízo de trabalhadores que na verdade não estariam correndo risco algum de demissão. Ontem, negou recurso do governo, mas mudou a decisão mesmo assim, dizendo que os acordos individuais valerão. O sindicato pode buscar um acordo melhor, mas não tem poder de vetar o acordo individual.

O difícil equilíbrio entre buscar o melhor para os trabalhadores formais sem ampliar o desemprego é missão que persistirá ao fim da pandemia. O dilema foi apresentado de forma polêmica em 2018 por Bolsonaro (“Trabalhadores querem menos direito e mais emprego”; “mais direito e menos emprego, ou menos direito e mais emprego”). Seu êmulo, Lula, fez colocações semelhantes no passado (“Tem companheiro que fala que não pode ter um contrato especial porque vai precarizar o jovem e torná-lo um trabalhador diferente. Mas trabalhador diferente ele já é sem trabalhar”).

A comunidade do direito do trabalho repudia essa lógica, e corre para dizer que níveis baixos de desemprego foram obtidos no passado com a mesma legislação e jurisprudência. O emprego com carteira, porém, nunca foi abundante para a mulher, o jovem, o negro, o nordestino, o trabalhador de baixa escolaridade. Por exemplo, no melhor período do mercado de trabalho em 2014, menos de 20% da força de trabalho tinha carteira assinada no Maranhão ou no Piauí!

Para além da pandemia, parte importante da reforma trabalhista de 2017 ainda seria julgada pelo STF no mês que vem. Outras inovações podem vir. Continuará na agenda do tribunal decidir por um direito do trabalho ou o direito sem trabalho.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: O fim de 88

Se a Constituição de 88 ampliou a proteção à saúde, não fez o mesmo com a renda

“Instituir uma renda mínima para todas as famílias brasileiras.” O leitor pode se surpreender, mas uma renda universal era uma das propostas do plano de governo oficial do candidato Jair Bolsonaro. Com adeptos em diversas ideologias, o debate sobre renda universal ganhou força nos últimos dias, na esteira da aprovação do auxílio emergencial de R$ 600 pelo Congresso – destinado a trabalhadores informais prejudicados pela crise.

Ela é conhecida à direita pela proposta de “imposto de renda negativo” do ícone liberal Milton Friedman, que advogava que famílias abaixo de um nível de renda não deveriam pagar imposto, mas receber transferências até alcançar o nível determinado. E é conhecida da esquerda pela Renda Básica de Cidadania, proposta histórica de Eduardo Suplicy aprovada no Congresso em 2004 – o “direito de todos os brasileiros receberem anualmente um benefício monetário”. Jamais foi implementada.

Nos Estados Unidos, chamou a atenção quando Hillary Clinton, fazendo a autópsia da sua candidatura presidencial, alegou que quase anunciou a renda universal como sua plataforma eleitoral contra Trump. Teria desistido por não conseguir desenhar a implementação. Nas primárias democratas deste ano, o tema não animou os candidatos mais progressistas, mais focados em políticas de mercado de trabalho.

A renda universal ainda não foi adotada em país algum, pelo seu custo proibitivo. Como alternativa, muitos prescrevem algo mais viável e focalizado: a renda garantida. Trata-se de um benefício só para quem vive abaixo de um limite de renda, em valor suficiente para que esse mesmo limite seja superado.”

Esse é o caso do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso: R$ 600 para quem vive com menos de meio salário mínimo. Rigorosamente, ele não seria então uma “renda universal” ou uma “renda básica”, porque não é destinado a todos. É mais próximo do imposto negativo do que do benefício de Suplicy. É como um Super Bolsa Família, embora a nova roupagem ajude a superar o estigma que essa transferência de renda aos muito pobres têm.

Propostas de fato universais foram discutidas pelo Congresso recentemente, para grupos específicos da população: o benefício universal infantil, aprovado pelo Senado, é voltado às crianças. Já na Câmara, o deputado Pedro Paulo, no âmbito da reforma da Previdência, apresentou proposta da “renda básica universal” para o idoso e pessoas com deficiência.

O debate expõe uma fragilidade da Constituição de 1988. Se ela conseguiu ampliar a proteção à saúde, que deixou de ser direito somente dos trabalhadores com emprego formal e carteira assinada, não fez o mesmo com a proteção à renda. Os benefícios aos formais custam na ordem de R$ 800 bilhões por ano, e a crise da covid-19 evidencia como larga parcela da população vive vulnerável e sem contar com esses recursos.

O modelo constitucional deixa tanta gente às margens que se estima que mais da metade da população brasileira pode ser beneficiada direta ou indiretamente pelo auxílio emergencial aprovado ontem – voltado a informais e desempregados sem seguro-desemprego.

Mesmo no melhor momento do mercado de trabalho no fim de 2014, o emprego formal era escasso para jovens, nordestinos, mulheres, negros e brasileiros com ensino médio incompleto. Mesmo então, esses grupos ficavam às margens da proteção da Carta Cidadã e da festejada legislação trabalhista. A carteira de trabalho é um homem branco paulista.

Para além da realidade desnudada pela pandemia, esse arcabouço também é desafiado pela tendência estrutural trazida pela transformação tecnológica. A CLT e a proteção trabalhista e previdenciária são baseadas ainda em um modelo industrial, de vínculos estáveis e homogêneos, com jornadas fixas e voltado para um único provedor no domicílio – o homem pai de família. O novo modelo, mais heterogêneo, exigiria um arcabouço mais amigável à formalização e proteção dos grupos mais vulneráveis: talvez com uma reforma do instituto do microempreendedor individual (MEI).

O MEI foi criado no governo Lula e expandido no governo Dilma e pode acabar fazendo mais pela inclusão no mercado de trabalho e proteção à renda do que a própria reforma trabalhista. Afinal, a erradicação da pobreza e da marginalização é talvez o principal fim da Constituição de 88. O auxílio emergencial da pandemia durará três meses: ao seu término, a sociedade ainda terá um encontro marcado com essa questão.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Devolvam o FGTS!

Dinheiro foi acumulado por anos sem que reservas de lucro fossem distribuídas

Os trabalhadores chegam à crise com uma poupança. Nas próximas semanas, a economia entrará em quarentena e dois desafios se colocam: evitar que as empresas sem demanda mandem embora seus funcionários, e evitar que quebrem, destruindo para sempre empregos formais. Os trabalhadores têm uma reserva suficiente para manter parcialmente seus salários nos próximos meses: o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Os recursos acumulados no Fundo após décadas de resultados não distribuídos, que compõem seu Patrimônio Líquido, podem ser a solução para pagar os salários – mantendo empregos e empresas e permitindo uma recuperação mais rápida no pós-pandemia.

O FGTS tem cerca de R$ 100 bilhões líquidos em caixa, que lastreiam um patrimônio líquido de montante equivalente – informa Igor Vilas Boas, consultor do Senado que é ex-presidente do Conselho Curador do FGTS. São recursos que, individualmente, não pertencem a nenhum trabalhador.

E existem associados ao Fundo 37 milhões de contas ativas, dos atuais vínculos dos trabalhadores em atividade. Desconte-se os empregados de estatais, que não sofrem risco de demissão, bem como empregados de maior renda, que podem possuir alguma poupança própria. Restam cerca de 30 milhões de contas de trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.

Se R$ 100 bilhões do FGTS fossem distribuídos entre esses 30 milhões de trabalhadores, teríamos algo como R$ 3 mil. É possível então pagar um salário mínimo para cada um deles por três meses, ou R$ 1.500 por dois meses – por exemplo. Pelas regras atuais, esse dinheiro não pertence aos trabalhadores, financiando empreendimentos de empreiteiras. Para ser liberado, é preciso lei.

Havendo lei, a Caixa poderia depositar mensalmente os recursos para ajudar os empregadores a pagarem os salários. Não deve haver grande dificuldade logística, afinal o Fundo recebe depósitos dos próprios empregadores. É só fazer o caminho reverso. Vilas Boas explica ainda que essa operação se beneficiaria da expertise do Saque Imediato, feito em 2019.

A ajuda do FAT (que paga o seguro-desemprego) pode cobrir eventuais diferenças ou os meses seguintes, ou auxiliar o governo a desonerar encargos como INSS. O uso do FGTS pode também permitir que o Tesouro concentre seus limitados recursos em ações de saúde ou na assistência, que há de acolher aqueles que nem emprego formal tem para perder. Vilas Boas lembra que a própria manutenção dos salários ajuda o governo a não sofrer tanto com a queda de arrecadação.

A medida não há de ser polêmica. É intuitivo que haja alguma reação das empreiteiras, que terão menos crédito para seus projetos. Mas no estágio atual da crise, os canteiros estão fechados ou prestes a fechar, e diante da incerteza ninguém deve estar contratando novos projetos. O consultor ressalta que o FGTS se beneficiará nos meses subsequentes, com mais depósitos e menos saques.

A manutenção dos postos de trabalho e das empresas é um imperativo para todos os países. Quando a pandemia passar, a economia vai se recuperar mais rápido se as empresas tiverem de pé e se não tiverem de contratar novos trabalhadores – o que demanda tempo e recursos com processos seletivos e, mais importante, treinamento. É uma grande vantagem o Brasil ter uma poupança de R$ 100 bilhões para garantir esses postos – ainda que não se use toda.

A crise da covid-19 escancara distorções de nossa Constituição e da legislação que a regulamenta. A ausência de proteção aos informais apesar de uma Seguridade trilionária. A blindagem dos servidores públicos diante de qualquer desastre. A subtributação dos mais ricos. Mas também o paradoxo de haver um fundo de garantia que pouco garante aos trabalhadores.

Esse dinheiro do FGTS não caiu do céu: ele é resultado direto do suor e talento de gerações de trabalhadores, que depositaram mesmo sem saber parte do seu salário nessa poupança forçada todo o mês. Ele foi acumulado durante anos em que reservas de lucro não foram distribuídas. É hora de devolver. Se não agora, quando?

*Doutor em economia


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Pedro Fernando Nery: Defenda o Bolsa Família

Programa tem expertise e capilaridade para ser usado como instrumento contra a crise

Ele foi responsável por 10% da redução de desigualdade entre 2001 e 2015, e por tornar menos insuportável a pobreza de milhões – segundo estudo do Ipea e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. É um feito notável para um programa que custa menos de 0,5% do PIB. Principal mecanismo de proteção de renda de informais e desempregados, o Bolsa Família chega já em crise para atender à crise do coronavírus.

Ele custa um décimo do gasto com funcionários públicos, e cerca da metade da isenção de lucros e dividendos que beneficia a elite que não paga imposto de renda na pessoa física. Mas tem enfrentado cortes. As filas são antigas: Temer conseguiu zerar, mas já à custa de exclusões. Elas voltaram, em meio à recuperação econômica desigual.

No atual governo, o Bolsa Família recebeu um 13.º maldito. Um pagamento adicional, promessa de campanha, seria louvável – desde que houvesse orçamento adicional. Sem a complementação, o 13.º implicou exclusão: famílias comprovadamente pobres ficaram sem receber nada para que outras recebessem o pagamento adicional.

Para piorar a falta de complementação, os escassos novos pagamentos de 2020 se centralizaram nas regiões mais ricas, apesar de filas gigantes no Nordeste. É que o critério de concessão ignora completamente as filas, e usa estimativas de pobreza baseadas no Censo de 2010. De lá para cá, o País viveu a recessão de 2015-16, que afetou mais o Nordeste, quando a recuperação favoreceu mais o Centro-Sul.

Por isso, dos 100 mil novos benefícios concedidos em janeiro, Santa Catarina – com o menor desemprego do País – recebeu 6 mil, o dobro de toda a Região Nordeste. O Piauí recebeu 86. Se 12% da fila catarinense foi atendida, somente 0,1% da fila piauiense o foi. Três milhões e meio de brasileiros esperam para receber os benefícios: já estão habilitados, o que quer dizer que são reconhecidamente pobres.

Fisicamente, a fila do Bolsa poderia ocupar a distância entre Brasília e São Paulo. Ela vem depois da renda dos 5% mais pobres ter caído 40% entre 2014 e 2018 – segundo a FGV Social. É um risco político desnecessário à agenda de reformas.

Já passou da hora da fila ser zerada: é inclusive questionável que haja discricionariedade na concessão do benefício para quem já está habilitado. Nos termos da Constituição, é prioridade absoluta assegurar o direito à alimentação e à saúde das crianças – principais destinatárias do programa.

Mesmo zerar a fila é pouco agora, porque o Bolsa é o instrumento mais efetivo para repor a perda de renda da quarentena da epidemia. Primeiro, porque não exige carteira assinada, podendo ser recebido pelos informais. Até por essa focalização, é a despesa pública com maior multiplicador conhecido em curto prazo sobre o consumo e o PIB. Segundo, porque atende a crianças, um público que fica em insegurança alimentar quando as escolas fecham.

Em terceiro lugar, porque dado o grau de incerteza da evolução da epidemia, a resposta econômica à covid-19 precisa ser desejável por si. Boas propostas de reforma do Bolsa Família já tramitavam desde o ano passado. Elas miram a constitucionalização antifilas e o combate à pobreza intermitente, flexibilizando as linhas duras para acesso ao programa (que também desincentivam portas de saída).

O debate da sustentação da renda dos informais durante a pandemia vai apresentar a muitos brasileiros a modéstia dessa rede de proteção. O Bolsa Família paga benefícios de R$ 89 por mês, para as famílias que vivem com menos de R$ 89 por pessoa (extrema pobreza). As famílias que estão “só” na pobreza (menos de R$ 178 por pessoa) apenas recebem se tiverem crianças ou grávidas. O valor é de R$ 41 por dependente, um milésimo do teto remuneratório no serviço público.

O programa conta com capilaridade e expertise para ser usado como instrumento importante contra a crise: só o seu estigma pode explicar os que pedem uma nova transferência de renda para a pandemia. Mas ele precisa de recursos. Hoje, de cada real do Orçamento, o Bolsa leva só dois centavos. Defenda.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: E o que fazer?

Nesta crise do mercado global, cortes de juros seriam pouco efetivos para aumentar gastos e investimentos

Já antes do derretimento dos mercados, alguns analistas e entidades – como a OCDE – alertavam para o risco de uma recessão global. Com taxas de juros já baixas, e diante da natureza anormal da crise, estímulos dos bancos centrais fariam pouco sentido. Restaria a política fiscal, mas muitos países teriam chegado em 2020 sem espaço para gastar. Seria o caso do Brasil. Então o que fazer?

O economista Chris Rupkey resumiu a dificuldade da política monetária: nesta crise, cortes de juros seriam pouco efetivos para aumentar gastos e investimentos. As empresas estariam atrás de liquidez: “Elas não querem empréstimos e investir no futuro. Elas estão correndo para as montanhas”. A economista-chefe da OCDE, Laurence Boone, avalia que o choque do coronavírus não pode ser tratado somente pelos bancos centrais: “Ele tem realmente de ser acompanhado por medidas fiscais”.

Algumas convergências aparecem nas primeiras análises sobre o uso da política fiscal como remédio econômico para o coronavírus. Há papel de destaque para o que aqui chamamos de Seguridade.

Uma 1.ª prescrição é óbvia: é preciso que haja recursos para a saúde, inclusive nos entes subnacionais. Uma 2.ª é ampliar os benefícios pagos aos trabalhadores que perdem renda com a crise, o que inclui os que precisam ficar em casa. Uma 3.ª é dar fôlego às médias e pequenas empresas dos setores mais afetados, por exemplo, com desonerações sobre a folha de pagamento.

Estas são algumas das propostas de economistas do FMI. Os diretores de assuntos fiscais do Fundo propõem expandir as transferências de renda para grupos vulneráveis. Lembram que a China suspendeu temporariamente o pagamento de contribuições previdenciárias das empresas, além de focar sua atuação nos setores de transporte e turismo, mais afetados.

Igualmente, o presidente Donald Trump sugeriu desonerar a folha de pagamento por um ano. Já Jason Furman, espécie de economista-chefe da Casa Branca no governo Obama, propôs transferências de renda incondicionais aos americanos.

A opção por usar instrumentos da Seguridade contra o coronavírus nos Estados Unidos, Ásia e Europa contrasta com as primeiras propostas que surgem por aqui, focadas no investimento público. De fato, obras de infraestrutura têm grande capacidade de empregar trabalhadores. Contudo, não parecem a melhor ideia no caso de uma pandemia.

Se é complicado executar o investimento público em situações normais, pode ser mais complicado diante da incerteza da evolução do vírus aqui. No norte da Itália ou em Wuhan, o esforço dos governos foi de manter os trabalhadores em casa, não reunidos ao ar livre construindo pontes.

Nesse sentido, Douglas Holtz-Eakin, economista do governo Bush, aponta para a dificuldade de elaborar medidas para uma crise que tende a ser temporária, mas sem que se saiba a profundidade da queda e a sua duração (o formato do “V”, no jargão). Ele defende que as medidas tomadas frente ao coronavírus sejam aquelas desejáveis por si, não apenas pelo impacto que podem ter por alguns meses.

Nessa lógica, a resposta ao coronavírus deve envolver as propostas que fortalecem o combate à pobreza e forçar o governo a escolher as prioridades da sua agenda. O Bolsa Família é a transferência mais bem posicionada para conter a perda de renda dos trabalhadores informais, que não têm poupança para consumir nem a proteção dos formais (como auxílio-doença, seguro-desemprego, saque do FGTS, aviso prévio).

Seu efeito em curto prazo no consumo é maior do que qualquer outro na folha de pagamentos do Tesouro. Neste momento, o programa se encontra em crise: com mais de 3 milhões de brasileiros habilitados sem receber. A fila se formou a despeito da modesta recuperação econômica, e as regras do governo federal faz com que ela seja maior na região mais pobre do País (o Nordeste). Propostas tramitam no Congresso fortalecendo o programa. O gasto pode ser compensado pela redução do déficit da Previdência no funcionalismo (via a contribuição extraordinária prevista na reforma da Previdência) ou redução dos salários (que consta da PEC emergencial).

Já a desoneração da folha proposta pelo FMI e Trump e feita na China é antigo objetivo do Ministério da Economia, mas que ainda não apresentou essa proposta no âmbito da reforma tributária. Nos últimos dias, se discutia compensar a arrecadação com o imposto de renda dos mais ricos (dá para fazer por lei).

* Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: O mito da auditoria

O bloco da auditoria da dívida desfila com o do criacionismo e o dos terraplanistas

A redução dos superávits primários foram centrais no aumento do endividamento público na primeira metade dos anos 2010. Em trajetória insustentável, o aumento da dívida ameaçaria o crescimento econômico e um “forte ajuste fiscal” seria necessário. Essas são algumas das conclusões da mais recente auditoria da dívida pública do Tribunal de Contas da União (TCU). Se o TCU fiscaliza periodicamente a dívida, por que tantos insistem que a dívida pública nunca foi auditada?

O acórdão 1.084, de 2018, traz o relatório da auditoria mencionada acima. O 1.705 sugeriu que o Congresso institua o teto para a dívida previsto na Constituição, e determinou que Bacen e Tesouro estudem limites para as operações compromissadas e o nível de reservas internacionais.

A dívida, objeto de relatórios mensais do Tesouro, também é analisada pela Instituição Fiscal Independente (IFI) – criada para ser um cão de guarda das finanças públicas. O argumento de que a dívida pública nunca é auditada pode ser mais bem traduzido como “as auditorias da dívida nunca deram o resultado que eu queria”.

A ideia de uma caixa-preta na dívida é acompanhada pela narrativa falaciosa, propagada pela elite do funcionalismo, de que cerca de 50% dos gastos do governo são voltados para o pagamento de juros da dívida, em prejuízo da educação, saúde, previdência. Se de fato metade dos tributos é usada para quitar a dívida, em sacrifício das necessidades da população, seria obviamente sensato dar o calote em vez de fazer as reformas. O problema é que não é verdade.

A narrativa é remanescente do período em que o governo federal produzia superávits primários – isto é, poupava parte da arrecadação dos tributos para diminuir a dívida (parte que chegou a 12% em 2008). Desde 2014 isso não acontece: temos déficits primários, que, mesmo com as reformas, devem continuar até o próximo governo. Significa dizer que a arrecadação de tributos não dá conta de pagar as despesas primárias (educação, saúde, previdência, etc). O déficit é fechado com a ajuda do mercado financeiro, que empresta para o governo. Já a dívida antiga que o governo não consegue quitar com os tributos fica para depois, com a dívida velha sendo substituída por dívida nova.

Como toda despesa precisa transitar pelo orçamento, mesmo a dívida não financiada pela arrecadação de tributos, mas financiada pela dívida nova, consta do orçamento. Daí que sai a narrativa de que metade do orçamento é para a dívida pública, ignorando que do lado da receita a proporção da dívida no orçamento é ainda maior.

A ideia do pote de ouro da auditoria da dívida é tão popular (mais de 60 mil resultados no Google) que neste mês apareceu em nota da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, criticando medidas do ajuste fiscal. A nota alega que “a partir de 2015 aumentou o volume de pagamento dos juros da dívida pública e, desde então, os gastos financeiros representam a maior rubrica individual do gasto do governo federal”.

É falso. O desembolso com juros tem caído, em parte consequência do próprio ajuste (teto de gastos, previdência). É a irresponsabilidade fiscal que bomba os juros: nos últimos anos o ajuste tem reduzido os juros de longo prazo junto com o risco país. Veja que a fantasia da auditoria da dívida não é necessariamente pauta de esquerda: foi defendida por Bolsonaro pré-Paulo Guedes em 2017, e é criticada por economistas do PSOL. Como explica José Luis Fevereiro, da direção nacional do partido, a noção do gasto com juros destacada pelo MPF é “absolutamente errada”. O calote significaria mais ajuste fiscal (porque o déficit primário teria de ser zerado sem a ajuda do mercado).

É exatamente esse o objetivo de uma organização de servidores batizada com o argumento da auditoria. Neste caso, “auditoria” significa o cancelamento de juros compostos, considerados ilegítimos e ilegais. O resultado seria um confisco sobre o patrimônio das famílias poupadoras, que direta ou indiretamente emprestam para o governo por meio de aplicações financeiras, sem que se liberasse recurso para políticas sociais (porque não há superávit primário).

Isso não significa dizer que se deve concordar com o ajuste proposto pelo governo. De fato, um efeito adverso do voluntarismo messiânico da turma da auditoria é turvar a discussão de alternativas mais complexas. Por que, por exemplo, se preocupar com tributar mais os mais ricos, se o subfinanciamento de direitos sociais é causado por supostos gastos gigantescos com a dívida? Se há prontamente disponível um pote de ouro no fim do arco-íris, por que fazer a difícil disputa pela tributação maior das elites? A narrativa é obscurantista: o bloco da auditoria da dívida desfila com o bloco do criacionismo e o bloco dos terraplanistas.