Pedro Fernando Nery

Pedro Fernando Nery: Crentefobia

Evangélicos ainda parecem muito longe de obter os privilégios da Igreja Católica

Amanpour é uma das mais reconhecidas jornalistas do mundo. Seu programa na americana PBS recebeu no sábado Petra Costa, nossa documentarista buscando o Oscar para 'Democracia em Vertigem'. Petra relacionou a eleição de Bolsonaro a “enormes ondas de evangélicos que são contra os direitos dos gays, feminismo e pessoas de cor”. A apenas 3 dias das eleições Bolsonaro passou a crescer “exponencialmente”. É que fake news sobre rituais satânicos e bebê-diabo envolvendo a vice de Haddad teriam feito muitos mudar o voto no último minuto: “Ninguém sabia que havia uma onda”.

Para Petra, os evangélicos parecem ser uma massa de zumbis preconceituosos e manipuláveis. Como esses idiotas podem votar, estão ameaçando a democracia.

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Uma menina estuprada por anos decidiu se matar. Subiu em uma árvore para ingerir veneno, mas uma experiência religiosa (ou “um amigo imaginário” segundo ela) a faz desistir e sobreviver. O relato novamente é ridicularizado, agora em uma marchinha de carnaval, festejada por feministas como Zélia Duncan. Mexeu com uma, mexeu com todas. Mexeu com Damares, vamos mexer também. Ainda nos últimos dias, o advogado Kakay atacou com grosserias a ministra por suas ideias, aproveitando para ofender seus pais.

O machismo do bem é liberado, porque a ministra tem um defeito insanável: Damares é crente.

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Fora da bolha das nossas elites intelectuais, Damares é a ministra mais popular do governo depois de Moro. Pesquisas sérias se dedicam a entender o grupo que ela representa, as tais “enormes ondas de evangélicos”.

José Eustáquio, do IBGE, projeta que nesta década eles ultrapassarão os católicos na população. Estão sobrerepresentados entre eles os jovens, as mulheres, os negros. Ou “pessoas de cor”, e Petra criou as mulheres negras racistas e antifeministas.

Já estudo publicado ano passado na Review of Social Economy mostra que os evangélicos pentecostais ganham menos do que os católicos com o mesmo nível de escolaridade e experiência: o gap é maior para as mulheres, de 6%. O economista Luan Bernardelli, um dos autores, não descarta que preconceito possa explicar a diferença, e aponta haver ainda muitas lacunas para pesquisas investigarem.
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O sociólogo de coque acha bacana o primeiro-ministro do Canadá fazer história nomeando muçulmanos, hindus e siques para seu ministério, mas ai de uma minoria religiosa ocupar espaços no Brasil. Para parte dos progressistas brasileiros, é descolado ser intolerante com uma religião com maiores proporções de pobres, negros, mulheres e jovens – categorias que há pouco tempo ensejavam representatividade. Essa intelectualidade precisa olhar para além do estereótipo do pastor preconceituoso ávido por dízimos (um registro: pentecostais doam maior proporção de sua renda do que outros grupos, segundo a FGV).

Também na última semana, o PSOL fez um convite: “se você é evangélico e defende o respeito ao próximo, a tolerância e as liberdades individuais, seu lugar é no PSOL”. O estigma é evidente: depreende-se que evangélicos normalmente não possuem essas qualidades. Imagine o Partido Republicano convidando muçulmanos, desde que não sejam terroristas.

A própria campanha de Damares pela abstinência na adolescência, que motivou os ataques, foi de pronto taxada de obscurantista. A evidência, porém, é que iniciativas como essa, acompanhadas de informações sobre outros métodos contraceptivos, podem ter efeitos positivos sobre a gravidez na adolescência, a transmissão de DSTs e o bem-estar psicológico (das meninas). A lista de trabalhos para os EUA e África é extensa, e o leitor interessado pode pesquisar pela estratégia ABC (A é abstinência, C é camisinha).

Se a proximidade dos evangélicos com o poder preocupa alguns por ofender a laicidade, eles ainda parecem muito longe de obter os privilégios da Igreja Católica. Destaco as centenas de milhões em renúncias do INSS em favor de faculdades e escolas de mensalidades caras que atendem o 1%. PUCs e redes como Marista e Santa Marcelina não pagam centavo algum para a Previdência sobre o salário de seus funcionários, por serem “entidades beneficentes”.

José Eustáquio estima que 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro: maior diferença em favor de um candidato em qualquer grupo, superando a preferência de ateus e sem religião por Haddad. O “superávit” do presidente nos evangélicos é equivalente à diferença total de votos entre os dois candidatos.

David Plouffe, coordenador da campanha que elegeu Obama, reflete em sua biografia sobre o papel da demografia: o “santo graal da política” seria “um eleitorado fundamentalmente mudado”. Nos próximos anos, a transição religiosa continuará. Mulheres, jovens, negros e pobres evangélicos seguirão votando de acordo com seus valores éticos, que podem não ser os mesmos das elites intelectuais. Alguns dirão que a democracia está em vertigem.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: A economia de Petra

'Democracia em Vertigem' analisa a polarização no País, sem esconder que tem um lado

Democracia em vertigem de Petra Costa foi ontem indicado ao Oscar de melhor documentário. Petra é a 1.ª diretora brasileira indicada à premiação. Se vencer em 9 de fevereiro será a 1.ª vez que o Oscar será recebido por um brasileiro. Mas desta vez haverá muita torcida contra.

Tom Jobim famosamente afirmou que no Brasil sucesso é ofensa pessoal, mas a grita contra Democracia em vertigem é de outro tipo. E é também natural: o filme se propõe a analisar a polarização no País a partir de 2013, sem esconder que tem um lado. No Twitter, a conta oficial do PSDB já ironizou o feito do filme, parabenizando Petra pela indicação na categoria “melhor ficção e fantasia”. O proeminente crítico Kenneth Turan, do Los Angeles Times, já concebera que o filme é “mais um ensaio do que um documentário clássico” (o que não impediu de tecer elogio à obra).

Esse é um filme sobre a crise política, mas é também sobre a nossa crise econômica: e essa coluna é sobre o confuso olhar de Petra na economia. Assim, não vamos discutir outras controvérsias já debatidas nos últimos meses (elas incluem dúvidas sobre o passado clandestino de seus pais; alterações deliberadas das imagens usadas; e a total omissão quanto a tentativa de assassinato do líder da corrida eleitoral, estranha em um filme sobre polarização e enfraquecimento da democracia).

De início, já há um problema factual quanto ao desemprego, consoante com a narrativa de Petra de que o governo inclusivo de Lula e, depois o de Dilma, teriam levado a um golpe (após a presidente ter enfrentado as elites econômicas). Segundo Petra “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história” na Era Lula.

Com boa vontade, pode-se dizer que a diretora se confundiu: nos governos do PT o desemprego alcança o menor índice da série histórica. Falamos em série histórica quanto à série feita com a mesma metodologia que a pesquisa corrente, o que no caso da atual começa em 2012 (a Pnad Contínua). Antes dela, a mais usada regredia só aos anos 90.

Mas tanto nos anos 80 quanto na ditadura militar se identificaram taxas de desemprego menores que as do período de Lula ou Dilma. O IBGE chegou a registrar menos de 3% no governo Sarney em outra versão da Pnad. Outras fontes registraram ainda menos na ocasião do milagre dos anos 70. O economista Rafael Baccioti fez exercícios de retropolação da Pnad Contínua e estimou resultados no mesmo sentido. Já o Censo chegou a registrar menos de 2% diversas vezes desde os anos 50. Em suma, Petra poderia ter dito “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história desde o governo Fernando Henrique”.

O que são mesmo marcas incontestes do áureo período petista são as mínimas históricas nas taxas de pobreza e a queda na desigualdade de consumo.

Já o argumento de que o “golpe” teria sido causado porque Dilma, contrariamente a Lula, enfrentou as elites, envelheceu mal. De outro prêmio, o Jabuti, o livro do ano mostra como o 1% mais rico manteve sua altíssima participação na renda nacional durante os governos do partido.

Particularmente fora de lugar é a tese de que o impeachment seria decorrência da tentativa de Dilma de reduzir os juros. A Selic bateu sucessivas mínimas históricas desde Temer, e os bancos projetam juro real próximo de zero neste ano. Os juros transferidos pelo governo por conta da dívida pública caíram de mais de 8% do PIB no último ano de Dilma, para menos de 5% no ano passado. No caso das famílias, o governo Bolsonaro acaba de impor um teto aos juros do cheque especial.

Mas mesmo Petra não parece botar fé no argumento, e é por isso que sua visão é confusa: a crise ora foi causada pela queda nas commodities e “erros econômicos”, ora por ações conspiratórias das elites (com direito a fala de Jean Wyllys). Ora os donos do dinheiro desligaram a economia para estimular o impeachment, ora precisam do impeachment para transferir a conta da crise para os pobres.

A trama pelos juros altos também não faz sentido diante daquele que para Petra seria um dos vencedores do golpe: a Bolsa de Valores (a relação é tipicamente a contrária). O leilão recente de Libra, sem interessados, vai de encontro à versão de entrega do petróleo às multinacionais. E o fígado fala mais alto no argumento nonsense de que o mercado financeiro celebrara uma suposta flexibilização do trabalho escravo.

Mas ficamos por aqui: ninguém merece economista falando de cinema. Um documentário ainda é um filme, que provoca emoção pelas suas qualidades artísticas e não por ser um trabalho acadêmico. Petra deixa claro sua parcialidade. Reações semelhantes às do Brasil devem ter sido observadas em outros documentários políticos que o Netflix emplacou no Oscar recentemente, como Winter on Fire (Ucrânia) e The Square (Egito). Econosplaining à parte, boa sorte Petra.

* Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Economia e felicidade

Felicidade do brasileiro tem caído nos últimos anos, segundo pesquisa mundial

Em 1974, o professor Richard Easterlin observou que o crescimento da renda dos Estados Unidos nas décadas anteriores não alterou a felicidade dos seus cidadãos. O achado ficou conhecido como Paradoxo de Easterlin e inaugurou o campo denominado economia da felicidade, que busca responder questões universais como “o dinheiro traz felicidade?”. A primeira coluna do ano é sobre esse simpático campo de pesquisa.

O Paradoxo de Easterlin é disputado: diversas pesquisas posteriores identificaram correlação e mesmo relação de causalidade entre renda e bem-estar. Dois prêmios Nobel em Economia, Daniel Kahneman (2002) e Angus Deaton (2015), estimaram um teto em uma renda anual de US$ 75 mil: acima desse nível, mais dinheiro não traria mais felicidade. Os autores parecem concluir que não importa ser rico, mas importa não ser pobre: “As dores dos infortúnios da vida – como doenças, separações e solidão – são significativamente exacerbadas pela pobreza”.

Uma série de estudos discute duas perguntas: se o efeito do dinheiro na felicidade é temporário (adaptação hedônica) e se o efeito do dinheiro na felicidade é relativo (depende da comparação com pessoas próximas – como o cunhado, o vizinho, o colega de trabalho). Para a primeira pergunta, são comuns as pesquisas com vencedores de loterias, experimento natural que isola o dinheiro de outras características pessoais. Em geral, o efeito é identificado, mas a magnitude varia na literatura.

Com base em uma pesquisa mundial da Gallup, tem sido publicado a cada dois anos o World Happiness Report (WHR). Segundo o relatório, a avaliação do brasileiro quanto à sua felicidade tem caído nos últimos anos. A “nota” média dada pelos entrevistados, de 0 a 10, era de 6,98 no biênio 2012 a 2014, caindo para 6,64 entre 2014 a 2016 e, mais recentemente, para 6,3 entre 2016 e 2018 – isto é, já após o início da recuperação econômica. Em um ranking, o País seria o 32.º, e se destaca no quesito suporte social (parentes e amigos para contar se precisar).

Desde que passou a ser publicado, Venezuela e Síria foram os países com pior variação negativa no índice. A variação brasileira recente não chega perto, mas chama a atenção seu início coincidir com a recessão do governo Dilma e pela queda contínua, mesmo depois da retomada do PIB a partir de 2017.

Chegamos então a duas outras variáveis também estudadas pela economia da felicidade: desemprego e desigualdade, duas mazelas que ainda pouco têm respondido ao crescimento da economia depois da crise. No trabalho seminal de Andrew Clark e Andrew Oswald, o desemprego era a variável que mais afetava negativamente o bem-estar individual, sendo pior que um divórcio. Em anos recentes, têm se apontado que os efeitos da economia sobre o psicológico são muito mais significativos quando negativos do que quando positivos. Deaton lembra que o efeito do desemprego é pronunciado mesmo quando considerado isoladamente do efeito da perda de renda.

Quanto à desigualdade em nível nacional, há resultados encontrando efeito positivo sobre a felicidade em países emergentes, talvez por sinalizar a possibilidade de mobilidade social. Entre os que encontram efeito negativo, explicações passam pela desconfiança e ansiedade com status social.

A medição da felicidade é um tema a parte: o WHR traz duas medidas além da nota de felicidade, uma de “afeto positivo” (frequência de risada e prazer no dia anterior) e outra de “afeto negativo” (frequência de preocupação, tristeza e raiva no dia anterior). São medidas comuns em estudos de psicologia positiva e próximas das usadas pelos Nobéis Kahneman e Deaton.

De forma análoga, no Reino Unido, o equivalente do IBGE monitora em uma equivalente da Pnad quatro indicadores (separando a satisfação com a vida em termos gerais da percepção de sentido e propósito da vida). É uma prática diferente do experimento autoritário do Reino do Butão, conhecido por maximizar um índice de “Felicidade Interna Bruta”. Proposta de adoção da experiência inglesa no Brasil consta Projeto de Lei 2.067/2019, do senador Eduardo Girão.

O campo deve ganhar mais atenção nos próximos anos, porque guarda relação com a preocupação com o meio ambiente e a busca por novas métricas para medir a prosperidade humana em alternativa ao PIB. Pesos-pesados da economia compuseram uma comissão para tratar do tema, encomendada pelo governo francês: o trabalho é revisitado no livro recém-lançado Measuring What Counts: The Global Movement for Well-Being, que tem entre os autores o prêmio Nobel ativista Joseph Stiglitz. Vale ressaltar, porém, que 99,9% da população mundial ainda se encontra abaixo do limite calculado por Kahneman e Deaton. Para quase todo o mundo, mais PIB ainda é mais felicidade.

* Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Vencemos o desafio maior

A reforma da Previdência deveria ter sido tema das eleições de 2014

A principal reforma aprovada na década começou a ser pautada por Dilma Rousseff. Em seu último ano de governo, foi ao Congresso, e conclamou: “nos cabe enfrentar o desafio maior para a política fiscal no Brasil e para vários países do mundo, que é a sustentabilidade da Previdência Social em um contexto de envelhecimento da população.” De fato, amanhã já se completam quatro anos do artigo “Um Feliz 2016 Para o Povo Brasileiro”, em que anunciara a construção de “uma proposta de reforma previdenciária, medida essencial para a sobrevivência estrutural desse sistema que protege dezenas de milhões de trabalhadores”. Anos depois, vencemos em 2019 o que Dilma chamou de desafio maior da política fiscal. A reforma foi promulgada no penúltimo mês deste ano.

A reforma já deveria ter sido tema das eleições de 2014. Mas a propaganda de João Santana para a chapa vencedora falava que direitos não seriam mexidos “nem que a vaca tussa”. Enquanto isso, o opositor falava em “rever” o fator previdenciário – sugerindo acabar com o puxadinho que controlava o gasto na ausência de uma idade mínima.

Ajustes
Já em 2014 os ajustes começaram. Há cinco anos era editada a Medida Provisória 664, que reformava a pensão por morte: seu ponto principal, contudo, foi rejeitado pelo Congresso (a redução da pensão por morte em famílias com poucos dependentes, que terminou constando da reforma da Previdência). A despesa com pensão é equivalente a quase 6 Bolsa Família no conjunto dos regimes.

Em abril de 2015, Dilma criou um fórum interministerial para analisar expressamente a sustentabilidade do sistema e suas regras de acesso, inclusive idade mínima. O fórum concluiu que deveriam ser repensados até a diferença de regras entre homens e mulheres e a previdência rural.

Já em 2016, a mensagem presidencial lida pessoalmente por Dilma na abertura dos trabalhos do Congresso colocara ao centro a reforma da Previdência, o desafio maior. Justificada pela rápida transição demográfica, que pressionava o sistema pela redução no nascimento de futuros contribuintes e aumento da expectativa de vida de beneficiários, foi assim resumida pela Presidente:

“A reforma da Previdência não é uma medida em benefício do atual governo. Seu impacto fiscal será mínimo no curto prazo. A reforma da Previdência melhorará a sustentabilidade fiscal no médio e no longo prazo, proporcionando maior justiça entre as gerações atuais e futura e sobretudo um horizonte de estabilidade ao País.”

Dilma já tinha contra si um processo de impeachment em andamento, quando decidira priorizar uma reforma complexa e pouco compreendida. “De reforma da Previdência não quero nem ouvir falar”, afirmou o presidente do seu partido.

O impeachment precedeu a apresentação da reforma, que ficou para dezembro de 2016, já sob Temer. A PEC 287 foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e na Comissão Especial para analisá-la.

Mas veio o 17 de maio de 2017. Este foi um dia chave para a reforma da Previdência, apelidado no mercado financeiro de Joesley Day. A notícia de que havia uma gravação do ex-delator dono da JBS comprometendo o presidente sugeria um aprofundamento da crise política, com potencial vacância do cargo e eleições indiretas. A Bolsa perdeu 12% em uma hora. Temer se manteve, mas não havia fôlego para levar a reforma a Plenário, que teve de deliberar duas vezes sobre denúncias do Procurador-Geral da República contra o presidente. Perdemos dois anos. (Em 2019, Temer foi absolvido pela Justiça Federal, que avaliou que a transcrição do áudio bomba pela acusação não era fidedigna).

O tema enfrentou campanhas de desinformação. Meu primeiro artigo no Estado, em 2015, se chamava “O negacionismo do déficit da Previdência”. O segundo, em 2016 – “A coisa mais inesperada que acontece a um país” – desmistificava a leitura dos dados sobre expectativa de vida e a visão de que uma idade mínima era prejudicial aos mais pobres.

No novo governo, a reforma foi adiante: Bolsonaro se convenceu de sua necessidade, Paulo Guedes trouxe Rogério Marinho para tocá-la e o Ministério da Economia liderou o processo no governo (o que não era óbvio: na campanha bolsonarista o responsável pelo tema era um então desconhecido professor da Unifesp de ideias exóticas).

Os esforços desta década deixam frutos para a próxima. Impactos imediatos foram sentidos na queda do risco-país, dos juros longos, da taxa básica de juros e no rali da Bolsa. Na análise recente da XP, a reforma construiu a base para uma retomada mais forte a partir de 2020, com um “novo ciclo econômico” – marcado pela baixa sustentável dos juros. A dívida pública seria estabilizada nos próximos anos, reduzindo muito o risco de insolvência: “O Brasil não está mais quebrado e isso é transformacional.”

* Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Natal na miséria

Desde 2016, o mercado de trabalho adicionou mais de 4 milhões de vagas, pelos últimos números da Pnad

O fim do ano é de otimismo com números da economia. O último relatório Focus, divulgado ontem pelo Banco Central, trouxe novas revisões para cima na expectativa do PIB: próximo a 1,2% para 2019 e, mais importante, subindo a 2,3% no ano que vem. A Bolsa tem quebrado sucessivos recordes – ultrapassando os 115 mil pontos na semana passada – e a valorização do Ibovespa é superior a 30% no ano. A consolidação da recuperação econômica, porém, esconde um resultado: a pobreza teima em não ceder. Para os brasileiros mais pobres, a recessão parece não ter acabado.

Desde 2016, o mercado de trabalho adicionou mais de 4 milhões de vagas, pelos últimos números da Pnad. O orçamento da Seguridade Social é recorde ano após ano. Mas a melhora do mercado de trabalho e o gasto social recorde, que é puxado pela Previdência, não impediu o aumento da extrema pobreza. Os mais pobres seguiram perdendo renda até 2018. E dados recentes sugerem que a situação pode não ter se alterado este ano. Seria uma recessão invisível.

Dois novos estudos jogam luz sobre a “recessão invisível”. A última carta de conjuntura do Ipea divide os brasileiros em seis faixas de rendimento. O estudo monitora não apenas a evolução do rendimento dessas faixas pela Pnad ao longo do ano, mas também a inflação que incide sobre cada grupo. E mostra que a faixa mais pobre teve perda real nos 2.º e 3.º trimestres deste ano. Os ganhos de rendimento em 2019 teriam se concentrado em altas expressivas nas faixas de renda média e média-baixa. A carta é assinada pelos pesquisadores Maria Andreia Lameiras, Carlos Henrique Courseil, Lauro Ramos e Sandro Sacchet, e a discrepância foi divulgada por Carlos Madeiro, do UOL.

O resultado é preocupante quando se considera a evolução da extrema pobreza. Em novembro, o IBGE divulgou a Síntese de Indicadores Sociais de 2018: apesar da recuperação, a extrema pobreza cresce desde 2014 (ainda que menos a cada ano). Pela linha de extrema pobreza do Banco Mundial, seriam 6,5% dos brasileiros. Estudo de Rogério Barbosa (USP), Pedro Souza e Sergei Soares (Ipea) indica que o crescimento dos últimos anos foi “pró-rico”: parcelas mais pobres da população não se beneficiaram da retomada.

Há razão para classificar de recessão invisível essa perda de renda dos grupos mais excluídos. Não apenas ela pouco chama a atenção da opinião pública, como pesa pouco na medida do PIB, agregada, quase indiferente à variação da renda de quem tem pouca renda.

No cálculo dos pesquisadores, se o crescimento entre 2015 e 2018 tivesse sido distribuído de forma igual na população, a taxa de pobreza extrema teria caído 0,25 ponto porcentual. Como sabemos, a taxa aumentou (em 1,6 ponto porcentual).

O programa mais bem posicionado para evitar o aumento da extrema pobreza é o Bolsa Família, que não foi reforçado nos últimos anos. Em 2019, voltou a ter fila de espera.

O Congresso Nacional tem reagido. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou no início do mês a PEC 200, de Tabata Amaral, apoiada por 23 de 25 líderes da Casa. O esforço integra a chamada Agenda para o Desenvolvimento Social, que, entre outras medidas, constitucionaliza o Bolsa Família e amplia em R$ 9 bilhões o orçamento do programa. Quem acha a constitucionalização desnecessária está convidado a refletir se faz sentido haver fila para o programa (miseráveis com direito, mas que não conseguem receber) após pelo menos quatro anos de aumento da extrema pobreza e em um 2019 em que a economia cresce.

Atores usualmente hiperativos como a Defensoria Pública e o Ministério Público mostram lamentável insulamento diante dos cortes no Bolsa e da fila.

Já o Senado aprovou ainda em novembro a PEC paralela, que unifica o Bolsa com outras políticas e cria o Benefício Universal Infantil (BUI). Nunca é demais lembrar que são crianças as principais beneficiárias do Bolsa Família e as principais vítimas da pobreza.

Também é sempre oportuno destacar que a evidência científica é de que o programa não altera de forma relevante a fecundidade ou a disposição de trabalhar dos pais. Ao alcançar as crianças miseráveis que não escolheram onde nascer, o BUI teria efeito poderoso no combate à pobreza e à extrema pobreza.

Tanto o BUI quanto a Agenda para o Desenvolvimento Social custam pouco e cabem no teto de gastos, especialmente após a aprovação da reforma da Previdência e se a PEC emergencial – que foca o ajuste fiscal no funcionalismo – for adiante.

Há boas notícias na economia. Mas é doloroso constatar que o Natal ainda será na miséria para milhões de famílias e crianças, mais do que anos atrás. Nesse contexto, foi de tremenda infelicidade a manifestação do ministro responsável pela área, na semana passada, sobre a noite de hoje. Tuitou: “Lição de vida da saudosa Hebe: ‘O que te engorda não é o que você come entre o Natal e o ano-novo, mas o que você come entre o ano-novo e o Natal!’”.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Inflacionista nutella

Enquanto os mais ricos se protegem com aplicações financeiras, os mais pobres não possuem instrumentos para se defender da 'ditadura' da hiperinflação; a concentração de renda piora

Chama-se Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês). Desconhecida até pouco tempo, ganhou notoriedade por parlamentares mais à esquerda no Partido Democrata americano, como Ocasio-Cortez e Bernie Sanders. Oferece a prescrição dos sonhos para qualquer político: em linhas gerais, o governo poderia gastar sem precisar aumentar impostos. O lema é que governos jamais vão quebrar, se imprimem a própria moeda.

É claro que a modinha já chegou aqui e na semana passada desembarcou no Brasil Randall Wray, professor expoente da MMT. Criticou as políticas do atual governo, mesmo trazido por um órgão federal (a Fiocruz, há muito caixa de ressonância da pauta do funcionalismo). Também participou de evento organizado por sindicatos de servidores.

O leitor pode se espantar com a autodenominação “moderna” da teoria. Afinal, o teste da impressora é um pelo qual o País já passou diversas vezes na tentativa de financiar o Estado de forma indolor. A emissão de moeda e a hiperinflação desorganizava a economia e deixava os miseráveis mais miseráveis. O próprio Wray admitiu no tour brasileiro que a MMT não traz nada de novo e faz a ressalva de que a emissão pode ter como consequência a inflação, mas é difícil conciliar os alertas tímidos com os slogans mais animados do movimento.

Wray veio ensinar a missa ao padre. Vá lá, a simpatia pela MMT na política americana é compreensível para o país que emite dólar, tem histórico de juros baixos e não viveu em décadas recentes episódios de hiperinflação. Aqui, não faz sentido ignorar o problema fiscal e cair no conto de que a impressora resolva os problemas.

De fato, recebeu críticas da esquerda nesse sentido. Na revista Jacobin, o jornalista Doug Henwood apontou neste ano que a MMT está enraizada em um contexto de país rico e na noção do excepcionalismo americano: “Seria triste ver a esquerda socialista, que parece mais forte do que esteve em décadas, cair nesse óleo de serpente. É um fantasma, um sonho febril e imperial, não uma política econômica séria”.

Veja: a Teoria Monetária Moderna pode ser usada justamente contra a agenda de tributação progressiva cara à esquerda. Por que uma reforma tributária com foco nos mais ricos, se o problema fiscal não existe de fato? A MMT é usada politicamente para dirimir preocupações sobre efeitos da despesa na dívida, mas pode da mesma forma ser usada contra alta de impostos.

Aliás, o tema já foi abordado recentemente por Stephanie Kelton, a economista de Bernie Sanders, e tão expoente do movimento quanto o nosso visitante Wray. Ela ironiza a esquerda que quer tributar os mais ricos, afirmando que eles não devem ser tratados como “cofrinhos”. Defende a superioridade da política prescrita pelo seu movimento: a emissão de moeda teria a vantagem de melhorar a vida de todos, enquanto a tributação progressiva com gasto pró-pobre melhoraria a vida só dos pobres, piorando a dos ricos.

É exatamente esse o apelo da MMT, a versão nutella do inflacionismo que a América Latina conhece tão bem: a promessa de solução indolor, que não exige sacrifícios de ninguém.

É gancho para falarmos do homem da hora: Pedro Souza, do Ipea, ganhou dois Jabutis com sua tese-livro sobre a história da desigualdade no Brasil – incluindo o prêmio de livro do ano. O trabalho documenta com dados a evolução da parcela retida pelo 1% mais rico do Brasil. Os picos de concentração de renda desde a década de 20 foram três: nos anos subsequentes à ditadura de Vargas e à ditadura militar, e na hiperinflação dos anos 80.

Enquanto os mais ricos se protegem com aplicações financeiras, os mais pobres não possuem instrumentos para se defender da “ditadura” da hiperinflação. A concentração de renda piora.

Um economista brasileiro entusiasta da MMT confessa reservadamente: “Mais do que uma teoria, é uma bandeira”. Em suas palavras, a MMT seria sensacionalista, exagerada, mas serviria para chamar a atenção e estimular cidadãos a não se conformarem com a situação de elevado desemprego, e demandarem mais do Estado.

Mas os dias atuais não são só de inflacionismo nutella. Também na semana passada foram divulgados mais detalhes do Plan Verano, que Alberto Fernández ameaça cometer depois de tomar posse na Argentina. Prevê aumento da emissão de moeda para pagar aumentos a aposentados e trabalhadores.

Sua equipe acredita que há capacidade ociosa suficiente para que a impressão de dinheiro não resulte em aumento de preços. Mas a inflação acumulada em 12 meses já é de 50%, fechando outubro em 3,6% – mais do que o Brasil terá em todo 2019. O presidente eleito explicou: “Temos de voltar a fabricar, dar crédito para que se reative a produção, dar dinheiro aos aposentados para que consumam. Temos de fazer o que aqui se chama de peronismo”.

O inflacionismo raiz respira.

* Doutor em economia


Política Democrática: ‘Reforma da Previdência não é o desmonte do Estado’, afirma Pedro Fernando Nery

Em artigo na quarta edição da revista Política Democrática online, consultor legislativo do Senado diz que aposentadoria por tempo de contribuição corresponde a 15 vezes o gasto com ensino profissional

Cleomar Almeida

Reforma é necessária para prestigiar a Constituição, garantindo a solvência do Estado nas três esferas, a prestação dos serviços públicos essenciais e o investimento público. É o que diz o consultor legislativo do Senado Pedro Fernando Nery, que também é autor do livro Reforma da Previdência – Por que o Brasil não pode esperar (Elsevier, 2019). “A reforma da Previdência não é o desmonte do Estado”, afirma.

» Acesse aqui a revista Política Democrática online de janeiro 

No artigo Reforma da Previdência para evitar o Desmonte do Estado, o autor afirma não reformá-la “é provocar um ajuste bíblico em outras despesas, transformar o Estado em uma mera folha de pagamento e viver um pesadelo ultraneoliberal”. “O Estado vai ser mínimo”, assevera.

De acordo com Pedro Fernando, no INSS, o benefício mais elevado é aposentadoria por tempo de contribuição, que, segundo ele, corresponde a 15 vezes o gasto com ensino profissional ou 20 vezes todo o orçamento de C&T. “A pensão por morte tem orçamento maior que o da saúde ou o da educação”, ressalta.

A aposentadoria por idade urbana ou a aposentadoria por invalidez, de acordo com o consultor, já despendem o equivalente a duas vezes o programa Bolsa Família. “Nos Estados, falidos, a previdência dos servidores já é quase duas vezes o próprio Fundo de Participação (FPE)”, afirma, para acrescentar: “Esta é a parte mais regressiva do sistema, pois exige gran- des aportes da sociedade para benefí- cios altos que apenas uma parcela da população vai receber”.

Esta é também, segundo Pedro Fernando, uma das características da previdência dos militares. “A carreira possui diferenças, mas não deve ser blindada sob argumentos de vitimismo. O déficit dos militares é equivalente a uma CPMF”, observa. “O crescimento anual da despesa total é igual a todo o investimento público”, continua.

Para o consultor, a pergunta mais difícil é “como reformar?”. Segundo ele, há na prática várias previdências para os vários “Brasis”. “Nos estados ricos, predomina a aposentadoria por tempo de contribuição, sem idade mínima. Nos estados pobres, a aposentadoria rural, com idade mínima. Nos muito pobres, o benefício assistencial ao idoso (BPC-Loas), com idade mínima mais dura”, analisa.

Por isso, conforme escreve o autor, o debate se concentra em duas opções. “Uma é aproveitar a atual versão da reforma de Temer, sem mexer nos rurais, no BPC e no tempo mínimo de contribuição (item caro aos mais pobres, que não têm carteira assinada). O foco seriam as aposentadorias urbanas de maior valor, as pensões por morte e os servidores”, diz.

A segunda opção, acrescenta o analista político, é fazer uma reforma mais ampla e definitiva, incluindo grupos mais pobres, tratando da vincu- lação ao salário mínimo, e criando um pilar de capitalização – mais sustentável – para as próximas gerações. Seja qual for a opção, é importante que a reforma exija maior esforço dos grupos mais ricos da população e que seja acompanhada também de medidas contra injustiças do lado da arrecadação. Entre elas, os Refis e a maior tribu- tação de pessoas físicas disfarçadas de pessoas jurídicas”.

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