Pedro Fernando Nery

Pedro Fernando Nery: O que é que a OCDE tem?

Hoje, a organização parece uma rede de informação sobre boas políticas públicas

Brasil entra nesta década com a expectativa de ingressar na OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Nos últimos dias, um de seus diretores pontuou que o ingresso é questão de tempo, e o governo brasileiro afirmou que espera para este 2021 a carta-convite da organização. Em dezembro, a OCDE lançou seu relatório bienal sobre o Brasil – uma competente análise do País que também permite nos comparar com seus 37 países-membros, a maioria de elevado desenvolvimento humano. O que fazemos diferente deles?

Em primeiro lugar, é preciso desmistificar a OCDE como o “clube dos países ricos”. Em décadas recentes, a organização se abriu para países do Leste Europeu, dos Bálticos e da América Latina. O México aderiu em 1994, o Chile em 2010 e a Colômbia em 2020 – a Costa Rica já foi convidada. A entidade parece hoje fundamentalmente uma rede de informação sobre boas políticas públicas. Embora tachada de neoliberal em alguns círculos da academia brasileira, suas (muitas) publicações tratam da inclusão social à mudança climática.

Voltando então ao exercício proposto: como a atuação do Estado brasileiro se compara com a dos países da OCDE? 

O gasto do governo está em linha com a média do bloco (há muitos países que gastam mais, há muitos países que gastam menos). Mas a composição do gasto – e da arrecadação de tributos que o financia – destoa. O gasto com servidores é maior no Brasil. Em especial, é bem maior o prêmio salarial no serviço público (diferença da remuneração em relação a trabalhadores da iniciativa privada) – principalmente para os servidores federais. 

Na composição da carga tributária, na OCDE a tributação direta é maior: em geral tributamos menos a renda e mais o consumo de produtos. Mas o que o relatório da OCDE chama mesmo a atenção é para o aumento ocorrido em anos recentes do gasto tributário no Brasil (renúncia de impostos). A entidade aponta que parte dessas vantagens a contribuintes que deixam de pagar a totalidade dos impostos seria regressiva (beneficia os mais ricos) e deletéria à produtividade da economia. Sugere, assim, que o Brasil promova uma reforma tributária para tornar nosso sistema mais justo e impulsionar a produtividade.

Ainda quanto à produtividade, os países da OCDE são claramente mais abertos ao comércio internacional, e praticam tarifas médias de importação bem menores. As barreiras no mercado de bens também são maiores no tocante à regulação por aqui: no indicador da entidade que mede exigências regulatórias, as nossas parecem excessivas na comparação. As barreiras protegeriam empresas de competição e limitariam o crescimento do PIB do País – além de prejudicarem o poder de compra dos mais pobres.

Já em outras áreas, parece faltar atuação do Estado. Consideremos a mobilidade intergeracional. Aqui se levariam nove gerações para que os descendentes de um cidadão que nasceu entre os 10% mais pobres chegasse à renda mediana do País (em média). Nos países nórdicos do grupo, são até três gerações. O hiato salarial entre homens e mulheres estaria bem acima da média do grupo (quatro vezes maior que o de países como Bélgica e Dinamarca). E patinamos nas chamadas políticas ativas de emprego (treinamento, intermediação de mão de obra) – muito mais robustas naqueles países.

A pobreza é naturalmente maior no Brasil, mas chama a atenção a sua distribuição entre diferentes grupos etários: ela se concentra muito mais nas crianças no Brasil do que na OCDE, que, por sua vez, desprotege mais os idosos. De fato, muitos países ali pagam benefícios para famílias com crianças, universais ou semiuniversais. Já a despesa brasileira com educação não é destoante, mas a sua capacidade de alcançar resultados é.

Ainda, a OCDE é pioneira na avaliação do bem-estar subjetivo das populações, com medida que se aproxima de uma quantificação de “felicidade” – talvez uma alternativa ao PIB como indicador de progresso. O Brasil não vai especialmente bem em nenhum dos componentes pesquisados e seria o pior do grupo quanto à segurança dos cidadãos.

Entrar no “clube dos países ricos” não vai deixar o Brasil rico. Tampouco há uma fórmula de sucesso na organização: mesmo os dados aqui expostos se referem a médias, que em alguns casos escondem grande diversidade entre os membros. Contudo, o ingresso na OCDE pode ajudar o Brasil a paulatinamente incorporar boas práticas em diversas áreas: fica a expectativa do aprendizado de como os países de maior desenvolvimento humano chegaram lá.

*DOUTOR EM ECONOMIA 


Pedro Fernando Nery: A vida de milhões de pessoas vai piorar em 2021

Com o fim do auxílio emergencial, expectativa é que pobreza e desigualdade vão aumentar no País

Mafalda caminha com Susanita pela rua. A amiga pergunta: “Como será o ano que vem?”. “Muy valiente” responde Mafalda. “Porque, como andam as coisas, se animar a vir...”

A tirinha de Quino, uma das vítimas de 2020, me veio à mente depois de ler coluna de Leandro Karnal no último domingo. Nela, Karnal provoca o leitor a imaginar 2020 como “um ano admirável, maravilhoso”. Entre suas reflexões, a de que de 2020 não se pode piorar. Afinal, estão no horizonte as vacinas, fruto do extraordinário avanço da ciência, e a própria recuperação econômica. O ano que se inicia seria um ano de potencial.

Como o título deste texto sugere, eu discordo. 2021 vai ser pior. Talvez não para o leitor, mas para muitos brasileiros. Até a semana passada, eles podiam contar com a ajuda do auxílio emergencial para pagar as contas. O auxílio não só segurou o aumento da pobreza e da desigualdade, como temporariamente fez com que diminuíssem. Mas ele acabou, e a vida de milhões de brasileiros vai piorar.

Com a pandemia, parte dos brasileiros foi para uma outra forma de trabalho: o teletrabalho. Parte dos brasileiros foi para uma outra forma de desemprego: o desemprego oculto. Oculto porque não aparece na estatística divulgada como taxa de desemprego. Eles não trabalham e gostariam de trabalhar, mas, como não procuraram ativamente um trabalho, não são considerados desempregados. A alta do desemprego oculto em 2020 é explicada pelo temor de contaminação do vírus e pelo recebimento do auxílio emergencial, que assegurou a quarentena.

Como se sabe, o auxílio foi generoso, pagando benefícios a quem normalmente não recebe nenhuma transferência de renda, e em valores muito maiores que o dos programas sociais permanentes. Isso fez até com que milhões de famílias mais pobres na verdade experimentassem ganhos de renda em 2020, pelo menos até setembro, quando o auxílio foi reduzido. 

Sem ele, muitas famílias brasileiras passarão a participar de uma grave crise que foi represada pelo auxílio. Milhões de informais, empregados ou trabalhadores por conta própria, terão uma vigorosa queda de renda. Como a pandemia não acabou – pior, parece mesmo entrar em uma segunda onda –, não conseguirão recuperar seus rendimentos mesmo que tentem voltar a trabalhar. É o ambulante na rua vazia, a atendente que fazia bicos em um restaurante. Para muitos, os primeiros meses de 2021 vão ser os com maior privação dos últimos anos.

O desemprego vai aumentar, um movimento de brasileiros saindo do tal desemprego oculto para o desemprego aberto, a taxa oficial. É bastante provável que a um nível ainda maior que o da última recessão de 2015 e 2016. Se as principais estimativas se realizarem, devemos ver em breve manchetes noticiando desemprego perto de 17% no Brasil.

Por conta do auxílio, não apenas o desemprego aberto não aumentou, como a taxa de pobreza caiu e os níveis de desigualdade de renda também. O inverso deve se observar com o seu fim: alta da pobreza e alta da desigualdade, para níveis maiores aos que aconteciam antes da crise. Esses números refletirão a realidade das famílias brasileiras para quem 2021 será pior.

A extrema pobreza, situação de potencial privação calórica, pode subir para uma taxa acima de 10% dos brasileiros – nas projeções da Daniel Duque (Ibre-FGV). Um retrocesso de uns 15 anos, e não é possível descartar que o aumento seja ainda maior. Duque projeta retrocesso semelhante para a taxa de pobreza, esperada em até 30%. 

O contraste com 2020 é marcante. Visualize a trajetória nos dados de Duque: a extrema pobreza de 7% antes da pandemia caiu a 2% com o auxílio em 2020, e poderá subir para mais de 10%. A pobreza caiu de 25% antes da pandemia para 18% durante 2020, e poderá subir a 30%. 

São trajetórias que lembram o V desejado para o crescimento econômico (queda rápida e forte do PIB em 2020, alta rápida e forte em 2021). Mas estes Vs não seriam nada auspiciosos: extrema pobreza em V, pobreza em V, desigualdade em V. Não seria surpreendente se outro V chamar atenção em 2021: em países como o nosso, o desemprego está associado à violência.

É evidente que o auxílio emergencial foi caro e que as condições de endividamento da União não são nada boas. Mas era, sim, possível adotar uma transição mais longa para o seu fim, especialmente diante da possível segunda onda. Mesmo nos países que já iniciaram a vacinação, a imunidade de rebanho demorará pelo menos bons meses a ser conquistada. Até que o vírus seja vencido, a economia não se recuperará. E, até lá, os mais pobres precisam de apoio. 

Um auxílio, ainda que menor e mais restritivo, poderia ser pago sem afetar a dívida se houvesse tido disposição de brigar com outros gastos diretos e indiretos, inclusive direcionados aos mais ricos, como gastos com funcionalismo e gastos tributários que beneficiam a elite do setor privado. Políticas de emprego, para ajudar o acesso ao mercado de trabalho formal, também seriam úteis e precisariam de recursos, mas absolutamente nada foi discutido nos últimos tempos. 

2021 começará com uma gigantesca recessão no PIB dos mais pobres. Se para várias famílias – talvez a do leitor – 2021 pareça mais auspicioso, a perspectiva certamente não é compartilhada por muitas outras. Neste primeiro domingo de 2021, podemos falar de uma nova desigualdade: a desigualdade de otimismo. 

* DOUTOR EM ECONOMIA

Conteúdo Completo


Pedro Fernando Nery: Frente ampla

2021 pode registrar maior nível de desigualdade de renda vivido sob atual Constituição

Completaram 18 anos da aprovação, no Senado, do projeto de renda básica de Eduardo Suplicy. A versão aprovada foi na verdade um substitutivo de um senador do DEM – ainda PFL. É um dos casos pouco conhecidos da atuação do partido na política social, cujo resgate é interessante à medida que o partido ganha protagonismo e a natureza de sua plataforma é mais debatida. 

O DEM foi o partido que mais conquistou prefeituras nas eleições municipais que acabam de se encerrar, e na semana passada ajudou a consolidar um esforço de frente ampla reunindo diversos partidos de esquerda. Ao Estadão neste mês, o prefeito eleito Eduardo Paes – no DEM – argumentou que o espectro do partido seria bem amplo, se colocando como alguém mais à esquerda do que o seu conjunto.

No parecer do ex-senador Francelino Pereira favorável à renda básica, argumentou-se que o crescimento econômico sozinho é um caminho lento para a superação da miséria no Brasil. A pobreza seria mais sensível à desigualdade do que ao PIB. A nova transferência de renda iria ao encontro do propósito de que nenhum brasileiro tivesse vergonha de aparecer em público, parafraseando uma definição da Adam Smith sobre privação em A Riqueza das Nações.

Outra proposta do antigo PFL naqueles tempos era a de inserir na Constituição um fundo para a erradicação da pobreza, financiado por um imposto sobre grandes fortunas. De autoria de Antonio Carlos Magalhães, veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 31, de 2000. O fundo chegou a ser utilizado, mas o imposto que seria a principal fonte de recursos nunca foi instituído. 

A proposta original previa ainda uma nova contribuição social progressiva e aumentos de impostos sobre bens e serviços de luxo: “A desigualdade na distribuição de renda no Brasil é a matriz dos problemas que assolam nossa sociedade” justificou ACM. Havia provavelmente um componente regional nas iniciativas: nessa legislatura do fundo baseado em grandes fortunas e da renda básica o PFL tinha 15 senadores apenas do Nordeste e do Norte.

Antes, em 98, no documento “Uma Política Social para o Brasil: A Proposta Liberal”, o Partido defendera que a criação de um programa de renda mínima deveria ser prioridade do governo. Naquele ano eleitoral, Eliane Cantanhêde registrou a competição entre PT e PFL pela paternidade das ideias que seriam precursores do Bolsa Escola (2001) e do Bolsa Família (2004). O PT operava nos anos 90 o Bolsa-Escola do Distrito Federal, e o PFL o Bolsa-Cidadã da Bahia (menos abrangente e com foco em crianças em áreas de sisal).

Ainda naqueles anos antes do governo Lula, conforme lembra o cientista político Murilo Medeiros, parlamentares do antigo DEM relataram a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, que implementa o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência na pobreza) e o Fundef (o antecessor do Fundeb). 

Mais recentemente, o novo Fundeb, deste ano, foi relatado por uma deputada demista. Em 2019, parlamentares do partido voltaram ao tema da renda básica, propondo benefícios universais a crianças (benefício universal infantil) ou a idosos e portadores de doenças graves (RBU) – durante a tramitação da reforma da Previdência. 

No final do ano passado, esta coluna se chamou Natal na miséria: contrastava o otimismo que havia para 2020 com os parcos ganhos econômicos para os mais pobres nos anos recentes. O ano foi virado de cabeça pra baixo: a economia em recessão pela covid e a pobreza em queda pelo auxílio emergencial. Com o seu fim em 31 de dezembro, a mesma preocupação da coluna do último Natal permanece e se acentua: o Bolsa Família só não é suficiente.

Dados compilados por Rozane Siqueira (UFPE), veiculados recentemente por Armínio Fraga, mostram tanto que o desafio brasileiro não é tão diferente do de outros países como que melhorar é possível. Diversos países europeus, incluindo até Alemanha e Finlândia, teriam uma desigualdade de renda quase brasileira não fosse a atuação do Estado tributando e distribuindo. O Brasil se distingue não só pelos níveis mais altos de desigualdade, mas por pouco mudar quando o Estado entra na jogada – se comparado ao que acontece nesses países.

O fim do auxílio e a continuada propagação do vírus podem nos levar em 2021 ao maior nível de desigualdade de renda vivido sob a atual Constituição. Uma frente ampla para aprofundar aquele pacto de 88 será bem-vinda e é esperançoso perceber que nas últimas décadas ideias para combater a desigualdade e reformar o Estado vieram da esquerda e da direita. Vale toda torcida.

* Doutor em Economia 


Pedro Fernando Nery: Piores elites do mundo

Brasil aparece atrás de México, Rússia, Índia e até de países como Casaquistão

O Brasil teria a 6.ª pior elite entre 32 países. Em ranking de qualidade das elites mundiais – liderado por Cingapura, Suíça e Alemanha –, o Brasil aparece atrás do México, da Rússia, da Índia e até de países como Casaquistão, Arábia Saudita e Botswana (embora na frente da Argentina). O Índice de Qualidade das Elites foi veiculado em relatório recente dos economistas Tomas Casas e Guido Cozzi (Fundação para a Criação de Valor). O que ele explica sobre o nosso País e como se relaciona com a agenda de reformas?

Os autores definem elites como grupos pequenos e coordenados, capazes de acumular riqueza, e que seriam uma “inevitabilidade empírica” – presentes em todas as sociedades. Um índice alto significaria que a elite do país cria mais valor do que captura, contribuindo para o crescimento econômico e o desenvolvimento humano. Já nos países com índices baixos as elites teriam desenhado instituições mais “extrativas”. Grosso modo, a questão é se, na acumulação de sua riqueza, a respectiva elite beneficia a sociedade ou dela se beneficia.

O relatório bebe em conceitos dos economistas Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Chicago), do best-seller Por que as Nações Fracassam, mas em particular do livro mais recente da dupla, The Narrow Corridor (ainda sem tradução). Acemoglu e Robinson explicam o desenvolvimento dos países pela qualidade de suas instituições (regras informais ou formais, como leis, que regem o funcionamento da sociedade). Resumidamente, essas instituições podem ser inclusivas ou extrativas. No último caso, a riqueza do país é extraída pela sua elite – que por sua vez concentra seus esforços e recursos não em ser produtiva, mas em conquistar favores e privilégios. Essa postura que visa à renda improdutiva é expressa no termo rent-seeking, traduzido como caça às rendas ou rentismo.

A partir daí, Casas e Cozzi dividem as elites em três tipos principais: rentistas (extraem valor e detêm muito poder), competitivas (geram valor, mas não detêm muito poder) e iluministas (geram valor, a despeito de deterem muito poder). O estudo basicamente identifica apenas elites rentistas e competitivas.

A elite brasileira é do grupo das rentistas. Nossas piores classificações no indicador são na categoria que avalia como o Estado retira renda; na categoria de rentismo da produção; e na categoria de rentismo do trabalho.

A primeira compreende uma avaliação da regressividade e distorções do sistema tributário. A tributação dos lucros e a parcela da renda retida pelos 10% mais ricos são alguns dos itens. Aqui, é possível fazer ligação clara com a reforma tributária e instrumentos como a isenção no IR para lucros e dividendos, bem como outros mecanismos que permitem que os mais ricos paguem menos impostos que os mais pobres.

A segunda categoria que vamos especialmente mal diz respeito à exposição dos grandes à competição. Nessa categoria de rentismo dos produtores são avaliadas questões que podem levar à formação de monopólios ou oligopólios – aptos a extrair renda das famílias com produtos mais caros ou de pior qualidade. Inclui a proteção tarifária contra produtos estrangeiros, regulações que criam barreiras à entrada de novas empresas no mercado e a facilidade de fazer negócios. A agenda mais óbvia aqui é a da abertura comercial, mas também a de desburocratização.

Uma terceira categoria em que estamos perto da lanterna, a de rentismo do trabalho, contempla a forma como instituições do mercado de trabalho preterem os jovens. Demandaria pauta de abertura do mercado de trabalho, para tornar mais fácil empregar grupos excluídos. Seriam exemplos mudanças como a reforma trabalhista e a carteira de trabalho verde e amarelo – não à toa, duramente combatidas pelos representantes dos incluídos.

A agenda por instituições mais inclusivas, em prejuízo das atuais elites dominantes, não é exclusiva de nenhum ponto no espectro ideológico. Por exemplo, a esquerda é mais combativa pelo fim dos privilégios no sistema tributário, mas é historicamente contra a exposição à competição de empresas estrangeiras ou mulheres e jovens – respectivamente no mercado de bens e no mercado de trabalho. Há uma grande concertação nacional a ser feita nos próximos anos se quisermos subir da última divisão das elites mundiais.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Rejeição oculta

A alegria de ganhar é menor do que a tristeza de perder, mesmo sendo um valor igual

A teoria da perspectiva (prospect theory) é uma das contribuições do psicólogo israelense Daniel Kahneman que renderam a ele o Prêmio Nobel em Economia. Kahneman foi premiado por integrar a psicologia à ciência econômica no estudo de como formamos nossos juízos. A teoria da perspectiva trata de como reagimos a ganhos e perdas. Simplificadamente, descreve que a alegria de ganhar é menor do que a tristeza de perder, mesmo se tratando de um valor igual. Esta coluna é sobre o fim do auxílio emergencial.

Dezenas de milhões de brasileiros pobres tiveram em 2020 mais renda do que em 2019, apesar da crise. Isso decorreu de dois atributos do auxílio emergencial. Um é o valor bem maior do que o do Bolsa Família: foi de R$ 600 (R$ 1.200 para mães solo, mais comuns na demografia de Norte e Nordeste). O segundo atributo é a amplitude da linha de pobreza que deu acesso ao benefício, mais generosa do que os limites draconianos do Bolsa Família: fez com que muitos brasileiros pobres que não recebiam nenhuma transferência passassem a receber.

O auxílio emergencial acabará no dia 31 deste mês e terá transferido um montante de recursos superior a dez anos de Bolsa Família. Ele é considerado parte da explicação pela alta da popularidade do presidente Bolsonaro, enquanto a pandemia matava dezenas de milhares de brasileiros. Um crescimento de popularidade que aconteceu ainda com a queda do PIB e a saída do seu ministro mais popular. 

O aumento da avaliação positiva total do presidente esconde a queda que teve em alguns estratos de renda e regiões do País que antes o apoiaram. Na pesquisa Ibope-CNI de setembro, a taxa de ótimo/bom em sua avaliação avançou cerca de 30% na comparação com mesmo período de 2019. No Nordeste, o crescimento da taxa foi de mais de 60%. A “troca” de apoiadores pareceu positiva.

No auge do auxílio, a pobreza caiu em todas as regiões do País em relação às taxas de 2019, mas a variação foi tímida, talvez uma oscilação, nas regiões que elegeram Bolsonaro. Foi no Nordeste e no Norte que os efeitos do auxílio foram mais sentidos, com taxas de pobreza despencando mais de 10 pontos porcentuais. Muitos desses brasileiros que saíram dessa linha de privação parecem ter mudado sua avaliação do presidente. Lembremos que Bolsonaro fez poucos votos em todos os Estados do Nordeste e no Pará e Amazonas.

O auxílio emergencial não entrará em 2021. Ainda que haja alguma prorrogação por algumas semanas, há um encontro marcado com o seu fim. Qualquer reforma do Bolsa Família ou criação de novo benefício envolverá valores muito mais modestos. Com o fim do estado de calamidade, voltam a valer restrições fiscais.

Voltemos a Kahneman. O que vai sobrar da avaliação positiva do governo entre os que recebiam o auxílio emergencial? Pela teoria da perspectiva, poderíamos especular que a perda de popularidade pode ser inclusive mais rápida e intensa do que o ganho que ocorreu. Ainda que recursos sejam direcionados para esse público, eles serão necessariamente bem menores e necessariamente desagradarão outro grupo. 

O presidente já manifestou ao longo do ano compromissos com grupos que o apoiaram, no tocante ao financiamento de um novo benefício social. Fez compromisso com o teto (mercado), com o abono salarial (assalariados no Centro-Sul) e contra mudanças para a atual geração de servidores e de aposentados. Sem brigar com nenhum desses, vai gerar insatisfação na nova base galvanizada pelo auxílio. Brigando, perde apoio em outro lugar.

É plausível, portanto, o cenário em que Bolsonaro viva seus piores índices de aprovação em 2021, e que chegue em 2022 até como o presidente mais impopular a disputar uma reeleição na Nova República. 

Nas últimas semanas, muito se discutiu sobre um Biden brasileiro. Para muitos, alguém capaz de reunir todas as forças que perderam em 2018. Para outros, alguém mais ao estilo “você não gosta de mim, mas a sua tia gosta” – capaz de conseguir votos à direita, entre quem digitou 17. Mas não será preciso um Biden brasileiro se não houver um Trump a bater. O presidente americano manteve ao longo do mandato o entusiasmo de muitos grupos que o elegeram, entregando promessas de campanha. Não parece ser o caso aqui, e diante do complicado labirinto da política econômica talvez só reste ao presidente resgatar a agenda de costumes e de encarceramento.

Economistas projetaram um elevado “desemprego oculto” neste ano. É uma taxa bem acima da estatística oficial de desemprego, pois inclui os milhões que perderam emprego, mas não passaram a procurar um. Em breve estarão mais visíveis. Podemos imaginar que algo parecido acontecerá com a rejeição ao presidente. O fim do auxílio pode evidenciar as sequelas de 2020 na avaliação dos eleitores e revelar o que o pagamento escondeu: sua rejeição oculta. 

*DOUTOR EM ECONOMIA 


Pedro Fernando Nery: Nosso norte

A Amazônia é fundamental para a economia, mas ganhos precisam ser compartilhados

Saindo de São Paulo, leva-se menos tempo para chegar em Tel-Aviv do que a Ipixuna – a cidade brasileira com o pior nível de desenvolvimento no índice Firjan. É localizada no Amazonas, mas o aeroporto de médio porte mais próximo fica no Acre, de onde partem barcos para a longa viagem para a cidade. A precariedade da infraestrutura no Norte do Brasil vai muito além da rede elétrica do Amapá, às escuras depois de um incêndio que chamou a atenção do resto do País nos últimos dias.

Na Região Norte, 1 milhão de brasileiros não correm risco de apagão: eles já não têm acesso a energia elétrica, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). Outros milhões estão em um sistema ainda vulnerável, como mostra o caso do Amapá, cuja solução definitiva levará dias e depende da chegada de balsas.

O País ainda tem um Estado inteiro – Roraima – desconectado do sistema elétrico nacional. A ligação é historicamente polêmica, pelas questões ambientais e indígenas envolvidas. Elas também aparecem na polêmica da pavimentação da BR-319, ligação de uma das maiores cidades brasileiras – Manaus – com o restante do País.

No Norte do Brasil, 40% dos cidadãos vivem abaixo da linha da pobreza – número quase igual à taxa do Nordeste. Mas a pobreza amazônica não ocupa ainda muito espaço no imaginário do Centro-Sul como a pobreza nordestina. É preciso admitir uma verdade inconveniente: esse baixo PIB per capita é um complicador para a preservação da floresta. A influente revista Science publicou este ano um artigo sobre as obras da BR-319: o título é “Estrada para o desmatamento”. Mas estamos falando de uma conexão terrestre com a 7.ª maior cidade do Brasil, ou a nossa Filadélfia.

E se a detestável política ambiental que temos tiver o apoio da população local? Nas eleições de 2018, somente quatro Estados entregaram votação para algum candidato acima de 70% (todos para Bolsonaro). À exceção de Santa Catarina, eles estão na Amazônia: Roraima, Rondônia e o Acre – este com a maior votação. Bolsonaro teve 77% no Estado de Marina Silva e Chico Mendes. Se tivéssemos um colégio eleitoral como o americano, esses não seriam battleground states.

Como convencer tantos brasileiros que devem ter aspirações menores e conviver com infraestrutura de país subdesenvolvido? A floresta de pé se justifica claramente pelos seus ganhos econômicos, seja por limitar a mudança climática que ameaça a atividade econômica de diversas regiões do planeta, seja pela biodiversidade da selva – que guarda informação valiosas geradas por milhões de anos de evolução. Mas quase todos esses potenciais benefícios, futuros e difusos, não são auferidos hoje pelos habitantes locais.

É momento de discutir pagamentos à população nortista como compensação pelos serviços ambientais? Se aceitamos que a região não pode se urbanizar como o resto do País, devem receber recursos federais para que as famílias não sejam tão vulneráveis à pobreza? O PIB da área é tão incipiente que, apesar da crise severa deste ano, a arrecadação em quase todos os Estados da região cresceu – por conta dos efeitos no consumo do pagamento do auxílio temporário aos mais pobres.

Afinal, a ideia simpática de que a Região Norte pode se desenvolver normalmente apenas com empreendimentos verdes esbarra em uma dificuldade: ali moram 18 milhões de pessoas. É mais que a Pensilvânia e a Geórgia somadas.

A ciência pode orientar a política pública nas escolhas para desenvolvimento da região. Publicado na Nature Sustaintability em 2018, um estudo literalmente mapeia tanto as áreas da floresta de maior biodiversidade quanto aquelas em que sua conservação pode resultar em mais produtos (madeira, borracha, castanha) e serviços (como chuvas para hidrelétricas e agropecuária) – onde a necessidade de preservação é portanto mais inquestionável. O trabalho é assinado por pesquisadores brasileiros apoiados pelo Banco Mundial e pela Noruega (Strand et al.).

Enquanto os votos nos Estados Unidos indicavam a eleição de Joe Biden, o que pressionará para uma mudança dramática na nossa política ambiental, centenas de milhares de brasileiros não acompanhavam o resultado porque não havia como fazer chegar energia elétrica ao Amapá. A Amazônia preservada é fundamental para a economia do País e do planeta, mas ganhos precisam ser compartilhados com a população local – e não há clareza sobre solução inteligente e efetiva para fazer isso.

A agenda de conservação precisa do apoio de habitantes que ainda vivem com carências que não existem no resto do Brasil. Os eventos da última semana são alegóricos de uma tensão que deve existir nos próximos anos na definição sobre o nosso norte.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: O que é boa política?

Nas eleições, não há espaço para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas

Os EUA decidem hoje o seu próximo presidente. Hillary Clinton, a perdedora 4 anos atrás, reflete no livro What Happened sobre as campanhas eleitorais da nossa era. Estudos mostram que o noticiário daquela eleição concentrou uma parcela insignificante da cobertura às propostas formuladas por especialistas do seu time. Acusações, questões de personalidade e propostas mirabolantes de Trump ocuparam quase toda a cobertura. Hillary dá a entender que se arrepende: a boa política pública pode não ser a boa política.

Depois de encarar promessas populistas à direita (de Trump) e à esquerda (do correligionário Sanders nas primárias), ela parece se render à máxima de que good policy is not good politics: não há espaço nas eleições para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas. Ela chegou a cogitar apresentar um programa de renda básica universal, mas desistiu por não conseguir fechar a conta do custeio. Na autobiografia, lamenta: deveria ter lançado a proposta como aspiração, e solucionar os detalhes depois.

Na coluna anterior, tratamos das promessas de Guilherme Boulos para a prefeitura. Mas as promessas hiperbólicas não são exclusivas da esquerda. No momento em que busca sua reeleição, Trump concluiu parcela ínfima do prometido muro (e não fez o México pagar por ele).

Na quinta-feira passada, o ministro da Economia declarou: “Há uma narrativa de que eu prometo e não entrego”. É uma referência pertinente de promessas à direita: em 2018, Paulo Guedes prometeu zerar o déficit primário ainda no primeiro ano de governo (o valor no vermelho foi de R$ 95 bilhões) e privatizações acima de R$ 1 trilhão (o secretário da área já se demitiu).

Na corrida à prefeitura de São Paulo, as promessas de Boulos não são menos factíveis que as de concorrentes. Adversários prometem cortes de impostos que esbarram em proibições parecidas, por exemplo, quanto à Lei de Responsabilidade Fiscal. Juras de privatização esbarram nas dificuldades enfrentadas por Guedes.

Leitores comentaram a coluna de Boulos concordando com inconsistências do programa, mas explicando ver no candidato uma chance maior de concretização de uma determinada plataforma. Efetivamente, o “vou fazer” dos candidatos é na prática um “quero fazer” – e para muitos eleitores querer já é um diferencial em relação a outros postulantes. Seja a promessa de renda básica e passe livre ou corte de impostos e privatizações.

Especificamente em Boulos, há mesmo um compromisso claro com redução da desigualdade – Jeff Nascimento, da Oxfam, destaca de forma ilustrativa que entre os principais candidatos não há programa que chegue perto em menções a “desigualdade” ou “social”. Como mostram os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, a capital paulista tem as 5 regiões de maior desenvolvimento humano do País, quase “gabaritando” esta versão do IDH. Uma prosperidade que divide espaço com privações, um abismo que tende a aumentar com a devastadora crise atual.

Uma gestão Boulos poderia, sim, promover transformações, ainda que não na magnitude que alguns esperam – especialmente sem brigar pelo aumento da tributação dos mais ricos e a reforma da previdência, como argumentei. De fato, a campanha aponta que os valores envolvidos no programa são bem mais modestos do que alegam os adversários, reproduzidos na coluna.

Realidade
À medida que o plano de governo do PSOL se torna mais realista, também será menos sedutor para os eleitores. Uma renda básica para 3 milhões, em continuação ao Auxílio Emergencial, e passe livre para todos sem emprego formal poderia superar os R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos dias, a campanha colocou parte da plataforma de forma mais clara: um programa mais factível, e naturalmente menos abrangente.

O número de 3 milhões de “atendidos” com a renda básica não rivaliza com os 3,4 milhões que receberam o Auxílio Emergencial na cidade: na verdade, seriam 3 milhões de atendidos apenas indiretamente, e 1 milhão de benefícios de fato. Uma redução de pelo menos 70% no número de pagamentos em relação ao Auxílio Emergencial, ou 7 milhões a menos de “atendidos” seguindo o método proposto.

O passe livre para desempregados segue pouco claro: os mesmos 3,4 milhões do auxílio emergencial não têm emprego formal, uma conta com potencial de vários bilhões. Havendo uma lógica limitação, há entre os eleitores, inevitavelmente, muitos desempregados que não vão receber o passe livre, assim como há favorecidos pelo Auxílio que ficarão de fora da renda básica. O hiato entre aspiração e realidade será ainda maior sem aumentos significativos na arrecadação do IPTU, ISS e contribuição previdenciária, o que nenhum candidato admite.

Propor boa política pública não é a boa política eleitoral. É uma escolha sensível para todas as campanhas, principalmente uma vibrante como a de Boulos.

  • Doutor em Economia

Pedro Fernando Nery: A pandemia vai começar

Números de pobreza e desigualdade podem disparar em 2021

Quase 20 milhões de brasileiros foram salvos de cair na pobreza neste ano com o auxílio emergencial. Outros 10 milhões saíram temporariamente dela em 2020 por conta do benefício. São algo como 30 milhões de pessoas em risco com o seu fim em 31 de dezembro. O auxílio segurou os efeitos devastadores que a pandemia poderia ter no sustento das famílias mais pobres: com o seu fim abrupto, parte desses efeitos terão sido meramente adiados.

Os dados do parágrafo anterior foram calculados para o mês de julho pelo pesquisador Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole. Ele estimou também haver uma taxa de desemprego oculto de quase 40% entre os mais pobres. Esse número não é captado nas formulações tradicionais (taxa de desemprego aberta), porque inclui os trabalhadores que gostariam de um emprego, mas não procuraram um no isolamento. A partir de 1.º de janeiro, uma multidão sem renda deve passar a procurar ativamente emprego, o que pode provocar uma alta expressiva nos números oficiais de desocupação.

Em 2021, um terço dos brasileiros poderá estar vivendo com menos de meio salário mínimo – projeta Marcelo Neri, da FGV Social. Barbosa, Letícia Bartholo, Monica de Bolle e Pedro Souza estimaram proporção semelhante, mas para o número de cidadãos com renda inferior a um terço do mínimo.

Por isso, é extremamente preocupante a abordagem conformista externada pelo ministro da Economia em live da XP Investimentos, na sexta-feira. Diante das dificuldades de financiar um programa permanente para substituir o auxílio emergencial, afirmou que “é melhor voltar ao Bolsa Família do que fazer um movimento louco e insustentável”.

É preciso ficar claro: o Bolsa Família já estava em crise antes da crise. Apesar da retomada do PIB, havia 3 milhões de pessoas habilitadas para o programa em uma espécie de fila de espera por falta de orçamento. Se a fila fosse física, iria de Brasília a São Paulo. Para além disso, o programa convivia com valores muito modestos tanto no tocante aos valores pagos quanto aos dos critérios para receber o benefício.

Vejamos: uma mãe com renda de R$ 300 por mês vivendo com um filho recebeu R$ 1.200 por mês no auxílio emergencial. No Bolsa Família, seriam R$ 41 mensais. Se a renda dela fosse um pouco maior, de R$ 400, o valor recebido no Bolsa seria zero: a família não seria pobre o suficiente para receber qualquer valor. Frise-se que para receber o auxílio emergencial essa família de duas pessoas poderia ter renda de até R$ 1.000.

É evidente que um benefício generoso como o auxílio emergencial é atualmente impagável, o que não quer dizer que os valores envolvidos no Bolsa Família não sejam draconianos. Como Rogério Barbosa mostra, os números do Bolsa estão há anos muito atrás da inflação (o pico do valor médio foi em 2014, e o da linha de pobreza em 2010).

Existem muitas possibilidades de avançar. Uma em voga nas últimas semanas é a proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), que propõe fazer mais com a mesma quantidade de recursos empregadas hoje em programas como o abono salarial. No entanto, exigiria que o presidente da República voltasse atrás quanto a sua negativa para a reforma do abono.

Uma possibilidade, mais progressiva do ponto de vista da distribuição de renda, foi a levantada na última semana pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Gastos com benefícios de servidores e militares poderiam ser suspensos para fortalecer a política social. Exigiria que o presidente revisse o posicionamento de que os atuais servidores não devem ser afetados por mudanças.

Há ainda um conjunto de propostas no Congresso com interpretações menos conservadoras sobre o teto de gastos, admitindo a possibilidade de que a despesa com um programa como o Bolsa Família possa ultrapassar o teto – compensado por ganhos de arrecadação sobre os mais ricos.

É intuitivo que os padrões de distanciamento social nos próximos meses vão ditar a magnitude da alta do desemprego e da pobreza com o fim do auxílio. Por ora, o aumento parece inevitável: trabalhos como o de ambulantes não se adaptam ao Zoom.

Dez milhões de pessoas deixaram de trabalhar em 2020 e é improvável que com o encerramento dos programas temporários todas voltem rapidamente aos postos anteriores.

Se o auxílio emergencial pode ter sido sobredimensionado para uma crise econômica que até agora foi menos severa do que poderia ter sido, o fato é que somente “voltar ao Bolsa Família” pode representar um choque imenso. Em 2020, com o auxílio emergencial, o Brasil observou mínimas históricas na desigualdade e na pobreza extrema. A partir de 2021, pode observar um movimento rápido e expressivo no sentido contrário: números de pobreza e de desigualdade como não víamos há anos ou mesmo décadas. Um movimento insustentável.

*Doutor em economia


Pedro Fernando Nery: Desigualdade do engatinhar

Crianças que não se desenvolvem plenamente se tornarão adultos às margens do mercado de trabalho que virarão custo para o Estado

Na última década, o crescimento da economia brasileira esteve abaixo do de 90% dos países. Com o fim do bônus demográfico, será cada vez mais importante para o nosso futuro o crescimento da produtividade (a renda que cada trabalhador consegue gerar), já que o PIB não poderá depender de muitos trabalhadores entrando na força de trabalho (pois eles serão cada vez menos). Mas a produtividade cresce pouco no Brasil. O desafio é bem ilustrado pelo cálculo de Fabio Giambiagi: se a produtividade nas próximas três décadas crescer o mesmo que cresceu nas últimas três, não sairemos do lugar. Teremos em 2050 aproximadamente a mesma renda per capita que tínhamos antes da pandemia.


A bebê era nervosa e tinha atrasos no desenvolvimento. Foi após seguidas visitas domiciliares que uma agente identificou o problema. Os pais não deixavam ela engatinhar. Haviam se mudado há pouco para a casa de chão áspero e irregular: temiam que a garotinha se machucasse se fosse para o chão.

A agente instalou uma espécie de trilha como solução, que permitiu que a criança passasse a se locomover. Ela floresceu. “Antes era brava e nervosa. Agora é bagunceira”, contou a mãe em matéria de Flávia Oshima, da revista Época, sobre o Mais Infância – programa cearense de visitação domiciliar voltado para o desenvolvimento infantil.

Essa “desigualdade do engatinhar” é importante porque o desenvolvimento nos primeiros anos de vida está associado ao desempenho na escola nos anos seguintes e ao sucesso no mercado de trabalho. Em especial os primeiros mil dias, que constituem um “estirão” do desenvolvimento – como resumiu neste Dia das Crianças a deputada Paula Belmonte. A desigualdade nessa fase antecipa a das fases seguintes.

O engatinhar em si está até relacionado à capacidade de resolver problemas e de aprender, mas o relato do sertão cearense é emblemático em mostrar como os brasileiros são diferentes desde este momento. O Renda Brasil pode ser uma grande oportunidade de combater as desigualdades desde esse início.

A ampliação das escassas transferências de renda contribui para reduzir as privações a que crianças pobres estão submetidas e o estresse no domicílio, mesmo papel que cabe à inclusão das mães no mercado de trabalho. Expandir a rede de creches pode contribuir com cuidado de maior qualidade. Fortalecer o programa nacional de visitação domiciliar – o Criança Feliz – ajuda a ensinar os pais a estimularem seus filhos desde logo, como evidencia o caso do Mais Infância Ceará.

Como sabemos, porém, essas políticas ainda não foram consideradas prioritárias o suficiente para terem financiamento garantido. Além dessas, a história do sertão ressalta a relevância das políticas de habitação. Seja com apoio estatal direto como no Casa Verde e Amarela/MCMV, ou combatendo as regras que limitam a oferta de imóveis nos grandes centros, o fato é que a políticas habitacionais podem ser chave para a infância – sobretudo num país que crianças não têm acesso a creche.

Estudos têm sugerido que a qualidade das residências pode afetar as capacidades cognitivas e emocionais das crianças, em parte por prejudicar o comportamento das mães (Coley et al., 2012) e que os efeitos negativos de crescer em lares com adensamento excessivo se prolongariam até a vida adulta, prejudicando renda e saúde (Solari e Mare, 2012; Marsh et al., 2010). Já filhos de famílias que precisam gastar muito de sua renda com aluguel teriam resultados cognitivos piores (Newman e Holupka, 2014).

Aqui, dados do IBGE mostram que crianças predominam sobre as demais faixas etárias em medidas de vulnerabilidade nas condições do domicílio: estão mais expostas a adensamento excessivo, ônus excessivo com aluguel, ausência de banheiro exclusivo e paredes externas construídas com materiais não duráveis. O mesmo ocorre no que se refere ao saneamento, o que quer dizer que o engatinhar de crianças mais pobres compete com o de insetos e ratos.


Naercio Menezes e Bruno Komatsu, do Insper, traçam a ligação entre as privações da primeira infância e o problema de produtividade da economia brasileira, em estudo publicado neste mês (Uma Proposta de Ampliação do Bolsa Família para diminuir a Pobreza Infantil). Se neste momento gastar mais com a infância parece contraproducente para os esforços de equilíbrio fiscal, eles argumentam o contrário.

Crianças que não se desenvolvem plenamente se tornarão alunos, que se tornarão adultos. Em vez de adultos produtivos, bem empregados e pagadores de impostos, serão adultos às margens do mercado de trabalho que virarão custo para o Estado – “minando a sustentabilidade fiscal do País no longo prazo.”

  • Doutor em economia

Pedro Fernando Nery: O Brasil do auxílio

A população precisa de políticas de emprego e benefícios robustos. Não de preconceito

Os últimos dias foram de discussões acaloradas sobre o auxílio emergencial, à medida que em plena pandemia ele alavancou a popularidade do presidente em locais em que ele não foi bem votado em 2018. De fato, o impacto dos R$ 600 no Nordeste e no Norte é mesmo gigantesco. A concentração do auxílio em algumas partes do Brasil é corolário da concentração do emprego com carteira assinada e gastos previdenciários em outras.

Menos de 20% dos catarinenses receberam a nova renda básica, mas mais de 40% dos roraimenses a receberam. Os valores pagos também tenderam a ser maiores nas regiões mais excluídas, que concentram crianças e, por isso, mais mães-solo (que receberam R$ 1.200).

Comparemos os municípios de Agrolândia e Agricolândia. Parecem parecidos? Na verdade, estão em regiões muito distintas: o primeiro pertence a um dos nossos Estados mais ricos, Santa Catarina, o outro a um dos nossos Estados mais pobres, o Piauí. Para comparar os municípios que têm números de habitantes diferentes, vamos dividir os valores pagos da renda básica emergencial pela população. Em Agrolândia, a mais próspera, o valor recebido por habitante foi três vezes menor do que na prima Agricolândia. Uma desproporção ainda maior se observa entre Água Doce, também em Santa Catarina, e em Água Doce do Maranhão. A transferência por água-docense foi quatro vezes maior no município maranhense.

Nessas cidades em que os trabalhadores não conseguem se inserir no mercado de trabalho nos moldes exigidos pela CLT e Previdência tradicionais, as transferências do INSS são menos relevantes – já que ele gasta mais onde há mais emprego e salários maiores. Por isso, garantir uma Previdência menos desequilibrada e focar recursos na assistência social é tão importante. Chegamos então à minha comparação preferida – e prometo que é a última.

O Bom Jesus gaúcho pertence ao terço de municípios mais ricos do Brasil. Já o Bom Jesus potiguar está entre os 15% mais pobres do País. Na cidade do Sul, a Previdência despende quase R$ 50 milhões por ano. Na cidade do Nordeste, despende cerca de R$ 10 milhões, ou cinco vezes menos. Lembre-se: eles têm a mesma população. E no auxílio emergencial? A situação se inverte. Bom Jesus do Rio Grande Norte recebeu 50% mais do que Bom Jesus do Rio Grande do Sul.

Essa concentração regional da Previdência – e em decorrência da nossa rede de proteção social tradicional – existe porque no Centro-Sul há mais idosos e também mercados de trabalho mais fortes, com mais emprego formal. Já o auxílio emergencial tem como pré-requisito ter renda baixa (o que exclui boa parte das famílias com aposentados e pensionistas) e não ter emprego formal (condição para acessar a Previdência urbana).

Esse grupo é excluído do orçamento da Seguridade Social no Brasil: na comparação com Estados de bem-estar social de democracias desenvolvidas, gastamos muitíssimo menos com benefícios para as famílias com crianças ou políticas de emprego.

Entre outros, um influencer comentou os dados do DataFolha: “Conclusão: o brasileiro é corrupto”. A pobreza extrema no menor nível já registrado. A desigualdade de renda idem. Dezenas de milhões poupados de cair na pobreza, e alguns outros milhões levantados temporariamente dela. O comércio com dados melhores que o da China. O efeito dos R$ 600 na vida dos brasileiros mais vulneráveis é real.

Os desdobramentos do auxílio na popularidade do presidente são um choque de Brasil para tantos que bradavam que os mais pobres eram os prejudicados pela reforma da Previdência urbana ou pela reforma trabalhista. Ao contrário, quem não tem emprego formal pode se beneficiar de mudanças inclusivas nos gastos do governo e na legislação do trabalho.

Mesmo nos últimos meses, a única proposta relevante para aumentar os números insignificantes de emprego formal nos lugares mais pobres do País é a tal carteira de trabalho verde e amarela de Paulo Guedes. A população que agora ficou menos invisível por conta do DataFolha precisa de políticas de emprego e de benefícios robustos voltados às famílias com crianças – não de mais preconceito.

*DOUTOR EM ECONOMIA


O Estado de S. Paulo: Projeto de reforma tributária aumenta impostos pagos por profissionais liberais

Na proposta do governo, os 3,65% pagos atualmente por escritórios de advocacia, contabilidade, assessoria econômica e de comunicação, passariam para uma alíquota de 12%

Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A nova etapa da reforma tributária em estudo pelo governo vai modificar o modelo de tributação de profissionais liberais que prestam serviços por meio de empresas e conseguem receber remunerações em forma de lucro livre do pagamento de impostos. Escritórios de advocacia, contabilidade, assessoria econômica e de comunicação, que hoje pagam alíquota de 3,65% de PIS/Cofins e distribuem cerca de 85% do que faturam sem pagar impostos, estão se mobilizando contra a proposta de criação da nova Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e, principalmente, contra a volta da tributação sobre lucros e dividendos (pagamentos que os acionistas recebem pelo lucro gerado). 

O modelo atual levou à famosa “pejotização”: trabalhadores mais qualificados deixam de ser contratados como pessoa física por uma empresa e passam a prestar serviço como pessoa jurídica. O PJ, pessoa jurídica, paga cerca de um terço, ou até menos, de tributos em comparação a um empregado registrado, mesmo exercendo tarefas idênticas. Para o consultor Thales Nogueira, o fenômeno da “pejotização” contribui para aumentar a desigualdade de renda no Brasil nos últimos anos ao tributar menos quem ganha mais. 

Felipe Santa Cruz
Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da OAB, disse que 'iria à guerra' no Congresso contra a alíquota de 12% da CBS. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

De acordo com os dados mais recentes do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), o porcentual médio de renda isenta dos profissionais liberais chega a 76% entre os advogados, 75% entre economistas, 71,6% entre agentes e representantes comerciais, e 68,6% entre produtores rurais (ver quadro). 

Embora a proposta do governo federal só esteja tratando do PIS/Cofins, a alíquota prevista de 12% é muito maior do que os 3,65% pagos atualmente por esses profissionais. No caso do novo imposto que deve substituir o PIS/Cofins, especialistas ouvidos pelo Estadão lembram que essas empresas poderão usar o crédito que vão gerar ao longo da cadeia produtiva (à medida que forem comprando produtos) para abater no pagamento do imposto, mas quando o serviço for prestado a uma pessoa física (consumidor final), não haverá crédito a ser abatido e, portanto, a carga tributária será mesmo maior.

Arrecadação

Já a retomada da tributação dos lucros e dividendos, que existia até 1996, deve ser incluída na reforma tributária do ministro da EconomiaPaulo Guedes, com o objetivo de aumentar a arrecadação para bancar o novo programa social estudado pelo governo, o Renda Brasil, que deve substituir o Bolsa Família, com um benefício maior e mais famílias contempladas. Essa tributação deve ser progressiva, ou seja, quem distribuir mais lucros, pagará uma alíquota maior – nos moldes do Imposto de Renda. 

Hoje, esses profissionais pagam imposto sobre o lucro da empresa, mas os porcentuais são bastante baixos em função dos regimes simplificados de tributação. “É praticamente um caso de dupla não tributação dos lucros”, diz o economista Sérgio Gobetti, lembrando que o Brasil é um dos poucos países do mundo que isenta os dividendos distribuídos pelas empresas.

As propostas de reforma que estão sendo discutidas na comissão mista do Congresso não alteram a tributação de lucros e dividendos, mas o debate se acirrou na esteira das críticas de profissionais liberais de que haverá aumento da carga tributária com a alíquota mais alta da CBS de 12%. 

O descontentamento foi maior entre os advogados. O presidente do Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil (OAB)Felipe Santa Cruz, chegou a declarar que a entidade “iria à guerra” no Congresso contra a proposta. 

“Os dados da Receita para 2018 mostram que nenhuma ocupação se beneficiou mais do privilégio do que os advogados”, disse Pedro Fernando Nery, consultor do Senado. Segundo ele, com a isenção vigente sobre lucros e dividendos, os brasileiros mais ricos se livram de pagar o imposto de renda sobre a pessoa física. 

O procurador tributário da OAB, Luiz Bichara, rebate às críticas e argumenta que é preciso entender que o uso da sistemática não é uma prerrogativa dos advogados. “O que alguns burocratas entendem por ‘benefício’ nada mais é do que um regime válido para a esmagadora maioria dos empreendedores brasileiros”, diz. 

Perguntas e respostas

1. Como é a tributação hoje?

As empresas são tributas em 34% sobre o lucro auferido. Sócios e proprietários de empresas que recebem dividendos (pagamentos que os acionistas recebem pelo lucro gerado) não estão sujeitos à incidência de IR pessoa física (a alíquota poderia chegar a 27,5% se estivessem). A isenção na distribuição de lucros e dividendos resulta numa baixa tributação dos valores recebidos pelos sócios e acionistas. Em muitos casos, um profissional liberal que receba por meio de uma empresa de lucro presumido (nome dado a um tipo de modelo simplificado em que a empresa estima um lucro com base em porcentuais sobre a receita bruta)é tributado sobre apenas 32% da receita, podendo distribuir todo o lucro sem tributação na pessoa física.

2. Quantas pessoas recebem dividendos no País?

São 3,2 milhões de pessoas, segundo dados de 2018 (o mais atual). 

3. Esses são os PJs?

Eles se confundem. Há empresários, executivos e alguns profissionais liberais que recebem a maior parte dos valores em lucros e dividendos. Mas também há o avanço da “pejotização”, quando um trabalhador se torna prestador de serviço, atuando como pessoa jurídica. Uma coisa é o profissional que é dono ou sócio de empresa, paga aluguel, tem folha de salário, opta por um regime especial e tem parte da renda isenta porque recebe um montante como dividendo. Outra coisa são as atividades de cunho personalístico e que não têm custo. Só o trabalhador travestido de empresa para não pagar imposto.NOTÍCIAS RELACIONADAS


Pedro Fernando Nery: Décadas de vírus

Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa

A cadeirinha no carro. O estado de alerta perto de piscinas. A vigilância com objetos miúdos na boca. O medo da posição errada no sono. Preocupações normais de pais de crianças pequenas. Mas o leitor pode se surpreender ao saber que no Brasil há uma causa de morte prevenível muito mais comum nas crianças de até 5 anos. Oito vezes mais frequente que a síndrome de morte súbita, quatro vezes mais que as mortes por afogamento, o dobro das mortes no trânsito ou por aspiração de objetos. É a morte por diarreia, que só em 2015 vitimou cerca de 2 mil crianças brasileiras na primeira infância.

Uma das fotos mais tristes da atual pandemia é a do fotógrafo Michael Dantas, mostrando um garoto beneficiado por uma campanha de distribuição de máscaras em um bairro pobre de Manaus. A máscara amarela se destaca: além dela o menino veste apenas uma bermuda, cercado por uma água imunda tomada pelo lixo. É de uma ironia melancólica: a máscara para protegê-lo do coronavírus, enquanto segue exposto aos rotavírus, adenovírus, enterovírus, norovírus, sapovírus, astrovírus, calicivírus ou o da hepatite A – além das bactérias e vermes da água escura que cerca seu corpo.

Os dados que abrem esta coluna são de estudo da professora Elisabeth França e outros pesquisadores brasileiros, publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia e financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates. Ele mostra também que houve enorme progresso quanto à morte de crianças por doenças diarreicas desde 1988, apesar desta ainda ser uma das dez principais causas de morte até os 5 anos. Para além do índice de mortalidade, outros estudos mostram o impacto devastador que a falta de água limpa tem nessas vidas.

Como os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento do cérebro, ele é prejudicado pelas doenças da água suja, que afetam a absorção de nutrientes. A ausência de saneamento afetará no futuro desde a altura até as capacidades cognitivas desse cidadão. Pesquisadores chegam a estimar a perda de pontos no QI ou de anos de escolaridade em função das diarreias nos primeiros anos de vida. Para piorar, alguns protozoários e bactérias de água suja podem afetar o desenvolvimento ainda que não causem diarreia. O total do potencial humano perdido não se estima.

No Brasil, quase metade da população não tem serviços de coleta de esgoto e cerca de 35 milhões vivem sem acesso a água tratada. A situação é pior para a população negra e no Norte e Nordeste. A realidade também é dramática nas escolas: 15% nem chega sequer ter banheiro em suas dependências.

Os adultos, evidentemente, também são afetados. A OMS calcula que cada real investido no saneamento economiza quatro reais na saúde. Já o Instituto Trata Brasil projeta bilhões de reais de ganhos no PIB com a universalização do saneamento, decorrentes de aumento da produtividade do trabalho, menos afastamentos, melhora no aprendizado nas escolas – além dos ganhos com valorização imobiliária e turismo. Mas para o instituto, no ritmo atual de investimentos a universalização pode demorar 120 anos.

O marco do saneamento, que passa por idas e vindas desde 2018, pode ir à votação final esta semana. Ele estabelece a universalização até 2033 (ou em determinadas condições até 2040), com competição com o setor privado.

Parte da controvérsia sobre o projeto pode ser visualizada na manifestação de uma deputada que votou contra ele: “Chega a ser um escárnio. Porque o projeto propõe metas para as companhias públicas”. Metas de universalização e quebras de monopólios mobilizam os interesses das corporações dessas companhias públicas, o que explica parcela da dificuldade que a pauta teve em avançar nos últimos anos. O especialista em infraestrutura Claudio Frischtak mostra que de 2014 a 2017, 3 de cada 4 companhias estaduais priorizaram gastos com folha em relação aos investimentos.

Convidado por Bill Gates para contribuir a resolver “o problema do saneamento”, o engenheiro Peter Janicki, bem-sucedido dono de uma empresa que fabrica componentes aeroespaciais, se surpreendeu: “Que problema do saneamento?”. Para parte da sociedade, é difícil conceber que as famílias mais pobres vivam de forma tão diferente da sua. Mesmo entre os ambientalistas parece haver interesse muito maior por pautas mais “instagramáveis”, como a questão da Amazônia.

Se na pandemia debatemos temas do século 21, como a renda básica universal, ainda não superamos um tema dos séculos passados: o saneamento básico universal. Quando o coronavírus passar, milhões de brasileiros pobres continuarão convivendo com doenças infecciosas na rotina de suas famílias. Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa.

*DOUTOR EM ECONOMIA