Pedro Fernando Nery: O auxílio emergencial salva vidas?

Sem o auxílio emergencial talvez tivéssemos vivido a pandemia de forma mais parecida com o México, que não implementou nenhum benefício relevante; lá, como aqui, o presidente minimizou a pandemia.
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Sem o auxílio emergencial talvez tivéssemos vivido a pandemia de forma mais parecida com o México, que não implementou nenhum benefício relevante; lá, como aqui, o presidente minimizou a pandemia

No debate sobre uma nova rodada do auxílio emergencial, tem-se apontado que o benefício teria sido exagerado em 2020. É que ele teria provocado um aumento da renda das famílias mais pobres, ao invés de apenas repor a renda perdida – um exagero que afetaria negativamente a própria economia diante da alta dívida pública. O argumento elide um ponto importante do auxílio emergencial – o seu caráter sanitário. Para além dos dados de renda, devemos nos perguntar: o auxílio salvou vidas?

Na sexta-feira, perguntado sobre a prorrogação do benefício, o presidente da República respondeu “cobra de quem determinou ficar em casa”. O raciocínio não deixa de ser coerente: o auxílio de fato foi concebido para ajudar as pessoas a ficarem em casa. A fala do Presidente ajuda a conjecturar o que teria acontecido sem um auxílio emergencial vigoroso: a perda de renda forçaria as pessoas a circular em busca de uma ocupação.

Além disso, tornaria parte da população um prato cheio para a desinformação. É muito mais fácil acreditar em mentiras no WhatsApp e se indignar contra as medidas de distanciamento quando há o medo de perda de renda na família. Na economia comportamental, chama-se de “viés de confirmação” a tendência que temos de selecionarmos as informações mais convenientes para os nossos valores. 

Outro lembrete do negacionismo de autoridades brasileiras foi dado no domingo, quando o general ministro-chefe da Secretaria de Governo declarou que “o tal do fique em casa foi um erro”. Sem o auxílio emergencial talvez tivéssemos vivido a pandemia de forma mais parecida com o México, que não implementou nenhum benefício relevante. Lá, como aqui, o presidente minimizou a pandemia: neste caso o esquerdista Andres Manuel López Obrador (AMLO), coadunando com a “teoria de ferradura” (que prescreve que extremos do espectro ideológico não se afastam, mas se encontram).

O México, com AMLO e sem auxílio, conseguiu simultaneamente conquistar um aumento expressivo da pobreza e um número elevado de óbitos. A taxa de mortes é de 1.400 por milhão de habitantes, a maior da América Latina. Supera a brasileira de 1.100 por milhão, embora sua população seja mais jovem. A taxa mexicana aqui resultaria em dezenas de milhares de mortes a mais.

De fato, estudo do economista Marcos Hecksher (Ipea) mostra que muitos países da América Latina estão entre os piores do mundo quanto ao índice de mortes na pandemia – quando se pondera pela demografia, mais favorável do que em países com maior proporção de idosos (como os europeus). Entre os vizinhos que desbancam o Brasil, nenhum parece ter instituído proteção social relevante.

Um estudo divulgado no fim de janeiro pelo Instituto de Economia do Trabalho (IZA, da Alemanha) quantificou como na Itália vouchers instituídos na pandemia diminuíram de forma relevante a mobilidade dos cidadãos (Deiana et al., 2021): “programas de auxílio que mitigam a ruptura econômica da pandemia podem fomentar a observância de medidas de distanciamento social, limitando as necessidades de mobilidade de públicos-alvo e nutrindo a crença do público de que a gestão da crise é adequada e justa”.

Poderia se especular que um auxílio emergencial robusto poderia ter o efeito contrário, ao aumentar o poder de compra de tal forma que as pessoas se deslocariam mais para consumir como nunca antes – mas esta evidência não foi colocada. Para outros países, os resultados têm mostrado que mais ajuda é igual a mais isolamento. 

Nos Estados Unidos, identificou-se que as medidas de distanciamento são menos cumpridas pelos mais pobres, e o equivalente do auxílio emergencial lá aumentou o distanciamento social (Wright et al., 2020). Com dados de smartphones, outros pesquisadores chegam a falar em “privilégio do distanciamento social” (Dasgupta et al., 2020). Já a análise de 241 regiões de 9 países da América Latina e na África mostrou que pobreza está associada a maior mobilidade (Bargain e Aminjonov, 2020). 

Por aqui, os psicólogos Jéssica Farias e Ronaldo Pilati, da UnB, aplicaram questionários a mais de 2 mil pessoas para entender os fatores que influenciariam o respeito às medidas preventivas. Em uma exploração inicial, os desempregados e os de menor salário estariam mais inclinados a não respeitar. 

Quanto à renda, o Brasil destoou do resto da América Latina, que observou em maior ou menor grau aumentos da pobreza: aqui, ela caiu por conta do auxílio. Por sua vez, o México ganhou quase 10 milhões de novos pobres – alcançando “níveis alarmantes de insegurança alimentar, particularmente nos domicílios com crianças”, avaliou neste mês o Centro para o Desenvolvimento Global (Blofield et al., 2021)

Se a redução temporária da pobreza é considerada por alguns um retrocesso do auxílio, que o seu impacto potencial sobre as mortes entre em consideração.

*DOUTOR EM ECONOMIA

Privacy Preference Center