Paulo Guedes

Vera Magalhães: Muita espuma ideológica

Sobra retórica e faltam prioridades concretas às vésperas da posse

Desconvite a ditadores de Cuba e Venezuela para a posse, bravatas sobre a revisão das demarcações de terras indígenas, bate-boca com Nicolás Maduro, tititi nos bastidores do Itamaraty, gritaria em torno da tal Escola sem Partido, brigas de hooligans em cerimônias de diplomação em vários Estados.

Algumas das querelas que ocuparam futuros ministros, o próximo presidente da República, diplomatas e os novos (sic) congressistas nas últimas semanas parecem refletir a disputa entre alas de direita e de esquerda em algum grêmio estudantil, e não discussões de um grupo que se prepara para subir a rampa do Palácio do Planalto daqui a menos de dez dias.

Enquanto as alas mais ideologizadas do futuro governo promovem uma versão tosca de reality show com direito a lives nas redes sociais, os dois pilares até aqui sólidos da próxima administração montam times igualmente consistentes para as ambiciosas tarefas que terão pela frente. Mas fica a dúvida: terão Paulo Guedes e Sérgio Moro respaldo do restante do governo e, principalmente, de Jair Bolsonaro, para encaminhar sua pauta com foco, articulação política, prioridade e estratégia diante de tanta espuma que seus colegas e os aliados no Legislativo já deram mostra de que são capazes de produzir?

O segundo escalão do Ministério da Economia é primoroso. Eu, que já questionei a falta de experiência anterior de Paulo Guedes no setor público e sua falta de traquejo verbal para a negociação política, neste caso não tenho reparos: trata-se de uma das equipes mais bem compostas da área econômica nos últimos tempos, aproveitando nomes experimentados e montando uma estrutura que parece altamente capaz de enfrentar, ao mesmo tempo, o ajuste fiscal necessário e o desejado e tão adiado destravamento do crescimento.

Mas os temas econômicos estão tendo menos atenção de Bolsonaro e seu entorno da articulação política, nas manifestações públicas que fazem, que o besteirol ideológico.

Tome-se a tal cúpula conservadora realizada em Foz do Iguaçu há algumas semanas. Ali se gastou mais saliva discutindo ideologia de gênero, o fantasma da volta do comunismo e outras quimeras do que a necessidade de um ajuste liberal de fato na economia. Mesmo no painel dedicado ao tema, um economista da equipe de transição lacrou ao ensinar como berrar na cara de um esquerdista, e não ao aproveitar o evento para deixar claro à plateia conservadora que ou se faz a reforma da Previdência ou já era.

No Itamaraty, o clima de caça às bruxas às antigas gerações e a pregação de um trumpismo cristão se sobrepõem à montagem de uma estratégia moderna, inteligente e sem maniqueísmo que permita ao Brasil se posicionar num mundo que não deixará de ser multipolar e cuja complexidade geopolítica vai muito, mas muito além do que as tuitadas recheadas de mistificação do futuro chanceler sugerem.

Bolsonaro foi eleito prometendo banir o viés ideológico de esquerda da máquina federal, depois de 13 anos de domínio petista. Eis um bom propósito: o aparelhamento, visível desde os primórdios de Lula, com a ascensão novo-rica de uma casta sindical às delícias do poder, foi a gênese da roubalheira que se viu ao longo dos anos.

Mas substituir a ideologização de esquerda por outra igualmente atrasada, jeca e talvez até interessada em aparelhar tudo que houver pela frente não é, decididamente, o caminho para um País que o mesmo PT quase levou à falência.

Que os lacradores deixem Guedes e Moro trabalhar e que Bolsonaro perceba que é no sucesso desses dois, e não nos likes da turba direitista hidrófoba, que mora suas chances de sucesso a partir de 1.º de janeiro.

A campanha já acabou faz tempo.


Elio Gaspari: Paulo Guedes mostrou a faca

Falando a uma plateia de empresários na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, fez o principal pronunciamento político do novo governo: “O Brasil, um país rico, virou um paraíso de burocratas e piratas privados”. Na mesma ocasião, avisou: “A CUT perde e aqui fica tudo igual? Tem que meter a faca no Sistema S também.”

Falou em corda numa casa de enforcados, pois todas as federações das indústrias são alimentadas pelo ervanário que o Sistema S arrecada mordendo as folhas de pagamento das empresas. Em 2017, foram R$ 16,5 bilhões e, na conta de quem entende, pode-se estimar que o desperdício chegue a 30%, com mordomias, obras suntuosas, contratos de consultorias y otras cositas más. Guedes avisou que, com uma boa conversa, esse seria o tamanho do corte. Sem conversa, prometeu uma facada de 50%. Na plateia, riram e aplaudiram.

Por que riram, não se pode saber. Pode ter sido por boa educação, sabedoria, ou ainda porque diante de um ministro que assumirá com plenos poderes, rir é o melhor remédio.

Jair Bolsonaro administrará um país cujo PIB per capita cresceu apenas 1,1% nos últimos 20 anos, e Paulo Guedes promete revolucionar sua economia. Pode-se estimar que ele assumirá o “Posto Ipiranga” com poderes prometidos que só o professor Antônio Delfim Netto teve. Sem o cajado do Ato Institucional nº 5, a caneta de Guedes terá menos tinta que a de Delfim. Mesmo assim, o ex-ministro é um bom mestre. Primeiro, vale visitar sua opinião sobre o empresariado nacional.

“Você tem dois grupos de empresários. O primeiro vem ao teu gabinete e pede redução dos impostos, perdão das dívidas e reserva de mercado. Você manda eles lamberem sabão (versão edulcorada), batem os calcanhares, dão meia-volta e vão trabalhar. O segundo bate os calcanhares, vai para a antessala e pede uma nova audiência. No dia de hoje, as chances de êxito deste grupo podem ser estimadas em 60%.”

Uma parte do pessoal que riu quando Paulo Guedes prometeu cortar 30% do ervanário do Sistema S está no segundo grupo descrito por Delfim. Eles já viram muitos ministros anunciando reformas liberais ou mudanças na caixa do Sistema S e sabem que isso ficou na parolagem. O último foi Joaquim Levy.

A partir do dia 2, Paulo Guedes terá que lidar com as manhas da turma que dá meia-volta e pede uma nova audiência, a ele ou a algum parlamentar que deverá votar as reformas propostas por Bolsonaro. O projeto da dupla ainda é uma salada de frutas, e parte de suas propostas precisará do Congresso. Se eles aprovarem 75% do que pretendem, ainda assim farão uma revolução no capitalismo brasileiro. Se forem travados, terão que se contentar com uma margem em torno de 25%.

Bolsonaro fez uma campanha vitoriosa atacando sufixos como o bolivarianismo, o ativismo e, acima de tudo, o petismo. Daqui a poucas semanas, terá que lidar com os verdadeiros interesses que ora produzem progresso, ora preservam o atraso. Guedes foi bonzinho quando disse que o Brasil “virou um paraíso de burocratas e piratas privados”. Virou?

Na imponente entrada do edifício da Associação Comercial do Rio de Janeiro, há dois grandes bustos. Um é o do Barão de Mauá, o patrono da indústria nacional. Ele faliu. O outro é o do Visconde de Cayru, o primeiro professor de “ciência econômica” do Brasil. Estudou em Coimbra (uma Harvard da época), mas aposentou-se aos 50 anos. Nunca deu uma aula e sua família pediu duas pensões ao Império. Filho de um mestre de obras, nunca produziu um prego.


O Globo: Guedes traça plano para superar ‘armadilhas’ do baixo crescimento

Futuro ministro quer usar reformas e privatizações contra herança de governos que classifica de social-democratas

Marcello Corrêa e Martha Beck, de O Globo

BRASÍLIA - O Brasil é prisioneiro de uma armadilha social-democrata de baixo crescimento. Esse diagnóstico tem sido repetido como um mantra pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Para ele, o país cobra muito imposto e gasta demais enquanto a atividade econômica patina. Coma mesma rapidez, Guedes dá o seu receituário para tirar o país dessa condição. Promete reformas que vão dos ajustes na Previdência a um amplo programa de privatizações. No entanto, a agenda tende a enfrentar resistências, sobretudo no Congresso.

Guedes estabelece como centro desse modelo que provoca baixo crescimento o excesso de gastos obrigatórios. Hoje, mais de 90% do Orçamento federal são fixos, destinados principalmente ao pagamento de benefícios previdenciários e folha de pagamentos. Assim, sobra pouco espaço para investimentos públicos.

‘CHOQUE LIBERAL’
Por isso, Guedes costuma associar o discurso sobre a armadilha a debaixo crescimento a outro bordão, este emprestado do ex-presidente Tancredo Neves: “é proibido gastar”.

O futuro ministro também costuma destacar o gasto com a dívida pública. São R$ 400 bilhões por ano. Para isso, recorre a outra figura de linguagem: diz que o Brasil reconstrói uma Europa por ano pagando juros. Segundo ele, aproximadamente o mesmo valor empenhado no Plano Marshall para recuperar o continente após a Segunda Guerra Mundial. O dinheiro das privatizações de estatais é apontado como solução para essa parte do problema.

Outro braço dessa armadilha é a consequência da bola de neve dos gastos: a carga tributária. Segundo a Receita Federal, os impostos representam quase 33% do Produto Interno Bruto (PIB). Na visão de Guedes, o peso dos tributos é resultado de um Estado grande e ineficiente.

Ao classificar esse cenário como “armadilha social-democrata”, Paulo Guedes faz uma crítica aos governos que o precederam. Social-democracia costuma ser associada a governos que preveem uma rede maior de proteção social, como seguro-desemprego, entre outros. É o PSDB que tem social-democracia no nome, mas o recado de Guedes se estende aos governos do MDB e do PT pós-redemocratização. Na visão dele, apesar das trocas de governo nas últimas décadas, ninguém propôs reformas sustentáveis. Daí a expressão armadilha.

Segundo aliados, o que se espera de Guedes e sua equipe é um “choque liberal”. Em entrevista ao GLOBO em agosto, ainda durante a campanha, o futuro ministro explicou como propõe uma abordagem diferente em relação às estatais: — Um social-democrata diz: ‘Eu gosto de estatais. Uma ou outra eu posso vender’. O liberal-democrata diz: ‘Não gosto de estatais, mas deixo algumas’.

SEM DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
Há economistas que divergem da leitura de Guedes. Ex-vice-presidente e ex-diretor-executivo do Banco Mundial, Otaviano Canuto, refuta os rótulos de social-democracia e de liberal-democracia usados nos discursos do futuro líder da equipe econômica. Canuto aponta que o Brasil é um exemplo de que esse tipo de classificação é reducionista e não mostra um quadro verdadeiro da realidade do país:

—O Brasil é um país social democrata? Levando em conta a carga tributária e os privilégios dados pelo Estado a algumas categorias, pode até se pensar assim. Mas é um país que não distribui renda de forma efetiva. Quando se olha a área fiscal, o país tem um sistema que é um Robin Hood às avessas. Economista que coordenou o programa de privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, Elena Landau diz que social-democracia é uma definição que economistas de perfil liberal como Guedes gostam de usar para definir governos de esquerda. Mas, assim como Canuto, ela destaca que os dois lados têm pontos em comum:

— Todo mundo é a favor de reforma da Previdência e de abertura comercial.

Ainda não está claro quais serão exatamente as medidas adotadas por Guedes no governo para sair do que ele chama de armadilha. A reforma da Previdência é prioridade, mas ainda não são conhecidos os detalhes de sua proposta e a estratégia para passá-la no Congresso. A venda de estatais é apresentada com um potencial de R$ 800 bilhões, mas há resistência às privatizações da Petrobras e de bancos públicos.

Em outra frente, a equipe de transição analisa uma série de propostas da equipe do atual ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, para reduzir gastos com pessoal. Técnicos da Fazenda prepararam estudos para uma revisão das carreiras do funcionalismo, que deve ser abraçada pelo futuro governo, e restrição de acesso a benefícios como o abono salarial, hoje pago a todos que recebem até dois salários mínimos.


Adriana Fernandes: Fogo amigo

Apesar do discurso reformista, presidente e auxiliares põem obstáculos à Previdência

Faltando menos de um mês para o fim da transição, é nítida a dificuldade que o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, enfrenta para colocar as reformas na agenda política do governo Jair Bolsonaro e dos seus aliados no Congresso Nacional.

Os obstáculos têm sido colocados até mesmo pelo próprio presidente eleito e seus auxiliares mais próximos, apesar do discurso público reformista. É o velho fogo amigo alimentado por falas desencontradas em torno da reforma desde o primeiro dia da transição, logo após a vitória nas eleições. Tudo ainda de forma muito discreta.

Guedes reconhece que precisa de apoio amplo à reforma e, nesse caminho, reforçou tecnicamente a sua equipe para a elaboração de uma nova proposta a ser encaminhada em março do ano que vem ao Congresso. Previdência, Previdência, Previdência é o seu discurso a todos que conseguem uma hora na sua atribulada agenda.

Não foi à toa que o novo ministro repensou a estrutura do seu superministério e criou mais uma secretaria para abrigar o deputado tucano Rogério Marinho (RN) para cuidar da proposta de mudanças nas regras de aposentadoria. A ideia inicial era que a Previdência ficasse no guarda-chuva da Secretaria Especial de Arrecadação sob o comando do economista Marcos Cintra.

Mas, diante das barreiras políticas e aconselhado por amigos, ele mudou de ideia para fortalecer a parte negociadora da proposta.

Marinho fará dobradinha técnica com Leonardo Rolim, experiente consultor técnico da Câmara dos Deputados, especialista em Previdência e profundo conhecedor do modus operandi das negociações parlamentares. Depois de anunciado seu nome, Marinho veio a público logo para marcar posição e dizer que a expectativa é de que reforma será aprovada no primeiro semestre.

Com a escolha de um político para sua equipe técnica, fica claro que o ministro não quer ficar nas mãos dos futuros articuladores políticos palacianos, que têm titubeado em torno da necessidade de dar prioridade máxima à aprovação da reforma.

Relator da polêmica reforma trabalhista, Marinho não foi reeleito e leva para o time de Guedes um papel importante de negociador, tarefa que o futuro ministro e seus principais aliados ainda não conseguiram azeitar em meio à pressão dos partidos para ocupar cargos nos ministérios, bancos públicos e nas empresas estatais.

Como o toma lá, dá cá não acaba com uma simples canetada, a pressão política da hora vem do Partido Progressista (PP). De fora da rodada inicial das conversas dos partidos com Bolsonaro, o PP ajudou na articulação das pautas bombas e segurou a votação do Orçamento de 2019. A apreciação do projeto ainda corre risco de ficar para o próximo Congresso em meio à queda de braço pelas disputadas emendas parlamentares. Um jogo em que os interesses do velho e do novo Congresso se misturam, e é possível encontrar aliados de Bolsonaro nos dois lados: entre deixar ou não o Orçamento para a nova legislatura que começa em fevereiro.

Funcionalismo
Se não bastassem as resistências à agenda reformista, o boicote dos procuradores da Fazenda Nacional à indicação do diretor do BNDES, Marcelo de Siqueira, para comandar o órgão é um sinal forte de que o futuro do ministro não terá vida fácil na relação com as carreiras de servidores mais influentes da Esplanada dos Ministérios.

Ao trazer a área de pessoal do atual Ministério do Planejamento para o novo superministério da Economia, Guedes vira alvo preferencial de pressão das lideranças do funcionalismo público federal. Serão 267 sindicatos que representam 309 carreiras de servidores do Executivo batendo na porta de Guedes.

Os procuradores ameaçam entregar os cargos de chefia e cobram a indicação de um nome da carreira para o comando da PGFN, órgão de assessoramento jurídico e cobrança das dívidas que a União tem a receber.

Com a equipe de transição promovendo mudanças na configuração dos ministérios, fazendo fusões e extinguindo pastas ministeriais, as carreiras estão agitadas. Um verdadeiro formigueiro se formou. Auditores fiscais do trabalho querem se acomodar na Receita Federal. Em contrapartida, como reação aos auditores, agora os servidores federais da Superintendência de Seguros Privados querem se abrigar no Banco Central. Sem contar a insatisfação de categorias ligadas à segurança com o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, que esta se cercando só de delegados na sua pasta. A confusão está instalada e só começando.


Míriam Leitão: Tarefas difíceis na economia

Equipe econômica do futuro governo ainda trabalha com a ideia de aprovar a reforma da Previdência que já está em tramitação no Congresso

O presidente Jair Bolsonaro, diplomado ontem, terá de enfrentar batalhas duras na economia. A primeira delas será a reforma da Previdência. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu várias vezes, mesmo antes de integrar a campanha de Bolsonaro, que o Congresso aprovasse a proposta do presidente Temer. E continuou repetindo que era melhor aproveitar o texto que já está em tramitação. É com essa ideia que ainda se trabalha na equipe econômica do novo governo. Mas não será só isso.

Ao mesmo tempo, o futuro governo prepara outra reforma mais ampla e com transição para o regime de capitalização. A ideia não é aprovar só a idade mínima num primeiro momento e, depois, ir votando aos poucos os novos parâmetros. Há entendimento de que isso levaria ao risco de uma contrarreforma. O que se defende é que a atual proposta seja apenas o começo de uma mudança mais profunda do sistema de pensões e aposentadorias do país.

Ainda não se sabe qual será o custo desta transição de um regime da repartição, como é atualmente, para o de capitalização, que é o que será sustentável no futuro. No estudo feito pelo economista Armínio Fraga, entraria em vigor apenas para os que nasceram a partir de 2014. No futuro governo, há quem defenda que esteja disponível bem antes.

Paulo Guedes, durante a campanha, usou a expressão de “avião em queda” para explicar o que pensava sobre o atual sistema. A reforma proposta pelo atual governo serviria apenas para retardar a queda. Ou seja, ela precisa se sustentar até que uma nova previdência, de contas individuais, esteja disponível. O desafio será evitar que o avião fique sem combustível mais cedo, porque a capitalização fará com que os que entrarem no mercado de trabalho a partir do início do novo modelo deixem de contribuir para o regime de repartição.

Se quiser uma mudança rápida para a capitalização, o futuro governo terá que conseguir outra fonte de financiamento para a Previdência. E isso encomenda mudanças na área tributária. Nada fica em pé, contudo, se não houver a aprovação da primeira das reformas, a que já está no Congresso e que cumpriu etapas importantes de tramitação. Durante a primeira fase da transição foram feitas declarações conflitantes sobre o assunto tanto pelo presidente eleito quanto pelo futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Mas na equipe que trabalha preparando o novo governo há diversos estudos sendo feitos. Eles convergem para uma estratégia em vários passos. Algumas mudanças infralegais poderão ser feitas num primeiro momento, até que o novo Congresso tome posse. A reforma do atual governo deve ser aproveitada e uma mudança mais ampla está sendo formulada.

Tudo dependerá, contudo, da capacidade de articulação no Congresso, porque todas as tarefas que precisam ser cumpridas na economia são difíceis. O teto cria um limitador para as despesas que a qualquer momento pode ser estourado. E o que se fará neste caso? Se a futura equipe econômica aceitar simplesmente ampliar o teto estará perdendo credibilidade.

Mas, para não ampliar o teto, terá que reduzir despesas. Isso é impossível num país com tanta rigidez orçamentária. Por isso, a proposta que tem sido defendida por integrantes do futuro governo — inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, na entrevista que me concedeu na semana passada — é a de buscar mais flexibilidade no Orçamento.

Apesar de isso dar mais autoridade ao Congresso, que passaria pela primeira vez a formular a destinação dos recursos, haverá uma forte oposição ao que se convencionou chamar de “Orçamento base zero”. O problema é que, se as despesas permanecerem indexadas, o desequilíbrio aumentará. Além disso, outra urgência espera o novo governo na área econômica: a crise fiscal dos estados e municípios.

Paulo Guedes sempre defendeu a descentralização de recursos, por isso, quando ele falou recentemente em dividir parte da arrecadação do leilão das áreas da cessão onerosa do pré-sal era a essa ideia que se referia. Só que isso foi visto dentro da atual equipe econômica como um risco de estimular gastos em vez de sinalizar para a necessidade de ajuste. Além de não haver tarefas fáceis na economia, uma mudança levará à outra. Por isso a prioridade terá que ser a sucessão de reformas. Ou isso, ou a economia continuará em crise.


Julianna Sofia: É horrível ser trabalhador no Brasil

Com FAT e FGTS nas mãos, Guedes deve inovar no uso de dinheiro do trabalhador

O futuro governo de Jair Bolsonaro fatiará tal qual um salame o quase secular Ministério do Trabalho. As rodelas graúdas e cobiçadas ficarão sob a aba do poderoso Paulo Guedes (Economia), restando a Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) e Osmar Terra (Cidadania) administrar os nacos menos apetitosos — registro sindical e economia solidária, respectivamente.

A emissão das cartas sindicais virou caso de polícia e faz sentido remeter a tarefa à alçada de Moro.

O envolvimento de parlamentares, políticos e burocratas do Ministério do Trabalho em um esquema de propina para liberação de registros para sindicatos foi desvendado pela Operação Espúrio, que já mandou para o banco dos réus peixes grandes como o ex-deputado Roberto Jefferson.

Ainda está indefinido se o ex-juiz herdará também o combate ao trabalho escravo, tema controverso numa gestão em que a ascendência da bancada ruralista será inquestionável. Há chance de a fiscalização desse tipo de atrocidade ficar com Guedes.

Duas joias da coroa do reinado trabalhista, o FGTS e o FAT —donos de um patrimônio calculado em R$ 800 bilhões— foram estrategicamente capturadas pelo czar da economia bolsonarista. Não é de hoje que sucessivas equipes econômicas tentam inovar no uso desses fundos, que asseguram aos trabalhadores benefícios como seguro-desemprego e abono salarial, além de acesso a habitação popular e saneamento básico.

Guedes terá franco acesso a essas poupanças. No receituário, há propostas para extinguir o abono e usar o FGTS num sistema complementar ao seguro-desemprego. Isso reduziria o gasto do Estado com essas despesas —R$ 60 bilhões/ano. Outra ideia é usar até 25% dos depósitos do fundo de garantia na capitalização de contas individuais dentro de um novo modelo previdenciário.

Num país com 12,3 milhões de desempregados e taxa decrescente graças à destruição de vagas formais, a revolução liberal causa arrepios. Não está horrível apenas para patrões o Brasil dos dias atuais.


The Intercept Brasil: Negócios multimilionários na “Escola sem Partido”

Não há apenas ideologia de ultra-direita por trás da proposta. Se aprovada, ela será um maná de dinheiro para certas escolas e editoras de livros didáticos. “Investidor”, Paulo Guedes será um dos beneficiados

Por Amanda Audi, do The Intercept Brasil

Jair Bolsonaro não poderia ter escolhido um comandante para o Ministério da Educação mais alinhado ao que defende para o setor. O colombiano naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodríguez acredita que o sistema de ensino estaria contaminado por uma “doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista” e “destinado a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade”.

Caberá a ele definir prioridades para um orçamento de mais de R$ 120 bilhões, o terceiro maior da União (atrás de Desenvolvimento Social e Saúde), e discutir temas que são caros ao presidente eleito e seus apoiadores, mas que estão longe de consenso na sociedade e no meio político – como a Escola sem Partido.

Indicado pelo filósofo de extrema direita Olavo de Carvalho, Rodríguez é professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em seu blog pessoal, ele publicou, antes de ser confirmado no cargo, um “roteiro para o MEC”, no qual defende que a educação seja recolocada “a serviço das pessoas” e não para “perpetuar uma casta que se enquistou no poder”. Ele também chama o golpe militar de 1964 de “intervenção” e acha que o Enem é “instrumento de ideologização”. Em outra postagem, de setembro de 2017, opinou sobre o projeto Escola sem Partido: “uma providência fundamental”.

Mas não é só uma questão ideológica. O projeto Escola sem Partido, uma lei que propõe abordagens “neutras”, como tratar a ditadura militar brasileira como “contra-revolução democrática de 31 de Março de 1964″, e sem educação sexual para livrar salas de aula de “doutrinação de esquerda”, também envolve dinheiro. E alguns dos mais interessados estão justamente na base do presidente eleito.

As propostas de Bolsonaro para a Educação valorizam o ensino privado, em que temas como a Escola Sem Partido acabam tendo mais entrada, já que as instituições ficam mais livres para desenharem seus currículos educacionais ao sabor do mercado. Já foi anunciado que haverá corte de recursos para universidades públicas, e a equipe analisa a cobrança de mensalidade em instituições federais e a distribuição de “vouchers” para alunos de baixa renda estudarem nessas instituições. O próximo governo também quer priorizar o ensino à distância, considerado mais barato que o convencional. Bolsonaro já defendeu o ensino privado e à distância como forma de combater o “marxismo”.

Se for aprovado, além de satisfazer a onda conservadora que varre o país, o Escola Sem Partido também será uma ótima oportunidade de negócio para empresas de educação, sejam elas escolas ou editoras que imprimem livros didáticos. Publicações e currículos terão de ser reescritos, e quem se adiantar ao projeto larga em vantagem.

Um dos principais beneficiados com o projeto é o seu guru da Economia, Paulo Guedes. Nos últimos anos, o Posto Ipiranga do novo presidente teve como foco de investimento justamente o setor de educação particular, que agora deve florescer.

Os negócios em educação de Guedes podem lucrar em duas frentes: com o reforço da educação privada e com as mudanças que podem ocorrer nos próximos anos com o Escola Sem Partido.

Na Bozano Investimentos, ele investiu em grupos de escolas, universidades e editoras de livros escolares, prevendo que o ensino particular iria trazer maior retorno. As empresas que fazem parte da cartela da Bozano reúnem, hoje, centenas de milhares de estudantes. O bom desempenho garantiu retorno financeiro à Bozano (e, por consequência, a Guedes).

Um deles é o autointitulado maior grupo educacional do mundo – o Kroton. Ele alcançou a posição após comprar a Somos Educação. Esta, por sua vez, cresceu vertiginosamente nos últimos anos. Para isso, recebeu ajuda: investimentos da empresa de Guedes.

Não fica claro quanto, exatamente, foi parar no bolso do economista. Os balanços operacionais da Bozano foram retirados do site recentemente. Mas, se as empresas investidas têm lucro, os fundos de Guedes recebem mais dinheiro, e uma parte é dividida entre os sócios.

Para se ter uma ideia, em 2012, quando entrou no fundo BR Educacional, uma gestora de ativos pertencente a Guedes, o grupo Anima projetou que passaria de 42 mil para 100 mil alunos. Foi o que aconteceu. No balanço de resultados deste ano, o grupo apontou ter chegado aos 97,9 mil estudantes. O lucro bruto, no primeiro semestre deste ano, foi de R$ 246 milhões contra R$ 70 milhões no começo de 2012. O MPF está investigando o fundo por suspeita de irregularidades na gestão de dinheiro de fundo de estatais.

Curiosamente, no mesmo texto em que traça um “roteiro para o MEC”, o novo ministro da Educação critica empresas financeiras que, “através de fundos de pensão internacionais, enxergam a educação brasileira como terreno onde se possam cultivar propostas altamente lucrativas para esses fundos”. Resta saber se ele será tão duro assim com os negócios de Guedes, seu colega de primeiro escalão.

Lobby no Congresso

Não é só Paulo Guedes que tem interesse no Escola sem Partido. Um dos autores do projeto de lei sobre o assunto na Câmara, o deputado Izalci Lucas, é um velho defensor do ensino particular. Ele diz, no projeto, que a “ideologia de gênero” estaria sendo usada em sala de aula para destruir famílias. Izalci foi eleito para o Senado e já declarou apoio a Bolsonaro. Ele é presidente do PSDB do Distrito Federal e integrante da bancada da Bíblia.

Izalci ainda consta como sócio de instituições de ensino em Brasília, apesar de alegar que se afastou dos negócios quando entrou na política. Ele também já foi presidente do sindicato do setor duas vezes. Enquanto líder sindical, criou o Cheque Educação, que oferecia descontos de até 50% na mensalidade de universidades particulares para estudantes de baixa renda – proposta muito parecida com o voucher de Guedes. Uma de suas propostas de lei pede isenção de impostos para instituições de ensino privadas.

Em 2014, a sua campanha à Câmara foi financiada por grandes grupos educacionais. As doações somaram R$ 218 mil, cerca de um quarto do total arrecadado por ele na época. A prestação de contas da campanha de 2018 ainda não foi divulgada.

O projeto Escola sem Partido ainda deverá ser aprovado no plenário da Câmara e do Senado. Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal pode decidir sobre uma lei do Alagoas semelhante à Escola sem Partido. Mesmo valendo apenas para o estado, a decisão irá firmar a posição da Corte sobre o assunto.

Se não for à votação este ano, a partir de 2019 o trâmite será facilitado, pois o PSL, partido de Bolsonaro, terá a segunda maior composição da Casa. Foram eleitos notórios apoiadores da medida, como Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Kim Kataguiri, que trabalharão para ela ser aprovada.

No ano passado, a ONU manifestou preocupação com a proposta. Relatório enviado ao governo brasileiro diz que a proposição permite “alegar que um professor está violando as regras pelo fato de autoridades ou pais subjetivamente considerarem a prática como propaganda político-partidária”, e poderá retirar das salas de aula “discussões de tópicos considerados controversos ou sensíveis, como discussões de diversidade e direitos da minorias”.

Dos 45 deputados que integram a comissão especial na Câmara, a maioria (23) pertence à bancada evangélica. O presidente, Marcos Rogério, do PDT de Rondônia, se diz defensor dos “valores da família e princípios cristãos”. Os primeiro e segundo vice-presidentes são pastores evangélicos.

O relator do projeto na comissão, deputado Flavinho, do PSC de São Paulo, diz em seu parecer que é possível que uma criança mude de sexo por influência dos professores. O texto foi chamado de “brilhante” por Miguel Nagib, procurador de São Paulo que criou uma empresa e uma associação com o nome Escola sem Partido. Ele dá palestras sobre o assunto pelo país, e lucra com isso.

A bandeira também é defendida publicamente por grupos neoliberais como o Movimento Brasil Livre e o Revoltados Online – este último tem como uma de suas coordenadoras uma cunhada de Nagib.

Sem partido mas com a conta cheia

No mercado editorial, há expectativa entre as editoras de material didático de que sejam aplicadas regras da Escola sem Partido no próximo edital para compra de livros didáticos (o governo é o maior comprador), de acordo com Carlo Carrenha, editor e fundador do Publishnews. Algumas se adiantaram e já estão adaptando os materiais, numa espécie de autocensura. “Tenho ouvido de escritores e ilustradores que não pode mais aparecer criança nua tomando banho, por exemplo. Isso seria pornografia’”, afirma Volnei Canônica, especialista em literatura infantil e diretor do clube de livros Quindim.

A professora Fernanda Moura, que estudou o Escola sem Partido para a dissertação de mestrado, defende que o movimento é moralista na aparência, mas esconde interesses econômicos. A ideia é criar pânico, como se os estudantes realmente estivessem aprendendo sobre socialismo e educação sexual de forma inadequada. “Assim, aumenta-se o mercado para materiais didáticos e aulas prontas, e também a demanda por matrículas em sistemas particulares de ensino nos quais os professores têm autonomia extremamente restrita”, afirma.


O Estado de S. Paulo: Presidencialismo de coalizão ‘não vai acabar’, avisa sociólogo

 Mas o que Bolsonaro quer é enfraquecer caciques nos partidos e acabar com a ‘porteira fechada’ para as nomeações, avisa o sociólogo Murillo de Aragão

Sonia Racy/Direto da Fonte, de O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro toma posse daqui a 29 dias “com uma base completamente diferente e uma agenda nova” mas continuará precisando de apoio para aprovar seus projetos. “Isso significa que o governo de coalizão não vai desaparecer. Mas as conversas decisivas passam a ser com bancadas, e não com lideranças partidárias tradicionais”, enfatiza o cientista político Murillo de Aragão nesta entrevista a Gabriel Manzano.

A agenda do presidente eleito, nesta semana, inclui reuniões com cerca de 100 parlamentares das principais legendas, em Brasília, “e isso mostra que os partidos não serão abandonados”, destaca o analista. “O que está saindo de cena, sim, é o controle de lideranças do Congresso sobre nomeações. O que acaba é o critério de porteira fechada”.

Doutor em Ciência Política e Sociologia e dono da Arco-Advice, que faz pesquisa e análise de políticas públicas em Brasília, Aragão já começa a preparar sua viagem a Nova York – onde todo início de ano, em janeiro e fevereiro, dá aulas de política brasileira na Universidade de Columbia. No seu balanço sobre o que muda e o que fica na cena política do País com o novo presidente, ele destaca: “Teremos um governo que vem com a chancela da Lava Jato”. E que traz “não só uma renovação de pessoas, mas também de costumes”.

Como explicar uma transição tão tranquila depois de se falar tanto em “ruptura” com o que havia antes?
Temos de fato uma transição muito positiva. Para começar, não há uma incompatibilidade ideológica entre o governo que sai e o que entra. Há uma continuidade na economia e nada do atrito que aconteceu na passagem de Dilma Rousseff para o Temer. Naquela ocasião não houve a menor boa vontade de se passar informações.

Mas há diferenças claras. Quais destacaria?
Primeiro, Bolsonaro chega com uma base política completamente diferente da que havia e que era a tradicional do meio político brasileiro. Segundo, agora há um viés ideológico – não chega a ser conflito, mas é algo mais à direita do MDB histórico. Terceiro, ele traz muitos quadros que não eram do círculo de poder, gente outsider ou do baixo clero. Por fim, um quarto ponto, essencial: vem com a chancela da Lava Jato. De certa forma, diria que este “é” um governo da Lava Jato. Se essa operação do MP e da PF atrapalhou os governos Dilma e Temer, agora ela vai ajudar o governo Bolsonaro. É uma diferença devastadora. E tem mais: o que veremos agora será um governo dialogando não com partidos, mas com bancadas. Esses pontos não são padrão na nossa história parlamentar.

Diria que o presidencialismo de coalizão está no fim?
Não, não vejo assim. O presidencialismo de coalizão no Brasil não vai acabar por causa do modo Bolsonaro de governar. Eles vão precisar de coalizões para aprovar projetos e emendas importantes. Como não temos um partido com maioria absoluta em ambas as casas, a criação de uma base torna a negociação inevitável. O que há de novo nessa relação é o esvaziamento do poder dos caciques tradicionais. E, junto a isso, o fim da fórmula “porteira fechada” para nomeações. Resta saber se vai funcionar, né?

Bolsonaro reúne-se nos próximos dias com cerca de 100 parlamentares dos principais partidos. Não lhe parece que é “mais do mesmo”?
Não me parece. Imagino que as pautas não terão conexão com interesses dos partidos. O que se percebe é que o presidente quer conexão direta com o Congresso, mostrar que os políticos não serão abandonados. Claro, essa iniciativa ajuda a bloquear algum movimento – já se falou nisso… – para isolar o PSL nas duas casas.

O governo FHC, nos anos 90, dialogava com bancadas…
Mas havia menos partidos do que hoje. E quem agrega votos, hoje? São as bancadas. Há dezenas delas – as mais organizadas são a ruralista, a evangélica, a de segurança pública, a da saúde e a dos funcionários públicos. Algumas vezes elas superam o poder de mobilização das lideranças partidárias. Manter a ligação com elas vai ser um fator decisivo.

A conversa constante com o Legislativo exige pragmatismo, concessões. O risco de atritos vai fazer parte desse jogo, não?
Apesar de o apoio popular ao eleito ser relevante, esses riscos não podem ser desprezados. O apoio de bancadas é um bom ponto de partida mas talvez não seja suficiente. Os partidos vão continuar decidindo na divisão dos cargos das mesas diretoras e das principais comissões técnicas. Aí, se o governo não estiver bem articulado com sua base política poderá ter surpresas. Exemplo: setores do atual Centrão podem se aliar ao PT para reagir a essa estratégia, visando construir certa autonomia nas duas casas. Ou seja, o Executivo terá que demonstrar perícia na coordenação dos grupos.

Você falou, anteriormente, num custo e curva de aprendizado da nova equipe. O que quer dizer?
Que eles vão pagar o preço da inexperiência. Novo governo pressupõe novo modelo de diálogo, nova organização do Executivo, dos ministérios, trazendo gente de fora do sistema… O governo terá que aprender. A Dilma Rousseff, por exemplo, nunca aprendeu.

Além disso a equipe é diversificada, não? Os estilos de Sergio Moro, Hamilton Mourão, Paulo Guedes ou Ernesto Araújo não chegam a ser harmônicos…
Sim. E outro ponto é que o governo vem com bandeiras quentes da campanha eleitoral que agora terão de ser transformadas em políticas concretas. Custo e curva de aprendizado são exatamente isso. Transformar intenções em realidades.

E quanto ao presidente? Ele tem um currículo político discreto, mas ao mesmo tempo é focado, sabe o que quer. Como será esse encaixe entre o que ele tem para dar e o que o País precisa?
Apesar de não ter sido um político do alto clero, Bolsonaro sempre teve uma identificação com seu eleitorado – tanto que retornou seguida vezes ao mandato no Congresso. Foi fiel a esse eleitorado e este lhe deu a base para chegar à Presidência. Ser do baixo clero não significa incompetência, significa apenas que ele não entrava no jogo das lideranças. E, como ressaltei, sua atuação é, de certa forma, ligada à Lava Jato – afinal, ela esvaziou um sistema político e com isso inviabilizou qualquer candidatura do establishment. Agora, ao virar presidente, ele assume uma postura mais prudente. Aquela testosterona toda que exibiu na campanha vai dando lugar a coisas mais pragmáticas.

Por exemplo?
Ele quer manter um controle bem próximo de duas questões fundamentais. A primeira, a fiscal, que é gravíssima, principalmente nos Estados e municípios. A segunda, a da segurança pública. Nesse sentido, ele quer empoderar dois núcleos do poder, Paulo Guedes e Sergio Moro. Vamos ver se o modelo dará resultado. Ele busca um comando bastante próximo, para jogar junto.

Há quem ache suspeita a apregoada renovação do Congresso, dizendo que ele é sempre o mesmo no controle de seus espaços.
Essa renovação do Congresso é um fenômeno vinculado à rotina política anterior. Mas o fator Lava Jato significa alguém no Ministério da Justiça avisando: “Olha, as regras de comportamento são outras agora”. O novo Legislativo vai se dar conta de que o jogo mudou.

Naquele ambiente de luta por verbas, por votos, por cargos, o que significa “mudou”?
Que não é só uma renovação de pessoas, mas também de costumes. Essa eleição traduziu o resultado de uma tomada de posição da sociedade. O eleitorado foi buscar um candidato de fora do establishment político – também no caso de alguns governadores e muitos deputados – e espera deles um novo tipo de comportamento. Esse é o primeiro ponto. O segundo é saber se esse Congresso vai ser reformista. Cabe lembrar que, de um modo geral, o Legislativo tem sido, sim, reformista.

Faz parte desse cenário uma esquerda fazendo o que gosta – oposição – e o PT tentando se reerguer. Que força a oposição poderá ter?
O primeiro ponto a mencionar é que a esquerda brasileira é arcaica, uma esquerda do século 20 – mais na sua primeira metade –, que enveredou pelo populismo, o clientelismo, o ideologismo… O PT deixou-se contaminar por isso tudo. Numa visão ideal, eledeveria fazer a autocrítica dos erros que praticou, entender a necessidade de o Brasil ter um ambiente progressista para os negócios, não só em direitos e garantias, mas também na geração de empregos, de negócios, como os outros países são. E que, para o bem do País, não atuasse de forma radical contra o debate das reformas. Mas o que foi que vimos? Que eles jogaram todas as cartas na “hipótese Lula”. Não deu certo. Antagonizaram-se com outras forças de esquerda e o que temos hoje é uma profunda desconfiança entre os três principais blocos dessa área – PT, PSB e PDT.

E ainda vão enfrentar a raiva do Ciro Gomes pelo caminho…
Sim, e o que o Ciro e o Cid Gomes fizeram é a prova disso. Deram o troco por tudo o que o PT lhes fez. Agora o partido terá de se reinventar para não se transformar num partido menor. Mas essa reinvenção é dramática. O PT se transformou numa religião e quebrar dogmas é muito complicado.

Você preside o Conselho de Comunicação Social do Congresso. O que será da comunicação no novo governo?
O governo Temer conseguiu avançar numa significativa agenda de reformas, mas teve uma trágica gestão na comunicação. Bolsonaro usa bem as redes sociais, mas comunicação é bem mais que imprensa e redes sociais. Exige visão estratégica, manter a população informada e uma base de sustentação mobilizada. Um exemplo: a reforma da Previdência tem de ser encarada como uma questão política, fiscal, social e de comunicação. Sem comunicação eficiente, ela não passará.


Luiz Werneck Vianna: Bye bye, Brasil?

Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve

Bye bye, Brasil, querem nos embarcar para uma terra nova – por ora, está difícil de evitar – sem reinações de Narizinho, sem Jubiabá, sem um catolicismo gordo e compassivo, sem o culto da cordialidade, sem o jagunço do Euclides da Cunha e os retirantes de Graciliano, o abolicionismo do Nabuco, sem Gilberto Freyre, sem a Coluna Prestes, até sem a Petrobrás e o Banco do Brasil, sair assim, com as mãos abanando e as cabeças vazias. O embarque deve ser imediato, para que nós, que mal conhecemos o liberalismo, num país onde jamais o capitalismo foi uma ideia popular, passemos direto ao neoliberalismo e ao culto da teologia da prosperidade, glória a Deus.

Cirurgia de tal envergadura não é obra solitária, ela foi concebida durante décadas com argumentos vindos de vários setores da vida social, inclusive do PT, que desde suas origens investiu contra a tradição republicana brasileira e o centro político que a encarnava, tal como no episódio famoso, ocorrido em pleno regime militar, em que sua principal liderança declarou que o principal inimigo das classes trabalhadoras era a CLT, e não o AI-5, vindo a sustentar um sindicalismo de resultados em oposição às antigas lideranças sindicais, em boa parte tradicionalmente associadas ao centro político. Em outro momento, com Lula candidato em segundo turno à sucessão presidencial vencida por Collor, seu partido recusou a participação em seu palanque de Ulysses Guimarães, um dos grandes próceres do nosso liberalismo político, como antes declinara assinar a Carta de 88, obra, no fundamental, do centro político, sob a inspiração desse mesmo Ulysses, que a apresentou ao mundo com palavras memoráveis.

A desconstrução do centro político contou com a ação de outros personagens, como setores das elites originárias da dimensão do mercado, desde sempre, tal como no caso da sua acirrada oposição, nos anos 1930, à legislação social, refratária à regulação pelo direito da vida social e ao embrião de social-democracia admitido pela Carta de 88. E mais recentemente, pela ação do Ministério Público, que interpretou em chave salvacionista a luta justa e necessária contra a corrupção sem atentar para as suas consequências e sem discriminar alhos de bugalhos, comportando-se como um macaco solto numa loja de louças, com o que levou à lona a sua representação política.

Estamos em pleno mar, navegando com mapas incertos e pilotagem inexperiente, ela própria sem saber para onde nos quer levar. Os quadros econômicos selecionados pelo governante eleito, os principais formados na ortodoxia da Escola de Chicago, com seus compromissos conceituais e práticos com os processos de globalização, inarredáveis na medida em que correspondem a movimentos seculares das coisas pertinentes à economia mundo, ao menos desde as grandes navegações empreendidas pelo Ocidente – nossa Ibéria à frente –, em suas cabines de comando já se encontram contestados pelo trumpismo do futuro chanceler Ernesto Araújo. A bússola deve estar apontada para qual destino: o da globalização ou o da denúncia do globalismo?

Ruma-se para qual direção, a da autarquia e a do nacionalismo (isso com a turma do Paulo Guedes?), que, na linguagem de Trump, significa America first, atrelando nossa pobre carroça aos objetivos imperiais do presidente americano, que se deixou embair pela anacrônica guerra de civilizações ideada por Samuel Huntington?

Logo nós, que não viemos da matriz anglo-saxônica, mas da ibérica, e somos da família dos bandeirantes, e não da dos pioneiros, para lembrar as antigas lições de Viana Moog; nós, que seguimos a estrada universal em direito do sistema da civil law, esta, sim, entranhada na História do Ocidente, ao contrário do sistema da common law, que Hegel, por exemplo, não reconhecia como filho da razão, e sim do casuísmo de uma cultura singular, sem protagonismo, portanto, na marcha do espírito com que a criatura buscava seu encontro com seu Criador. O Ocidente é uma criação europeia e é aí que nós, os americanos, como reconheceram os fundadores da grande República do Norte, cultores dos autores do Iluminismo nos Federalist Papers, estamos instalados, não se podendo omitir, no caso brasileiro, a criação do seu Estado pelo herdeiro de uma dinastia europeia.

A metafísica rústica dos ideólogos do trumpismo, como o célebre personagem de Voltaire, ignora a sociologia do risco, tão bem estudada pelo sociólogo Ulrich Beck, na crença ingênua de que tudo no mundo se encaminha no sentido da sua melhor solução. Nosso planeta não conheceria uma crise ambiental, em que pesem os alarmes emitidos pela comunidade dos cientistas, inclusive da Nasa, uma agência americana de indiscutida legitimidade científica, acerca dos dados que se acumulam sobre os perigos do aquecimento global. A crer no que enuncia uma parte dos nossos futuros governantes, o desmatamento da Amazônia em nome de uma política expansiva das fronteiras do nosso capitalismo para o agronegócio e a mineração não importaria em riscos e sua denúncia não passaria de fabulações de intelectuais desavisados.

Não se deve chorar o leite derramado. O lado vencedor na sucessão presidencial foi esse que aí está. A oposição a ele não tem por que se precipitar. O mundo gira e a Lusitana roda. Por quanto tempo ainda haverá Donald Trump? E os militares, mais uma vez no proscênio, terão perdido a memória de suas grandes personalidades do passado, dos que lutaram em torno da bandeira do petróleo é nosso, do marechal Rondon, dos pracinhas que em campos de guerra na Itália enfrentaram com bravura o fascismo, das virtudes sem mácula do marechal Lott? E os seres subalternos, até quando suportarão o capitalismo sans phrase, em bruto e sem amortecedores, que ameaça vir por aí?

Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve.


Cida Damasco: Família vende (quase) tudo

Privatização ganha força. BB, Caixa, Eletrobrás e Petrobrás estão na mira

Não há quem duvide do papel das concessões e privatizações na política econômica do futuro governo. O compromisso com o liberalismo e a necessidade de ajuste fiscal a curtíssimo prazo tornam sua importância mais do que estratégica. Vital é o adjetivo apropriado. O perfil da equipe econômica, completada na semana passada, prova que o chefe Bolsonaro e seu superministro Paulo Guedes, até agora com carta branca, pretendem dobrar a aposta na privatização. Dois polos de poder cuidarão dessa tarefa: uma secretaria específica para desmobilização e desinvestimento sob o guarda-chuva de Guedes, que será entregue ao empresário Salim Mattar, dono da Localiza, e uma estrutura subordinada diretamente à Presidência, para tratar das concessões de infraestrutura.

É verdade que as previsões sobre desestatização divulgadas durante a campanha pecam pelo exagero, segundo economistas dos mais variados matizes. Primeiro, Guedes falou em se desfazer de todas as estatais – no total, são 144, sob controle direto e indireto da União –, depois Bolsonaro falou em sair de 100 delas e, já na boca das eleições, ambos cacifaram uma previsão de receita de R$ 2 trilhões com venda de participações nas empresas, de ativos e renovação de concessões.
Mas, mesmo considerando que a realidade vai derrubar alguns desses “sonhos”, está claro que levar adiante um programa parrudo de privatizações é indispensável para um governo que precisa reduzir o endividamento e, pelo menos num horizonte próximo, não tem como abater os gastos significativamente.

Nesta semana, uma iniciativa ainda da gestão Temer deve criar condições para que Bolsonaro, já na chegada ao Planalto, inicie uma ofensiva desestatizante. Está marcada para quinta-feira a divulgação dos editais de licitação de 12 aeroportos, quatro portos e uma ferrovia, que permitirão a realização de leilões já no primeiro trimestre – um pacote de concessões que deve resultar numa arrecadação de R$ 1,5 bilhão e investimentos de R$ 6,4 bilhões.

Mas, se a decisão de limpar a carteira de empresas pertencentes ao Estado é ponto pacífico, ainda há dúvidas sobre o destino de estatais que são ícones do patrimônio nacional. O que vai acontecer exatamente com a Petrobrás, com a Eletrobrás e com o Banco do Brasil? Muitos observadores ficam arrepiados só de ouvir falar na possibilidade de o Estado brasileiro abrir mão desses ativos. Mas, aos poucos, começam a ser estabelecidos alguns parâmetros para o “emagrecimento” dessas empresas, que buscam conciliar os desejos dos liberais com os limites dos nacionalistas, especialmente nas alas militares.

O BB e a Caixa deverão pôr à venda alguns “pedaços” relativos a atividades laterais das instituições, como já deixaram claro seus novos presidentes, Rubem Novaes e Pedro Guimarães – o mercado dá como certa, por exemplo, a oferta da área de seguros do BB. Segundo antecipou Novaes, essa venda em “pedaços” seria via mercado de capitais. A Eletrobrás, cuja inclusão na lista de privatizações do governo Temer foi objeto de grande debate, também deve seguir a linha de privatização parcial, com a preservação da área de geração de energia em poder do Estado.

Quanto à Petrobrás, o caso mais emblemático entre os emblemáticos, tudo indica que ficará concentrada na atividade de exploração e o foco será o pré-sal. A julgar pelas declarações do vice Mourão e do próprio Bolsonaro, a porta está aberta para a venda da distribuição de combustíveis e do refino – na primeira, a participação da Petrobrás no mercado já está abaixo de um quarto, embora, na segunda chegue à marca de 90%. Nos últimos dias, inclusive, a movimentação das ações da Petrobrás nas bolsas já reflete claramente essas indicações de reestruturação.

Mais uma vez, acertadas as diferenças entre as turmas que se abrigam no governo Bolsonaro, as discussões sobre privatização vão acabar no Congresso. E, quando se trata de estatais de setores estratégicos, pode-se imaginar o quanto essas discussões tendem a esquentar e, por isso mesmo, se alongar. Guardadas as devidas proporções, foi o que aconteceu na gestão Temer. Afinal de contas, é no Congresso que interesses de regiões e corporações se manifestam – seja por meio de partidos ou de bancadas. Um teste decisivo para a chamada “vontade política” do novo governo.


Míriam Leitão: Momento de abrir o comércio externo

Nova equipe econômica irá enfrentar fortes obstáculos na abertura comercial, mas o país precisa avançar nessa área

A ideia de abertura comercial no país enfrenta os mesmos desafios que a reforma tributária. Todos são a favor, até que se comece a discutir os detalhes. São vários os indicadores que sugerem que a economia brasileira é fechada, mas não existe consenso sobre a melhor forma de aumentar a nossa integração com o mundo. Quem já esteve no governo e sentou na cadeira responsável pelo assunto avisa: o tema não é apenas econômico. Envolve o direito internacional e exige muita negociação política.

A proposta do futuro ministro da área econômica Paulo Guedes é fazer uma nova abertura da economia. Isso é desejável por várias razões. Mas os especialistas alertam para alguns pontos. O governo eleito Jair Bolsonaro já ameaçou retirar o Brasil do Mercosul para ampliar os acordos bilaterais do país. O risco dessa estratégia, diz o especialista Welber Barral, que foi secretário de Comércio Exterior entre 2007 e 2011, é fazer a indústria nacional perder o seu principal cliente, que é a Argentina, maior compradora de produtos manufaturados brasileiros.

— O Mercosul é extremamente vantajoso para o Brasil, principalmente para o produto industrializado. Se a gente sair do bloco, vai ficar vendendo soja para a China. Não acho que vai acontecer. Existem formas de pressionar e flexibilizar as tarifas comuns do bloco. Os mecanismos já existem, não precisa sair — afirmou.

Barral diz que comércio externo envolve 30% economia, 30% direito internacional e 40% negociação política. Por isso, acha que a futura equipe econômica ainda vai enfrentar os desafios práticos de abrir a economia, depois que de fato assumir o governo:

— Se fizer abertura radical, tem custo social alto e custo político que te obriga a retroagir muito rápido. Não é factível, não consegue fazer. O que acontece é que a pressão política aumenta e depois volta tudo como era antes.

Ele cita como exemplo acordos que foram firmados pelo Brasil na área têxtil, dentro da OMC, e que depois foram derrubados pelo Congresso. Os setores industriais se organizam, pressionam as bancadas e conseguem impedir e atrasar a tramitação dos projetos. O grande problema da nossa abertura comercial, explica, é que o Brasil é extremamente competitivo na área agrícola, justamente o setor mais protegido em todo o mundo.

— Por que o Brasil tem dificuldade de fechar acordo com a União Europeia? Porque eles não querem abrir a parte agrícola. Então a gente sofre pela nossa competitividade na área que é a mais sensível no mundo. A mesma coisa acontece com o México, que o Brasil poderia fazer acordo bilateral por fora do Mercosul. A bancada agrícola mexicana trava a negociação no Senado — explicou.

A indústria brasileira diz que é a favor da redução das barreiras, mas alega que antes é preciso reduzir impostos, melhorar a infraestrutura e baratear o crédito, do contrário, não conseguirá competir. A pesquisadora Lia Valls, do Ibre/FGV, diz que, de fato, é preciso em paralelo atacar o Custo Brasil, mas acredita que o governo pode avançar na abertura com um cronograma claro de redução de tarifas, para que os setores tenham tempo para se adaptar:

— O Brasil, quando comparado a outros emergentes, é o único que praticamente manteve as mesmas tarifas médias de importação de 20 anos atrás. Nos últimos anos, houve aumento de regras de conteúdo local, que é uma forma de barreira comercial. O país apostou muito na Rodada Doha, que não avançou, e a valorização do real, nos anos 2000, de certa forma facilitou as importações e esfriou o assunto.

Lia cita três indicadores que sugerem que a economia brasileira é pouco integrada com o resto do mundo, na comparação com outros países similares. Nossa corrente de comércio em relação ao PIB é baixa, em torno de 25%, o percentual de importados dentro da cadeia da indústria de transformação também é pequena, em torno de 20%, e também é reduzida a participação de componentes importados nos produtos industrializados que o Brasil exporta.

Por inúmeros motivos, o país precisa avançar no projeto de abrir a sua economia e nada como um liberal, como o futuro ministro Paulo Guedes, para iniciar a tarefa. Ele precisará estar atento a todos os obstáculos e ao contexto internacional, que é de uma guerra comercial entre Estados Unidos e China, e que pode deflagrar uma onda protecionista no mundo. O momento é difícil, mas o Brasil já se atrasou demais.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro no apocalipse estatal

Presidente delegou a gente que mal conhece a liberdade de fazer uma revolução

A esquerda dizia que o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) era "neoliberal". A esquerda, petistas inclusive, dizia até que o primeiro governo de Lula da Silva (2003-2006) se rendera ao "neoliberalismo". Que nome vai dar ao projeto de governo da economia de Jair Bolsonaro?

Sim, projeto, pois sabe-se lá o que vai Paulo Guedes "entregar", como diz o anglicismo horrível dos mercadistas.

Guedes levou para o governo seus companheiros de escola, mercado, conselhos empresariais e dos institutos Liberal e Millenium, as bestas do apocalipse, aliadas do Satanás da conspiração liberal globalizada, segundo a demonologia de esquerda.

Desde que há um Estado com derramamentos importantes pela economia (isto é, depois de Getúlio Vargas), não houve no governo do Brasil equipe liberal como esta de Guedes. Relaxando as dificuldades de comparação, mesmo quando o Estado era uma merreca, sob o governo dos fazendeiros de Império e República Velha, jamais houve essa unanimidade liberal radical.

Sim, ainda é projeto, é ambição, restritos desde o início porque a Casa Militar e o velho espírito de Bolsonaro acham que o "Petróleo é Nosso" e que bancos públicos têm funções sociais e estratégicas. Sabe-se lá o que Jair Bolsonaro vai pensar desse projeto, se e quanto dele for implementado, se e quando compreendê-lo, se ou quando houver revolta antiliberal (de servidores a industriais, passando por políticos e o povo das aposentadorias).

Assim como a esquerda não tem nome para a coisa, Bolsonaro não sabe e, aparentemente, não quer saber do sentido e do tamanho da coisa. Gosta mesmo é de cruzadas, para as quais nomeou essas pessoas que vão comandar Itamaraty e Educação, as quais também mal conhece, no entanto.

O presidente eleito converteu-se a alguma ideia vaga liberal em algum momento do governo Dilma Rousseff, uma história que ainda se está a apurar. Conheceu Guedes de fato apenas no ano passado.

Jamais teve ligação com grupos organizados da elite econômica, menos ainda de grupos de estudo ou de pensamento da elite econômica, liberais ou outros. A julgar pela sua incompreensão quase total do que seja um Banco Central, do que se passa com a dívida pública ou o que são estatísticas econômicas, deve ter remota ideia das consequências do que propõe Guedes, se alguma.

No entanto, não parece dar a mínima para isso, como ficou evidente desde que encaminhou todas as questões de programa a Paulo Guedes durante a campanha. Apenas calou seu economista-chefe quando a conversa econômica baixava às redes sociais como polêmica (o caso da CPMF, por exemplo). Como vai ser se houver mais furor nas redes insociáveis?

Também relevante, Bolsonaro não se importa ou faz questão de ser um estranho no ninho da imensa equipe econômica. O presidente eleito arrendou a economia a Guedes e o insulou do restante do governo ou, melhor dizendo, do seu núcleo palaciano, sob controle maior dos generais, seus amigos de escola, irmãos mais velhos, conselheiros maiores.

É neles, nos oficiais-generais, que Bolsonaro confia a fundo, com eles compartilha mentalidade e camaradagem, faz mais de 40 anos. São eles que vão coordenar seu governo, formal ou informalmente. No limite, Guedes e seus colegas de mercado são fusíveis que podem queimar. Os militares são a estação de força.