Michel Temer

Raul Jungmann: Vigilância continental

 

Na reunião dos governadores e ministros em Rio Branco, no Acre, dia 27 de outubro último, o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, deu voz a uma proposta coletiva da área de Defesa, Justiça e Inteligência: uma Iniciativa Sul-Americana para a Segurança. O crime organizado não somente cresce com velocidade em escala nacional, expandindo-se dos grandes centros urbanos para regiões do interior, como se transnacionaliza, corrompendo instituições e ampliando seus laços com quadrilhas de outras regiões e países, numa rede poderosa, regional e global.

Como é de conhecimento geral, a América do Sul é uma das regiões mais violentas do mundo. Além disso, é uma das maiores produtoras de drogas ilícitas, sendo o Brasil o segundo maior consumidor de cocaína do planeta.

O recrudescimento do crime no Brasil transcende à esfera da violência e pode passar a constituir uma ameaça à democracia e ao estado de direito, capturando instituições e criando, em alguns locais, um estado paralelo autoritário, no qual não há lei, liberdade nem direitos. Os últimos índices são alarmantes: mais de 60 mil mortes violentas por ano no país, dezenas de vezes maior do que guerras em qualquer área do mundo.

O crescimento da violência criminosa em nossas cidades e presídios está intimamente ligada ao crime transfronteiriço. Sendo assim, é cristalino que o combate ao crime organizado transnacional já não se pode dar exclusivamente nos espaços nacionais ou pelos organismos policiais internacionais existentes.

É necessário mais esforços para enfrentá-lo. A cooperação organizada estatal já existente deve ser consolidada com uma Iniciativa Sul-Americana na área de segurança pública, reunindo autoridades de segurança e defesa para o compartilhamento de informações e programas de reconhecido êxito, como o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), e a criação de programas efetivos e contundentes contra a criminalidade.

O Brasil pode e deve propor e coliderar essa iniciativa regional, tanto por suas dimensões continentais, pelo peso de sua economia e demografia, pela extensão de suas fronteiras, quanto por representar população das que mais sofrem com o contrabando de armas pesadas, o crescimento dos homicídios e roubos.

A Iniciativa tem como antecedente o plano regional estratégico de combate ao crime organizado transnacional lançado em 2012 pela Unasul. Em novembro de 2016, o presidente Michel Temer propôs o plano estratégico de fronteiras, por ocasião da reunião ministerial do Cone Sul, realizada em Brasília.

Nesse contexto, os ministérios da Defesa, Justiça, Relações Exteriores e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) organizaram reuniões bilaterais com países do “Arco Norte” — Colômbia, Peru e Bolívia — e também com os do Cone Sul para ampliar as medidas de segurança nas áreas de fronteira.

Se aceita, a Iniciativa poderia evoluir do atual nível de encontros técnicos para a conformação de uma Autoridade Sul-Americana de Segurança, a exemplo do Conselho de Defesa Sul-Americano.

* Raul Jungmann é ministro da Defesa

 


Valor Econômico: "O povo não está nem aí para o fato de estarmos ou não em governos", diz José Aníbal

 

SÃO PAULO - Presidente do Instituto Teotônio Vilela, centro de estudos do PSDB, José Aníbal diz que falta autoestima aos tucanos que criticam a participação do partido no governo Michel Temer. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor.

Valor: Como o senhor avalia a atitude de Aécio ao destituir Tasso?

José Aníbal: Não vejo como destituição. Foi a substituição de um vice-presidente indicado pelo Aécio por outro vice que não está no processo sucessório. Aécio viu que havia o desejo de ter uma condição mais isonômica, de que a presidência fosse exercida por alguém que não é parte da disputa.

Valor: Mas em 2016 Aécio prorrogou seu mandato por dois anos sem deixar a presidência do partido. São dois pesos e duas medidas?

Aníbal: De jeito nenhum. Aécio era presidente eleito do partido e cumpriu o que manda o regimento. Chamou a Executiva e usou os procedimentos previstos. São situações diferentes. Ele até antecipou o fim de seu mandato, que estava previsto para terminar em maio de 2018, e convocou as eleições para este ano. Tem um mal-estar no partido, mas vamos caminhar para o apaziguamento.

Valor: A crise do PSDB se intensifica a menos de um ano das eleições. Essa articulação do Aécio não prejudica a candidatura de Alckmin?

Aníbal: Não acho que agravou a crise. O partido já está mais pacificado. Essa insistência feita pelos 'cabeças pretas' de reduzir a disputa dentro do PSDB a ficar ou sair do governo Temer é algo completamente estapafúrdio, equivocado. O grande desafio é enfrentar os nossos problemas, construir a nossa unidade e fazer o Brasil avançar. O PSDB tem um compromisso firme com as reformas e deve assumir protagonismo nisso. Quanto melhor estiver o país, com a recuperação da economia, menos chances terá uma candidatura salvacionista. A crise interna é um problema nosso e a sociedade não está preocupada com isso.

Valor: Temer deve fazer a reforma ministerial neste mês e poderá tirar o PSDB. O partido não pode ficar isolado se sair do governo por decisão do presidente?

Aníbal: O partido está construindo a sua saída. Essa questão não pode ser uma questão presente na nossa convenção. É resultado de um compromisso: apoiar o governo em direção das reformas. O governo vinha operando as reformas, aprovou a trabalhista e já ia entrar na previdenciária. Vamos sair do governo, mas é uma relação civilizada, foi um compromisso em função de um programa de quinze pontos que apresentamos. Questões internas têm de ser trabalhadas não para a fragmentação do partido, mas para o fortalecimento. A convenção tem que discutir a revitalização das nossas diretrizes, a construção das premissas de um governo a ser adotado pelo candidato à Presidência.

Valor: Tucanos históricos têm dito que o partido voltou a ser o velho PMDB que o PSDB criticava. O lema de "estar longe das benesses do poder, mas perto do pulsar das ruas" vai ser revisto?

Aníbal: Esses tucanos é que estão longe das ruas. Eles não estão entendendo nada, lamentavelmente. O povo não está nem aí para o fato de estarmos ou não em governos. Falam como se a gente tivesse no governo para tirar proveito pessoal. Não é o caso de nenhum dos nossos companheiros. É totalmente diferente. Eles estão totalmente equivocados. Temos esse compromisso de não nos lambuzarmos, de não nos envolvermos com aquilo [governo]. Se acontecer, tem que punir. O que esses tucanos fazem é um diagnóstico fácil, ligeiro, que não ajuda o PSDB a crescer. Pelo contrário. É um rebaixamento. É uma baixa autoestima desses companheiros. Lamento por eles. Tem que prevalecer no PSDB a posição de encarar os desafios e não viver de 'cutucar' os outros. Eles são incapazes de formular uma posição política, que nos associe com os anseios da população. Querem ficar com luta interna. Luta interna, dissociada das questões da população é briga. É isso o que estão querendo fazer. Não vamos deixar.

Valor: O PSDB pode se enfraquecer como alternativa anti-PT e abrir espaço para um nome mais conservador como do Bolsonaro?

Aníbal: Não. Bolsonaro não tem condições de ser presidente do Brasil. É uma aventura, de todos os pontos de vista. Temos que evitar os aventureiros. Lula é uma aventura que a gente já conhece. Bolsonaro é uma aventura que a gente tem memória. É a memória do 'eu prendo e arrebento', 'eu acabo com a inflação com um tiro'. Lembra o Collor. E deu no que deu. O Brasil tem que construir uma posição que aproxime os brasileiros, promova a convergência no propósito de enfrentar esse grande desafio que vivemos hoje. O Brasil tem que voltar a crescer, duplicar a renda da população no médio prazo, crescer a taxa de dois dígitos. É possível. Precisa de racionalidade, temperança. Precisamos de um presidente que seja agregador. O PSDB tem candidato para isso, que é Alckmin. E quem abre caminho para uma candidatura como a do Bolsonaro é o PT e não o PSDB. Lula e Bolsonaro são as duas faces da mesma moeda.

Valor: Quem é seu candidato à presidência do PSDB? Alckmin é uma solução pacificadora?

Aníbal: Alckmin sempre será solução pacificadora. É o estilo dele. Agregador, pacificador. Essa questão pode se colocar. No momento temos dois candidatos. Não vou declarar preferência porque presido o instituto do PSDB. A convenção deve revitalizar os nossos pressupostos e premissas partidários e fornecer elementos para a construção de um governo.

Valor: O resultado da convenção pode levar a debandada do PSDB?

Aníbal: Não há menor hipótese.

 


Alon Feuerwerker: Para entender 2018 convém olhar a luta entre os dois cansaços: 1) com os políticos e 2) com a confusão

É cômodo caracterizar a disputa interna do PSDB como uma luta de éticos contra fisiológicos, puros contra impuros, tucanos originais contra tucanos perdidos. Uma guerra em que todos sairão mais fracos. Nesta era de ditadura das narrativas e de opressão sobre os fatos, é uma narrativa confortável. Como toda narrativa confortável, convém desconfiar, ao menos para testar.

Também teria sido razoável desconfiar da ideia de que o governo Michel Temer tinha desistido da reforma da previdência. Pela simples razão de que a única razão de o governo Temer existir é tentar fazer as reformas assepticamente chamadas de pró-mercado. Sem apontar para elas, ele não teria ultrapassado as duas votações na Câmara.

O contra-ataque do establishment tucano e o apego do governo Temer às reformas são os dois movimentos fundamentais na dança-tentativa de construir uma candidatura antipetista capaz de ganhar a eleição e também governar. Diferentemente de outras ocasiões em que se buscou um “novo”, é provável que desta vez o segundo vetor tenha um protagonismo relevante.

A sucessão presidencial será decidida num combate entre candidatos, partidos e blocos, sim. Mas também num braço de ferro entre dois cansaços: o cansaço com os políticos e o cansaço com a confusão. Seria um erro subestimar tanto um como outro. O Brasil parece querer livrar-se de ambos num único movimento, num único voto. Mas, e se não for possível?

Se, na eleição, o cansaço com os políticos estiver maior que o cansaço com a confusão, é provável que o eleitor decida por mais confusão para finalmente tentar dar cabo da atual elite política. Mas, se o cansaço com a confusão prevalecer, é possível que ele se incline para um dito político, na esperança de acabar com a confusão, ou impedir sua volta.

O apelo pelo “novo” é periodicamente sexy, mas enfrentará agora pelo menos dois problemas. 1) Os dois últimos presidentes, cada um à sua moda, “novos” foram derrubados e 2) a economia parece ter saído do estado de depressão profunda. Se o medo sempre tem um papel a desempenhar em campanhas eleitorais, não é tão difícil projetar que ele terá aqui uma oportunidade. Inflação baixa e algum crescimento não são de se jogar fora.

Eis por que há espaço para a movimentação de Lula e de Alckmin. Ambos buscam o perfil ideal, cada um em seu campo. Tentam consolidar a ideia de que conseguirão governar, sem entretanto deixar de se colocar como força de renovação. O tucano cultiva suas conexões com os cabeças-pretas, enquanto o petista lança sinais de que governará com menos compromissos.

Claro que a vida real é mais complicada. Nem Alckmin pode simplesmente lançar o velho PSDB ao mar, nem Lula pode se dar ao luxo de desprezar possíveis alianças. Sendo ele próprio candidato ou com outro nome, Lula sabe que uma coisa é ir ao segundo turno numa onda vermelha, outra coisa é fechar a eleição com metade mais um do voto válido. A lembrança de 1989 está disponível.

Observemos os fatos. Já disse algumas vezes: eles costumam ser teimosos.

*

A reforma da previdência será aprovada. Agora. Ou em 2018. Ou em 2019. Nenhum futuro governo escapará de fazê-la, ou continuá-la, pela simples razão de que se alguma reforma da previdência não for feita o teto de gastos garroteará o orçamento e não será possível governar. O teatro da política talvez imponha ao eleitor um novo estelionato. Com os riscos nele embutidos.

*

É da política que se tente aproveitar a fragilidade jurídica de Lula para recolher parte do capital político dele, eventualmente desgarrado. Vêm desse fato tanto ensaios como Luciano Huck, com sua suposta penetração entre os pobres, como as candidaturas de esquerda supostamente críticas ao PT.

É da política, mas tanto num como noutro caso será preciso avaliar se foi a tática mais inteligente. Dispersar forças não costuma ser inteligente.

 

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Mario Rosa: Temer ‘falou’ como nunca em sua foto oficial no Planalto

A semiótica é uma ciência que procura desvendar os símbolos e o que eles tentam ou tentaram traduzir. Como semiólogo, certamente sou um desastre. Mas convido o leitor a um passeio a uma semiologia de segunda classe, a bordo da nova foto oficial do presidente Temer.

Fotos oficiais –sobretudo presidenciais– são tudo, menos obras do acaso. Tudo ali está a serviço de um código, de um significado para ser transmitido para seu tempo e para essa substância difusa e etérea, essa abstração maluca que chamamos de “História”.

O presidente Temer “falou” como nunca em seu retrato. Há muitos elementos simbólicos ali. Note-se que a imagem é o primeiro feito depois da sua confirmação definitiva como presidente, após a dupla tentativa de afastamento que ele, hábil e engenhosamente, aniquilou com sua articulação parlamentar.

E o que retrata o retrato do presidente? Primeiro uma novidade na história da República: um enquadramento totalmente diferente de todos os antecessores. Ou seja, ao menos fotograficamente, Temer quer ser visto de uma maneira diferente de todos os demais. Fotograficamente, uma grande ambição. Será a tradução de uma ambição histórica também?

E qual é essa diferença: Temer é o primeiro presidente que aparece ereto, de corpo inteiro. Os demais mostravam o busto, um plano mais aberto vá lá, mas quase o corpo todo é novidade. O que isso pode dizer? Que ele ocupa na plenitude o espaço do poder presidencial? Bem, a nomeação do novo chefe da Polícia Federal confirma essa hipótese: sim, Temer é um presidente que “usa a pista toda”.

Já reparou que entre tantos fundos da biblioteca o presidente foi posar justamente no que tem livros levemente avermelhados? Pode ser uma pequena ironia dizer que os vermelhos ficaram no fundo da cena?

Foto: Beto Barata\PR

Temer sem faixa presidencial
Outro detalhe: ele não enverga a faixa presidencial. Todos os outros presidentes da nova República, à exceção de Itamar, usaram o adorno verde amarelo cruzando o peito. O cenário da foto também fala: é uma foto interna. É um presidente de gabinete, intramuros. Somente os dois presidentes petistas, Lula e Dilma, tiveram fotos presidenciais ao ar livre. Coerentes com líderes que tinham o discurso de virem das ruas, das massas.

Muitos presidentes tinham nada –isso mesmo– nada como fundo de suas fotos. Eles eram a única informação, o centro de tudo. Nada competia na cena para desviar a atenção deles. No caso de Temer, constitucionalista, o cenário é o mesmo de seu conterrâneo de política Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e intelectual: a biblioteca do Palácio da Alvorada. Temer procura transmitir ilustração.

A bandeira nacional aparece ligeiramente no fundo, mas o grande detalhe da foto presidencial de Temer é sua mão esquerda apoiada sobre a mesa. A mensagem é dúbia, mas o sentido é o mesmo: o presidente está ereto, reto, mas precisa de um calço. E o calço é a mesa presidencial, onde está alojada a sua caneta.

O presidente “diz”: “Estou de pé porque me apoio no Poder presidencial. Não tenho voto do povo, apoio da mídia, aplausos (ainda), mas tenho a caneta. E me apoio nela. E ela me pôs de pé. Não preciso de me jactar de ser presidente, de vestir faixas presidenciais. Minha vaidade não é a de mostrar que sou presidente. É exercer a Presidência na plenitude do poder presidencial”.

Se a foto falasse, poderia ser algo assim.

(Ah, sim: a mão no bolso direito diz que o presidente está se sentindo muito bem na foto…).

 

* Mario Rosa, 53 anos, é 1 dos mais renomados consultores de crise do Brasil. Pede que em sua biografia seja incluído o fato de ter sido jurado de miss Brasil e ter beijado o manto verde-rosa da Estação Primeira de Mangueira. Foi o autor do prefácio do primeiro plano de gerenciamento de crises do Exército Brasileiro. Atuou como jornalista, consultor e escreveu vários livros. O mais recente, “Entre a Glória e a Vergonha” (pela Geração Editorial), foi lançando também em formato digital pelo Poder360 e pelo UOL.


Luiz Carlos Azedo: A receita do comandante

 

O falecido senador Ernâni do Amaral Peixoto, um dos caciques do antigo PSD, dizia que todo governante precisa de um bom chefe de polícia. Trazia na bagagem a experiência de interventor do Estado Novo no antigo Estado do Rio de Janeiro, do qual foi governador eleito de 1951-1954. Herdeiro da tradição dos “saquaremas” (políticos conservadores do Império), Amaral era também discípulo do “americanismo” de Oswaldo Aranha, ex-ministro da Justiça e chanceler brasileiro que abriu a primeira Assembleia Geral da ONU, seu grande aliado nas articulações para convencer Getúlio Vargas, seu sogro, a engajar o Brasil na guerra contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

Quem quiser detalhes sobre a tese do “comandante” (oficial de Marinha, Amaral Peixoto reformou-se com a patente de almirante) sobre os chefes de polícia, ele próprio explica direitinho no livro Artes da política – diálogos com Amaral Peixoto, de Aspásia Camargo, Dora Rocha e Lucia Hippolito. Aparentemente, a receita do velho cacique pessedista foi adotada pelo presidente Michel Temer, que ontem trocou o comando da Polícia Federal.

Temer desprezou a lista tríplice que havia sido apresentada pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, e escolheu para lugar de Leandro Daiello o jovem delegado Fernando Segóvia, como havíamos antecipado no domingo. O novo diretor da PF é considerado o mais político delegado de sua geração e deve promover uma grande renovação na cúpula da corporação. Seu nome foi articulado pelo ministro Eliseu Padilha, da Casa Civil, supostamente com o apoio do ex-presidente José Sarney, em razão de sua passagem pela superintendência da PF no Maranhão. É ligadíssimo ao ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Augusto Nardes.

A mudança já era esperada pela corporação, porque começou a ser articulada logo após a votação da segunda denúncia contra Temer. Segóvia tem a seu favor o apoio da Federação Nacional dos Policiais Federais, que emitiu uma nota elogiando a substituição. A preferência do ministro da Justiça, Torquato Jardim, era pelo delegado Rogério Galloro, que seria o substituto natural de Daiello, por ser o número dois da hierarquia.

Segóvia estaria para Temer como o falecido delegado Romeu Tuma estava para o presidente Sarney no comando da Polícia Federal, com a diferença de que não passou pelos órgãos de segurança do antigo regime militar, embora seja também um especialista em inteligência. Formado em direito pela Universidade de Brasília (UnB), está há 22 anos na PF, foi adido policial na África do Sul. Em boa parte de sua carreira, exerceu funções de inteligência nas fronteiras do Brasil. Leandro Daiello estava no cargo desde 2011, nomeado na gestão do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e já havia manifestado interesse em deixar o cargo.

A nomeação de Segóvia enfraquece o ministro Torquato Jardim, que tem um contencioso com os políticos do PMDB do Rio de Janeiro. É um passo atrás no sentido de preservar a autonomia da Polícia Federal; por outro lado, pode reduzir o conflito existente entre a instituição e o Ministério Público Federal, em torno de temas como o oferecimento de denúncias e a negociação de delações premiadas. Também pode representar mais uma inflexão nas investigações da Operação Lava-jato, desejo de muitos caciques do PMDB e dos ministros do Planalto que estão enrolados por causa das delações premiadas de Marcelo Odebrecht e Joesley Batista.

Pela Constituição, a Polícia Federal exerce atribuições de polícia judiciária e administrativa da União, “a fim de contribuir na manutenção da lei e da ordem, preservando o estado democrático de direito”. Não pode sofrer interferência do presidente da República.

Zelotes
O Ministério Público Federal no Distrito Federal apresentou denúncia ontem contra o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega por fatos apurados na Operação Zelotes. Também foram denunciados o ex-presidente do Carf Otacílio Cartaxo e outras 12 pessoas. Segundo o MPF, os 13 responderão por corrupção, advocacia administrativa tributária e lavagem de dinheiro. A Operação Zelotes investiga pagamentos de propina a conselheiros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e outros servidores públicos para que multas aplicadas a empresas — entre bancos, montadoras, empreiteiras — fossem reduzidas ou anuladas.

 

 


Luiz Werneck Vianna: A política, os feitiços e os feiticeiros

Ainda há tempo para uma ação nacional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo

Qual o significado da campanha sem quartel para a derrubada do governo Temer vinda de círculos da direita em convergência com setores que reivindicam uma identidade à esquerda do espectro político? Certamente deve haver um. Mas qual? A esta altura parece claro que a via parlamentar não é propícia a esses propósitos, dado que o governo dispõe de folgada maioria nas duas Casas congressuais.

De outra parte, as ruas têm feito ouvidos moucos, ao menos até então, às incitações a manifestações de protesto contra o governo que lhes vêm dos meios de comunicação, em particular de sua rede mais poderosa e de ação mais capilar sobre a opinião pública, mantendo-se silenciosas. A intervenção militar, uma possibilidade teórica no quadro caótico que aí está, a quem serviria? Além de serem poucos os que a preconizam e de os militares não a desejarem, a experiência de 1964 deixou patente que as elites políticas que atuaram em favor de uma intervenção desse tipo foram logo decapitadas ou cooptadas pelo regime militar. Tais lições amargas não terão sido esquecidas, mesmo pelos que ora flertam com ela.

Então, o que é isso que temos pela frente? Dado que não é de todo plausível a hipótese de que a sociedade tenha ensandecido, como se faz demonstrar na vida cotidiana dos brasileiros que tocam sua vida no trabalho e nos estudos, em sua imensa maioria à margem de uma cena política que avaliam estar fora do seu raio de influência, o charivari nacional que nos atordoa tem sua fonte original na própria política e em suas instituições e atende pelo nome de sucessão presidencial.

Faz parte da nossa tradição republicana que as sucessões presidenciais, incluídas as que tiveram seu curso no regime militar, importem em crise, variando com as circunstâncias uma maior ou menor mobilização social suscitada por elas. Foi assim na sucessão de 1930, que pôs a nu, mais do que uma crise conjuntural, uma crise orgânica da ordem burguesa – para usar as categorias de Gramsci, um fino estudioso das crises políticas –, manifesta nas rebeliões tenentistas dos anos 20 e culminando com a Revolução de 1930, que importou a ultrapassagem do sistema agrário-exportador pelo urbano-industrial.

Igualmente na de 1955 – esta, de fato, apenas uma crise conjuntural –, assim como nas vésperas da sucessão de 1965, que prometia levar à vitória uma coalizão de centro-esquerda portadora de um programa de governo nacional popular, cujo desenlace dramático se efetivou no golpe de 1964 – outra crise de natureza orgânica. O regime militar que então se instalou veio a cumprir um programa de plena imposição do capitalismo no País, atraindo para a sua órbita o mundo agrário com políticas públicas que vieram a favorecer a emergência do agronegócio em regiões de conflitos por terra no hinterland. Fechavam-se, assim, as possibilidades, então presentes, para uma reiteração dos casos clássicos das revoluções no Terceiro Mundo que contaram com a presença decisiva do campesinato e dos trabalhadores do campo.

Nesta sucessão de 2018 não há fumaças no ar de crises orgânicas, além de estarem caindo no vazio as ordens de comando que nos chegam sem parar dos meios de comunicação que reclamam a imediata derrubada por fas ou nefas do governo constitucional. No caso, aliás, chama a atenção o fato esquisito de que a agenda da direita dita moderna, que tem sua ponta de lança em empresas de comunicação, guarda similitudes em vários aspectos com a governamental. Ademais, como notório, os atuais quadros dirigentes da economia têm sua origem no que se designa como o mercado e contam com sua confiança.

A referência ao texto de Marx sobre o 18 Brumário é batida, mas necessária, até por sua comicidade. Na França da Segunda República, duas dinastias, a dos Bourbons e a de Orleans, porfiavam em favor do retorno ao regime monárquico, mas como somente uma delas poderia beneficiar-se dessa troca de regime, acabaram tendo de se comportar como fiadoras da República de 1848 – que ambas odiavam –, enquanto uma delas não lograsse impor-se à facção rival. Desse imbróglio, como se sabe, não resultou nem República nem monarquia, mas a ordem imperial de Luís Bonaparte.

Aqui, nesta miserável conjuntura em que se vive, também os extremos que se repelem reciprocamente – a direita moderna e o PT e seus satélites – se veem compelidos a ações convergentes a fim de que na liça da sucessão, defenestrado o governo Temer, um quadro do PMDB de históricas relações com a nossa tradição republicana, só reste caminho para eles.

Contudo, como paira sobre a cabeça de um deles a ameaça real de o Judiciário tornar inviável sua candidatura, a direita dita moderna descortinaria à sua frente uma larga via aberta para seu velho projeto de se assenhorear plenamente do Estado, a fim de redesenhar a seu serviço as relações entre ele e a sociedade. Restaria o problema difícil, talvez insolúvel, de encontrar um candidato com o perfil adequado para a missão.

Mas há método nesta loucura em que estamos imersos, não estamos inteiramente à deriva sob o domínio dos fatos, pois há quem tenha a pretensão de dirigi-los. Todavia a arrogância do ator de querer submeter o destino a seus desígnios pode – como entre os gregos, que a denominavam húbris – ser considerada como um desafio aos deuses passível de punição, destinando a um outro, que se mantém em serena prudência em meio ao tumulto dessas paixões desvairadas, mesmo que não o queira, o objeto de suas ambições.

Ainda há tempo para uma ação política racional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo, sacrificando nossa incipiente democracia, que tanto nos custou, às ambições dos que perderam o fio terra com o mundo real e se entregaram às artes da feitiçaria política, esquecidos de que feitiços podem virar-se contra os feiticeiros.

 


Míriam Leitão: Nos direitos humanos, não há como agradar a todos

A ex-secretária Flávia Piovesan disse que em direitos humanos há “derrotas e avanços no governo”. Derrotas, sabe- se bem. Avanços, procura- se. Já a procuradora- geral da República, Raquel Dodge, foi direta ao esclarecer, no encontro do MP, o que pensa sobre corrupção e retrocessos sociais. Em certos temas, não há caminho do meio, não há como agradar a dois lados quando as diferenças são antagônicas.

“Escravos e corruptos nos lembram que, em uma sociedade desigual, e onde o patrimônio público, comum a todos, tem sido corrompido na elevada proporção revelada pela Lava- Jato, o Ministério Público ( MP) deve sempre agir com firmeza e coragem no cumprimento de suas atribuições civis e criminais, sob as balizas da lei”, disse Raquel Dodge. Esse encontro, ao qual ela compareceu, é tradicional. Uma vez por ano, a Associação Nacional dos Procuradores da República reúne associados para três dias de debate. Ela é frequentadora desses encontros, e desta vez concentrava todas as atenções. É natural. Desde que assumiu, falou pouco, e dela muito se falou.

Uma das dúvidas que o silêncio de Raquel Dodge levantou foi a de não ter usado a palavra “Lava- Jato” no seu discurso de posse. No encontro dos procuradores, ela falou da operação como emblemática, pelo que revela. Para quem disse que Dodge enfraqueceria o MP, ela deixou o recado de que os procuradores devem agir com firmeza e coragem, principalmente quando há tanta corrupção e desigualdade. Ao mesmo tempo, lembrou aos procuradores das balizas da lei, fundamentais limites para a ação da autoridade pública em um estado democrático.

O Brasil vive tempos de óbvio retrocesso na área social. O governo Temer teve acertos na área econômica, tanto que conseguiu um alívio na crise. Caíram a inflação e os juros. O nível de atividade começa a se recuperar. Houve até uma pequena queda no colossal desemprego brasileiro. Nada disso mitiga o fato de que em questões sociais ele representa um flagrante retrocesso. O governo reduziu unidades de conservação, enfraqueceu órgãos de defesa de indígenas e do meio ambiente, perdoou multas ambientais, e, no pior dos seus atos, baixou a portaria que redefine trabalho análogo à escravidão.

Por isso é estranha a ideia da ex- secretária de direitos humanos de que há no governo Temer um revezamento de avanços e retrocessos. Explicou que não foi demitida por ter criticado a portaria do trabalho escravo. Saiu porque vai assumir a função que buscava na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Depois de ser eleita, avisou que deixaria o governo. A procuradora Flávia Piovesan tem credenciais para o novo cargo na OEA porque fez currículo na defesa dos direitos humanos. Lamentável foi apenas a sua passagem pelo governo Temer, em que ela tentou equilibrar- se em um muro que separa duas partes.

“Houve batalhas que ganhamos, houve batalhas que perdemos.” Ela não citou um exemplo sequer que pudesse confirmar a tese de vitórias dos dois lados. Disse nutrir “respeito e gratidão” pelo presidente Temer e afirma que ele lhe deu independência e carta branca. O problema é que no jogo de cartas em Brasília ela perdeu sistematicamente e aceitou as perdas mesmo quando elas eram inaceitáveis. Há um velho dilema em se participar de governos: até que ponto transigir com convicções para evitar o pior? No caso do governo Temer, em direitos humanos, claramente não há o que se possa fazer para atenuar coisa alguma.

Prova disso é o que acaba de acontecer no Ministério de Direitos Humanos. A ministra Luislinda Valois fez críticas à portaria, mas permaneceu no governo. Agora se sabe que a sua definição de trabalho escravo é ela ganhar menos do que R$ 61 mil. Voltou atrás ontem após a divulgação pelo “Estado de S. Paulo” do teor do seu documento de 207 páginas em causa própria.

Às vezes, há dois lados e eles têm que estar juntos. É isso que a procuradora- geral, Raquel Dodge, tem deixado claro. Defende que o MP deve continuar sua ações contra a corrupção na área criminal e contra as ameaças aos direitos humanos. Neste caso não deve haver escolha. Em tempos como o atual, o combate sem trégua tem que ocorrer nas duas frentes porque a luta é complementar.

 

 


Merval Pereira: Governo paralisado

Dois fatos desta semana mostram como o governo de Michel Temer está paralisado, impossibilitado de assumir posições mínimas de coordenação política devido aos imensos passivos que assumiu para se livrar das acusações da Procuradoria- Geral da República.

São passivos na sua esfera direta de atuação, no ministério que ele mesmo montou, e não no âmbito do Legislativo, pois esses já são impagáveis, deixando o governo refém de um centrão político ao qual se integrou melancolicamente o PSDB, parte fundamental de um desses episódios.

A ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, deveria ter sido demitida imediatamente, quanto mais não fosse por falta de discernimento, ao comparar seu trabalho como ministra ao trabalho escravo. Cometeu o mesmo erro do ministro do Supremo Tribunal Federal ( STF) Gilmar Mendes, mas em dimensões políticas distintas.

Mendes tentou ser agressivamente irônico ao dizer que seu trabalho era exaustivo, mas não escravo. O que ele queria naquele momento era desacreditar as críticas que se faziam à nova legislação sobre trabalho escravo, que era tão leniente com essa prática abjeta que acabou tendo que ser revista.

Gilmar Mendes revelou em sua ironia extemporânea uma insensibilidade política espantosa para a maior parte da população não ligada a esta face obscura do agronegócio. Já a ministra tucana, não. Ela queria mesmo acumular o salário de desembargadora aposentada com o de ministra, alegando que tinha necessidade de ganhar mais de R$ 60 mil por mês para sobreviver condignamente. Além de carro com motorista e outras mordomias ministeriais.

É acintoso que num país desigual como o nosso um governante, ainda por cima desembargadora, queira se beneficiar financeiramente utilizando como justificativa uma situação de trabalhadores em situação de miséria, explorados desumanamente.

Assim agindo demonstra também uma insensibilidade política que deveria inviabilizá- la para o exercício do cargo de ministra, mas o governo preferiu não agir diretamente, por impossibilidade de interferir na representação do PSDB em seu ministério.

E o PSDB, que agora está dividido não apenas por suas escolhas eleitorais, mas por questões ideológicas que o aproximam cada vez mais do PMDB fisiológico, do qual se afastou em tempos idos, não teve condições de intervir no caso, retirando da ministra, como deveria, a representatividade partidária.

O outro caso emblemático foi a declaração do ministro da Justiça, Torquato Jardim, sobre o conluio de políticos e policiais do Rio de Janeiro com o crime organizado. É certo que ele falou com base em informações de serviços de inteligência da Polícia Federal e da Abin, mas ficou claro também que não havia ainda condições de revelar as investigações que estão em curso.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que num primeiro momento reagiu como as demais lideranças políticas do Estado, criticando as declarações como se elas refletissem apenas ilações e deduções, como disse o governador Pezão, depois colocou as coisas em seus devidos lugares, criticando a antecipação das investigações sem que exista no momento condição de agir em função delas.

Com isso, o ministro Torquato Jardim pode ter ajudado os criminosos, alertando- os de que estão sob investigação, alega Maia. Existe, no entanto, a hipótese, bastante provável, de que o ministro tenha assim agido devido a manobras políticas justamente para abafar as investigações.

Além dos diversos fatos, ocorridos ano após ano, com policiais presos por trabalharem para o crime organizado, e a prisão de batalhões inteiros que estavam vendidos aos traficantes, há a recente entrevista do bandido Nem, o chefão do tráfico da Rocinha, que disse com todas as letras que no eleição para governador foi procurado por emissários do então candidato a governador Sérgio Cabral em busca de seu apoio eleitoral. O atual governador Pezão era o candidato a vice na chapa vitoriosa.

 

O ministro da Justiça, mesmo estando com a razão, criou uma crise política para o governo de Michel Temer que não deveria ter passado como se nada tivesse acontecido. O silêncio do presidente sobre o tema mostra como ele está impedido, por compromissos políticos que o constrangem, de intervir quando seus ministros saem da linha.

 


Fernando Gabeira: A máquina do tempo

O sistema apodrecido nos empurra para a nostalgia militar ou a estrada para a Venezuela

Que período é este em que entramos após a rejeição da segunda denúncia contra Temer? Imagino um remanso político até o fim do ano e entrada em cena da campanha de 2018.

Alguns analistas acham que os políticos se fortaleceram. Outros, que eles descobriram ser possível enfrentar com êxito a opinião pública. Esquecem que estão em confronto com a sociedade, logo, ela enfraqueceu.

O maior golpe nas expectativas positivas veio do Supremo. Há uma pressão contra o foro privilegiado. Ele foi amplificado com a decisão de submeter medidas cautelares contra parlamentares ao Congresso.

Nos três anos de Lava Jato, o Supremo manteve regularidade no seu índice de condenação dos políticos envolvidos: zero. Numa país onde algumas pessoas se colocam acima da Justiça, estamos, na verdade, sujeitos à lei da selva, isto é, à lei do mais forte.

As concessões que Temer fez para se preservar no cargo transformaram o esforço de reduzir os gastos numa tarefa de Sísifo. Os acertos da dívida das empresas com o governo ficaram mais flexíveis. Perda de arrecadação. Os políticos aliados barraram a privatização do Aeroporto de Congonhas.

Se o capital do Estado agoniza no vaivém de cortes e concessões, o capital político de Temer, que já era modesto, foi abalado por dois acordos.

Na primeira denúncia, Temer determinou a abertura de uma reserva mineral na Amazônia. Em outra, amenizou a lei de combate ao trabalho escravo. Ambos são temas passíveis de uma discussão racional. No entanto, o acordo com os ruralistas impunha uma decisão monocrática.

Um Congresso blindado e um presidente que apenas sobrevive no cargo são um peso morto. A semana foi marcada por relatórios indicando o crescimento da violência no País. Não se fala disso. O plano de segurança de Temer não saiu do papel. O tema passa ao largo de todo o universo político. Apenas Jair Bolsonaro trata dele, o que dá a impressão de que suas propostas são as únicas para enfrentar o problema. Naturalmente, os candidatos apresentarão as suas. Mas é evidente que, se não mergulham no tema desde agora, serão menos convincentes.

Nesta ligeira calmaria na política, a vida real não dá trégua. O ministro da Justiça nos colocou, os que vivem no Rio, numa situação delicada. Ele afirma haver conluio entre o governo e o crime organizado e que os comandantes da PM estão no esquema. Segundo Torquato Jardim, nem o governador nem o secretário de Segurança controlam a polícia e isso só mudará depois das eleições de 2018. Ainda estamos em novembro.

A generalização do ministro da Justiça é incorreta. Há bons comandantes e muitos policiais que perdem a vida nas ruas.

É um remanso perigoso este. Ele certamente vai influenciar o período que lhe sucede: as eleições.

A ainda débil retomada econômica e ligeira recuperação do emprego não bastam para evitar a tensão. No front cultural já é uma incômoda realidade, conflitos em torno de temas que poderiam ser tratados racionalmente terminam em insultos.

O próprio Supremo, de quem se espera frieza e serenidade, sobretudo neste momento do País, transmite ao vivo discussões agressivas como a travada por Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso.

São fatores de instabilidade que tornam mais difícil o caminho da mudança, pois contribuem, indiretamente, para a polarização esquerda-direita, como se nos lançassem, na máquina do tempo, ao período da guerra fria. Uma intensa luta ideológica é inevitável. Mas se domina a cena morre com ela a chance de um diagnóstico mais próximo da realidade. E, consequentemente, ressalta fórmulas esgotadas como a do governo militar e a experiência lulopetista.

Para ser coerente com sua tática de negação dos seus crimes, o PT analisa que errou por não ser duro, não ter confrontado os conservadores. Daí a proposta de controlar os meios de comunicação, a ameaça de retaliar procuradores e juízes.

Bolsonaro sonha com a militarização das escolas no Brasil. Apoia-se no melhor rendimento dos colégios militares. E diz que a disciplina é a razão da boa qualidade do ensino. Talvez esteja pensando com os padrões da revolução industrial, do treinamento de trabalhadores fabris. No mundo complexo em que vivemos, a iniciativa, a criatividade são instrumentos de sobrevivência, assim como ser flexível para sobreviver diante da precarização do trabalho.

Isso não significa defender a indisciplina. Apenas afirmar que cada época demanda uma combinação de restrições e liberdades que preparem as pessoas para sobreviver nela.

Se erramos a mão, corremos o risco de formar um exército de desempregados, disciplinados, que se levantam quando entra o professor e cantam o Hino Nacional. Da mesma forma, se usarmos o método Paulo Freire, concebido para ser um instrumento de vanguarda para formar revolucionários, corremos o risco de incendiar a juventude com sonhos sepultados pela História. Esse é apenas um lance da polarização no setor mais importante para alavancar a mudança.

O colapso do sistema político-partidário não deixou pedra sobre pedra. O encastelamento, no fundo, é uma tática do tipo depois de nós, o dilúvio.

No Rio, parte da sociedade não achou o caminho para evitar o que lhe pareciam duas regressões: uma esquerda do século passado ou um mergulho na Idade Média, quando Igreja e Estado se confundiam. Houve um grande número de votos em branco, mas venceu uma das regressões.

Não creio que o Brasil caia na mesma armadilha: de um lado, a nostalgia do governo militar; de outro, a estrada para a Venezuela. Mas é preciso levar em conta que o sistema político apodrecido nos empurra para isso.

O período é favorável para refletir sobre alternativas. Uma corrente mais colada nos fatos pode até perder. Mas é uma chama que não pode se apagar. Um dia, escaparemos da máquina do tempo.

 


Merval Pereira: Investigações em curso

Se causaram rebuliço entre os políticos e as autoridades estaduais, as declarações do ministro da Justiça Torquato Jardim sobre a contaminação política do crime organizado com as forças policiais não surpreenderam os cariocas e aqueles que acompanham a situação da segurança pública no Rio.

Os políticos que saíram em defesa das corporações o fizeram corretamente para evitar generalizações, mas eles certamente sabem o que acontece em setores da segurança do Estado. Essa promiscuidade não é inerente às forças policiais do Rio, mas acontece em todos os lugares em que o combate ao crime organizado está em andamento.

A célebre história do policial Sérpico, em Nova York, que ajudou a desbaratar quadrilhas de criminosos que atuavam dentro da polícia novaiorquina, transformada em filme de sucesso de Al Pacino, foi lembrada ontem pelo deputado Miro Teixeira.

O que milhões de pessoas viram nos filmes Tropa de Elite 1 e 2, citados pelo ministro Torquato Jardim como situações que voltamos a viver no Rio depois de um breve intervalo em que as Unidades Pacificadoras funcionaram, era ficção baseada na realidade.

A Força-Tarefa que foi criada recentemente pela Procuradoria-Geral da República, a pedido do ministro da Defesa Raul Jungman, tornou-se necessária justamente devido à situação específica do Rio, em que a corrupção política abriu caminho para a atuação do crime organizado dos traficantes e dos milicianos.

Os precedentes de sucesso no Acre e, sobretudo, no Espírito Santo, estados que já estiveram dominados pelo crime organizado comandado pela classe política, mostram que a criação de uma Força-Tarefa para combater o crime organizado, sem prazo determinado, com uma visão de longo prazo e sem estar atrelado a mandatos governamentais, é o melhor caminho para restabelecer a supremacia da lei no Estado do Rio.

Como já escrevi aqui, a criação dessa força-tarefa, reunindo equipes do Ministério Público Federal, da Justiça Federal, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, surgiu do diagnóstico das forças de segurança de que o Estado foi capturado pela corrupção e pela criminalidade, ambos se cruzando.

Temos cerca de 1 milhão de pessoas no Rio de Janeiro vivendo em um estado de exceção, sob o controle de bandidos, milicianos ou traficantes. Quem tem esse controle sobre o território, tem o controle político, é capaz de direcionar votos, de eleger seus representantes, fazer seus aliados, que se encontram na Câmara Municipal, na Assembléia Legislativa e mesmo no Congresso Nacional.

Isso significa que são capazes de colocar seus prepostos dentro do aparato de segurança. No Rio de Janeiro, alguém dessa ligação pode indicar um chefe de batalhão, um delegado, e assim por diante. Essa prática, comum no Estado, em algum momento voltou, e a captura de postos chaves no aparato de segurança por indicações políticas acabou sendo uma realidade novamente no governo estadual, envolvido profundamente na corrupção e na proteção de quadrilhas, segundo diagnóstico original dos serviços de inteligência.

Sempre que as Forças Armadas são chamadas a intervir no Rio, devido ao recrudescimento da ação dos bandidos, há um desconforto que não é explicitado formalmente na relação com as polícias locais. Não é possível generalizar, e esse certamente foi um erro do ministro Torquato Jardim, mas a citação de que ações sigilosas vazam com freqüência é de conhecimento de todos dentro dos setores de segurança.

Tanto que a Força Tarefa recém-criada é federal, terá a participação das polícias do Rio em posição secundária. O Rio necessita de uma força-tarefa federal para dar conta, sobretudo, de um estado paralelo, classificado pelas análises dos serviços de informação como “capturado pelo crime organizado”.

Foi a partir das informações dos serviços de inteligência do Exército e da Polícia Federal que ministro Torquato Jardim soltou informações importantes sobre a segurança pública no Rio, e não foi à toa o que disse. A hipótese mais provável é que ele tenha falado para fazer andar as investigações, que estariam paradas por pressões políticas.

O improvável é que ele tenha sido leviano, o que falou, primeiro para o blog de Josias de Souza, depois para O Globo, foi com base em investigações que estão sendo feitas no Rio, desde a intervenção das Forças Armadas. Não adianta o governo do Estado nem a Polícia Militar reclamarem; o sistema de inteligência do Exército está atuando. O ministro sabe certamente o nome dos políticos que estariam envolvidos nesse conluio, e os indícios das investigações levaram às suas declarações. E certamente levarão a ações concretas de repressão.


Helena Chagas: A agenda oculta de Michel

A agenda pública de Michel Temer hoje é aprovar reformas no Congresso que ajudem a alimentar o clima de recuperação da economia e passar à história como um presidente reformista.

A agenda não declarada, mas prioritária, é uma só: não ir parar na cadeia a partir de 1 de janeiro de 2019, quando passa a presidência ao sucessor e, teoricamente, perde a proteção constitucional e a prerrogativa de foro inerentes ao cargo.

É real a possibilidade de Michel e seus auxiliares mais próximos no Planalto, como Eliseu Padilha e Moreira Franco, irem parar nas mãos de juízes como Sérgio Moro, Marcelo Bretas ou Vallisney Oliveira, dependendo do caso, para serem investigados e processados. Só para lembrar: o presidente já foi alvo de duas denúncias, temporariamente arquivadas, por corrupção, obstrução de Justiça e organização criminosa, e é investigado no inquérito que apura irregularidades no Porto de Santos.

A fogueira ganhou mais lenha com a decisão desta quarta do ministro do STF Edson Fachin de enviar a Moro as acusações por organização criminosa contra os demais personagens citados na segunda denúncia de Rodrigo Janot: Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves e Rodrigo Rocha Loures. A leitura nos meios políticos e jurídicos é de que se trata de um aviso aos navegantes, e o ministro usa a palavra "suspensas" ao se referir às denúncias contra Temer, Padilha e Moreira, rejeitadas pelo plenário da Câmara.

Aliás, o argumento de que estavam apenas "suspendendo" o andamento do processo contra o presidente, a fim de preservar a economia do país, foi amplamente utilizado pelos deputados que votaram com o Planalto. Nos microfones, os que tiveram coragem de falar algo a mais do que a palavra "sim", explicavam que, encerrado o mandato, Temer será investigado.

Tudo indica que para valer, e pelo pessoal das prisões preventivas, das buscas e apreensões, das delações premiadas e dos julgamentos rigorosos da primeira instância.

É uma perspectiva suficiente para assombrar os 405 dias de governo que restam a Michel. Uma preocupação que já deflagrou, entre os mais íntimos, uma articulação para tentar resolver o assunto antes do fim do mandato. Como?

Só há dois jeitos de Michel manter o foro privilegiado do STF quando deixar a presidência - o que não lhe garante absolvição nem clemência, mas provavelmente o resguardaria de medidas extremas como a prisão preventiva e outras humilhações:

1) Sair candidato à reeleição ou a outro cargo eleitoral em 2018. Com popularidade de 3%, a reeleição não chega a ser uma hipótese. A candidatura poderia até ser um recurso para o presidente não virar o saco de pancadas de todos os candidatos presidenciais - ou, ao menos, ter espaço na campanha para se defender. Mas, como não seria reeleito, continuaria com o mesmo problema de perda do foro privilegiado - que, por outro lado, poderia ser mantido caso o Michel se elegesse para outro cargo, como deputado ou senador. Nesse caso, a eleição seria possível, tendo por trás a caneta e a máquina do PMDB. Mas há um sério problema: para concorrer em qualquer eleição que não seja para o mesmo cargo, ele teria que se desincompatibilizar, ou seja, deixar a Presidência da República, em abril do próximo ano. Quase impraticável.

2) Mudar a Constituição. Nada fácil para quem vê sua base minguar. Mas a ideia é incluir um rabicho no texto da PEC aprovada pelo Senado e em tramitação na Câmara limitando o foro privilegiado, que não valeria mais para crimes comuns de parlamentares e autoridades, com exceção dos presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF. A intenção seria incluir, entre vírgulas, os ex-presidentes da República na lista dos que vão manter a prerrogativa.

De quebra, beneficiaria todos os demais ex-presidentes da República, notadamente o ex-presidente Lula, o que poderia assegurar os votos do PT e de seus aliados a favor da mudança na PEC. Se aprovada, Lula sairia das mãos de Moro para as dos onze ministros do STF, alguns deles nomeados pelos governos do PT. Não é garantia alguma, mas pode fazer uma grande diferença - por exemplo, aquela que lhe daria a condição de ser candidato.

A discussão está restrita a poucos interlocutores, mas é nesse rumo que as coisas caminham. Michel pode ter virado pato manco, mas ainda tem alguma tinta na caneta e uma baita estrutura partidária. É incapaz de eleger o sucessor, mas pode influir e atrapalhar a vida de muita gente, sobretudo dentro da base aliada. É bom prestar atenção, porque todos os seus movimentos a partir de agora serão impulsionados pelas necessidades prementes dessa agenda oculta.

* Helena Chagas é jornalista desde 1983. Exerceu funções de repórter, colunista e direção em O Globo, Estado de S.Paulo, SBT e TV Brasil. Foi ministra chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (2011-2014). Hoje é consultora de comunicação


Míriam Leitão: Mentiras convenientes na era da pós-verdade

Na era da pós-verdade, é bom o retorno a algumas realidades: a ex-presidente Dilma provocou surto inflacionário, recessão e desrespeitou as leis fiscais. Mereceu o impeachment que sofreu. Seu vice foi escolhido por quem formou a chapa e votou nela. Dilma e Temer são frutos da mesma escolha partidária e eleitoral. Criticar um não é apoiar o outro, e vice-versa.

O ex-presidente Lula, que escolheu Dilma sem ouvir o partido, usando seu poder majestático, diz agora que o povo se sentiu traído quando ela fez o ajuste fiscal e quando aprovou as desonerações para as empresas. Está querendo se descolar da ex-presidente, que deixou o governo com baixo nível de popularidade. Como a aprovação do presidente Temer é ainda mais baixa, muita gente esqueceu que ela chegou a ter apenas 10% de ótimo e bom.

Lula conhece esses números e estava esperando um bom momento e lugar para fazer essa separação de corpos entre ele e a sua sucessora. Escolheu um jornal estrangeiro, para ter menos contestações às suas invenções. Escolheu criticar dois pontos que acha que são antipáticos: o ajuste fiscal e a transferência de dinheiro para empresários. Ajuste, como as dietas, ninguém gosta de fazer. É apenas necessário quando há um descontrole como o criado pela Dilma. Ela recebeu o país com 3,5% do PIB de superávit primário, entregou com 2,4% de déficit e colocou a dívida pública numa rampa na qual ela continua subindo.

Parte desse desarranjo foi consequência das desonerações e subsídios para os empresários. Lula agora diz que foi um erro. Mas foi ele que começou a política junto com o seu ministro Guido Mantega. Dilma manteve o ministro e aprofundou as medidas. Foi no governo Lula que começaram as transferências para o BNDES, a ideia de recriar os campeões nacionais, os subsídios, o uso dos bancos públicos e tudo aquilo que favoreceu empresários em geral, e alguns em particular, como Joesley Batista, Eike Batista e Marcelo Odebrecht.

Temer conspirou abertamente contra Dilma, mas foi ela que criou o ambiente que desestabilizou seu governo, quando provocou um choque inflacionário e uma queda livre do PIB. É difícil um governo sobreviver a essa dupla. Foi eleita mentindo sobre a situação da economia, com a ajuda dos magos em efeitos especiais João Santana e Monica Moura, que montaram um país cenográfico. Quando a verdade apareceu, sua aprovação despencou e sua base se esfarinhou. Foi nesse ambiente que a conspiração de Temer teve espaço. E ocorreu dentro do grupo que estava no poder. A ex-presidente detestava o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, mas deu a ele acesso direto ao dinheiro do trabalhador, no FI-FGTS.

Geddel Vieira Lima e seus 51 milhões de “dinheiros” não traiu ninguém. Serviu a vários senhores. Esteve sempre perto dos governos, é íntimo do presidente Temer, mas teve cargos poderosos nos governos Dilma e Lula. Foi ministro de Lula e teve uma vice-presidência da Caixa no governo Dilma. As malas e caixas de Geddel apareceram mais de três anos depois de iniciada a mais ampla operação de combate à corrupção. É por isso que o juiz Sérgio Moro diz que não está julgando o problema da altura da saia, mas sim a corrupção. É com criminosos seriais que o país está lidando.

Vários deputados petistas votaram contra Temer afirmando estar fazendo isso porque são contra a reforma da Previdência. O ex-presidente Lula também fez uma reforma da Previdência, que levou inclusive um grupo a sair do partido e formar o PSOL. A ex-presidente Dilma prometeu fazer uma reforma e aprovou mudanças no pagamento das pensões das viúvas jovens. Qualquer um que governar o Brasil terá que enfrentar esse desequilíbrio. O relatório da CPI da Previdência dizendo que o déficit não existe é tão verdadeiro quanto uma nota de três reais.

Muitos dos deputados que foram ao microfone gritar contra a corrupção de Temer sustentam que as acusações feitas ao ex-presidente Lula e outros petistas são falsas e fruto da perseguição que eles sofrem do juiz Sérgio Moro e dos procuradores. A mentira e a manipulação passaram a ser a ordem do dia. São a pós-verdade dos tempos atuais ou a velha mentira conveniente.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)