legado

Foto: Divulgação do acervo da Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata | Arte: Ana Schuller

O Legado da Tia Ciata

Luiz Carlos Prestes Filho*

A Matriarca do Samba de Sambar e do Carnaval do Brasil, Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, estava em seu terreiro, na Praça Onze, quando modernistas, em São Paulo, realizavam a Semana de Arte Moderna de 1922. Claro, os organizadores do evento modernista não imaginavam que a obra daquela mulher negra um dia seria tão importante como as obras de um Mário de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Menotti Del Picchia, Vicente do Rego Monteiro, Guiomar Novaes, entre outros.

Por outro lado, naquele mesmo ano, reunidos em Niterói para fundar o Partido Comunista Brasileiro (PCB), Manuel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrogildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres, José Elias da Silva, Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro, também não tinham noção da poderosa força social que estava sendo germinada no terreiro da Tia Ciata.

Os 18 heróis do Forte de Copacabana, que liderados pelo tenente Antônio Siqueira Campos, caminharam com coragem frente ao inimigo de peito aberto, possivelmente nunca tinha ouvido dos compositores Pixinguinha, Sinhô e Donga que, reunidos no terreiro da Tia Ciata, em 1922, estavam dando voz a voz do povo brasileiro.

Entendo que sem a obra da Tia Ciata não podemos entender em sua totalidade o ano de 1922. Em especial, nas artes. Durante 100 anos acadêmicos universitários nos impõem a Semana de Arte Moderna como o único evento fundador do modernismo no Brasil. Desconsiderando simultaneidades. Como se a cidade de São Paulo tivesse sido a única fonte de renovação das artes no Brasil.

Certa vez, quando perguntaram ao Tom Jobim sobre a origem da bossa-nova, ele prontamente respondeu: “Nasceu no terreiro da Tia Ciata!”

Essa resposta do compositor me levou para a autocrítica realizada pelo Mário de Andrade, um dos nomes centrais do modernismo, de que a semana de 1922 esteve distante do sentimento de revolta que tomava o Brasil naquele ano. Inclusive, na diversidade de representação. O evento paulista contemplou a elite e foi financiado pela elite.

Neste sentido, a Tia Ciata tinha muito mais representação. Ela desenvolveu sua arte juntamente com letrados e não letrados, ricos e pobres, poderosos e excluídos. Reconhecer que o terreiro da Tia Ciata tem a mesma importância que a Semana de Arte Moderna, que os 18 do Forte de Copacabana e a fundação do PCB, é fundamental para a História do Brasil. Sem o Samba de Sambar e sem o Carnaval não seríamos modernos.

*Luiz Carlos Prestes Filho é diretor de cinema formado pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética (URSS), escritor, jornalista e compositor.


Arte: João Rodrigues/FAP

Podcast especial analisa o legado de Pelé, o Rei do Futebol

João Rodrigues, da equipe da FAP

O maior atleta do Século 20, o maior jogador de futebol da história, o maior brasileiro de todos os tempos. Edson Arantes do Nascimento morreu, mas o legado de Pelé será eterno. O Rei do Futebol usou a fama também para trabalhar por causas nas quais acreditava, desde a paz mundial até os direitos da criança e o combate à pobreza.

Para analisar, a trajetória de Pelé dentro e fora de campo, o podcast desta semana da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) conversa com Álvaro Silva e Henrique Brandão. Capixaba de Vitória, jornalista e escritor, Álvaro José dos Santos Silva é membro da Academia Espírito-santense de Letras. Carioca, jornalista e escritor, Henrique Brandão é fundador do bloco Simpatia É Quase Amor e autor do romance Coração Vagabundo, publicado pela Editora Ponteio.



O combate ao racismo protagonizado pele Rei do Futebol, a importância histórica da Lei Pelé para o esporte brasileiro e as relações de Pelé com a política também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios do Plantão da Globo, Jornal da Band, Jornal da Record, DW Brasil e da narração de Edson Leite do 1º gol de Pelé na Final da Copa do Mundo de 1958.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google PodcastsAnchorRadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.

RÁDIO FAP




Pelé | Foto: Paulo Whitake/Reuters

Revista online | A marca Pelé

Álvaro José Silva, escritor e jornalista*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)

Não me lembro bem das circunstâncias, mas um dia estava num ônibus que passaria pelo Pacaembu. Havia uma aglomeração em torno da mulher negra, vestida com o uniforme do Corinthians e que estava indo para o estádio onde jogariam seu time e o Santos. O Santos de Pelé.

Conversa daqui, conversa dali, e veio à tona o “tabu”. O Corinthians ficou 11 anos sem vencer o Santos, quase tudo por obra e graça “dele”, como falavam todos, inclusive Eliza, a torcedora símbolo. Perguntaram a ela se o “tabu” cairia naquele dia. “Acho que sim”, respondeu. E se Pelé um dia jogaria pelo Corinthians. “Quando estiver veterano”, apostou. Errou em ambas as previsões e desembarcou logo em seguida no ponto da Praça Charles Muller. O Rei do Futebol jamais jogou no Corinthians e o “tabu” caiu um ou dois anos depois, quando o Santos perdeu por 2 a 0 no mesmo Pacaembu. No dia seguinte a manchete em letras garrafais do jornal Gazeta Esportiva era: “Alegria, acabou o tabu”.

Acho que Eliza viu esse jogo. Não posso afirmar, mas ela ia a todos. Eu não pude ir porque o advogado amigo de papai que me levava chegou muito tarde e não havia mais lugar no estádio. Voltamos correndo para casa e vimos o clássico na TV pois a Federação Paulista de Futebol liberou a transmissão da TV Record ao vivo para evitar qualquer tipo de confusão. Eu, corintiano sempre apaixonado, vi o segundo tempo dos gols de Paulo Borges e Flávio com lágrimas nos olhos. Acabou o tabu!

Confira a versão anterior da revista Política Democrática online

Era assim que o futebol vivia ainda nas décadas de 1960/70. Gravitando em torno do Santos e de Pelé. E os jogos entre os chamados grandes lotavam os estádios quando aconteciam. Quase invariavelmente os santistas eram favoritos. Na rua onde eu morava, no bairro da Aclimação, São Paulo, éramos vizinhos de uma família de italianos. Luiz, o filho mais velho do fabricante de estátuas de alabastro era, claro, palmeirense. O irmão mais novo, Ricardinho, não. Contra a vontade da família toda torcia pelo Santos de Pelé. E isso acontecia com milhares de outros garotos em São Paulo e inúmeros outros lugares do Brasil e até mesmo do exterior já naquela época.

Antes do surgimento do maior jogador da história, o Santos era um clube médio, de um balneário muito procurado. Com Pelé, ele ganhou uma projeção nunca antes imaginada por ninguém. Afinal, era o endereço de Pelé e seus súditos: virou grande entre os grandes e começou a conquistar títulos em profusão. Também se tornou dono de uma das maiores torcidas de São Paulo, com adeptos apaixonados espalhados pelo Brasil todo e pelo exterior também. Eram os torcedores de Pelé, os admiradores do Rei que, quando vestia a camisa da Seleção Brasileira acabava reverenciado em todos os lugares. A marca Santos se tornou mais perene que a do Botafogo de Garrincha. E os dois viveram mais ou menos na mesma época.

O que Pelé tinha e os outros, não? Ele simplesmente era completo. Passava a bola, armava jogadas, chutava, dava assistência, cabeceava, cobrava faltas, escanteios, batia pênaltis, orientava os mais novos e até os mais velhos, discutia tática de jogo até com os técnicos. Sempre com genialidade. Em consequência disso tudo, tornou-se um grande conquistador de mulheres. Ia encerrar a carreira no Santos, mas não conseguiu resistir a uma proposta financeiramente imensa do New York Cosmos. Foi embora para tornar o futebol popular nas terras do basquete, do rugby, do beisebol e de outras modalidades meio estranhas a nós, os brasileiros.

Há uma diferença abissal entre Pelé e os jogadores de sua época e os atuais. E não apenas em termos de qualidade técnica, mas também em conscientização sobre o valor que cada um deve ter e dedicar ao exercício da atividade. Pelé jogou na época de Coutinho, Mengálvio, Pepe, Dorval, Zito e mais craques. E não apenas os do Santos, mas também Leivinha, Dudu, Ademir da Guia, Dino, Rivelino, Flávio e muitos outros. Tantos que a gente se esquece e nem tem espaço para falar de todos eles. Cito uma diferença fundamental: eram pessoas que vendiam sua arte despida de tudo o mais, menos os uniformes de jogo. Não eram árvores de falso Natal cobertas de tatuagens de cima abaixo. E nem aproveitavam os jogos de Copas do Mundo para saborear filés com ouro nos intervalos de uma para outra partida.

A exemplo de Neymar, Pelé tomava muitos trancos. Mas devolvia. Ao longo da carreira eu o vi nos estádios – sim, eu o vi ao vivo! – fazendo sinal de “aguarde o troco” para o adversário que o havia agredido. E não era de ficar caído no chão, rolando como uma bola. Levantava-se imediatamente como mola. Na Copa do Mundo de 1970, no México, atrasou um pique para esperar o adversário uruguaio que o estava caçando em campo. Deu-lhe uma cotovelada tão forte na cara que quase arrancou a cabeça do sujeito. Procópio, jogador do Cruzeiro, teve a perna fraturada num revide de Pelé. Giesemann, jogador da Alemanha, da mesma forma. Então os adversários sabiam que era perigoso caçar Pelé em campo. Por consequência, tentavam parar aquela máquina de jogar com futebol limpo. E ele retribuía da mesma maneira.

A gente pode argumentar: então o nosso Rei era violento? Sim, quando necessário. O gênio da bola estava longe de atuar como um monge budista. Num passado mais recente, quem chegou mais próximo da excelência dele foram jogadores como Zico e Sócrates, para ficarmos em apenas dois exemplos. Ambos eram virtuoses em sua profissão. Sócrates, tanto na bola quanto no copo, mas ninguém ligava para isso porque o retorno em campo estava garantido. Ironia do destino: nenhum dos dois foi campeão do mundo.

Mas não por ironia, Neymar também não será. O futebol que ele joga, e muitos dos nossos craques atuais vivem, muito mais de autopromoção do que de responsabilidade profissional. Querem ser astros sem história. Eu disse no início que Pelé gostava muito de mulher. Mas ele não se envolvia em escândalos, ao que consta jamais cometeu violências e, por consequência, nunca enfrentou um problema nessa área. Muito parecido com Sócrates, que mantinha a vida privada como coisa somente sua. Diferente de Zico, a vida toda casado com sua Sandra e somente com ela.

Vini Júnior, muito novo, talvez viva no futebol tempo suficiente para desembarcar no Brasil com o troféu da Copa do Mundo. Mas terá que rever seus princípios, sua maneira de viver e de encarar a profissão. Não basta apenas saber jogar para chegar ao Olimpo. O Palmeiras tem hoje Endrich, menino menor de idade e com um futebol fabuloso, tanto que já foi negociado para a Europa. Seria vital se as pessoas conseguissem enfiar na cabeça dele que a receita do sucesso passa por Pelé e não por Neymar. Também seria de bom tom explicar isso a Raphinha e a Richarlison, embora esse último seja apenas um rompedor. Problema nenhum porque Vavá também era e foi campeão do mundo pelo Brasil.

Nós ainda temos muito potencial, mas ele está sendo perdido por causa do descompromisso dos jogadores com a responsabilidade que o futebol cobra de seus profissionais. E isso hoje tem muito a ver também com os treinadores, já que eles aceitam situações que no passado seriam impensáveis. Dizem: fora de campo a vida dos jogadores é problema deles. Não é.

Pelé, muito jovem, teve a oportunidade de jogar uma vez pelo Vasco, seu time do coração na infância, antes de ser tomado de amores pelo Santos. Interessante, mas o clube do bairro carioca de São Januário também tinha uma mulher, Dulce Rosalina, como sua torcedora símbolo. E, ironia do destino, foi no Vasco do goleiro Andrada que o Rei marcou seu milésimo gol, numa cobrança de pênalti, em pleno Maracanã que o reverenciava.

Veja, a seguir, galeria:

Foto: Divulgação/Instagram do Pelé
Foto: Neil Hall/Anadolu Agency/Getty Images
Foto: Ronaldo Kotscho/Revista Placar
Foto: Reprodução/Twitter do Pelé
Foto: Reprodução/Divulgação Santos FC
Foto: Gabriel Lopes/Getty Images
Foto: Francois Guillot/AFP
Foto Divulgação/Instagram do Pelé.png
Foto: Divulgação/CBF
Foto: Alessandro Sabattini/Getty Images
Foto: Divulgação/Instagram do Pelé
Foto: Neil Hall/Anadolu Agency/Getty Images
Foto: Ronaldo Kotscho/Revista Placar
Foto: Reprodução/Twitter do Pelé
Foto: Reprodução/Divulgação Santos FC
Foto: Gabriel Lopes/Getty Images
Foto: Francois Guillot/AFP
Foto Divulgação/Instagram do Pelé.png
Foto: Divulgação/CBF
Foto: Alessandro Sabattini/Getty Images
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Foto: Reprodução/Divulgação Santos FC
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Foto: Francois Guillot/AFP
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Foto: Divulgação/CBF
Foto: Alessandro Sabattini/Getty Images
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Mas quem não fazia isso era o goleiro Mão de Onça, do Juventus. Nascido Durval de Moraes em 1931 e ainda vivo hoje, negro que chegava a brilhar, tinha um medo paranoico de Pelé. Quando jogava contra seu maior algoz, começava a gritar com os companheiros, tão logo o jogo começava: “Segura o Negão! Porrada no Negão! Cerquem o Negão! Marquem o Negão!” e ia por aí. Invariavelmente o Negão vencia e o pobre Mão de Onça ia buscar a bola no fundo das redes. Hoje há uma estátua de Pelé no estadinho do clube no bairro da Mooca, na Rua Javari, em São Paulo.

Mas não por causa de seu goleiro. É que foi lá, em 2 de agosto de 1959, que o Rei marcou aquele que ele próprio considerava seu maior gol. Recebeu a bola na entrada da área, deu um chapéu no primeiro adversário, em seguida deu outro no segundo e, com Mão de Onça no ar, saltando para evitar o gol, ainda teve como dar um terceiro nele e depois tocar de cabeça para o gol diante de incrédulos torcedores que se levantaram para aplaudir de pé.

Quando ele jogava bem não dava para segurar o Negão!       

Sobre o autor

*Álvaro José dos Santos Silva é escritor e jornalista.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Quando se mobilizam retoricamente as paixões, sempre se coloca sob suspeição a civilidade e se constitui uma ameaça à democracia | Foto: Shutterstock

Ascensão e legado do bolsonarismo segundo Lynch e Cassimiro

Ricardo José Marinho,* Gramsci para o Brasil

A noção de populismo encontra-se em discursos muito diferentes e, claro, em diferentes realidades. Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro propõem-se reconstruir em nossa história recente os elementos que lhe deram vida aqui e fazem uma crítica mais pertinente do que nunca. Para além das especulações de todo tipo e das diferentes abordagens acadêmicas, a verdade é que o fenômeno tem impactado e desgastado ao extremo – e talvez irreversivelmente – as democracias. Não é uma questão restrita às universidades e faculdades, mas está no núcleo do debate e da preocupação pública.

Os autores resgatam elementos constituintes da construção narrativa da política populista reacionária: uma concepção do povo, uma modalidade de representação, uma política e uma filosofia da economia e um regime de paixões e emoções. Cada um desses elementos é analisado e, em seguida, são reconstruídos alguns dos episódios que deram azo a esses momentos que podem ser considerados como irrupções do populismo reacionário, para finalmente realizar uma crítica perspicaz e pertinente.

O livro vai longe. O componente e nutriente emocional do populismo reacionário mobiliza ressentimentos de forma destrutiva, colocando ácido nas balizas do acordo democrático, mas também deslocando a tradição que lançou a arquitetura da ilustração entre nós; uma arquitetura que apostava na razão, no conhecimento e na ciência como características modelares da conversa pública, da convivência e até mesmo da luta política.

Quando se mobilizam retoricamente as paixões, sempre se coloca sob suspeição a civilidade e se constitui uma ameaça à democracia. Inclinada a falsificar julgamentos, desviar comportamentos, perturbar as relações com os outros e derruir a convivialidade na sociedade, isso pode engendrar nos grupos humanos, compostos de indíviuos isoladamente racionais, um sentimento de multidão incontrolável e até criminosa. Primeiro em linguagem comum e, depois, mesmo na ordem intelectual, a conotação reacionária se firma. Por referir-se ao excesso, a uma força descontrolada, tudo passa a ser quase como um sinônimo de “emoção” ou mesmo mais uma variável da ação humana. No entanto, seu uso em linguagem cotidiana gera muitas apreensões, uma vez que se mostra relevante quando as paixões extremas (em oposição à razão) inundam o espaço público.

É claro que paixões e política não podem ser dissociadas. Elas são combustíveis fundamentais para mobilizações de todo tipo. Muitas vezes, para quem a encarna, a política está cheia de emoções, tratando-se de matéria de graus. Não estamos, quando falamos de política, diante de uma atividade “fria” e/ou apenas racional, mas, se a racionalidade estiver nublada – ofuscada – pela emoção, todos estaremos em dificuldades.

O populismo reacionário soube capturar e explorar essas emoções. O sentimento de raiva, de não ser considerado, produto de uma divisão entre o mundo dos poderosos e o resto dos mortais, foi colocado à flor da pele. E esse ressentimento tornou-se um poderoso nutriente para o discurso populista.

Paradoxalmente, nas sociedades democráticas, a informação corre com enorme velocidade e combina verdades com inverdades descaradas. As redes aumentam o poder das trocas e a leitura do significado do que está acontecendo torna-se mais difícil. Há uma catarata imparável de informação, quase impossível de digerir e ordenar. Nesse roldão, as versões conspiratórias acabam maculando as tentativas políticas de restaurar a coerência em um mundo vivido como indecifrável e ameaçador. O populismo reacionário atua como uma espécie de sedativo, oferecendo ordem à desordem e suposta compreensão ao caos. E somado a isso há erosão da confiança nas instituições democráticas, o ambiente armado para a exploração de visões simplistas, como a contundente contraposição entre “nós, o povo” e “a máfia no poder”. Na percepção de Tocqueville, uma ideia falsa, mas clara e precisa, terá sempre mais força no mundo do que uma ideia verdadeira e complexa.

Não é então apenas a expansão de um impulso reacionário, mas algo mais profundo. É um composto discursivo que atenta contra os grandes pilares civilizatórios que apostam no conhecimento científico e no humanismo como forja de um espaço público conhecedor e razoável, promotor de diálogo e debate informados, uma sociedade de indivíduos e não alguma forma de rebanho.

Kant disse que o Século das Luzes significaria o abandono pela humanidade da condição de minoridade. Esse abandono da minoridade significava vencer a eventualidade de ser usado ou ser guiado por outra pessoa. O populismo reacionário marcha na direção oposta: o mito parasitário – nos termos de Manuel Bomfim – pastoreia uma visão de mundo como um mingau simplista e contundente, explorando as emoções e oferecendo-lhes uma sensação de falsa transcendência.

É necessário recordar, como o fazem Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, que foi o momento civilizatório das Luzes que forjou usos e costumes, bem como direitos, instituições e normas que permitem uma convivência cidadã. O mais preocupante com a proliferação das alavancas populistas reacionárias é que elas não apenas minam o arranjo democrático, mas também vão de encontro a muitos dos hábitos que permitem uma vida democrática e republicana.

Texto publicado originalmente em Gramsci para o Brasil.


DW Brasil: Qual será o legado da presidência de Trump?

Os quatro anos de mandato do republicano deixarão marcas que devem ser sentidas por décadas, da economia e do Judiciário americanos à relação dos EUA com o mundo

Gerações futuras terão que se confrontar com o legado de Trump.

Após quatro tumultuosos anos, a presidência de Donald Trump chega ao fim nesta quarta-feira (20/01), deixando um legado misto, a ser estudado por décadas.

Desde que o magnata imobiliário e astro de reality TV adentrou a Casa Branca, seu governo esteve infestado por controvérsias e escândalos. A reação atrasada à pandemia de covid-19, seu papel no violento ataque ao Capitólio , em Washington, em 6 de janeiro, assim como o segundo impeachment, vão se sobrepor a qualquer coisa que ele haja implementado em seu mandato.

Talvez mais do que o de qualquer outro presidente dos Estados Unidos, o legado trumpista será visto por duas lentes fortemente contrastantes. Conservadores, a abastada classe empresarial e a direita religiosa o reverenciarão como um dos grandes presidentes de todos os tempos.

A maioria dos americanos, entretanto, o condenará com desprezo, como evidencia uma consulta popular do Pew Research Center, segundo a qual Trump deixa o cargo com apenas 29% de aprovação, a pior de toda a sua presidência.

Isso, porém, não impede adeptos e aliados de o louvarem por ter abalado as bases do establishment e implementado rapidamente parte das promessas de sua campanha eleitoral de 2016.

Onda conservadora no Judiciário

O impacto de Trump sobre o sistema judiciário federal certamente será seu legado mais duradouro, a ser sentido por gerações futuras. Ele nomeou três juízes para cargos vitalícios na Suprema Corte, cimentando o maior viés conservador do órgão, com repercussões que vão desde os direitos LGBTQ+ e de reprodução, até a assistência de saúde, imigração e políticas trabalhistas.

Além disso, Trump indicou mais de 200 juízes para os tribunais federais, os quais decidirão em favor dos republicanos e conservadores em suas magistraturas vitalícias.

"Esse foi o acerto que ele fez com a direita evangélica e com as elites do Partido Republicano, e colocou esses juízes", afirma Michael Cornfield, professor associado e diretor de pesquisa do Centro Global de Gestão Política da Universidade George Washington.

De acordo com um relatório de 2019, um de cada quatro dos atuais juízes das circuit courts americanas foi nomeado por Trump, todos ferrenhos conservadores ideológicos, cumprindo uma promessa de campanha feita a seu eleitorado.

Gordos cortes tributários para os ricos

Trump terminou seu primeiro ano no cargo assinando uma lei que trouxe enormes e permanentes cortes dos tributos corporativos, de 35% para 21%. Também houve redução dos impostos das pessoas físicas, embora essas mudanças tenham sido temporárias e menos significativas.

Os cortes representaram uma bonança para os mais ricos dos EUA e os grandes conglomerados, muitos dos quais aplicaram o dinheiro extra na recompra de ações e em bônus para os executivos, em vez de aumentar os salários de seus empregados.

Tais medidas também poderão deixar em apuros os contribuintes: o apartidário Departamento Orçamentário Congressional estimou que eles acrescerão em US$ 1,9 trilhão o déficit americano nos próximos dez anos.

Além disso, os críticos do ainda presidente temem que os baixos assalariados e os mais vulneráveis é que vão pagar o pato, já que os conservadores consideram equilibrar o orçamento cortando programas de seguridade social.

Derrubar e renegociar acordos

Trump ascendeu ao poder, em parte, graças à promessa de derrubar e renegociar antigos acordos comerciais entre e os EUA e outros países. E cumpriu, embora muitas vezes de modo caótico, desencadeando guerras comerciais com a China e trazendo insegurança às empresas nacionais.

Por outro lado, Trump conseguiu anular um pacto comercial crucial, o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta, na sigla em inglês), que ele tachara de "pior acordo comercial do nosso país" e datava do governo Bill Clinton, substituindo-o por um acordo renegociado, que até mesmo seus críticos reconheceram ser melhor.

O substituto, denominado Acordo Estados Unidos-México-Canadá, inclui proteções trabalhistas mais modernas, assim como cláusulas ambientais e trabalhistas reivindicadas por muitos críticos de Trump no Congresso. Até mesmo alguns dos críticos mais severos do magnata – como a presidente da Câmara dos Representantes, democrata Nancy Pelosi – admitiram que o pacto renegociado é melhor que o Nafta.

"America first", o circo

As conquistas da administração Trump não são sempre aferidas por suas medidas políticas, mas por terem alterado o modo como os americanos e o mundo veem Washington. A agenda "America first" era muitas vezes vaga, mas fez o resto do mundo prestar atenção.

Nos estágios iniciais da campanha eleitoral de 2016, Trump zombou das políticas exteriores e comerciais do governo Barack Obama. Num artigo de opinião em 2015, ele as condenou como "desorientadas e incompetentes", assegurando que uma "administração Trump vai nos transformar novamente em vencedores".

A partir daí, ele governaria de maneira anticonvencional e imprevisível. Na avaliação de Jason Grumet, presidente do Bipartisan Policy Center de Washington, o "presidente Trump antagonizou numerosas instituições" e "rompeu as normas de governos  anteriores".

E ele levou esses métodos anticonvencionais até o palco internacional, abalando normas diplomáticas de longa data. Em 2017, retirou seu país do Acordo do Clima de Paris, acusando-o de ser "injusto no maior grau com os Estados Unidos".

Além disso, detonou o Acordo Nuclear do Irã, transferiu arbitrariamente a embaixada americana em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, e tentou estabelecer laços diplomáticos com o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un.

"Tuiteiro-Chefe" e seu eleitorado dos despossuídos

Muito disso tudo Trump realizou através de sua conta do Twitter. Apesar de ela agora estar suspensa, ele teve impacto inegável sobre a forma como as redes sociais podem usadas para fazer campanha política e governar.

Ele usou as postagens para estabelecer sua marca política e, durante toda sua legislatura, atacar adversários políticos, demitir altos funcionários do governo e interagir diretamente com seus leais seguidores. Isso lhe valeu o apelido de "Tweeter-in-Chief" ("Tuiteiro-Chefe").

"O presidente Obama utilizava as redes sociais de um jeito que era mais tradicional", comenta Jason Mollica, diretor de currículo da escola de comunicação da American University: Trump "rompeu a forma como vemos a mídia social".

Graças a sua abordagem bombástica e tiradas frequentes, passou a ser venerado por um bloco eleitoral composto por indivíduos majoritariamente brancos e evangélicos, que alegam ter sido despossuídos pelas assim chamadas "elites de Washington". Isso trouxe novo reforço ao Partido Republicano.

"Politicamente, ele conseguiu reunir uma coalizão que eles [os republicanos] nunca haviam visto antes", comentou à DW Laura Merrifield Wilson, professora assistente de ciência política da Universidade de Indianápolis. "Ele trouxe o seu próprio nicho de apoio."


Míriam Leitão: Cuidar do legado, regar a semente

Quase dois anos após a morte de Marielle Franco, instituto trabalha para cuidar do seu legado, cobrar justiça e preparar mulheres para a inclusão política

Pedra do Sal é um marco do coração do Rio, por onde passou muita história do país e da escravidão. Durante o mês de março haverá um espaço por lá chamado “Casa de Marielle”. É o primeiro passo do instituto que leva o nome da vereadora assassinada há quase dois anos. Durante todo o mês, haverá atividades, principalmente no dia 14. A diretora do Instituto Marielle Franco, Anielle, tem planos de que ele possa “cuidar do legado, regar a semente e batalhar por memória e justiça” desse crime ainda sem resposta.

Anielle foi jogadora de vôlei profissional, morou 12 anos nos Estados Unidos e voltou com o mestrado em inglês e jornalismo pela Universidade da Carolina do Norte. Sua maior incentivadora era a irmã, cinco anos mais velha.

— Eu pensei várias vezes em desistir, porque era muito tempo longe da família. Mari dizia: fica que eu estou ralando para você estar aí. Um dia você vai voltar e ver o quanto foi importante. Hoje quando vejo o tamanho que a Mari se tornou e eu penso que posso ir aos Estados Unidos fazer uma palestra sobre ela em inglês. Nunca consegui fazer isso sem me emocionar — diz Anielle, lembrando que a irmã queria muito que ela aprendesse inglês.

A saudade vem sempre no meio de muita batalha. Tem sido assim há quase 24 meses. Nunca foi possível descansar. Perguntei o que ela sentia ao ver que uma nota do Planalto reuniu Marielle e o miliciano Adriano Nóbrega. Um trecho dizia que “os brasileiros honestos querem saber os nomes dos mandantes das mortes de Marielle e do capitão Adriano”. Anielle chorou:

— É difícil para mim, como irmã, pessoa criada com ela, perceber que ainda tentam colocar Marielle no mesmo patamar de uma pessoa como Adriano. Parêntesis sobre ele: nenhum ser humano merece ser morto. Mas minha irmã foi vítima de um feminicídio político.

A nota foi emitida pelo Planalto, no meio da briga do presidente Jair Bolsonaro com o governador Rui Costa, da Bahia. Falava também em Celso Daniel, mas o nome da vereadora assassinada junto ao do miliciano, foi, de fato, um despropósito.

A entrevista foi na Câmara dos Vereadores, onde Marielle exercia seu mandato e onde foi velada. Anielle lembrou que se preocupou em colocar uma faixa na cabeça da irmã que escondesse a marca dos tiros. Até hoje o crime não foi esclarecido e o assunto está sempre no meio da disputa política. A família prefere que a investigação não seja federalizada. O crime permanece impune e as redes de ódio têm na vereadora morta um dos seus alvos:

— O exemplo de mulher que eu tenho é ela. E me dói muito quando tenho que defender a índole e o caráter da minha irmã, porque ela era uma pessoa muito honesta, uma pessoa que não abaixava a cabeça, uma parceira que tentava fazer tudo muito certinho e iria muito longe. Tinha um potencial incrível e perceberam isso.

O instituto tem muitos planos e o que fez até agora foi através de financiamento coletivo. Um dos projetos é o das “escolas marielles”, de preparação de meninas e mulheres negras para a participação política. Anielle repete sempre que gostaria de que toda essa defesa do legado fosse suprapartidário, porque, mesmo sabendo que ela era uma vereadora do PSOL, quer que eleitores de outros partidos entendam e ajudem a divulgar a mensagem que ela deixou:

— Este é só o ano da estruturação do Instituto, mas temos muitos planos e o mês de março será de luta e de alegria, porque ela fazia política com muito afeto. Tenho muitos sonhos e me emociono. Sonho com o dia em que vou poder falar do legado da Mari sem ter que explicar que ela era uma política de esquerda ou de direita. Quero ver o instituto fortalecendo a vida de muitas meninas da Maré. Porque nós somos exceção à regra e quero passar para as meninas o sentimento de que é possível. Eu sonho com o instituto fazendo um trabalho do tamanho de Martin Luther King. Ultrapassar barreiras, olhar no olho de quem falou mal dela, espalhou fake news e dizer: tá vendo, enquanto vocês disseminam o ódio, a gente trabalha por um mundo melhor. Quero que as pessoas entendam que direitos humanos não é defender bandido, é defender o direito de ir e vir, de entrar e sair — como minha irmã estava saindo do trabalho — e não ser assassinada com quatro tiros na cabeça. Eu tenho muitos sonhos. Quero que o Brasil e o mundo tenham a dimensão do tamanho da Marielle. Ela é gigante.


Aloysio Nunes Ferreira: A reconstrução do Mercosul

Legado do governo do presidente Temer reclama continuidade, para o bem do Brasil

Há um debate na sociedade brasileira em torno da relevância do Mercado Comum do Sul (Mercosul). De fato, há pouco mais de dois anos o panorama era desolador. A letargia do bloco, evidente. Os propósitos que levaram à sua criação soavam como uma vaga lembrança, ocupados que estavam Estados-membros em utilizar o bloco para ecoar preferências ideológicas, sem conexão com os reais interesses de nossas sociedades.

Uma das maiores conquistas do governo Temer na área externa é ter colaborado para a reconstrução do Mercosul. Ao lado da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, o Brasil trabalhou com afinco para recuperar a vocação original de um regionalismo aberto. Os resultados apareceram rapidamente, tanto no interior do bloco como em sua articulação com o restante do Hemisfério e com a economia mundial.

Um passo importante foi a remoção de quase 90% dos 78 entraves que existiam no comércio intrabloco, como aqueles que dificultavam o acesso ao mercado argentino de carne bovina e banana. Não menos digna de registro foi a assinatura do Protocolo de Contratações Públicas, que abre uma valiosa frente de negócios para as empresas e reduz custos para os governos. Já o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos tornou o ambiente mais receptivo à atração de poupança externa. Adotamos, ainda, um plano de convergência regulatória em áreas como governo digital, governo aberto, segurança cibernética, assinatura eletrônica, direito do consumidor, pequenas e médias empresas e comércio eletrônico.

O diálogo foi destravado também com os países associados. O bloco subscreveu com a Colômbia acordo de complementação econômica que praticamente reduziu a zero as tarifas nas trocas bilaterais. Particularmente frutíferas foram as tratativas com o Chile. Formalizamos instrumentos para a liberalização das compras públicas e a facilitação de transações financeiras. Concluiremos até o final do ano um acordo de livre-comércio de segunda geração, harmonizando regulamentos e adensando os laços entre pequenas e médias empresas e em questões como propriedade intelectual e perspectiva de gênero.

Esses esforços renovaram a importância para o Brasil de um bloco que reúne 275 milhões de habitantes e representa a quinta economia do globo. Os benefícios para o setor industrial são expressivos. Mais de 90% de nossas exportações para os demais sócios no ano passado foram de bens industrializados (US$ 20,7 bilhões). Em 2017 foram para o Mercosul 18,5% de nossas exportações de manufaturas.

O bloco voltou a ser uma plataforma para uma inserção competitiva de seus membros na economia mundial. Se é verdade que teremos a partir de 2019, por causa dos acordos da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), uma área de livre-comércio de bens com a maioria dos países da América do Sul, também é verdade que ampliamos de maneira muito significativa os horizontes do Mercosul, a começar pela indispensável aproximação com a Aliança do Pacífico.

Na reunião de cúpula de Puerto Vallarta (México) foi adotado um plano de ação que prevê passos concretos em facilitação de comércio, cooperação regulatória, agenda digital e comércio inclusivo. Para aferir o potencial dessa aproximação basta lembrar que, juntos, o Mercosul e a Aliança do Pacífico respondem por 90% do produto interno bruto e dos fluxos de investimento externo direto na América Latina e no Caribe. O comércio entre os dois blocos alcançou no ano passado a cifra de US$ 35,3 bilhões, dos quais US$ 25 bilhões de transações do Brasil com a Aliança do Pacífico, um incremento de 21,4% em relação a 2016.

A abertura e a intensificação de negociações comerciais extrarregionais refletem com eloquência a reanimação do bloco. Vejamos o caso das tratativas para a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia. Passamos da inércia dos últimos governos a um notável empreendimento negociador, que logrou concluir até o momento 12 dos 15 capítulos do acordo. Por mais árduo que seja o esforço final de dirimir diferenças em áreas como o acesso ao mercado agrícola europeu, jamais estivemos tão perto da criação de um espaço com 750 milhões de pessoas e um produto de US$ 19 trilhões.

Lançamos também negociações com parceiros importantes como Canadá, Coreia do Sul, Associação Europeia de Livre Comércio (Efta, que reúne Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein) e Cingapura. E estamos engajados em ampliar o acordo com a Índia e o escopo das tratativas com o Egito, o Líbano e a Tunísia. Estão dadas as condições para o início das negociações de um acordo com o Japão, perspectiva recentemente saudada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Federação Japonesa de Negócios (Keidanren). Ressalto a importância da aproximação com a Ásia, continente para onde, sabemos todos, se deslocou o eixo de gravidade da economia mundial. Pude constatar em visitas à região quão densa é a teia de acordos preferenciais firmados entre os asiáticos e com terceiros atores. Pleiteamos nossa entrada nesse circuito, onde estão em jogo oportunidades imensas de participação em cadeias globais de valor e de captação de investimentos.

É esse o legado do governo do presidente Michel Temer em relação ao Mercosul, que reclama continuidade para o bem do Brasil e de sua presença internacional. É por uma interação cada vez mais intensa com os vizinhos e com o mundo, e não olhando no retrovisor, que aumentaremos a eficiência e a produtividade de nossa economia, com ganhos óbvios na geração de renda e emprego. Concorremos, outrossim, para confirmar o comércio e a integração econômica como fatores de prosperidade e de bem-estar social, em contraponto a impulsos protecionistas que nada aportam a seus promotores e à comunidade internacional como um todo.

* Aloysio Nunes Ferreira é ministro das Relações Exteriores


Mário Soares

Luiz Sérgio Henriques: O legado de Mário Soares

Se o século 20 foi breve, começando com a conflagração de 1914 e terminando sob os escombros do Muro de Berlim ou com a dissolução da URSS, seus temas e personagens às vezes só lentamente se despedem de nós, voltando inesperadamente de um relativo esquecimento para nos assombrar com a atualidade de gestos individuais e dramas coletivos que marcaram mais de uma geração. A morte de Mário Soares, figura emblemática do Portugal moderno, propicia um desses retornos: com ela vêm à memória o país anacrônico do fascismo e as promessas da nova democracia, o colonialismo tardio e os capitães de Abril, os rumos pós-revolucionários separados entre a Europa social-democrata e a do “socialismo real”, uma fórmula defensiva que então parecia ainda capaz de emocionar corações e mentes.

Para Portugal naquele momento se dirigiram as atenções de tantos que viam na derrubada do fascismo a possibilidade de uma revolução social à moda antiga, com seu receituário testado no Leste Europeu: a nacionalização ou a estatização da economia, a afirmação inevitavelmente autoritária de um partido sobre o Estado e a sociedade, o poder assentado na aliança entre o povo e os militares progressistas, num movimento que varreria o fascismo e abriria um flanco no Ocidente univocamente regressivo e imperialista.

Essa visão de mundo, evidentemente, supunha uma lógica binária, uma confrontação aberta ou subterrânea entre “campos” contrapostos. Álvaro Cunhal, o inquebrantável dirigente comunista da resistência, fazia-se o principal intérprete dessa extremada “hipótese de Abril”. Uma hipótese ameaçadora, dado que, entre outros limites, a cultura comunista ainda se via às voltas com conceitos enrijecidos, como a ditadura do proletariado. Já nos entregando à especulação contrafactual e ao humor dos anarquistas, vitoriosa tal possibilidade, muito provável que a Pide, a temível polícia fascista, tornasse a ser aberta em seguida, só que sob nova gerência...

Mário Soares era o homem da social-democracia numa de suas florações magníficas. A dar-lhe sustentação estavam dirigentes como Willy Brandt, François Mitterrand, Olof Palme e Bruno Kreisky, para não falar da compreensão e do apoio discreto do eurocomunismo de Enrico Berlinguer. Era a garantia da construção, num horizonte temporal largo e realista, do compromisso social-democrata entre mercado e direitos, capitalismo e democracia. Nada de “comunismo agora”, especialmente na forma soviética, já intrinsecamente corroída, como setores da própria esquerda crescentemente percebiam pelo menos desde a denúncia dos crimes de Stalin, a invasão da Hungria em 1956 e da Checoslováquia em 1968.

Os embates duríssimos com os comunistas e com a centro-direita marcaram a fisionomia política e intelectual de Mário Soares. Adversário desde sempre do fascismo e alheio ao integrismo comunista, Soares, numa frase de rara felicidade que voltou a circular por estes dias, afirmava-se um político socialista, evidentemente de esquerda, mas, antes disso, fundamentalmente um democrata. Nessa adesão irreprimível à democracia constitucional está a chave da grande arte política de Soares. Ou, para evocar termos de início do século breve, a chave da curiosa vitória, em Portugal, dos “mencheviques” sobre os “bolcheviques”, do marxismo antileninista sobre a ditadura “operária” do partido único.

Expressamo-nos metaforicamente, como está claro, uma vez ser duvidoso que a convulsão social de 1974-1975 pudesse ser caracterizada como situação revolucionária clássica, considerando a implantação minoritária da força política, o Partido Comunista, que a ela se aferrava. E, mais uma vez de modo contrafactual, um eventual Estado sovietizado que daí derivasse provavelmente teria tido a mesma sorte de seus coirmãos do Leste Europeu a partir de 1989. Nem é exato chamar de menchevique a orientação do PS português: afinal, a social-democracia europeia ocidental tem uma história própria, autônoma em relação aos nomes e às tendências da política russa de 1917.

O sentido da ação de Mário Soares, enraizada na economia social de mercado, na democracia representativa e na integração europeia, como logo adiante mostraria ser, constitui um capítulo adicional, relativamente tardio, das relações difíceis e nada lineares entre capitalismo e democracia política. Como afirma Habermas, teórico visceralmente comprometido com as liberdades, vistas em perspectiva histórica tais relações entre uma economia florescente e uma repartição mais justa de bens têm sido antes a exceção do que a regra. E, não por acidente, demandam forças de esquerda que se coloquem no terreno do constitucionalismo democrático, que têm ajudado a construir, embora contraditoriamente nem sempre o reconheçam como obra própria.

Hoje, a ação de socialistas como Mário Soares mais uma vez se encontra sob severo risco, a ponto de não poucos recordarem, como termo de comparação novamente saído do século breve, a conjuntura espinhosa dos anos 1930. Naquela altura, o fascismo e o nazismo pareciam em ascensão irresistível, fazendo recuar o liberalismo europeu. O mundo comunista, internamente congelado e precocemente incapaz de apontar um rumo positivo, marcado como estava por seu “pecado oriental”, ora se fechava sectariamente, ora se abria, nos momentos mais afortunados, para a aliança com os liberais e os socialistas, como nas chamadas frentes populares, que renovavam a capacidade de influenciar até a grande intelectualidade democrática.

De modo acidentado, os valores políticos do liberalismo então se salvaram não só por sua inegável força intrínseca, como também pela contribuição da esquerda em seu conjunto. Mais adiante, nos anos 1970, o doce e pequeno país de Mário Soares daria passos decididos no mesmo sentido. E, pensando bem, esse talvez seja o grande desafio que temos diante de nós.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil. Site: www.gramsci.org


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"Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado"

Karl Marx