judiciário

César Felício: Poder supremo

Judiciário, na prática, exerce um poder moderador

Se há algo que muda de forma surpreendente no Brasil é o entendimento do Judiciário sobre um fato. A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, manobra desesperada do ministro Edson Fachin para impedir a derrubada por completo de todas as punições determinadas no âmbito da Lava-Jato, é a maior tradução disso. Em uma corte antes tão escrupulosa com a forma, o Supremo Tribunal Federal agora é mais flexível em suas decisões. A questão de Curitiba não ser o foro adequado para se decidir sobre todos os casos no âmbito da operação já havia sido tratada pelo STF antes, e Fachin não concordava com a tese.. Agora foi uma das bases da decisão do ministro.

“Política é como nuvem, cada hora de um jeito”, frase em geral atribuída ao antigo governador mineiro Magalhães Pinto, aplica-se também ao entendimento da magistratura em determinadas questões. A conjuntura tem prevalecido sobre a doutrina.

É útil lembrar da sucessão de fatos do março de 2016. Não faz tanto tempo, cinco anos, e o Supremo Tribunal Federal pouco mudou. Entraram na corte Alexandre Moraes (2017) e Kassio Nunes Marques (2020). A guinada, entretanto, foi suprema.

O mês começou com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, virando réu no Supremo Tribunal Federal, por dez votos a zero, no dia 2. Na manhã seguinte, vazou a delação do senador Delcídio do Amaral implicando tanto a presidente Dilma Rousseff quanto Lula.

Em paralelo, a Lava-Jato acelerava. Lula foi levado coercitivamente para depor em 4 de março. O empresário Marcelo Odebrecht foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão no dia 8.

Degenerava a situação política. Em 12 de março, o PMDB rompia com o governo federal. Atos contra Dilma reuniram 500 mil pessoas no dia 15. No inesquecível 16 de março, Dilma nomeou Lula ministro da Casa Civil e o juiz Sergio Moro divulgou o famoso áudio entre os dois, fora do período permitido para a escuta e apesar da citação a pessoas com foro privilegiado. A posse foi suspensa por Gilmar Mendes no dia seguinte e não houve nenhuma punição para o magistrado. No dia 22, Rosa Weber negou recurso de Lula.

O contraste com o Supremo de 2021 é evidente. O atual presidente da Câmara, Arthur Lira, deixa de ser réu em ação penal, depois de o Supremo voltar atrás na aceitação da denúncia sobre o quadrilhão do PP. A decretação da suspeição de Moro é iminente. Lula está livre para concorrer.

Não se pode entender a reviravolta sem mencionar o vazamento de mensagens entre Moro e integrantes da Lava-Jato, mostrando que havia uma promiscuidade entre a Justiça e o Ministério Público na operação. Mas isso não explica tudo. Não é apenas Lula que está sendo redimido. A mão pesada está sendo retirada de toda classe política.

Foi o cientista político Humberto Dantas, da Faculdade de Sociologia de São Paulo (Fesp) e do Centro de Liderança Pública (CLP), que alertou em artigo para a falta de sincronia entre o março de 2016 e o deste ano. “Há muitas análises sobre o impacto eleitoral do retorno de Lula ao cenário, sempre condicionadas pelas circunstâncias. O momento para Bolsonaro é péssimo, isso pode mudar. Já a instabilidade de decisões do Judiciário é algo que começa a se tornar preocupante”, afirmou.

Para Dantas, a Justiça cometeu atropelos em 2016 ao tolerar extravagâncias da Operação Lava-Jato, que desvirtuaram a investigação contra Lula, e se desdiz agora. Constata-se que temos um Judiciário de conjuntura, atento sempre para a direção que o vento sopra. Ele não vê no movimento um “mea culpa” do Judiciário em relação a erros passados, mas a permanência de um padrão que se destaca pela insegurança. “Diminui a expectativa da sociedade por imparcialidade na corte”, constata.

Ele também vê a mesma falta de constância na decisão que levou ao cárcere o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), tomada pelo ministro Alexandre de Moraes. Se Silveira fez ataques às instituições e colocou em risco a segurança nacional, o então deputado Jair Bolsonaro não fez o mesmo em repetidas ocasiões durante sua vida parlamentar, sem jamais sofrer sanção nenhuma?

O Supremo avança além de suas competências, legisla sobre questão eleitoral, pode influir tão decisivamente na eleição de 2022 quanto influiu na última. A situação jurídica de Lula, por exemplo, permanece precária. Não é impossível que ele seja retirado do quadro dos candidatos em breve, ou na vigésima-quinta hora.

O Judiciário exerce, hoje, um verdadeiro poder moderador. Cioso de seus privilégios, do topo à base. Ontem um juiz federal substituto em Brasília, Rolando Spanholo, garantiu em liminar à Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) o direito de importar e aplicar vacinas contra covid-19 exclusivamente para “seus associados e respectivos familiares”.

A sociedade e o Congresso toleram o Judiciário assim porque os arroubos autoritários do presidente Jair Bolsonaro e dos seus apoiadores estressam o sistema democrático, deixam sempre a ruptura no horizonte e a muralha de contenção que existe está na magistratura. Mas Dantas pergunta: o que aconteceria se a Justiça, no futuro, ficasse alinhada a um Executivo com viés ditatorial?

O exercício é sinistro, sobretudo quando se enxerga o passado recente. Sem entrar no mérito das decisões, o Judiciário foi fundamental tanto para que o impeachment de Dilma se concretizasse há cinco anos, quanto para que Michel Temer concluísse o mandato, ao rejeitar a impugnação eleitoral da chapa de 2014. É ali, e não nos quartéis, que se concentra poder real. O que faz com que se olhe com redobrada atenção para a próxima escolha de Jair Bolsonaro para compor a corte, no próximo mês.

*César Felício é editor de Política.


Roberto Romano: Carteiradas absolutistas do STF e do STJ

No Brasil, funcionários públicos e suas famílias estão acima de quem paga impostos

A diferença entre regimes absolutistas e Repúblicas modernas reside nos direitos usufruídos pelas hierarquias do Estado. Para garantir apoio ao rei e à centralização do poder o Antigo Regime concede privilégios ao clero e aos nobres. Isenção de impostos, cargos públicos, dignidades, pensões e prebendas, regalos que minam os cofres nacionais. Naquela forma política existem dois setores. O primeiro reúne funcionários estatais. Ministérios, empregos civis e militares se destinam aos nobres. Os padres cumprem idênticas funções, menos as militares. Mas Richelieu se apresenta sob armadura, líder dos ataques aos nobres protestantes. O cerco de La Rochelle mostra um cardeal bélico e político que tenta esmagar minorias.

Nobres e clero recebem trato diferenciado na vida política, econômica, cultural. Quando não herdam cargos e privilégios, seus integrantes os compram. A garantia do poder centralizador, portanto, está na corrupção e na venda de apoio ao governante.

Daí surge a bipartição das pessoas. Quem se move no aparelho do Estado usufrui prerrogativas e privilégios, generosos se o rei precisa de ajuda. No outro lado, as pessoas sem prerrogativas nem privilégios, salvo quando elas possuem dinheiro para comprar cargos. O Estado ostenta dois tipos de súditos: os que recebem todas as graças, o clero e a nobreza, e os que integram um terceiro setor sem rosto próprio. 

A Revolução Inglesa do século 17 institui a República, atenua os privilégios, amplia os direitos universais. Um exemplo: no exército os postos são herdados pelos nobres ou adquiridos por graça real. Como os aristocratas usam perucas enormes, símbolo de sua superioridade, os republicanos abolem as ditas perucas, uniformizam o corte de cabelo, estabelecem critérios de mérito para a entrada na hierarquia das forças armadas. É o tempo dos cabelos militares curtos (os Roundheads, simultâneos ao New Model Army, cuja estrutura é oposta à do Antigo Regime), que desafiam os privilégios dos nobres. Em todos os setores do Estado republicano ocorrem mudanças rumo à igualdade. 

Os puritanos, expulsos da Inglaterra por sua fé religiosa e política, fundam na América do Norte um Estado no qual, em vez da pretensa superioridade de elites, regem o princípio da accountability (retomado pelos republicanos da ordem democrática grega), a livre imprensa (basta ler a Areopagítica, de John Milton) e direitos iguais. A presença norte-americana na Revolução Francesa é relevante: liberdade, igualdade, fraternidade.

As origens sociais (nobre/plebeu) deixam de valer no Estado moderno. Um funcionário, juiz da mais alta Corte ou governante, não herda nem transmite cargos ou privilégios aos seus familiares. Entra-se na hierarquia estatal por mérito (concurso) ou por eleição popular. Nos Estados Unidos vigoram as duas formas: juízes são concursados ou eleitos. Em ambas as hipóteses as vantagens e desvantagens dos cargos pertencem ao indivíduo, não à sua família. Esta última pode ter importância nas campanhas políticas ou em acertos financeiros ilegais para provimento de funções. Mas a regra é a plena separação dos indivíduos e de sua grei familiar.

Certa feita sou convidado para a posse de um desembargador amigo. Chego ao salão, onde fitas de isolamento separam dois terços do espaço. Uma hostess vestida de vermelho – o Judiciário aprecia muito tal cor – me pergunta: “O senhor é de alguma família ou apenas convidado?”. Apenas convidado... Espantei-me: na casa da Justiça paulista uma cerimônia pública reduzida a festinha “dos entes queridos”! O Estado posto como propriedade familiar: dois terços para os familiares, um terço para a cidadania. É o que vemos no Brasil, renitente em usos e costumes absolutistas, pré-republicanos. Os funcionários – juízes, parlamentares, governantes – e suas famílias estão acima dos que pagam impostos.

No final de 2020 continua a ausência total de accountability nos Poderes nacionais: Executivo, Legislativo, Judiciário. A cidadania recebe nova bofetada absolutista na face: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), pretensos garantidores da República e da igualdade, exigem tratamento especial na aplicação de vacinas contra a covid para seus integrantes e familiares. O sistema político e jurídico deve ser coerente: na Constituição republicana as leis precisam ser assumidas por todos e cada um dos cidadãos. Ninguém vive com segurança num país onde ocupantes dos Poderes podem, pelo uso de sua carteira profissional ou por importância política, separar o corpo nacional em dois, como no Antigo Regime. Com o ato ignóbil dos tribunais superiores é solapada a base física e anímica da República. Cortes são necessárias para manter a lei. Mas se elas próprias corroem a fé pública com exigências de privilégios – no caso, a vida e a morte dos brasileiros estão em jogo –, perdem serventia e podem ser fechadas sem grandes comoções públicas. 

Termino: os excelentíssimos magistrados deveriam estudar a história do STF e do STJ. Dos muitos feitos execráveis desses tribunais, a carteirada na fila das vacinas é dos mais hediondos.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Maria Hermínia Tavares: Poderia ter sido pior, mas a democracia brasileira barrou o populismo

Nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes

Fim de ano é época de dar sentido ao que aconteceu no período. Perguntar-se, por exemplo, como as instituições democráticas brasileiras se comportaram ao longo desses meses de medo e morte. Para fazê-lo com algum método, nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes. Com a vantajosa circunstância de ter o respaldo de dois estudos recém-publicados por organizações independentes que monitoram o estado da democracia no mundo.

O primeiro, da ONG americana Freedom House, intitula-se “Democracia sob lockdown – o impacto da Covid-19 na luta global pela liberdade”. Baseia-se em entrevistas com especialistas e membros da sociedade civil, realizadas entre janeiro e agosto, em 105 países. A análise conclui que a pandemia exacerbou um tremendo problema: a recessão democrática dos últimos 14 anos.

De acordo com o informe, a democracia se degradou em 80 nações, cujos governos responderam à virose com abuso de poder, silenciamento das vozes críticas, enfraquecimento ou liquidação de instituições cruciais e erosão dos sistemas de rendição de contas pelos governantes. Em nada menos de 59 desses países faltou transparência na maneira como as autoridades informaram o público sobre a Covid-19.

Pior ainda, em 91 deles restringiu-se a liberdade de imprensa. Das 22 eleições marcadas para este ano, sete foram adiadas e quatro tiveram suas regras alteradas. A violência policial relacionada às medidas de restrição aumentou em 59 países. Num em cada quatro, multiplicaram-se as restrições a minorias étnicas e religiosas. O Brasil ficou no grupo daqueles nos quais a praga não debilitou o sistema democrático.

O segundo dos estudos citados é o “Balanço das tendências democráticas na América Latina e Caribe antes e durante a epidemia da Covid-19”, produzido pela organização Idea Internacional.

Embora a meta, o método e algumas das dimensões por ela observadas sejam diferentes, as conclusões se assemelham às da Freedom House. A pandemia aprofundou problemas crônicos das democracias na região. As respostas variaram muito e nem todas agravaram as grandes limitações do sistema político.

Apesar de tudo, graças à reação do Legislativo e do Judiciário, à força da Federação, à autonomia da imprensa e à resistência da sociedade organizada, a democracia brasileira logrou barrar as investidas do populismo de direita instalado no Planalto.

Pode não parecer muito, dada a enormidade dos desafios que o país já enfrentava e que a pandemia agrandou. Foi pior em muitos lugares. Poderia ter sido também aqui.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Celso Rocha de Barros: Em ano trágico, livros sobre política foram ótimos

Ano teve competidores nacionais excelentes; lista não tem estrangeiros

Minha lista anual nunca incluiu reedições de clássicos, mas a coletânea “Por um Feminismo Afro-latino-americano”, que reúne textos da historiadora e filósofa negra Lélia Gonzalez editados por Flávia Rios e Márcia Lima, tem que ser citada porque grande parte do público ainda não sabe que a autora é clássica.

“Raça e Eleições no Brasil”, de Luiz Augusto Campos e Carlos Machado, é um trabalho muito inteligente de ciência política sobre as dificuldades de inserção dos negros no sistema eleitoral brasileiro, um tema cada vez mais quente.

“Mãe Pátria”, de Paula Ramón, é um belo relato, em tom pessoal, sobre a tragédia venezuelana recente. Não é antiesquerdismo, é só uma história real que a esquerda deveria levar a sério.

“A Bailarina da Morte”, de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, fala da pandemia de gripe espanhola do início do século 20 e sugere semelhanças assustadoras com a tragédia brasileira atual. Tive a impressão, entretanto, que mesmo as autoridades incompetentes da República Velha teriam comprado vacina para os brasileiros, se ela existisse na época.

Por algum motivo inexplicável, desde 2018 cresceu o interesse dos autores brasileiros pela história do Integralismo, a versão brasileira do fascismo nos anos 30. “Fascismo à Brasileira”, de Pedro Doria, conta a história do movimento com foco na trajetória de seu fundador, Plínio Salgado. “O Fascismo em Camisas Verdes”, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, se destaca pela história da apropriação do legado dos integralistas até o dia de hoje.

“A República das Milícias”, de Bruno Paes Manso, é o estudo mais amplo e detalhado já publicado sobre essa forma de domínio territorial criminoso e suas ramificações políticas.

Mudando completamente de assunto, “O Brasil Dobrou à Direita”, de Jairo Nicolau, analisa detalhadamente dados sobre a eleição presidencial de 2018.

“A Máquina do Ódio”, de Patrícia Campos Mello, é o primeiro grande registro histórico da ofensiva autoritária pós-2018, lá onde ela já está avançada: na guerra à imprensa livre, realizada por campanhas de ódio e tentativas de estrangulamento financeiro.

“Ponto-final”, de Marcos Nobre, é uma análise do Bolsonarismo na pandemia, escrita “à quente”, no meio do ano. O argumento sobreviveu bem aos meses seguintes.

“As Políticas da Política”, organizado por Marta Arretche, Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria, reúne estudos que comparam políticas públicas dos governos tucanos e petistas. O livro gerou bons debates e, em 2020, deu saudade de dois momentos em que o Brasil teve governo.

“The Volatility Curse” (“A Maldição da Volatilidade”), de Daniela Campello e Cesar Zucco, mostrou como os resultados eleitorais brasileiros são correlacionados com os ciclos e choques da economia internacional e como isso pode prejudicar a capacidade dos eleitores avaliarem bem os governantes.

Em um ano de competidores nacionais excelentes, a ponto de não haver nenhum estrangeiro na lista, o melhor livro de política foi “A Organização”, de Malu Gaspar, que conta a história política da empreiteira Odebrecht. Um estudo de caso detalhado e, às vezes, chocante, sobre economia política brasileira, corrupção e os desafios da reforma de nossa democracia.

*Celso Rocha de Barros, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)


Eliane Cantanhêde: Quem ama não mata

As vidas da mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de cada um de nós

O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.

Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.

 Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar.

É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da "normalidade". Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.

É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade.

O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que "ninguém apanha de graça", "não está nem aí para a Lei Maria da Penha" e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor.

A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.

Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.

Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam.


Hélio Schwartsman: As sementes do abuso

Desde que existem sistemas de Justiça, sabe-se que eles podem falhar

Desde que existem sistemas de Justiça, sabe-se que eles podem falhar. Não estamos falando apenas de erros materiais, que são em tese sanáveis por revisões feitas no âmbito do próprio Judiciário. O problema é mais sério. Muitas vezes, a aplicação fria da letra da lei é que causa a situação de injustiça —falha endógena que o sistema não consegue resolver bem.

Um dos remédios criados para lidar com isso é o poder de graça, pelo qual um corpo externo ao Judiciário, em geral o chefe do Executivo, é autorizado a reverter condenações impostas por magistrados. O instituto existe desde a Antiguidade e está presente hoje nas legislações de quase todos os países, ainda que seu alcance e os trâmites para implementá-lo variem bastante.
Todo princípio, porém, já traz as sementes de seu próprio abuso. Donald Trump, a poucos dias de deixar a Casa Branca, anunciou um trem da alegria de perdões presidenciais, que abarcam ex-auxiliares, aliados, contraparentes e até "protegés" de celebridades como Kim Kardashian.

Pior, especula-se que, antes de sair, Trump poderá conceder a si mesmo um perdão preventivo, para que não precise responder por crimes federais que tenha cometido. Mais imaginativo e mais eficiente, o presidente Vladimir Putin, que tem hegemonia completa sobre o Legislativo, sancionou um projeto de lei que dá imunidade jurídica a ex-presidentes do país e seus familiares, não apenas durante o período que ocuparam o cargo, mas por toda a vida. Operações de busca, prisões preventivas e intimações para interrogatórios policiais contra essas pessoas ficam terminantemente proibidas. Como sujeira pouca é bobagem, a norma também dá a ex-presidentes cadeira cativa no Senado.

Para que o leitor não termine o ano deprimido, vale destacar que há aí uma boa notícia. Ao editar a lei, Putin, que está no poder desde 2000, sugere que tem planos de um dia deixar a Presidência.


Bruno Carazza: A sobrevivência dos mais gordos

STF perpetua privilégios e contribui para a crise fiscal

Em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, repousa a escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti. “Repousa”, aliás, é uma boa palavra para descrever o estado da obra do artista belo-horizontino: afinal, são raras as representações artísticas em que a deusa da Justiça está sentada. Mas este não é seu único detalhe simbólico.

Através dos séculos, a deusa romana Iustitia aparece em pinturas e esculturas com três componentes praticamente inseparáveis: a venda nos olhos (destacando a impessoalidade), a balança (fazendo referência à isonomia no tratamento das partes) e a espada (realçando a força para impor o direito sobre todos).

A escultura que simboliza o Judiciário brasileiro, porém, não possui balança - como se por lá não fosse necessário contrabalançar argumentos, sopesar direitos, medir consequências e equilibrar a teoria e a prática.

Há quem justifique a falta do instrumento afirmando que a nossa Justiça foi retratada após ter exercido o seu dever; logo, a balança já teria sido usada, e uma vez proferida a decisão, bastaria ter no colo a espada, para ser utilizada caso não a cumprissem. Ora, então não seria melhor que a Justiça estive como a deusa grega Thêmis, de olhos bem abertos para fiscalizar a aplicação de seus mandamentos?

Ceschiatti, um dos artistas recomendados por Oscar Niemeyer para ornamentar a nova capital, esculpiu “A Justiça” em 1961 num bloco monolítico de granito de 3,3 metros de altura e com linhas elegantes e econômicas - características que há bastante tempo passam longe do STF, rachado entre várias correntes e fomentando a irresponsabilidade fiscal.

Duas decisões recentes expõem como os ministros do Supremo Tribunal Federal fecham os olhos para a grave crise econômica que o país atravessa, deixam de equilibrar direitos e deveres e embainham a espada quando se trata de cortar os privilégios da própria magistratura.

Em 1º de dezembro a ministra Rosa Weber deferiu uma liminar determinando que a União deveria avalizar a um empréstimo de mais de US$ 400 milhões para investimentos do governo do Estado do Espírito Santo. Essa operação havia sido travada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que veda a concessão de garantias federais caso entes subnacionais estejam descumprindo os limites prudenciais de gastos com pessoal. No caso do Espírito Santo, era justamente o Poder Judiciário local quem estava gastando além da conta.

Alegando violação ao princípio da intranscendência - em outras palavras, um Poder não poderia ser punido por uma falha de outro - a ministra Rosa Weber esvaziou a LRF, acrescentou mais um ônus ao sobrecarregado Tesouro Nacional e não impôs nenhuma sanção ao Judiciário capixaba por inflar sua folha de pagamentos. Decisões como essa, aliás, são bastante frequentes nas últimas décadas, e podem ser apontadas como uma das causas para a baixa efetividade da LRF e pelo descontrole orçamentário na maioria dos Estados e municípios.

Pior ainda fez o plenário do STF na semana passada - não, eu não me refiro à decisão sobre a reeleição nas presidências da Câmara e do Senado. Com a exceção solitária do ministro Edson Fachin, que votou contra, a maioria dos ministros considerou inconstitucional parte das Emendas Constitucionais nº 41/2003 e 47/2005 que estabelecia que os juízes estaduais deveriam ter seus vencimentos limitados a 90,25% do que ganham os integrantes do STF.

Novamente, o STF valeu-se de princípios abstratos - no caso, da isonomia e da unidade da prestação judicial - para atropelar normas criadas para manter as contas públicas em dia e evitar distorções. E assim, juízes de todo o país, até mesmo os recém aprovados em concurso, estão definitivamente liberados a ganhar o mesmo que um membro da Suprema Corte. E é bom não esquecer que certamente a decisão terá efeito cascata sobre o Ministério Público e os Tribunais de Contas Brasil afora.

Essa última decisão tomada pelo STF partiu de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) movidas, respectivamente, pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages).

A Constituição Brasileira de 1988 tornou-se uma das mais progressistas do mundo ao permitir que não apenas entidades políticas (como os chefes do Executivo, do Legislativo e do Ministério Público, além dos partidos políticos), mas até mesmo confederações sindicais e entidades de classe pudessem provocar o STF para, enquanto guardião da interpretação constitucional, se posicionar se uma lei, em abstrato, fere ou não a Carta Magna do país.

Como acontece com frequência por aqui, avanços logo se transformam em abusos. Ao permitir que entidades privadas tivessem acesso privilegiado às ações mais importantes de nosso sistema processual, o controle abstrato das normas tornou-se fonte concreta de benesses. Não é à toa que, desde 1988, a AMB figura como o grupo privado que mais acionou o Supremo para questionar a constitucionalidade de leis - foram 151 vezes, boa parte delas relativa à defesa dos interesses de seus associados. A Anamages, por sua vez, propôs outras 45 ADIs.

No porto de Ringkøbing, uma cidade com menos de 10 mil almas no centro da Dinamarca, encontra-se a escultura de um homem esquálido carregando nos ombros uma mulher bastante obesa. A mulher tem os olhos fechados e carrega nas mãos uma balança desequilibrada - desnecessário dizer a quem ela faz alusão.

Feita em bronze, com 3,5 metros de altura, “Sobrevivência do mais Gordo” (“Survival of the Fattest”) é uma obra dos artistas dinamarqueses Jens Galschiøt e Lars Calmar, inaugurada em 2002. Na sua base, há a seguinte inscrição: “Estou sentada nas costas de um homem. Ele está afundando sob o fardo. Eu faria qualquer coisa para ajudá-lo. Menos descer de suas costas”.

Nada mais exemplificativo sobre o Poder Judiciário brasileiro e a atuação de sua cúpula.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Elio Gaspari: O mundo inseguro das boquinhas de TI

Às 15h de terça-feira, o sistema de computadores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi invadido, e os trabalhos da Corte só voltarão ao normal nesta semana

O episódio mostra que os computadores da Viúva continuam sendo administrados de forma leviana. No mundo das altas competências, no século passado o governo brasileiro já pagou o mico de ter um sistema de criptografia das embaixadas protegido por equipamentos de uma fábrica suíça que tinha um sócio oculto, a Central Intelligence Agency americana. No governo Dilma Rousseff, descobriu-se que algumas de suas comunicações também estavam grampeadas.

Não se sabe o propósito dos invasores do STJ, pois achar que o tribunal tem meios ou recursos para pagar um resgate não faz sentido. Sabe-se, contudo, que a rede oficial de informática está contaminada por dois vícios elementares, que nada tem a ver com altas competências. É pura incompetência. Em muitas áreas, quando muda o chefão, ele troca a equipe de tecnologia. Mesmo em áreas onde isso nem sempre acontece, os hierarcas usam seus endereço da rede oficial para tratar de assuntos pessoais. Nos Estados Unidos a secretária de Estado Hillary Clinton pagou caro por isso. Assuntos oficiais e comunicações pessoais são coisas diversas. Se essa banalidade não é respeitada, só se pode esperar que o sistema esteja bichado em outras trilhas.

Essa incompetência não acontece por causa da herança escravocrata. Ela é produto de uma indústria da boquinha em quase tudo que tem a ver com informática. Prova disso é que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação armou uma licitação viciada de R$ 3 bilhões há mais de um ano, foi apanhado, cancelou a maracutaia, mas até hoje não explicou como o edital foi concebido.

Na compra de equipamentos, pode-se pegar o jabuti quando ele quer mandar 117 laptops para cada um dos 255 alunos de uma escola. Quando as contratações vão para escolha de operadores, manutenção e até mesmo programação entra-se num mundo complexo, atacado por amigos que têm conexões, mas não têm competência.

No caso da invasão das máquinas do STJ, surgiu um perigoso efeito colateral. Com um presidente que não confia nas urnas eletrônicas, mas até hoje não provou que tenha ocorrido fraude na sua eleição, estende-se o tapete vermelho para que terraplanistas comecem a alimentar conspirações em relação ao pleito de 2022. O STJ ainda estava fora do ar quando o capitão Bolsonaro voltou a defender o voto impresso. Logo ele, que tratava assuntos de Estado com o ministro Sergio Moro na sua conta privada.

Trump dividiu os republicanos

O calor que Donald Trump tomou no Arizona mostra que ele dividiu até os republicanos. No estado em que o Homem de Marlboro teve um rancho, os democratas elegeram para o Senado o ex-astronauta Mark Kelly. Ele é o marido de Gabrielle Giffords, a deputada que em 2011 foi baleada na cabeça por um maluco. (A bala atravessou seu crânio, mas ela recuperou parcialmente a fala e anda com bengala.)

Até a noite de sábado, Joe Biden liderava a eleição do Arizona. Fatores demográficos contribuíram para essa mudança no estado que produziu Barry Goldwater, o campeão do conservadorismo republicano nos anos 60 do século passado. Contudo, a grosseria megalômana de Donald Trump contribuiu para isso. Ele ofendeu o senador John McCain (1936-2018), um político respeitado pela biografia e pela decência. Filho de almirante e piloto de bombardeiro, McCain foi abatido no Vietnã, ralou seis anos de prisão e torturas em Hanoi e nunca recuperou completamente os movimentos dos braços. Candidato a presidente em 2008, perdeu para Barack Obama. Tendo contrariado Trump numa votação, tomou um dos insultos típicos do presidente: “Ele não é um herói, foi capturado”. (Trump nunca vestiu um uniforme.)

Quando McCain morreu, Trump ignorou-o e foi jogar golfe. Na campanha, o troco veio de Cindy, a viúva, herdeira da maior distribuidora da cerveja Anheuser-Busch no país. Em setembro ela apoiou Biden: “Somos republicanos, mas, acima de tudo, somos americanos.”

Trump não precisava ter sido grosseiro com McCain, mas sua natureza falou mais alto.

Médici, Geisel e Bolsonaro

Nenhum presidente brasileiro teve uma relação tão próxima com seu colega americano como o general Emílio Médici com Richard Nixon, a quem visitou em 1971. Quando Nixon se atolou no caso Watergate e acabou perdendo o cargo, Médici, fora do governo, não disse uma só palavra.

Nenhum presidente brasileiro detestava seu colega americano como Ernesto Geisel detestava Jimmy Carter. Enquanto esteve na Presidência, nunca disse uma palavra contra ele. Fora dela, recusou-se a encontrá-lo e não atendeu o telefone quando ele ligou para sua casa.

A bomba Wassef

De um advogado que conhece os processos relacionados com o Bolsonaro e suas “rachadinhas”, ao saber que seu colega Frederick Wassef tentou operar o depoimento da ex-assessora Luiza Souza Paes:

“Esse pessoal está chamando urubu de ‘meu louro’.”

Luiza Souza Paes mostrou ao Ministério Público os comprovantes de que, entre 2011 e 2017, o faz-tudo Fabrício Queiroz bicou cerca de R$ 160 mil do salário que recebia no gabinete de Flávio Bolsonaro.

A protelação tem nexo

Por mais que se façam trapalhadas no varejo com o processo das “rachadinhas” dos Bolsonaro, no atacado a manobra da defesa tem nexo e poderá dar certo.

Com 15 denunciados num processo de competência indefinida, é quase certo que não se chegue a uma sentença antes da eleição de 2022.

Tio Sam e Jeca Tatu

Relação especial é assim:

Neste ano, o Brasil importou 30 mil toneladas de soja dos Estados Unidos.

Pindorama é o maior exportador de soja do mundo.

Neste governo, os americanos foram dispensados de pedir visto de entrada no Brasil. Não passa pela cabeça dos Estados Unidos oferecer reciprocidade.

O presidente brasileiro torce pela reeleição de seu colega americano. Mesmo quando despejava dinheiro nas eleições de Pindorama, nenhum presidente americano fez declaração pública de apoio um candidato brasileiro.

Baker saiu de perto

Aos 90 anos, o texano James Baker, articulador da vitória eleitoral de George Bush na Corte Suprema contra Al Gore em 2000, afastou-se da teoria da eleição roubada antes mesmo do patético discurso de Donald Trump na quinta-feira.

Baker coordenou três campanhas presidenciais de republicanos, foi secretário do Tesouro e de Estado.

Trump e Napoleão

Quem viu o discurso de Trump deve se lembrar que em 1840, quando os restos mortais do Imperador saíram da ilha Santa Santa Helena para um mausoléu em Paris, num só hospício da cidade havia 14 pessoas garantindo que eram Napoleão Bonaparte.


Alon Feuerwerker: Troca no STF

Um fanático pela Carta faria bem ao tribunal, ao governo e ao país

Não é novidade a hipertrofia no Judiciário, em particular no Supremo Tribunal Federal. Aliás, começar uma coluna com “não é novidade” talvez devesse ser evitado. Mas, infelizmente, é a pura verdade. No caso específico do STF, já faz algum tempo que ele se sente tentado a operar como uma espécie de assembleia constituinte não formalizada.

Outra coisa que não é novidade: ficaram para trás os tempos quando se sabia de cor a escalação dos onze da seleção brasileira de futebol, mas não se tinha a menor ideia de quem eram os onze do STF. Hoje isso se inverteu. Cada um que julgue se melhoramos ou pioramos.

Importa menos saber como chegamos a esta situação, o fato frio é que nas próximas semanas um nome deverá passar pelo trâmite no Senado Federal para ocupar a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta. Dadas as circunstâncias jurídicas e políticas, trata-se de um baita momento.

Vamos ao retrospecto. A experiência de governantes indicarem nomes por critérios identitários não foi propriamente um sucesso para quem indicou. E o histórico das decisões e opiniões de antes da ascensão à Suprema Corte não tem sido garantia de coerência no voto, uma vez o ministro instalado na cadeira.

E exposição aos holofotes tem trazido casos de mudança radical nas ideias.

Mesma coisa o “Q.I.” (quem indica). Se pelo menos um ministro dos indicados por Dilma Rousseff tivesse votado para soltar Luiz Inácio Lula da Silva antes da eleição, o ex-presidente teria sido solto e ficado disponível para subir nos palanques do PT e aliados. Não aconteceu.

O que explica isso? Independência? Cada um, novamente, que faça seu juízo.

“O novo nome deve resistir à tentação do protagonismo, ser garantista e ter alergia a judicializar a política”

Onde estará então a virtude? Um critério importante é o nome não enfrentar obstáculos intransponíveis no Senado, que é quem aprova. E o Senado é composto de políticos, mesmo quando fantasiados de “anti”. Sugerir alguém publicamente identificado com a caça a suas excelências seria oferecer muita sopa para o azar.

O que de melhor um presidente da República deve esperar do STF? Que não se meta, ou meta-se pouco, na atividade de exercer o Poder Executivo. Um presidente que ajude a fazer o STF retornar ao tamanho previsto na Constituição estará prestando um serviço inestimável ao que se convencionou chamar de democracia.

Mas não basta. O desejável, do ângulo do Executivo, e mesmo do Legislativo, seria um STF que praticasse a autocontenção como regra em relação ao mundo político, e que começasse a expurgar a tentação permanente de enveredar pelo ativismo judicial. E que propagasse isso pelo conjunto do sistema.

Seria uma revolução.

A conclusão é óbvia: espera-se que o novo nome a substituir o decano que sai consiga resistir à tentação do protagonismo, seja rigorosamente garantista e tenha alergia à judicialização da política.

E que seja um fanático do respeito à Carta. Coisa que anda deveras em falta entre os nossos juízes.

Seria um favor que o ocupante do momento do Palácio do Planalto teria prestado a si mesmo, ao seu governo e ao país.

E um favor, antes de tudo, ao próprio Supremo Tribunal Federal.


Merval Pereira: A direita no Supremo

A conformação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Suprema dos Estados Unidos está sendo alterada no mesmo momento histórico de viés direitista nos dois países. Nos Estados Unidos, a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, um ícone dos progressistas americanos, pode dar lugar a um plenário majoritariamente conservador, marcando por décadas o entendimento da Suprema Corte.

No Brasil, a aposentadoria antecipada do ministro Celso de Mello, um exemplo de coerência e defesa da democracia, permitirá que o presidente Bolsonaro nomeie um ministro claramente conservador, embora não reverta a tendência progressista da Corte brasileira.

A tentativa de controlar as decisões da última instância do Judiciário provoca crise política nos Estados Unidos, pois a nomeação da substituta de RBG deveria ficar para o próximo presidente a ser eleito dentro de 38 dias. Quando o ministro Antonin Scalia morreu, em fevereiro de 2016, o Senado americano, dominado pelos Republicanos como agora, não permitiu que o presidente Obama nomeasse o sucessor, sob alegação de que estava em seu último ano de mandato. Hoje, os mesmos Republicanos defendem a nomeação por Trump do novo ministro da Suprema Corte.

O golpe parlamentar dos Republicanos, que fará com que a Suprema Corte fique com uma maioria de 6 conservadores contra 3 progressistas, está provocando grande discussão política, e surge a tese de que os Democratas, se ganharem a eleição para presidente com Joe Biden e o controle do Senado nas próximas eleições, aumentem o número de juízes da Corte Suprema.

O democrata Franklin Roosevelt também ameaçou aumentar o número de integrantes da Suprema Corte para conseguir aprovar medidas de seu programa New Deal, lançado para combater as consequências da Grande Depressão de 1929, que estava sendo barrado pela maioria conservadora.

Propôs ao Congresso, em 1937, lei aumentando a composição da corte para 15 juízes, e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para quem superasse a idade de 70 anos, quando o mandato, até hoje, é vitalício. A juíza Ruth Bader Ginsburg morreu no cargo aos 87 anos Em meio a uma crise institucional sem precedentes, a Suprema Corte mudou de posição devido ao juiz moderado Owen Roberts, cujo voto ficou conhecido como “the switch in time that saved nine” (“a mudança no tempo que salvou nove”, em tradução livre), e uma maioria a favor do “New Deal” foi formada.

Entre nós, no regime militar, através do Ato Institucional 2, de 1965, o presidente Castello Branco aumentou de 11 para 16 o número de ministros do STF, para controlar a maioria, considerada de esquerda pelos militares. Com o AI-5, três juízes foram aposentados – Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal – e dois renunciaram em protesto: ministros Antônio Gonçalves de Oliveira, presidente do tribunal, e Antônio Carlos Lafayette de Andrada.

Podendo nomear cinco novos ministro, Costa e Silva restabeleceu a composição da corte com 11 ministros, número vigente até hoje. O presidente Jair Bolsonaro já defendeu o aumento de cadeiras do Supremo de 11 para 21, alegando que a atual composição da Corte é muito esquerdista. Depois de desistir de manter uma guerra aberta com o Supremo, Bolsonaro não insistiu mais no golpe parlamentar, mas pretende nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para tentar reverter decisões como a lei do aborto, que é também um ponto central na campanha dos conservadores nos Estados Unidos.

O provável indicado é Jorge Oliveira, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Há outros conservadores na disputa, como o “terrivelmente evangélico” ministro da Justiça André Mendonça, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que tem se esforçado para se mostrar próximo a Bolsonaro, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Noronha.

Nos Estados Unidos, o presidente Trump indicou a juíza da Corte de Apelação de Chicago Amy Coney Barret, uma professora da Universidade de Notre Dame que já tem explicitado posições conservadoras em relação a temas polêmicos como aborto, imigrantes e posse de armas.

Com 48 anos, garantirá aos conservadores uma longa supremacia na Corte Suprema dos Estados Unidos.


Eliane Cantanhêde: Fux, sem subterfúgio

Em vez de defender o combate à corrupção em tese, Fux citou especificamente a Lava Jato

Se o Supremo Tribunal Federal agir e decidir nos próximos dois anos como se comprometeu ontem o seu novo presidente, Luiz Fux, será um sucesso, um bom momento para a Justiça brasileira. Não custa lembrar, porém, que, entre palavras e atos, há uma enorme distância. Entre o desejo e as condições práticas, também. E é preciso combinar com os “adversários” – inclusive os demais ministros. Logo, a torcida é para Fux perseguir suas promessas e os princípios manifestados, enfrentar as naturais divisões internas e as pressões externas.

Em seu discurso, que abriu com um tributo aos quase 130 mil mortos pela covid-19, geralmente esquecidos nas falas do Executivo, ele disse que “democracia não é silêncio, é debate construtivo”, e defendeu a independência entre Poderes, mas “com altivez e vigilância e não com contemplação nem subserviência”. Ao seu lado, o presidente Jair Bolsonaro, finalmente de máscara, apesar das telas transparentes que separavam os ministros e autoridades, não mexia um músculo.

Fux também criticou a judicialização da política e o excesso de ações que o Supremo julga por ano – 115.603 em 2019. Ao dizer que o Judiciário não é “oráculo”, pregou que Executivo e Legislativo resolvam seus conflitos internos, sem que o Supremo atue verticalmente, e prometeu uma “intervenção minimalista” em matérias sensíveis: “menos é mais”, disse. Além de enaltecer a democracia e a mínima interferência em temas dos demais Poderes, ele se comprometeu veementemente com uma ação firme em favor de minorias, liberdade de expressão e de imprensa e, junto com isso, com o combate à corrupção e ao crime organizado.

O recado mais objetivo do discurso de posse, porém, foi quando Fux saiu dos princípios gerais, das frases de efeito e das citações eruditas para dizer com todas as letras, sem subterfúgio, que sua gestão será pró-Lava Jato. Além de citar diretamente a operação e o mensalão, marcos contra a corrupção no Brasil, ele fez mais: lembrou aos quatro ventos, especialmente para a cúpula do poder nacional, ali presente, que todas as operações foram realizadas com autorização judicial. Inclusive do próprio Supremo.

Essas manifestações têm enorme significado diante das múltiplas frentes de ataque à Lava Jato e da correspondente reação das forças-tarefa. A cada ataque, uma nova operação – como a que atingiu em cheio, na véspera da posse, os advogados, até agora preservados e na linha de frente do tiroteio contra a Lava Jato, por motivos óbvios.

Se o Supremo é unânime ao dizer não aos arroubos antidemocráticos, sejam do presidente Bolsonaro, de seus adeptos e robôs de internet, a Corte se divide quanto o tema é Lava Jato. Por isso a importância da manifestação de Fux. O presidente tomou partido, reafirmou já na posse os seus votos, em plenário e na Primeira Turma, a favor das duas maiores operações de combate à corrupção de que se tem notícia.

Na pauta do Supremo, destacam-se a investigação de Bolsonaro por interferência política na Polícia Federal e o julgamento, na Segunda Turma, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Lula. E, claro, respingarão na Corte as decisões do Congresso sobre a prisão após condenação em segunda instância, que teve idas e vinda tortuosas e julgamentos apertados no plenário – em geral por um voto.

Celso de Mello sai em novembro e Marco Aurélio, no ano que vem. Ambos são contra a prisão em segunda instância. Portanto, se houver um novo julgamento, a decisão vai depender dos dois futuros ministros. Ou seja: de Jair Bolsonaro. Deste que é candidato à reeleição em 2022, não daquele de 2018. A grande interrogação, aliás, é justamente essa: como será a relação deles, Bolsonaro e Fux.


José Casado: Privilégios e impunidade

Disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta

Judiciário e Ministério Público perderam a bússola em disputas pelo foro privilegiado —mecanismo institucional que, para muitos, simplifica a rota da impunidade para poucos. Tem tribunal estadual anulando decisão do Supremo e procurador em luta contra procuradores, para garantir tratamento especial a políticos suspeitos de crimes comuns.

Há 55 mil agentes públicos nesse cercadinho judicial. Rio, Bahia e Piauí abrigam 11 mil privilegiados. A lista vai do presidente da República a vereador; de senador a reitor de universidade; de juiz a delegado.

Semanas atrás, o Tribunal de Justiça do Rio deu a regalia a um filho do presidente, Flávio Bolsonaro, político notório pelo talento para lucrar muito, várias vezes e rapidamente.

Era deputado estadual quando comprou uma quitinete na Prado Júnior, em Copacabana. Revendeu-a 60 semanas depois com o extraordinário lucro de 292%. A valorização na área havia sido de 11% (índice FipeZap). Fez mais 18 negócios assim na Barra, Botafogo e Laranjeiras.

Personagem do inquérito sobre rachadinhas e lavagem de dinheiro na Assembleia do Rio, o ex-deputado reivindicou no STF o foro privilegiado de senador. O juiz Marco Aurélio Mello rejeitou. Ele apelou ao tribunal estadual, que inovou. Deu-lhe o privilégio e transformou em letra morta a decisão do Supremo.

Procuradores do Rio recorreram contra a inovação da Justiça fluminense. Entrou em campo o procurador-geral, Augusto Aras, como relatou a repórter Bela Megale. Aras acha que o filho do presidente merece ficar longe do juízo de primeira instância. Agora, o procurador-geral batalha para derrotar os procuradores do Rio no Supremo. Quer ver rejeitada a decisão de Mello, que foi baseada na jurisprudência do próprio STF.

Há uma lógica de poder nessa aparente anarquia institucional — a de que alguns são mais iguais que outros. A disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta no serviço público: 80% dos beneficiários estão no Judiciário e no Ministério Público, mostra estudo de João Cavalcante Filho e Frederico Lima, consultores legislativos.