César Felício: Poder supremo

Judiciário, na prática, exerce um poder moderador.
Foto: Divulgação/STF
Foto: Divulgação/STF

Judiciário, na prática, exerce um poder moderador

Se há algo que muda de forma surpreendente no Brasil é o entendimento do Judiciário sobre um fato. A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, manobra desesperada do ministro Edson Fachin para impedir a derrubada por completo de todas as punições determinadas no âmbito da Lava-Jato, é a maior tradução disso. Em uma corte antes tão escrupulosa com a forma, o Supremo Tribunal Federal agora é mais flexível em suas decisões. A questão de Curitiba não ser o foro adequado para se decidir sobre todos os casos no âmbito da operação já havia sido tratada pelo STF antes, e Fachin não concordava com a tese.. Agora foi uma das bases da decisão do ministro.

“Política é como nuvem, cada hora de um jeito”, frase em geral atribuída ao antigo governador mineiro Magalhães Pinto, aplica-se também ao entendimento da magistratura em determinadas questões. A conjuntura tem prevalecido sobre a doutrina.

É útil lembrar da sucessão de fatos do março de 2016. Não faz tanto tempo, cinco anos, e o Supremo Tribunal Federal pouco mudou. Entraram na corte Alexandre Moraes (2017) e Kassio Nunes Marques (2020). A guinada, entretanto, foi suprema.

O mês começou com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, virando réu no Supremo Tribunal Federal, por dez votos a zero, no dia 2. Na manhã seguinte, vazou a delação do senador Delcídio do Amaral implicando tanto a presidente Dilma Rousseff quanto Lula.

Em paralelo, a Lava-Jato acelerava. Lula foi levado coercitivamente para depor em 4 de março. O empresário Marcelo Odebrecht foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão no dia 8.

Degenerava a situação política. Em 12 de março, o PMDB rompia com o governo federal. Atos contra Dilma reuniram 500 mil pessoas no dia 15. No inesquecível 16 de março, Dilma nomeou Lula ministro da Casa Civil e o juiz Sergio Moro divulgou o famoso áudio entre os dois, fora do período permitido para a escuta e apesar da citação a pessoas com foro privilegiado. A posse foi suspensa por Gilmar Mendes no dia seguinte e não houve nenhuma punição para o magistrado. No dia 22, Rosa Weber negou recurso de Lula.

O contraste com o Supremo de 2021 é evidente. O atual presidente da Câmara, Arthur Lira, deixa de ser réu em ação penal, depois de o Supremo voltar atrás na aceitação da denúncia sobre o quadrilhão do PP. A decretação da suspeição de Moro é iminente. Lula está livre para concorrer.

Não se pode entender a reviravolta sem mencionar o vazamento de mensagens entre Moro e integrantes da Lava-Jato, mostrando que havia uma promiscuidade entre a Justiça e o Ministério Público na operação. Mas isso não explica tudo. Não é apenas Lula que está sendo redimido. A mão pesada está sendo retirada de toda classe política.

Foi o cientista político Humberto Dantas, da Faculdade de Sociologia de São Paulo (Fesp) e do Centro de Liderança Pública (CLP), que alertou em artigo para a falta de sincronia entre o março de 2016 e o deste ano. “Há muitas análises sobre o impacto eleitoral do retorno de Lula ao cenário, sempre condicionadas pelas circunstâncias. O momento para Bolsonaro é péssimo, isso pode mudar. Já a instabilidade de decisões do Judiciário é algo que começa a se tornar preocupante”, afirmou.

Para Dantas, a Justiça cometeu atropelos em 2016 ao tolerar extravagâncias da Operação Lava-Jato, que desvirtuaram a investigação contra Lula, e se desdiz agora. Constata-se que temos um Judiciário de conjuntura, atento sempre para a direção que o vento sopra. Ele não vê no movimento um “mea culpa” do Judiciário em relação a erros passados, mas a permanência de um padrão que se destaca pela insegurança. “Diminui a expectativa da sociedade por imparcialidade na corte”, constata.

Ele também vê a mesma falta de constância na decisão que levou ao cárcere o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), tomada pelo ministro Alexandre de Moraes. Se Silveira fez ataques às instituições e colocou em risco a segurança nacional, o então deputado Jair Bolsonaro não fez o mesmo em repetidas ocasiões durante sua vida parlamentar, sem jamais sofrer sanção nenhuma?

O Supremo avança além de suas competências, legisla sobre questão eleitoral, pode influir tão decisivamente na eleição de 2022 quanto influiu na última. A situação jurídica de Lula, por exemplo, permanece precária. Não é impossível que ele seja retirado do quadro dos candidatos em breve, ou na vigésima-quinta hora.

O Judiciário exerce, hoje, um verdadeiro poder moderador. Cioso de seus privilégios, do topo à base. Ontem um juiz federal substituto em Brasília, Rolando Spanholo, garantiu em liminar à Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) o direito de importar e aplicar vacinas contra covid-19 exclusivamente para “seus associados e respectivos familiares”.

A sociedade e o Congresso toleram o Judiciário assim porque os arroubos autoritários do presidente Jair Bolsonaro e dos seus apoiadores estressam o sistema democrático, deixam sempre a ruptura no horizonte e a muralha de contenção que existe está na magistratura. Mas Dantas pergunta: o que aconteceria se a Justiça, no futuro, ficasse alinhada a um Executivo com viés ditatorial?

O exercício é sinistro, sobretudo quando se enxerga o passado recente. Sem entrar no mérito das decisões, o Judiciário foi fundamental tanto para que o impeachment de Dilma se concretizasse há cinco anos, quanto para que Michel Temer concluísse o mandato, ao rejeitar a impugnação eleitoral da chapa de 2014. É ali, e não nos quartéis, que se concentra poder real. O que faz com que se olhe com redobrada atenção para a próxima escolha de Jair Bolsonaro para compor a corte, no próximo mês.

*César Felício é editor de Política.

Privacy Preference Center