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Folha de S. Paulo: Judiciário vê reação de Bolsonaro como temor de julgamento no TSE

Para integrantes dos tribunais, nota do presidente sobre Forças Armadas seria tentativa de intimidação

Julia Chaib, Renato Onofre e Ricardo Della Coletta, da Folha de S. Paulo

Integrantes do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) veem no conteúdo da nota divulgada por Jair Bolsonaro na noite de sexta-feira (12) preocupação do governo com julgamento da chapa presidencial na corte eleitoral.

Na nota, Bolsonaro diz que Forças Armadas não cumprem ordens absurdas e não aceitam tomada de poder por julgamento político.

Magistrados ouvidos pela Folha afirmam, reservadamente, tratar-se de mais uma tentativa de intimidação contra o Judiciário. No entanto, não veem uma ameaça no documento, avalizado por militares e pelo vice-presidente Hamilton Mourão.

Acreditam ser parte da retórica construída por Bolsonaro, mas que o governo segue cumprindo as decisões do Judiciário.

O TSE analisa um processo que pode levar à cassação da chapa eleita em 2018. A ação foi aberta após Folha revelar, durante o segundo turno das eleições, que correligionários de Bolsonaro dispararam, em massa, centenas de milhões de mensagens, prática vedada pelo TSE.

O esquema foi financiado por empresários sem a devida prestação de contas à Justiça Eleitoral, o que pode configurar crime de caixa dois.

Na avaliação na cúpula do Judiciário, o comunicado desta sexta-feira não leva a crise para outro patamar. Segue a aposta do presidente numa estratégia de disparar ameaças para demonstrar força junto a seus simpatizantes.

Na própria noite de sexta, após o ministro Luiz Fux, do Supremo, ter publicado decisão ressaltando que as Forças Armadas não são poder moderador da República, Bolsonaro divulgou comunicado também assinado por Mourão e pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo —ambos generais da reserva.

“As FFAA [Forças Armadas do Brasil] não cumprem ordens absurdas, como por exemplo a tomada de poder. Também não aceitam tentativas de tomada de poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”, afirma o mandatário na nota.

A menção a “julgamentos políticos” é uma referência velada tanto ao STF quanto ao TSE. O fato de o vice-presidente ter assinado a nota, avaliam, também é um sinal de que há preocupação com a cassação na corte eleitoral.

Também na sexta, o ministro Og Fernandes, do TSE, pediu para o ministro Alexandre de Moraes informar se as provas colhidas no inquérito das fake news, que corre no Supremo, têm relação com as ações que pedem a cassação.

Apesar do tom de ameaça, ministros do STF lembram que Bolsonaro já adotou retórica semelhante contra a corte e o Congresso em outras ocasiões, numa estratégia de energizar seu núcleo mais fiel de apoiadores.

No entanto, o tom belicoso usado em outras ocasiões por Bolsonaro não levou ao Planalto a simplesmente descumprir alguma decisão judicial, o que levaria a crise entre os poderes a um nível inédito.

Quando o ministro Abraham Weintraub foi chamado a depor no inquérito das fake news, por exemplo, integrantes do governo chegaram a defender que ele não comparecesse à oitiva. No fim das contas, ele não faltou ao depoimento, embora tenha permanecido em silêncio.

Magistrados também avaliam que o fato de o ministro da Defesa ter assinado a nota serviu como recado aos quartéis da ativa. A nota diz que as Forças não cumprirão ordens para interferir em outros Poderes.
Os recados dúbios de Bolsonaro estavam levando preocupação a fardados da ativa.

avaliação dos ministros da Suprema Corte é partilhada por líderes da oposição no Congresso Nacional e até por ex-aliados de Bolsonaro.

Eles argumentam que o comunicado do Planalto tem um forte componente de ameaça e de intimidação e afirmam que o mais preocupante é o ministro da Defesa ter endossado o documento.

“Uma nota sem sentido de ser divulgada, porque, no meu entendimento, ela se prestou mais à intimidação”, disse o líder do PSL no Senado, Major Olimpio (SP), um ex-aliado de Bolsonaro que se converteu em desafeto.

O senador criticou o apoio de Azevedo ao texto e disse que ele em nada se assemelha à atitude do general Mark A. Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, que pediu desculpas por ter participado da caminhada do presidente Donald Trump em meio a manifestações antirracistas no país. Ao se desculpar, o militar americano ressaltou o caráter neutro e distante da política partidária das Forças Armadas dos EUA.

“Os militares brasileiros deveriam se espelhar nos militares americanos que desautorizaram as loucuras do presidente Donald Trump”, afirmou o deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

“O art. 142 da Constituição é de redação minha e do sen. Richa. Qualquer dos 3 poderes pode requerer as FFAA na defesa da Constituição e da ordem. Nada a ver com tutela, moderação ou intervenção militar”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no Twitter.


RPD || Entrevista Especial: 'Não vejo riscos para a democracia no Brasil', avalia Denise Frossard

Ex-juíza e ex-deputada federal avalia que, apesar da relação conflituoso entre o Excutivo, o Judicário e o Legislativo atualmente, o Brasil ainda vive uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável, mas que não oferece riscos à democracia

Por Caetano Araújo e Cleomar Almeida

"Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil", relembra a ex-juíza e ex-deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard, sobre ampla investigação contra o crime organizado no Brasil, da qual fez parte e que a tornou conhecida nacionalmente, em 1993. Entrevistada especial desta 17a edição da Revista Política Democrática Online, Frossard aposentou-se do Judiciário em 1998 e, em 2002, foi eleita deputada federal com a maior votação para o cargo nas eleições pelo Rio de Janeiro.

Denise Frossard destaca que, né poca em que atuou contra o crime organizado,  O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. "Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes."

"Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos", completa Frossard.

Sobre o momento atual que o país atravessa, com o governo de Jair Bolsonaro e os atritos entre o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, Frossard diz que não vê risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. "Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia,  não há qualquer transação - é ela ou ela", destaca.

Na entrevista especial que concedeu à Revista Política Democrática Online, Denise Frossard também destaca o papel das instituições no Brasil. "Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato", alerta.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Revista Política Democrática (RPD): Tendo sido a precursora na difícil e corajosa tarefa de conduzir ampla investigação do crime organizado no Brasil, a senhora avalia que valeu a pena?
Denise Frossard: Antes de dizer se valeu a pena ou não, é importante destacar que vivemos hoje, no Brasil uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável. Agora, você me pergunta se valeu a pena. Vejamos.

Há mais de 25 anos, veio às minhas mãos um processo que de forma inédita implicava o reconhecimento ou não da existência de uma organização criminosa no Brasil do tipo mafioso, que se constituiu, enfim, para cometer crimes – não um crime específico, mas que se constitui para ser uma empresa cuja “mercadoria” era - e é - o crime. Era uma situação sem precedentes no Brasil. Embora eu fosse muito jovem à época, não hesitei em enfrentar o desafio. Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil.

Aquilo foi um marco. A partir daquele momento, ficou muito claro para a sociedade que aquele grupo condenado, conhecido como “a cúpula do jogo dos bichos” (mas o processo não dizia com a atividade contravencional do “Jogo dos Bichos”) que até então eram pessoas muito bem aceitas na sociedade, recebidas e até homenageadas por políticos, dos quais recebiam as maiores comendas oficiais, frequentadores de todos os Palácios da República. De fato eram - como são - criminosos, cercados de assassinos a soldo, ligados a vários homicídios, tráfico de drogas, armas etc... A partir daquele momento, isto ficou tão claro que quem quisesse frequentar aquele grupo em seus camarotes momescos ou tribunas VIPs de jogos de futebol que o fizesse, mas não mais poderiam alegar que não soubessem de quem se tratava. Entretanto, embora a linha divisória tenha sido perfeitamente traçada, isto não tirou da cúpula o poder, que permanece, se solidifica e se moderniza, até hoje, sem, contudo, perder seu gosto pelos “acertos de contas” violentos. Os policiais, então usados por eles pelo suborno, conforme consta da Sentença, hoje são os milicianos... apenas uma mudança na nomenclatura...

Então, valeu a pena? Certa vez um brilhante advogado criminalista do Rio, Dr Virgilio Donnici, me disse : “Excelência, esse negócio de crime organizado foi a Senhora  quem inventou aqui”. Foi mais ou menos isso, mas a invenção foi do Ministério Público, sob a batuta do então Procurador Geral da Justiça, Dr Antônio Carlos Biscaia. A partir da condenação da cúpula pelo vetusto então Art. 388 do Código Penal - Formação de quadrilha ou bando -, já que até então não havia previsão legal para condená-los por lavagem de dinheiro dentre outros crimes, senti-me como devem ter-se sentido os Juízes que condenaram Al Capone: sem instrumentos legais e cercados de policiais corruptos. Então, abriu-se ampla discussão por todo o país, envolvendo não só operadores do direito, advogados, magistrados, Ministério Público, intelectuais que entenderam o risco de os Estados serem capturados pelas organizações criminosas - e já tínhamos um esboço disto na vizinha Colômbia e, mais distante, na Itália. Houve uma discussão profícua sobre como reformar nosso ordenamento jurídico. Esse debate permitiu-nos avançar, pouco a pouco, na organização de nosso ordenamento jurídico que nos habilitasse a enfrentar o crime organizado.

O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes. Deixamos de ser aquela ilha onde, conforme eu disse em Davos no World Economic Forum de 1996, sob a presidência da Procuradora Helvética Carla Dal Ponte, no Brasil, a única penalidade para a lavagem de dinheiro seria a excomunhão, já que o Papa havia condenado essa atividade!

Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos. Custou-me muito? Talvez a própria vida... não se pode esquecer que sofri três tentativas de assassinato (ao que eu saiba) e que a conta com o crime organizado não se fecha nunca...

RPD: Justifica-se, então, sua ideia de que as boas leis sempre se originam dos maus hábitos?
DF: Sempre, por paradoxal que possa parecer. Mas não bastam as boas leis, como as que temos hoje. É preciso avançar nos ajustes para que as leis sejam mais explícitas, mais específicas. E estamos num ótimo momento para atuar neste sentido, situando-nos em meio à reconstrução do sistema político e do sistema tributário, depois de já termos iniciado o processo de reforma da previdência.

Hoje vivemos um momento de certa balbúrdia, um desacerto entre os três Poderes. Parece um casal a três... Há dúvidas sobre os limites da competência de cada um. Na raiz do embate, está o uso do dinheiro público. Quer dizer, a quem cabe decidir o destino do dinheiro do povo? Ao Presidente da República? Ao Poder Legislativo? Ou a última palavra - acertando ou errando - será do Supremo Tribunal Federal? A solução desse impasse seria fácil com a submissão de todos perante a lei. Mas o que fazer se a lei é subjetiva demais e abre espaços para todo tipo de interpretação? Esse é o problema.

Caímos, então, num dos problemas maiores da relação entre os três Poderes no Brasil, e até entre o Estado e os cidadãos. Daí o Judiciário ser chamado para interpretar a lei com larga liberdade, o que leva muita gente a supor tratar-se de invasão do Judiciário na competência do Legislativo, mas não é. É decorrência da falta de explicitação e especificação de nossas leis.

Nos Estados Unidos, por exemplo, quando um promotor faz uma denúncia, ele menciona a lei tal, o precedente qual, o fulano ou cicrano envolvido, tudo seco e objetivo, porque o ordenamento jurídico do país é explícito e específico. Já, no Brasil, não é raro uma denúncia citar Machado de Assis e outras fontes literárias. Nada contra Machado, mas qual é a denúncia? Qual a acusação?

De sua parte, o juiz usa uma linguagem que ninguém entende. Basta ir a um julgamento e perguntar-se: “Mas o que é isto, o que estão dizendo?”. E aqui eu faço um mea culpa. Eu só caí nessa realidade quando vi nos olhos dos meus acusados que eles só me entendiam quando, depois de ler e fundamentar uma sentença altamente elaborada, com fortes imagens literárias, quase uma “ sentença em compotas” (risos), que eles só entendiam e se tranquilizavam quando eu entrava na dosimetria da pena, na quantificação da penalidade, enfim, nos números!

A modernização da legislação brasileira, portanto, se impõe, e passa, a meu ver, pela tarefa de tornar as leis mais explícitas e mais específicas, isto a despeito dos enormes avanços que já tivemos nestes últimos 25 anos.

RPD: As manifestações a que a senhora se referiu não poderiam ser interpretadas como uma espécie de apropriação de bandeiras que são republicanas, de luta contra a corrupção, para uma finalidade que é um pouco, digamos assim, alheia a isso? Afinal de contas, parte-se de uma bandeira justa e louvável, para chegar à conclusão de atacar dois Poderes da República. Qual seria, então, a fronteira entre a luta pelas instituições, que são republicanas e para que elas se mantenham republicanas, e uma possível afronta à democracia.
DF: Volto à minha visão de que nós estamos em uma adolescência política, não só jurídica, e também histórica, e por isso mesmo instável. Quer dizer, essa convocação do dia 15 seria perfeitamente aceitável se fosse para protestar contra posturas destes ou daqueles nossos representantes, mas, se for para propor extinção de qualquer dos poderes da República ou propor a volta de ditaduras, é um gravíssimo atentado contra a ordem pública, podendo até ser passível de criminalização de quem fomenta tais comportamentos.

As ruas e praças são os espaços para protestarmos por melhores condições de vida e de sensibilizarmos os Poderes Constituídos de acordo com nossas propostas – nem sempre justas, nem sempre as melhores e desde que não sejam criminosas. Somos regidos pela Constituição Federal, que os dá liberdade para isto. Mas somos uma Democracia Representativa. De 4 em 4 anos, podemos trocar aqueles que sentimos que não nos representam, e é isto que vem sendo feito por nós desde o fim do movimento que se diz revolucionário. Só se aprende a andar, andando e, milagre, se anda! E isso é muito comum quando se tem essa adolescência política que nós vivemos.

Mas eu não vejo risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia,  não há qualquer transação - é ela ou ela. Acabo de chegar ao Brasil, vindo da Tunísia, e encontro essa convocação do Executivo de uma passeata para protestar  contra alegada ingerência do Legislativo e do Judiciário. Mas eu nunca vi isto! Um Presidente tem na mão caneta e pulso e carrega consigo os votos que obteve nas urnas,  que o legitimam. Deve dialogar com o Legislativo acerca de como governar, nos limites de cada um. É uma coisa de maluco um Executivo no exercício do poder convocar passeatas! Muitas vezes as pessoas perdem a razão pela forma como se manifestam. Isto até existiu num passado sofridamente recente, aqui mesmo, na América do Sul. Mas, alô, o Muro de Berlim já caiu há algumas décadas!

RPD: Sua expressão “adolescência jurídica, adolescência política” faz lembrar Ralf Dahrendorf, quando, em uma suposta carta a um cidadão do leste europeu, recém-egresso do totalitarismo, disse que “a democracia é uma forma de governo, não é um banho turco das vontades populares”, com o que indicava que se tem de seguir regras, respeitar princípios (cf. Reflections on Revolution in Europe, p. 12/13). E, a esse respeito, nada mais relevante do que a Constituição do país. A referida manifestação, ao questionar dois Poderes da República, não estaria sendo antidemocrática?
DF: Claro que se a manifestação é para pregar extinção de Poderes da República, como eu disse, não só é antidemocrática, mas também pode, em tese, configurar eventual conduta criminal. Perfeita a referência à Constituição. É ela que rege nosso Estado. A Constituição de 1988 é uma bela peça, que, no entanto, constitucionalizou tudo – até o exercício da locação foi constitucionalizada, de modo que permite ao Supremo se manifestar até mesmo sobre contratos de aluguel. Mas é a lei que nos rege. Podemos alterá-la, emendá-la (e já o fizemos inúmeras vezes), mas certas cláusulas não podem ser alteradas, são as chamadas Cláusulas Pétreas. É compreensível e aceitável a pressão sobre o Congresso, a partir das ruas. Mas não se pode perder de vista que nossa Democracia é Representativa. Mais atenção e cuidado na escolha de quem irá nos representar. Ao menos por 4 anos.

RPD: A gente viu nos últimos anos que a luta contra o crime organizado, depois do marco inicial ao qual a senhora se referiu, fez avanços expressivos. Mas, para quem está de fora, o ritmo desse combate parece ter esmorecido, de uns tempos para cá. Quais seriam os principais entraves existentes a essa campanha? E o que nós, cidadãos, e os nossos representantes deveríamos fazer para removê-los?
DF: Nesses 20 anos, em que nós saímos pelo Brasil falando que tínhamos de ter um parque legislativo que permitisse ao juiz atuar contra o crime organizado, ele foi concedido pelo Congresso Nacional. Mas, quando isto passou a atingir integrantes do próprio Congresso, do próprio Poder legislativo – e, por que não dizer, também do próprio Judiciário –, houve e há reação que entendo natural, esperada, de reação das corporações com muitos de seus membros envolvidos e que se julgavam ao abrigo de serem alcançados pela Lei. Foi isto exatamente o que ocorreu na Itália. E, como é ele, o Legislativo, que legisla, ele reage colocando freios, para evitar o atingimento. Mas, dentro dele mesmo, vem a reação contrária e aí está a força da Democracia, nós vamos colocando lá dentro aqueles que melhor irão entender nossa vontade. Essa é a luta que nós, cidadãos, vamos ter de travar sempre. E não pensem que vai ser fácil. Tudo em muito dependerá de quem nós colocarmos no Congresso, não é verdade?

Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato. Estes instrumentos nós temos, mas volto a dizer, é preciso que sejam mais claros, mais específicos, mais explícitos. E o principal: o combate à impunidade. Enfim, precisamos passar à maturidade política, jurídica e histórica, mas parodiando Shakespeare, é preciso cuidado, pois deve ser triste envelhecer antes de se tornar sábio. Avante!

 


Política Democrática || Henrique Herkenhoff: E quem me protegerá dessas garantias?

O Brasil iniciou 2020 em uma situação inusitada, com um pacote de medidas criminais sancionado na mesma ocasião em que uma nova lei de abuso de autoridade entrou em vigor

Entramos em 2020 com um pacote de medidas criminais sancionado, na mesma ocasião em que uma nova lei de abuso de autoridade entrava em vigor. Resistiremos à tentação de tecer análises jurídicas, mas não à de recorrer a certas frases bastante surradas, inclusive esta que compõe o título (Juvenal, Sátiras, 6, 348).

A matéria de ambas as leis já era tratada nas Ordenações Afonsinas de 1446, passando pelas Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), que, por decreto de D. Pedro I, continuaram em vigor no Brasil. A única diferença é que as Ordenações Portuguesas, sem nenhum pudor ou disfarce, diziam que certas garantias eram exclusividade dos fidalgos, ao passo que algumas penas e a tortura eram um privilégio das classes “vis”. Em todo caso, as penas da nobreza eram executadas “sem baraço e sem pregão”, isto é, sem algemas e sem exposição na mídia. Ademais, essas últimas “novidades” no campo do Direito Processual Penal nitidamente se contrabalançam, de maneira que nos parece ouvir aquilo que um personagem de Il Gattopardo (Giuseppe Tomasi di Lampedusa) dizia: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.”

Mesmo a melhor reforma traz complicações. A delação premiada, por exemplo, revelou-se indispensável, mas, em julgamento recente e acertado, o STF decidiu que, embora na falta de disposição legal expressa, os réus colaboradores devem falar antes dos demais, o que implicou a anulação de processos importantes. Resolver definitivamente as controvérsias de interpretação leva tanto tempo que, invariavelmente, um novo pacote de reformas é editado antes que o primeiro tenha sido digerido.

Auditar os processos licitatórios ou obras públicas é muito mais trabalhoso e demorado do que os realizar, com a agravante de que as piores fraudes não se encontram nos autos. Para se certificar de que as camadas de asfalto têm a espessura e o material contratados, colhem-se amostras de distância em distância, pois conferi-las em cada centímetro da estrada exigiria retirar integralmente a pavimentação... Seja no sistema anterior, seja com o juízo de garantias, apenas os erros mais grotescos podem ser evitados; tudo aquilo que pareça formalmente em ordem permite apenas um exame superficial.

Ao submeter diligências e prisões ao crivo prévio do Judiciário, na maioria das vezes sem que o réu possa ser ouvido, a decisão fica sepultada entre milhares de páginas. É duvidoso que o juiz se sentirá menos constrangido em reconhecer a ilegalidade de uma busca determinada pelo seu colega do que em admitir um erro em suas próprias decisões. Mas, e as instâncias superiores? Estas sempre estarão lá se provocadas, com ou sem juízo de garantias, mas, na prática, essas autorizações raramente são revistas e, de toda sorte, impedem a responsabilização de quem estava apenas “cumprindo ordens judiciais”, ainda que as tenha requerido.

Se alguém obtém liminarmente a posse de meu apartamento e mais tarde perde a ação, terá de me indenizar por todo o tempo em que fiquei fora de casa. No entanto, o réu preso e mais tarde absolvido nada receberá, nem mesmo honorários advocatícios. Nas ações penais e de improbidade administrativa, o Ministério Público, mesmo derrotado, não paga as despesas processuais dos réus e muito menos repara os estragos causados. Não é, portanto, necessário atingir individualmente a autoridade responsável pelo abuso, salvo quando agiu maliciosamente; para que ela fique autocontida, basta que a instituição a que pertence, com seu orçamento, pague a fatura das acusações malsucedidas e dos constrangimentos que os réus sofrerem.

As garantias que a Constituição dá aos réus somente se tornarão realidade para todos quando abandonarmos o controle prévio das atividades de investigação e acusação, fazendo-o só posteriormente e sob provocação da defesa, que já terá selecionado as questões importantes e levantado os elementos de convicção. Ou seja, exatamente o contrário da criação dos juízes de garantia. Atualmente, há registro de todas as interceptações telefônicas e quebras de sigilo bancário ou fiscal, permitindo aos cidadãos questioná-las mesmo que nunca sejam acusados. Que o Ministério Público possa, sem autorização judicial prévia, determinar as diligências que entender necessárias e prender quem haja por bem, desde que ofereça a denúncia imediatamente, mas suporte aquilo que chamamos “ônus da sucumbência” quando vencido. Só isso.

* Professor doutor do Mestrado em Segurança Pública da UVV/ES e presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/ES. Secretário de Segurança do Estado do Espírito Santo (2011/2013), desembargador federal (2007/2010), procurador e procurador regional da República (1996/2007), havendo integrado a Missão Especial de Combate ao Crime Organizado e o Conselho Penitenciário Estadual.


Bruno Boghossian: Judiciário protagonizou novela indecorosa com auxílio-moradia

Juízes provaram que têm pouco interesse em extinguir cultura de privilégios

A criação de novas regras para o pagamento de auxílio-moradia para juízes é o desfecho de uma novela indecorosa. Apesar de estabelecer padrões relativamente rígidos para o benefício, o Judiciário provou que está pouco interessado em extinguir sua cultura de privilégios.

Numa trama de negociações sigilosas e chantagens escancaradas, o Conselho Nacional de Justiça levou 1.555 dias para reconhecer o óbvio: só pode receber o valor extra aquele juiz que é transferido de sua comarca original, desde que não tenha imóvel próprio no novo local.

O colegiado ainda deu ares de austeridade ao aplicar uma exigência que deveria ser uma condição moral para qualquer uso de dinheiro público, que é a obrigatoriedade de apresentação de um documento que comprove a despesa do magistrado com o aluguel.

O papel de vilão cabe ao ministro Luiz Fux. Em 2014, ele assinou a liminar que liberou o pagamento do auxílio a toda a magistratura. O argumento original era a necessidade de equiparação dos benefícios recebidos em alguns estados e por outras categorias. Anos depois, comprovou-se que era papo furado.

A canetada de Fux foi usada de maneira escancarada para pressionar o Congresso e o presidente da República a autorizarem o aumento salarial de 16,38% cobrado pelo Judiciário. Ele mesmo teve uma reunião reservada com Michel Temer para negociar a troca: assim que o reajuste saiu, o ministro derrubou o benefício e o CNJ estabeleceu as novas regras para o pagamento.

O relator do caso ainda fez questão de manter uma brecha. Afirmou que o auxílio não era um “privilégio irrazoável” e se recusou a declará-lo inconstitucional. Este detalhe permite que as restrições ao benefício sejam questionadas no futuro e novas liminares sejam concedidas.

O Judiciário também enfrenta cobranças pela extinção e regulamentação de outros penduricalhos, como o auxílio-alimentação. Em quatro anos, talvez os juízes possam fingir disposição para enfrentar o tema.


Fernando Limongi: A semana em revista

Dodge defende a categoria como uma líder sindical o faria

"A Constituição é um documento vivo, em constante processo de significação e ressignificação, cujo conteúdo se concretiza a partir das valorações atribuídas pela cultura política a que ela pretende ser responsiva. Por sua vez, tais valorações são mutáveis, consoante as circunstâncias políticas, sociais e econômicas, o que repercute diretamente no modo como o juiz traduz os conflitos do plano prático para o plano jurídico, e vice-versa."

Por meio deste raciocínio tortuoso, o ministro Luiz Fux justificou a suspensão da liminar concedida quatro anos atrás, que, como todos sabem, garantia o pagamento do auxílio-moradia a juízes e promotores de todo o Brasil. Todos sabem também que a decisão do ministro fez parte da negociação que garantiu o aumento salarial da categoria obtido na semana passada. Ou seja, o ato monocrático do ministro Fux nada mais foi que o jeitinho encontrado para que os membros da corporação pudessem engordar seus contracheques. Com a manobra, obtiveram aumento salarial sem o necessário respaldo da lei. Todos, mesmo os mais jacobinos e moralistas, participaram da jogada e receberam o seu.

O despacho do ministro é de uma desfaçatez assustadora. Em última análise, Fux sustenta que juízes têm o direito de interpretar a Constituição para atender às suas necessidades práticas. Assim pensa (e pauta suas decisões) um dos 11 juristas cujo papel institucional é agir como o guardião da Constituição. Por vezes, não há como fugir do chavão: e quem nos guardará dos guardiões?
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"Sem adentrar propriamente no mérito, na legalidade ou na constitucionalidade do recebimento de auxílio-moradia, fato é que esta ação restringe-se ao pagamento ou não do benefício em causa para os juízes, nos termos da legislação que rege a magistratura judicial brasileira, limitando-se o julgado àquelas carreiras."

Este foi o despacho da procuradora-geral da República visando assegurar que os promotores não percam o direito a receber o penduricalho tão arduamente conquistado. Dodge, portanto, atua na defesa dos direitos da categoria que lidera, como uma líder sindical o faria. Mais do que isto, ao se furtar de discutir a legalidade da medida - o que em si só parece indício de que a medida carece de amparo legal -, Dodge escancara que o formalismo é um recurso meramente protelatório. Quando se trata de encher os bolsos da categoria, vale tudo.
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"A corrupção mata. Mata na fila do SUS. Mata na falta de leite. Mata na falta de medicamentos. Mata nas estradas, que não têm manutenção adequada. A corrupção destrói vidas, que não são educadas adequadamente, na ausência de escolas, deficiências de estruturas e falta de equipamento." Com estas palavras, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a manutenção da suspensão do indulto de natal concedido pelo presidente Temer no ano passado.

É indiscutível que a corrupção desvia dinheiro de destinações mais nobres e eficientes. Isto está fora de questão. Contudo, isto não significa que, controlada a corrupção, desaparecerão as filas do SUS, todas as estradas terão manutenção adequada e que todas as crianças serão educadas em escolas bem aparelhadas.

Recursos são escassos e, se a corrupção for eliminada, continuarão a ser. Salários dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público saem da mesma fonte que paga médicos, repara estradas e custeia a educação. Assim, recorrendo à retórica de que se valeu o ministro, seria possível dizer que penduricalhos garantidos pela interpretação que dá vida ao texto constitucional aumentam as filas do SUS e tiram recursos da educação.
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"Quem é Osmar Terra comparado ao Magno Malta?" A pergunta feita pelo deputado Silas Malafaia procede. Pela vontade de Bolsonaro, Malta seria seu companheiro de chapa e só não ocupou o posto em razão das maquinações de Valdemar Costa Neto.

Bolsonaro continua firme na sua disposição de fugir ao toma-lá-dá-cá das indicações partidárias, privilegiando a competência e a lealdade dos selecionados. Os critérios, contudo, não têm se mostrado suficientes para aplacar conflitos, para decidir se Terra ou Malta é mais preparado para o cargo. Como declarou o presidente, há escassez de cargos e excesso de amigos leais a premiar.

Mas nem todos ficarão no sereno. Com a criação de Secretarias Especiais de Articulação Política, o governo visa assegurar colocação para aliados punidos pelas urnas. Serão duas secretarias especiais, comandadas por Carlos Manato e Leonardo Quintão, cada uma delas com o direito a empregar dez deputados não reeleitos. Pelo que foi noticiado, caberá a estes parlamentares a tarefa de organizar a base de apoio do presidente e garantir a aprovação da reforma da Previdência.
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"Essa que está aí não está sendo justa, no meu entender. Não podemos querer salvar o Brasil matando o idoso." Esta é a opinião de Jair Bolsonaro sobre a reforma da Previdência enviada por Michel Temer ao Congresso. Como é de seu feitio, o presidente eleito saiu pela tangente, quando perguntado sobre detalhes da proposta que defende.

Marcos Cintra, nomeado secretário da Previdência e da Receita Federal, tampouco tem detalhes a oferecer. Em entrevista à "Folha de S. Paulo", declarou que "evidentemente, ainda não houve discussão em detalhes com o Paulo Guedes, nem com o próprio presidente. O presidente tem emitido sinais que não quer uma reforma previdenciária que gere grandes descontinuidades ou grandes tumultos, quer uma coisa menos acelerada e disruptiva. Então, o que vamos fazer é construir isso e apresentar para o debate."

Em outras palavras, a equipe de transição sequer começou a atacar a questão e, quando o fizer, não será fácil atender as demandas do presidente. O fato é que, fosse outra a disposição dos agentes econômicos, as duas declarações teriam derrubado o índice Bovespa.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Bruno Boghossian: Supremo precisa decidir se pode ou não se intrometer em outros Poderes

Um espectador desavisado poderia confundir as últimas sessões do STF com um ato de contrição. Lembrando o princípio da separação de Poderes, a maioria dos ministros sustentou que juízes não podem interferir nas competências de outras autoridades.

O argumento deve embasar a liberação do decreto de indulto natalinode Michel Temer. Não se deve esperar do tribunal, porém, uma revisão dos limites de sua atuação. O Supremo deixa intocada uma coleção de momentos em que se intrometeu no Executivo e no Legislativo.

Edson Fachin reconheceu a ironia. Ele ponderou que, se o STF não tem poderes para cassar o decreto, também não deveria anular a nomeação de ministros por um presidente.

A corte não teve esse espírito em episódios recentes. Em 2016, Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil. Embora Dilma Rousseff tivesse autonomia para escolher sua equipe, o magistrado considerou o ato uma “falsidade” para proteger Lula.

No início deste ano, Cármen Lúcia deu aval à decisão de um juiz de primeira instância que proibiu a posse de Cristiane Brasil no Ministério do Trabalho. Uma decisão capenga dizia que ela não poderia assumir o cargo porque havia sido condenada em um processo trabalhista.

Os braços togados também alcançaram decisões econômicas. Ricardo Lewandowski chegou a travar a privatização de uma distribuidora de energia quebrada em Alagoas e proibiu o governo de adiar o aumento de salário de servidores.

Em 2017, na intromissão mais esdrúxula dessa classe, Luiz Fux cancelou a votação na Câmara do pacote anticorrupção. O ministro afirmava que o projeto de iniciativa popular não poderia ter sido alterado —ou seja, que os deputados não podem legislar como bem entenderem.

Nos próximos anos, o Supremo certamente será chamado para administrar tensões com o governo Jair Bolsonaro. O tribunal precisará se olhar no espelho para definir as fronteiras de sua atividade política.


Hamilton Garcia: Os perigos que se avizinham e o antídoto

Fala-se muito na campanha em fascismo e bolivarianismo, mas se o segundo expressa um objetivo explícito da política petista (vide “#EleNão! ou #ElesNão!”) – não obstante sua eludição tática por Haddad neste segundo turno –, o primeiro diz algo de potencial sobre o candidato mais bem cotado ou como ele pode vir a se tornar realidade a depender da marcha dos acontecimentos, se vitorioso for.

Olhando-se para a frente de direita que se formou em torno de Bolsonaro no rastro da crise do impeachment, vê-se um amálgama de convicções conservadoras cristãs e liberistas associadas ao antipetismo, ao par de um desenvolvimentismo lastreado no positivismo, ideologia basilar do Exército Brasileiro. Em condições normais de temperatura e pressão, não obstante o currículo e a vontade do Capitão, o novo governo teria, para ter sucesso, que se desenrolar dentro da normalidade democrática, e, para tal, contaria com grande respaldo social, popular e empresarial, e perspectiva de governabilidade no Congresso, não obstante a sombra neopatrimonialista da bancada do Centrão.

Ocorre, porém, que a falência do sistema político e a crise estrutural do modelo liberal-rentista de democratização, a par da elevada temperatura política bafejada pelo PT como tática de sobrevivência ao Petrolão, conspiram contra essa normalidade, junto com a falta de concatenação programática da frente bolsonarista e a perspectiva bolivariana da “resistência ao fascismo” – ambas podendo suscitar movimentos violentos na sociedade.^

Para tornar mais sombrio o quadro, enquanto na fase lulopetista foi possível “distribuir" os ganhos econômicos com a exuberância comercial do protagonismo chinês e da bolha ocidental – desperdiçando as chances de um “salto à frente”, em termos produtivos, com uma inclusão social pelo trabalho/aprendizado –, na fase bolsonarista o Brasil estará obrigado a enfrentar seus velhos e novos problemas e dificuldades, o que exigirá sacrifícios até aqui não admitidos pelos grupos dominantes – inclusive os aninhados nas altas esferas do Estado e nas corporações financeiras.

É certo, por outro lado, que algo se pode fazer na frente econômica com resultados positivos no curto-prazo para o governo – dois anos talvez –, seja simplificando os procedimentos normativos arrecadatórios, abrindo novas possibilidades de comércio com os países ricos, sustentando um câmbio de maiores possibilidades comerciais para a indústria e mesmo surfar na esperada onda da retomada econômica adiada pelo naufrágio precoce do Governo Temer. Ocorre que tal agenda, sem tocar nos problemas estruturais de longo-prazo da economia, pode propiciar apenas um fôlego, um novo vôo de galinha dentre tantos já vistos desde a recessão dos anos 1980.

No médio e longo-prazos, os gargalos estruturais tenderão a amplificar as fraturas existentes no seio da coalizão de direita, que, uma vez no governo, se transformará numa coalizão mais ampla, incluindo o liberalismo pragmático e mesmo o neopatrimonialismo, derrotado em sua dúplice aliança com o PSDB e o PT. Neste caso em especial, as perdas vitais dos segmentos neopatrimoniais, impostas pelos fatos, tenderá a afastá-los do governo na perspectiva de voltarem ao poder numa aliança com o lulopetismo que, para ser viável, teria que ser precedida de uma nova maquiagem moderadora dos “companheiros".

Bolsonaro se mantém à proa da disputa flertando com uma ruptura com o sistema – como ficou claro em seu último pronunciamento às manifestações verde-amarelo –, mas parece fadado, por suas alianças liberais e a correlação de forças no interior do aparato militar, a, por enquanto, inaugurar apenas uma ruptura com o mecanismo (neopatrimonial) – o que não é pouco, nem fácil! –, o que significaria, de fato, uma troca na direção do bloco histórico em crise, responsável pela transição democrática desde 1985, e cuja hegemonia é detida pelo capital financeiro, que conheceu, até aqui, dois formatos: o liberal-patrimonialista de Sarney&Collor e o social-patrimonialista de LILS, com um híbrido em Itamar&FHC.

A nova direção liberal-conservadora sobre o velho pacto democrático teria como objetivo pôr ordem no modelo, revertendo a bagunça deixada por Mantega&cia e, de quebra, despejando as oligarquias neopatrimoniais do poder, abrindo assim espaços para maior racionalização do Estado e ajudando a reverter as expectativas negativas sobre o país, recompondo o ambiente propício ao crescimento e à retomada do emprego.

Operar tal mudança, necessária mas não suficiente para nos recolocar na rota do desenvolvimento, além do custo político elevado, pode não surtir os efeitos esperados pela população, o que a levaria ao desencanto e consequente fortalecimento da oposição, o que poderia animar os bolsonaristas, apoiados no setor desenvolvimentista de sua coalizão, a uma tournant no sentido de um novo bloco histórico, o que exigiria um programa econômico voltado para a produção e não simplesmente para o consumo, deslocando o sistema financeiro global de seu papel atual de fiador principal de nossa estabilidade macroeconômica e política.

A hipotética viragem, a depender do contexto político em que ocorra e do álibi que o lulopetismo poderá lhe fornecer, no curto-prazo, provocaria forte inquietação nos mercados e, por consequência, abalaria a frente governativa de centro-direita, podendo levar, inclusive, à suspensão das garantias constitucionais (estado de sítio) ou até mesmo a medidas mais graves no caso da ausência de consenso no Estado de como lidar com a crise.

Paradoxalmente, a previsível resistência petista ao “fascismo" pode render bons frutos à nova política, quer em termos do isolamento das oposições na sociedade, quer do alinhamento defensivo do Estado contra a ameaça de caos que ela pode encerrar, abrindo espaços para uma uma reforma política conservadora, inclusive com mudanças constitucionais para restringir o pluralismo político e aumentar a estabilidade governamental (voto distrital puro).

No caso de não se conseguir produzir tal consenso no âmbito do Estado, o prolongamento do cenário caótico, em meio a conflitos de rua entre esquerda e direita, pode assistir ao aparecimento de milícias paramilitares em ambos os extremos, abrindo espaços para a emergência de um inédito movimento fascista no país – cujos braços armados, diga-se de passagem, já se encontram virtualmente constituídos, embora ainda não plenamente politizados.

Neste cenário sombrio (hipotético), tal como na eleição em curso, nos fará falta uma terceira via capaz de suplantar o petismo e impedir, de novo, a vitória da extrema-direita. O problema aqui é que a desorientação da centro-esquerda é ainda mais forte que as perdas parlamentares sofridas pelo PSDB, PPS e Rede, ao fim do primeiro turno das eleições, o que compromete seu protagonismo na oposição – qualquer que seja o resultado do segundo turno.

O antídoto ao perigo que se insinua está numa frente política capaz de enfrentar o virtual desafio do novo bloco histórico autoritário, de extrema-direita, colocando, à semelhança deste, o foco da inclusão na retomada da produção industrial como resposta ao esgotamento da fórmula financista, baseada em consumo e endividamento das famílias, ao mesmo tempo que procura restaurar a governabilidade e preservar a democracia por meio de uma reforma política que racionalize o sistema partidário (representação) por meio de um modelo eleitoral misto, com listas pré-ordenadas, e medidas punitivas efetivas aos partidos cujos representantes se envolvam em crimes tipificados contra o bem público.

Seja como for, é chegada a hora de se enfrentar a crise política e econômica que o oportunismo político e a incompetência intelectual,varreram, desde 1988, para debaixo do tapete.

Não está escrito nas estrelas que o bolsonarismo derivará em fascismo – isto não faz parte da nossa tradição republicana e para tal existem freios conhecidos, embora não infalíveis –, mas é certo que entre as variáveis propícias para tal está a natureza da oposição que se fará ao (provável) novo governo, e, nela, Ciro Gomes se constitui numa esperança de solução democrática. Torçamos para que ele se coloque à altura da tarefa, nesta fase delicada de nossa vida republicana.


Celso Rocha de Barros: Um domingo para esquecer

Circo de soltura de Lula mostra como a eleição capturou as instituições

Na história das instituições brasileiras, foi um domingo para esquecer. Como costuma acontecer, quanto mais a política brasileira se judicializa, menos peso têm os argumentos jurídicos e mais politizadas se tornam as cortes.

O argumento do desembargador Favreto para soltar Lula era muito ruim: o fato novo que justificaria a soltura seria o lançamento da pré-candidatura do ex-presidente.

Você pode achar que Lula é inocente, mas não que esse argumento para soltá-lo ultrapassa o sarrafo do digno de ser levado em conta.

Além disso, em um ambiente institucional mais sólido, o próprio desembargador Favreto teria se declarado inabilitado para julgar, por ter trabalhado na Casa Civil durante o governo do PT.

O Brasil, infelizmente, não tem esse ambiente institucional sólido: Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes não se declaram inabilitados quando julgam o PSDB ou o MDB.

Mas depois que Favreto tomou sua decisão, o juiz Sergio Moro devia tê-la respeitado.

Havia canais jurídicos adequados para contestar a decisão de Favreto, e, mesmo se Lula fosse solto, poderia ser preso de novo muito rápido, sem a esculhambação deste domingo. Moro errou.

E aí começou o circo. Favreto reiterou sua decisão, o desembargador relator da Lava Jato reverteu sua decisão, Favreto voltou à carga. Nesse meio tempo tinha gente querendo punir Favreto no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), tinha petista querendo prender Moro por desacato à autoridade, e fomos assim até de noite.

No momento em que escrevo esta coluna, Lula ainda está preso, e a polícia, veja que beleza, não sabe que ordem judicial deve cumprir.

E o triste foi isso ter tido importância.

Em nenhum momento deste domingo houve a chance real de que Lula fosse solto por mais do que alguns dias, e o próprio ex-presidente sabia disso.

Mesmo assim, o PT conseguiu marcar pontos em sua guerra de atrito de longo prazo contra Sergio Moro.

Depois que contestou a decisão de Favreto, ficou mais difícil argumentar que Moro trata o caso de Lula como trataria qualquer outro.

Era isso que a defesa de Lula queria, mas as perspectivas políticas da esquerda não deveriam depender desse tipo de coisa.

E se a Lava Jato depende tanto assim de não deixar Lula solto apenas por algumas horas, é porque ela está batendo em retirada.

Se a operação aceitar o discurso de que Lula era o chefe do esquema, que o importante mesmo era prender o chefe, e que o fundamental era isso, terá declarado sua rendição diante dos políticos conservadores que a têm sistematicamente derrotado desde que Michel Temer tomou posse.

Se a Lava Jato aceitar correr para o abraço dos antilulistas, precisa saber que isso é correr da briga real que tem diante de si.

A soltura de Lula não deveria ter sido decidida no plantão; já que foi, Moro deveria ter deixado que a decisão fosse cumprida e, hoje ou nos próximos dias, seguido os procedimentos para mandá-lo de volta à prisão nos termos da lei.

A questão “Lula deve ser solto até que acabe o plantão de Favreto?” não deveria ser de vida ou morte para ninguém.

Que o circo deste domingo tenha sido montado mostra o quanto as instituições brasileiras estão inteiramente capturadas pela atual disputa eleitoral.

E tudo isso poderia ter sido evitado se o sistema político brasileiro já tivesse produzido candidatos capazes de não levar uma surra de um sujeito que está preso.

*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Congresso Em Foco: Promotores e procuradores levam desembargador que mandou soltar Lula ao CNJ

Decisão de Favreto abriu batalha no Judiciário

Um grupo de 103 integrantes de ministérios públicos estaduais e do Ministério Público Federal (MPF) entrou com pedido de providências no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Para os promotores e procuradores, a decisão de Favreto de libertar o ex-presidente Lula “viola flagrantemente o princípio da colegialidade, e, por conseguinte, a ordem jurídica e o Estado Democrático de Direito”.

O habeas corpus concedido por Favreto foi derrubado pelo presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores, ainda nesse domingo. Lula está preso desde 7 de abril em Curitiba.

Promotores e procuradores alegam que o desembargador plantonista é “incompetente para revogar decisão de um colegiado” e que a condição de Lula como pré-candidato à Presidência, ao contrário do considerado pelo magistrado, não é fato novo.

Argumentam, ainda, que o próprio CNJ já regulamentou que o plantão do Judiciário não se destina à apreciação de pedido já analisado no órgão judicial de origem ou em plantão anterior. Para integrantes do Ministério Público, Favreto incorre em “ativismo judicial pernicioso e arbitrário”.

“O dever de estabilidade está conectado ao dever de respeito aos precedentes já firmados e à obrigatoriedade de justificação/fundamentação plausível para comprovar a distinção da decisão, sob pena de flagrante violação da ordem jurídica. A quebra da unidade do direito, sem a adequada fundamentação, redunda em ativismo judicial pernicioso e arbitrário, principalmente quando desembargadores e/ou ministros vencidos ou em plantão, não aplicam as decisões firmadas por Órgão Colegiado do Tribunal”, diz a petição.

 


Elio Gaspari: O ‘faço porque posso’ dos juízes

Graças à magistratura, as cadeias estão lotadas de onipotentes da política, mas o vírus também contamina o Judiciário

Para quem acha que já viu tudo, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) convocou uma greve da categoria para o próximo dia 15, uma semana antes da sessão em que o Supremo Tribunal Federal julgará a legalidade do auxílio-moradia dos magistrados. Uma manifestação de juízes contra um julgamento.

Não bastasse isso, a Ajufe argumenta que “esse benefício é recebido por todas as carreiras”. É verdade, pois os procuradores também recebem o mimo, mas é também um exagero, pois não se conhecem casos de outros servidores que recebem esse auxílio sendo donos de vários imóveis na cidade em que moram. A Ajufe poderia defender a extinção ampla, geral e irrestrita do auxílio-moradia, mas toma uma posição que equivale, no limite, a defender a anulação de todas as sentenças porque há pessoas que praticaram os mesmos atos e não foram julgadas. Uma ilegalidade não ampara outra.

A greve da Ajufe está fadada ao ridículo, mas reflete um culto à onipotência que faz mal à Justiça e ao Direito. A magistratura é um ofício poderoso e solitário. Em todos os países do mundo, os juízes são soberanos nas suas alçadas. Os ministros do STF dizemse “supremos”. Lá nunca houve caso em que um deles, ao votar num julgamento de forma contrária à que votara em caso anterior, tenha explicado a mudança com a sinceridade do juiz David Souter, da Corte Suprema dos Estados Unidos: “Ignorância, meus senhores, ignorância”. (Tratava-se de um litígio sobre a legalidade da existência de casas de strip-tease perto de escolas.)

Graças ao repórter Kalleo Coura, está na rede um áudio de nove minutos no qual o juiz Solón Mota Junior, da 2ª Vara de Família de Fortaleza, ofendeu a defensora pública Sabrina Veras. Desde novembro, a advogada pedia urgência, sem sucesso, para ser recebida pelo magistrado para transferir a guarda de duas crianças para o pai, pois a mãe as espancava. Em janeiro, uma das meninas morreu. Duas assessoras do juiz acusavam a defensora de ter dito que elas haviam matado a menina. Ela nega que o tenha feito. (Mota Junior repreendeu a advogada quando ela o tratou por “você”, mas chamou-a de “minha filha”.)

O meritíssimo chamou-a de “advogada desqualificada”. Poderia ser o jogo jogado, pois nos bate-bocas do STF vai-se por essa linha, mas ele foi além: “Você se queimou comigo. Lamento dizer, você está começando agora… se queimou comigo. E vai se queimar com tantos quanto eu fale essa história.” Juiz ameaçando advogada é uma anomalia.

As crianças contavam que a mãe as espancava, e um meritíssimo de Vara de Família argumenta: “Uma criança de 4 anos tem discernimento? Vai interferir num posicionamento de um juiz?” Tudo bem, deve-se esperar que ela atinja a maioridade.

O doutor Mota Junior não exercitou seus conhecimentos do Direito, apenas expôs o poder que julga ter. O Brasil tem 17 mil juízes, e não se pode achar que coisas desse tipo sejam comuns, mas quando a Associação dos Juízes Federais pede uma greve contra um julgamento, alguns parafusos estão soltos.

Graças à deusa da Justiça, os nove minutos do meritíssimo Mota Junior estão na rede, no site Jota. Se ele soubesse que iria ao ar, certamente seria mais comedido.

 


Roberto Romano: Juízes, respeitem a cidadania!

Historicamente, muitos magistrados usaram a lei como instrumento de opressão e tirania

A campanha contra a corrupção atinge décadas de existência, no mundo e no Brasil. Fenômeno social, político, econômico, suas causas e seus resultados têm muitos sentidos. Erro é o entender com análises que o cindem entre o bem e mal, o aceitável e o proibido. Oportunismos vários recortam a vida coletiva de maneira maniqueísta: o nosso lado nunca sofre erros; já o canto oposto... responde por tudo o que dissolve os laços éticos. Tais indignações sempre são seletivas. Pode nosso parceiro cometer as piores vilanias, ele encontrará desculpas em nossas almas. Mas as hostes inimigas, mesmo em caso de pecadilho, transformam-no no agente de Lúcifer.

Se escutamos fanáticos que agem segundo slogans, pouco podemos reclamar do seu primarismo. Seitas seguem líderes de modo apaixonado. Basta que sejam ouvidas falas contrárias às do agrupamento, logo os gestos se tornam agressivos. O pensamento exige diálogo entre diferentes (a mesmice impede saberes novos), mas o sectário nada capta sobre realidades complexas. Preocupa, no entanto, encontrar pessoas que deveriam dedicar-se à reflexão, mas aceitam esquemas binários. Elas racionalizam fatos, dão aos parceiros frases para justificar táticas hediondas.

Baseado em tal constatação, Jean-Paul Sartre distingue o filósofo do ideólogo. O primeiro busca o verdadeiro, o segundo dispensa a busca factual e lógica. O próprio Sartre agiu com as duas faces, a filosófica e a ideológica. A primeira, ao investigar a liberdade, os atos intencionais da consciência. A segunda, ao defender regimes como o da União Soviética. Mas ele se ergueu contra a invasão da Hungria em 1956. O mesmo indivíduo pode assumir certa atitude, depois outra. Imaginemos povos inteiros, cuja oscilação entre o pacífico e o truculento, o moral e o criminoso, conduz às guerras.

A campanha contra a corrupção exige cautelas. Na História temos casos de indivíduos que, ao guerrear o que julgavam corrupto, foram vencidos. O símbolo dos justiceiros encontra-se em Savonarola, “profeta desarmado”. Quando vencia, massas o seguiam, ébrias de certezas. Ai dos pecadores! Acabou na fogueira e a República seguiu costumes de antanho. A frase maquiavélica sobre o monge não é exata: suas armas estavam na mente dos que o idolatravam. Quando popular, o dominicano não precisava mover exércitos. A massa crente, ruidosa como o vendaval, servia-lhe como arma.

No Brasil, surgem inúmeros profetas, sobretudo no Judiciário, líderes da campanha em prol da pureza radical. Quase nenhum deles recorda a experiência do irado monge. Usam a receptividade do tema em estratos da população para atacar corruptos, reais ou supostos. Olvidam o fato notório: a fama aparece e some em pouco tempo. Uma sociedade abriga os mais contraditórios interesses e causas. Em determinado instante, certo tema ocupa as mentes e os corações. Quando surge outra ameaça, o interesse público a teme e amplia.

Todos os que estudaram a famosa Operação Mãos Limpas conhecem o seu instante de glória, quando muitos políticos foram presos, expulsos da vida oficial. Mas depois vieram as réplicas. Juízes e promotores perderam apoio, a Grande Causa foi obliterada pelo ramerrão político ou eleitoral. Partidos foram destroçados. Mas outros, tão corrompidos quanto, surgiram para controlar o Legislativo e o Executivo. E tutto rimane come sempre... Magistrados fundaram partidos que poucos votos tiveram. Hoje eles andam pelo mundo para explicar o seu fracasso. Poucos atores da Mani Pulite criticaram a si mesmos, pois, como é “evidente”, a culpa da hecatombe corrupta deveria ser atribuída aos outros, os ardilosos que agem nas sombras... Outra nota do fanatismo: ele é orgulhoso, deseja para si a perfeição plena. Os defeitos, ora, encontram-se nos terrenos alheios...

O Judiciário brasileiro procura se defender das críticas a ele enviadas pelos diversos setores políticos, sociais, ideológicos, econômicos. As reações contra magistrados a eles soam como crimes de lesa-majestade... divina. Tal atitude foi resumida pela ministra Cármen Lúcia ao inaugurar o atual ano de trabalho. “Não há civilização nacional enquanto o direito não assume a forma imperativa, traduzindo-se em lei. A lei é, pois, a divisória entre a moral e a barbárie”.

O nobre Rui Barbosa que nos desculpe, mas é árduo identificar plenamente “lei” e “juízes”. Da Ágora que condenou Sócrates aos tribunais de exceção do século 20 (e do 21...), muitos e muitos juízes usaram a lei como instrumento de opressão e tirania. É recomendável a leitura do livro tremendo de Eric Voegelin, Hitler e os Alemães. No Brasil da era Vargas e do regime imposto em 1964, juízes em grande quantidade “aplicaram imperativamente as leis” de modo inclemente e desumano. Tais normas ofendiam o Direito, a liberdade, a dignidade dos governados. Cito um correto comentário ao discurso da magistrada: ela não mencionou, mas o Poder Judiciário, “com frequência crescente, descumpre as leis, criando-as à revelia do Congresso, instituição moldada para legislar. (...) As decisões da Justiça devem ser respeitadas. Mas é igualmente certo que, em primeiro lugar, quem deve respeitar a lei é o juiz. O fundamento para o respeito às decisões judiciais não é a autoridade do magistrado, como se sua voz tivesse um valor especial por si só. A decisão da Justiça tem seu fundamento na lei, votada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo” (O Estado de S. Paulo, A responsabilidade do Judiciário, 2/2/2018, A3).

As ordens do Supremo Tribunal Federal são atenuadas mesmo por instâncias inferiores do Judiciário. O caso da Súmula Vinculante de número 11 é claro. Enquanto tal situação permanecer, e o cidadão for humilhado pelo poder sem peias de juízes, sempre que ouvirmos suas falas com ataques à vida social brasileira, devemos proclamar: medice, cura te ipsum (médico, cura a ti próprio)!

*  Roberto Romano é professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros Estados da razão’

 

 


Eliane Cantanhêde: Péssimos exemplos

O Judiciário, que combate a corrupção alheia, não pode brigar por privilégio ilegítimo

A abertura do Ano Judiciário de 2018, ontem, no Supremo, virou um ato de desagravo à Justiça, que está na berlinda com a Lava Jato e é atacada sem cerimônia pelo PT e pelo próprio ex-presidente Lula desde que ele foi condenado pelo juiz Sérgio Moro e depois pelo TRF-4 .

Em discurso, a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, declarou que é “inadmissível e inaceitável desacatar a Justiça”. Em seguida, a procuradora-geral Raquel Dodge lembrou singelamente o óbvio, que as decisões judiciais “devem ser cumpridas”. E o presidente da OAB, Claudio Lamachia, condenou tentativa de “constranger e influenciar” a Justiça.

Tudo isso no dia seguinte a um encontro de entidades de juízes, magistrados e procuradores que criticaram duramente os ataques à Justiça, em referência às vezes indireta, às vezes mesmo direta, à declaração de Lula de que não respeitaria a decisão do TRF-4, à nota do PT classificando essa decisão de “farsa judicial” e às barbaridades que senadores como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias andam falando.

Houve também uma defesa em cadeia ao entendimento do Supremo de que condenados em segunda instância, caso de Lula, já podem ser presos. Cármen Lúcia abriu a fila, ao anunciar publicamente que não poria em pauta a revisão dessa questão. Na quarta, as entidades do Judiciário foram na mesma linha. Na quinta, Dodge ratificou. Fecha-se o cerco.

A defesa às decisões do Judiciário, uma constante de Cármen Lúcia, está sendo neste momento um recado duro para o PT e para Lula, mas não custa lembrar que não são só eles, muito pelo contrário, os alvos da Lava Jato. Os demais partidos talvez sejam mais discretos, ou tenham mais prurido, ou ajam mais institucionalmente nas críticas, mas eles também não morrem de amores por essa “nova” Justiça que parte para cima, incisivamente, decisivamente, dos poderosos de colarinho branco e dos crimes de corrupção.

Mas... os mesmos juízes, desembargadores e procuradores, que têm não apenas o direito, mas também o dever de defender o Judiciário, não estão sabendo lidar com uma outra face da moeda. Eles têm de reagir à altura aos ataques às decisões de juízes e tribunais, mas não devem permitir que o corporativismo comprometa os méritos, avanços e louros do Judiciário.

Na mesma reunião em que falaram grosso contra os ataques do PT, as entidades de juízes e procuradores bateram o martelo a favor de um manifesto exigindo a manutenção dos privilégios de suas categorias. Colocaram-se contra a reforma da Previdência para, por exemplo, manter os salários e os índices de reajuste salarial mesmo depois de aposentados.

Pior: insistem no auxílio-moradia indiscriminado, mesmo para quem sempre morou no mesmo lugar e mesmo para juízes como Marcelo Bretas, do Rio, que são casados com juízas e acumulam dois auxílios-moradia para morar numa só casa. Não é nada, não é nada, são R$ 8.400 mensais cobrados do meu, do seu, do nosso e daquele rico dinheirinho da parte da população que mais sofre com crises e déficits.

Daí porque Cármen Lúcia foi dura ao reagir aos ataques do PT e de Lula, mas também mandou um recado claríssimo ao corporativismo do Judiciário no seu discurso de ontem: “A nós, servidores públicos, o acatamento irrestrito à lei impõe-se como dever acima de qualquer outro. Constitui mau exemplo para o cidadão. E o mau exemplo contamina e compromete”.

A Justiça que combate a corrupção alheia deve ter vergonha de dar “mau exemplo”. Estourar o teto constitucional (R$ 33.700) para ganhar o dobro, ou mais, à custa de auxílios-moradia ilegítimos e coisas assim é um péssimo exemplo. Ainda mais numa hora dessas.