golpe de 1964

Presidente Jair Bolsonaro nas Forças Armadas | Foto:Jose Cruz/EBC

Revista online | Militares e o governo Bolsonaro: política ou partidarização?

Paulo Ribeiro da Cunha*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)

Nesse último quadriênio, o país tem sido tencionado por questionamentos sobre a possibilidade de ruptura institucional, e analistas sustentam legítimas preocupações relacionadas à politização das Forças Armadas, associando o quadro atual a um cenário próximo ao do golpe civil militar de 1964. Apontamentos, evidentemente, sujeitos a controvérsias e, cautelosamente, aqui pontuados numa outra linha de análise, antípoda à tese de um golpe. 

E por quê? Antes, há que considerar que os militares nunca foram um corpo homogêneo na história do Brasil. Estiveram envolvidos na política ao lado das causas nacionais e progressistas. Ou, em outras épocas, contra o povo, por vezes, expressando grupos ou lideranças, bem como significativas influências na sociedade. 

Essa díade relacionada à presença política na história não encontra necessariamente osmose com a tentativa de partidarização das instituições vistas contemporaneamente, embora pontualmente possa ser identificada em muitas das ações políticas no período republicano. Recorrendo a um silogismo: toda ação partidária é política, mas nem toda agenda política é partidária. Esse é o ponto fulcral dessa linha de análise, mesmo que brevemente exposto. 

Além dessa presença na política, houve expressões ou influências de posicionamentos políticos e ideológicos à direita, como os Jovens Turcos, e à esquerda socialista e comunista nas muitas rebeliões de marinheiros e sargentos, ou entre alguns expoentes do movimento tenentista que fizeram história. Foram movimentos políticos sem conotações partidárias, cujas páginas de luta foram dignificadas nesta etapa inicial na Coluna Prestes/Miguel Costa, assim como no Movimento Revolucionário de 1935

Dessa conflituosa etapa histórica após os anos 1930, decorre, enquanto resposta, a Doutrina Góes Monteiro, resumindo um princípio de que não deve haver política no exército e sim a Política do Exército, ou seja, a política deve ser privilégio dos generais. Após advir a democracia entre 1945 e 1964, confrontada por um feroz anticomunismo, há de ser considerado que, nesse período da Guerra Fria, houve militares disputando pleitos presidenciais em todos os escrutínios. Um dado que chama atenção, comparativamente, é que o percentual de militares eleitos em 1946 é muito próximo ao da eleição de 2018, em que pese houvesse uma maior pluralidade política e ideológica. 

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Ao mesmo tempo, marinheiros, praças e oficiais procuravam ser reconhecidos enquanto cidadãos plenos numa democracia cujos limites de participação à categoria eram bem restritos na Constituição de 1946. Contudo, a Carta abria possibilidades concretas e emergia uma corrente de militares nacionalistas cuja centralidade e agenda eram pautadas na defesa da legalidade e da democracia, bem como nas causas nacionais, como o petróleo.

Em parte, havia um setor sob influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) confrontando militares que atuavam a favor de iniciativas golpistas junto aos civis na União Democrática Nacional (UDN). Descoladas de qualquer comparação com o atual momento, essas correntes digladiavam projetos de nação que expressavam também teoricamente escolas de pensamento como a ESG e antípoda e situada à esquerda ou no campo nacionalista, o Iseb. Essa ação a favor da legalidade contra o golpismo acabou derrotada em 1964 e foi significativa sua presença na política, já que, comparativamente, as demais categorias sociais e os militares foram os mais atingidos pelo golpe civil militar, segundo dados levantados no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Após o golpe civil-militar de 1964, alguns oficiais, praças e marinheiros aderiram à luta armada. Entretanto, a maioria optou pela resistência à ditadura atuando em partidos de oposição ou em associações, tendo em vista a restauração da democracia. Outros grupos militares à direita digladiaram na caserna, especialmente nos períodos de sucessão presidencial. Mas os embates internos no campo da política não foram superados nas décadas subsequentes com a redemocratização, bem como na Constituinte, cujo establishment militar operou com sucesso em relação às muitas propostas de oxigenação de suas instituições, emergindo tensas relações com os civis em face a tentativas de subordinação com a implementação do Ministério da Defesa. 

E, apesar de estarem distanciados das lides partidárias, concretamente, preservaram muito sua autonomia. Talvez, favorecidos pelo fato de que a maioria dos ocupantes do MD foi incapaz de estabelecer efetivas pontes de diálogo (salvas honrosas exceções vistas entre parlamentares do campo da esquerda). Há situação análoga no Congresso, cuja lacuna de compreensão da categoria não encontra respaldo na maioria dos parlamentares. Talvez seja essa a dificuldade herdada de um efetivo exercício do poder civil nos vários casos de manifestações ou indisciplina recentes de alguns generais, cuja fragilidade alimenta a associação dos militares ao governo Bolsonaro e suas muitas tentativas de envolver partidariamente as Forças Armadas. E não foram poucas. Medíocre como político e mau militar, mas inegavelmente sua eleição foi favorecida pela crise política. Bolsonaro soube capitalizar em um cenário de polarização. Facada e esgotamento de um modelo eivado de denúncias no campo democrático levaram à sua vitória nas eleições de 2018. 

Retrocesso na história e por osmose, passou-se a ideia de que havia em curso um governo militar e a militarização do estado. Há, de fato, uma presença significativa no atual governo, embora a maioria da reserva. Bolsonaro teve apoio da maioria da categoria na sua eleição, porém, a identificação enquanto expressão mais organizada é de um grupo que intitulo de “Ala Militar”, cuja umbilicidade é anterior nas Forças Armadas, formada por generais críticos ao marxismo cultural e as ideias de Olavo de Carvalho, abrigados em sua maioria no clube Militar.

Contudo, estão longe de serem identificados com as instituições castrenses. Aliás, seus expoentes mais categorizados não demoraram a pular fora do barco no início de 2019, todos com críticas ferrenhas ao ocupante e seu entorno familiar, bem como ministros corruptos. A despeito da enorme maioria dos militares serem conservadores, conservadorismo não é sinônimo de reacionarismo. Bolsonaro até teve uma receptividade inicial maior na caserna. Conseguiu esse apoio se esvaindo aos poucos, tendo muitos militares dando claros sinais de afastamento, haja vista a demissão dos comandantes e do Ministro da Defesa. 

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Bolsonaro e militares forcas armadas | Foto: Shutterstock
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Isac Nobrega/PR
Juramento de defesa da Constituição por militares não significa obediência irrestrita ao presidente da República, explica Paulo Ribeiro da Cunha | Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Michael Melo/Metrópoles
Foto: Reprodução/Jornal Opção
Foto: Thales Antonio/Shutterstock
Bolsonaro e militares forcas armadas | Foto: Shutterstock
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Isac Nobrega/PR
Juramento de defesa da Constituição por militares não significa obediência irrestrita ao presidente da República, explica Paulo Ribeiro da Cunha | Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Michael Melo/Metrópoles
Foto: Reprodução/Jornal Opção
Foto: Thales Antonio/Shutterstock
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Bolsonaro e militares forcas armadas | Foto: Shutterstock
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Isac Nobrega/PR
Juramento de defesa da Constituição por militares não significa obediência irrestrita ao presidente da República, explica Paulo Ribeiro da Cunha | Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Michael Melo/Metrópoles
Foto: Reprodução/Jornal Opção
Foto: Thales Antonio/Shutterstock
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Apesar de as tensões advindas da caserna ainda estarem em curso e presentes até o término das eleições, é também válida a reação da classe política ou mesmo da sociedade civil a favor da democracia contra golpes. Além de lições dolorosamente pedagógicas, ao que tudo indica, essas também refletem junto aos militares que aos poucos sinalizam pistas claras de operarem uma rotação ao campo da institucionalidade e da democracia. Prevalece, para a maioria deles, a gradual percepção de que o juramento em defesa da Constituição não significa por osmose obediência irrestrita ao presidente, quiçá a um superior imediato ao preço de suas objeções de consciência.  

Não é pouco, mas é importante reconhecermos sua presença política no tempo e na história, além de reconstruirmos pontes de diálogo na perspectiva de os militares somarem com sua presença a um projeto de nação. Afinal, eles estão subsumidos enquanto cidadãos plenos de direitos ao poder civil e ao Estado Democrático e de Direito.

Sobre o autor

*Paulo Ribeiro da Cunha é livre docente em Ciência Política pela  Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor de Militares e Militância: uma relação dialeticamente conflituosa (São Paulo: Ed. Unesp, 2012; 2020; 2022) e consultor da Comissão Nacional da Verdade.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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A maior onda de protestos em Cuba nos últimos 30 anos

O governo de Cuba enfrenta os maiores protestos populares em 30 anos. O presidente Miguel Díaz-Canel alega que a crise é consequência do embargo econômico promovido pelos Estados Unidos. A falta de vacinas contra a Covid e a escassez de comida e remédios tornam a situação ainda mais complicada na Ilha caribenha.

Para analisar a situação do país e as conquistas históricas da revolução cubana, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira conversa com Gilvan Cavalcanti de Melo, editor do blog Democracia Política e novo Reformismo. Nascido em 5 de dezembro de 1935, em Limoeiro, Pernambuco, Gilvan foi dirigente estudantil na década de 1950 e estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais, em Moscou. Com o golpe militar de 1964, esteve preso, em Recife, e ficou exilado por anos no Chile e em Cuba.

Ouça o podcast!

https://open.spotify.com/episode/5fNoMxnQIAQJKYZXTfmvVS

As conquistas da revolução – principalmente nas áreas de educação e saúde – e o papel dos partidos e movimentos mais à esquerda do mundo em relação à Cuba estão entre temas do programa. O episódio conta com áudios do Jornal Nacional, da TV Globo, canção Patria y Vida, DW Español e do canal Band Jornalismo, no Youtube.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.




Ruy Castro: Nosso destino é a estupidez

Em 1964, o Brasil ficou impossível para Celso Furtado - que os outros países, agradecidos, acolheram

Um mês e meio depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, o economista Celso Furtado teve de deixar o Brasil. Seu nome estava na primeira leva de brasileiros com os direitos políticos e civis cassados. De uma lista aberta pelo presidente deposto João Goulart e pelo deputado Leonel Brizola, Celso era já o 26º. Entre os motivos para isto estavam sua passagem pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), a criação e presidência da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e ter sido o primeiro ministro do Planejamento do país. No Brasil dos generais, o ex-pracinha Celso Furtado não podia ser deixado à solta. Estava com 43 anos.

Seu primeiro destino foi Santiago do Chile. Mas não passou muito tempo por lá. Tinha convites de três universidades americanas para lecionar economia: Harvard, Columbia e Yale. Escolheu Yale, onde ficou de setembro daquele ano a junho de 1965, e só saiu porque o governo brasileiro pressionou a congregação para não renovar seu contrato. Foi para Paris, contratado pela pós-graduação da Sorbonne, em ato assinado pelo presidente De Gaulle, para ensinar economia do desenvolvimento.

Somente em 1968 teve 15 convites para ser paraninfo de turma.Em 20 anos de Sorbonne, Celso formou futuros presidentes da República e ministros de Estado, publicou livros e trabalhos, falou para governos e privou com potestades como Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, James Baldwin, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Octavio Paz, Jürgen Habermas —alguns, seus amigos.As cartas que mostram essa extraordinária trajetória estão no livro recém-lançado “Celso Furtado - Correspondência Intelectual 1949-2004”, organizado por Rosa Freire d’Aguiar.

Os militares o condenaram a levar seu conhecimento a plateias alheias ao seu coração. O que o Brasil dispensou, o mundo, agradecido, acolheu. Nosso destino é a estupidez —vide hoje.


Edmundo Machado de Oliveira: País precisa de uma nova Carta ao Povo Brasileiro para enfrentar desigualdade

Um dos redatores da carta de Lula de 2002 diz que forças democráticas devem convergir para a retomada do desenvolvimento

[RESUMO]Carta apresentada por Lula em 2002, mais que uma conciliação com o mercado, representou uma convergência histórica de forças opostas que permitiu alçar a promoção dos mais pobres a ponto central das políticas públicas. Tal conquista, porém, foi detida pela ruptura do impeachment, que culminou na vitória de Bolsonaro. Uma carta para 2022 teria que mirar na desigualdade e exigiria nova confluência democrática de grupos adversários.

Carta ao Povo Brasileiro, lida por Lula na campanha de 2002, foi um ponto de luz na história brasileira. Muitos a entendem, ainda hoje, como uma manobra esperta para acalmar os mercados e pavimentar a sua via até a rampa do Planalto. Poucos a percebem, porém, como um momento de confluência da democracia brasileira.

A continuidade das políticas econômicas vigentes, embora em novas bases, foi uma primeira grande convergência entre forças sociais distintas e até conflituosas. Ao final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o país havia recorrido novamente ao FMI para um plano de resgate.

As reservas em moeda estrangeira no Banco Central eram de míseros US$ 30 bilhões —hoje temos US$ 350 bilhões—, mas havia um razoável equilíbrio de fundamentos macroeconômicos, sobretudo em termos de dívida pública.

O realismo falou ao bom senso, e o PT afastou qualquer sombra acerca de um extemporâneo cavalo de pau na economia. Não honrar contratos estava fora de questão. Fomentar bolhas artificiais de crescimento —como também tive a oportunidade de escrever no relatório de transição entre o futuro ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o então ministro Pedro Malan—, sem chance.

Nada disso seria possível sem a visão periscópica de Lula e sua fixação no ponto essencial, que trouxe à tona uma confluência ainda mais abrangente: o encontro das variadas elites políticas, econômicas e sociais com o povo.

Até então, políticas sociais eram políticas compensatórias. Lula e sua carta foram além, mirando o que o ex-presidente elaborou, posteriormente, de forma sintética e compreensível em todas as ruas e praças do país —“colocar o pobre no Orçamento”, fazer a roda do desenvolvimento econômico e social girar novamente.

Esse foi o fato novo, o ponto de luz. A democracia não seria mais apenas voto na urna e liberdade de expressão, mas também carne nas mesas das famílias, proteína e letras para as crianças na idade certa, conta no banco, casa própria, emprego decente e tudo mais que se entenda por vida digna.

Esta é a necessidade permanente e inamovível do povo. Para responder a ela, há a política. Para instrumentalizá-la, o conhecimento e as ferramentas da economia. Para avançá-la, a ciência, a tecnologia e a inovação. Para ilustrá-la, a cultura. Pelo que disse que faria e pelo que entregou, Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se incontornável.

Entretanto, a porcelana chinesa da confiança, que é a fina matéria das nações, quebrou-se. Nossa Constituição está avariada. Filho põe o dedo na cara de pai. Crentes descreem e amaldiçoam seus semelhantes. Muitos querem armas.

O ódio medra por todas as frestas. A cadela do fascismo cresce nos grupos de WhatsApp, espalhando fake news roboticamente e aos borbotões. Fanáticos sequestram as cores nacionais. O gabinete do ódio viceja dentro do próprio Palácio do Planalto. Seu chefe tenta sequestrar e subjugar as instituições de Estado, das Forças Armadas ao Supremo Tribunal Federal. A pandemia e a sinistra marcha rumo a 400 mil mortos pela Covid-19 nada dizem a Bolsonaro e ao círculo de militares. A empatia humana do presidente é zero, e a vida não vale uma “gripezinha”.

Como chegamos a isso? Por que a confiança deu lugar a sua antípoda?

A minha interpretação é a de que pagamos o preço pela ruptura institucional ocorrida em 31 de agosto de 2016. O impeachment de Dilma Rousseff foi uma fratura na Constituição brasileira, já sob pressão desmedida da flamejante Operação Lava Jato, em que o devido processo legal virou pó e a regra de exceção se impôs.

Nesse período infame deu-se a tempestade perfeita. Nas ruas pintadas de verde e amarelo, boa-fé, combate anticorrupção e ilusão de “limpar a política” respaldaram a abertura do processo de impeachment contra uma presidenta perdida no torvelinho político, mas inarredavelmente honesta.

O que poderia ter sido perfeitamente manejado como uma das tantas crises cíclicas a que países estão sujeitos, ainda mais diante da gravidade do segundo mergulho da crise de 2008 na Europa, em 2011-2012, foi utilitariamente transformado em antipetismo doentio.

Adotou-se uma nova carta-referência, denominada Ponte para o Futuro, que mal e porcamente tentou emular a carta de 2002. Ao reler esse documento, o que mais me choca é sua completa insensibilidade social, sem falar de sua ignorância acadêmica estratosférica. Não existe uma única menção à desigualdade social.

Depois dos trabalhos referenciais de Thomas Piketty (“O Capital no Século XXI”) e de Branko Milanović (“A Desigualdade no Mundo”), ousar falar em reformas desencarnadas do combate às desigualdades é comprar um bilhete para o inferno.

Por mais jucundas que fossem as boas intenções dos que redigiram aquela carta, a vida real é muito mais complexa que as ideias de cortes de gastos e celebração do mercado e do setor privado como valores absolutos, como propostas no documento.

A narrativa preguiçosa e interesseira contada por certos economistas de que o PT cometeu o pecado capital de escolher “campeões nacionais” só serviu mesmo para abrir o caminho aos ataques toscos de Bolsonaro e Guedes à famosa “caixa-preta” de uma das melhores instituições do Estado brasileiro, o BNDES. Estão até hoje, por sinal, procurando “aquela mutreta dos petistas malvados”, sem nada encontrar.

Só que, como o diabo gosta mesmo é de matéria, não de espírito, o inferno veio na forma da emenda à Constituição 95. Os gastos sociais foram congelados por 20 anos para dar garantia aos investidores de que o fiscalismo e o realismo tarifário criariam, automaticamente, as condições para que o setor privado voltasse a investir.

Sabemos bem hoje a quantas anda esse falso milagre. A taxa de investimento, rodando por volta de 15% do PIB nos últimos cinco anos, está em um dos mais baixos níveis históricos. E o desemprego, que agora atinge 14 milhões de pessoas, campeia solto.

Direitos sociais foram aniquilados, as verbas do Sistema Único de Saúde acabaram asfixiadas em mais de R$ 20 bilhões. A educação básica segue na mesma indigência de sempre.

Atingimos o paroxismo da repulsa à ação do Estado como agente indutor dos investimentos na promessa rude de Paulo Guedes de implantação de uma economia liberal, jogando na lata de lixo os 30 anos de “social-democracia” que teriam sido plantados pela Constituição de 1988. Uma aberração.

Aberração que está liquidando a Petrobras como patrimônio nacional e colocando o gás de cozinha na casa dos pobres a R$ 90 e até R$ 100. E o rico butim do Estado decadente ainda tem a Eletrobras, que pedem para privatizar logo. Pouco importa se o preço da energia subir 20% da noite para o dia em mãos privadas, eficientes para distribuir gordos dividendos nas bolsas, mas insensíveis ao bico de candeia que voltará depois de o povo ter experimentado o gostinho do Luz para Todos. Assim como voltaram o fogão a lenha e o cozimento a álcool nas periferias.

O Brasil precisa urgentemente de uma nova agenda, pela qual se empenhem honestamente todas as forças políticas e sociais democráticas. Os dados sobre a desigualdade social são bem conhecidos, embora pouco debatidos fora do âmbito acadêmico.

Este debate é insuficiente até mesmo no PT, partido ao qual sou filiado, que reagiu, ao primeiro choque da evidência, de forma imatura ao registro crítico de Marc Morgan e Thomas Piketty sobre os limites das políticas de distribuição de renda nos governos Lula e Dilma.

Eles apontaram nos dados da Receita Federal, coletados pela World Income Database, que a desigualdade social não caiu na proporção capaz de tirar o Brasil da posição de segundo país mais desigual do mundo. Pela análise de Morgan e Piketty, ganharam, sim, os mais pobres, mas também os mais ricos e os super-ricos, a famosa turma do 1%.

De fato, o Brasil precisa evoluir neste século 21 para uma distribuição de renda que, no mínimo, dobre os 30% do contingente intermediário de renda espremido entre os 60% mais pobres e os 10% mais ricos. Esta é uma discussão sobre regressividade tributária, pela qual os pobres pagam proporcionalmente mais tributos que os ricos, mas não apenas.

A renda é apenas uma das dimensões do bem-estar social, para o qual também concorrem outros fatores, como saúde, educação, serviços públicos essenciais e equilíbrio ambiental. O enfrentamento da desigualdade social, contudo, deve ser ainda maior, pois ela também tem cor e gênero.

Trabalhadores brancos ganham 74% mais do que negros e pardos, segundo o estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE. Mulheres recebem o equivalente a 58% da renda dos homens, segundo o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Ambos os dados são de 2019.

Agora, no pós-pandemia, a situação promete ficar ainda pior. Os poucos indicadores sobre desigualdade já evidenciados mostram um quadro dramático. De acordo com levantamento da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, os 20 distritos mais pobres da capital apresentam o dobro de mortes pela Covid-19 que os 20 distritos mais ricos. E, nada surpreendente, negros morrem mais que brancos.

Na redefinição de uma agenda convergente, outros dois pontos são fundamentais: a superação da estagnada produtividade do trabalho e a inserção internacional do Brasil. No primeiro caso, o dado imutável há anos da economia é que o brasileiro leva entre quatro e cinco vezes mais tempo para produzir a mesma unidade de trabalho que um trabalhador americano. A produtividade brasileira é 20% a 25% da americana.

Baixo investimento em fatores de produção e pobre qualificação da mão de obra, por má educação e carência tecnológica, deprimem a capacidade de produzir e distribuir riquezas. É o que cria o fosso entre países de renda média, como o Brasil, e países de renda alta, como os europeus, Estados Unidos e Japão.

Também neste ponto, nosso buraco é mais profundo. O primeiro auxílio emergencial beneficiou 68 milhões de brasileiros, mas revelou também a existência de mais de 46 milhões de invisíveis, pessoas que vivem na informalidade e sem registro de CPF.

O Brasil convive hoje com 20 milhões de desempregados, entre desocupados e desalentados, os que desistiram de buscar emprego. A eles se somam outros quase 40 milhões que vivem na informalidade. De novo aqui, pretos e pardos são os maiores contingentes de informais.

Há uma correlação pouco debatida na sociedade, e também no PT, entre desigualdade social, desemprego e informalidade. As resultantes dessa verdadeira tragédia humana, aguda falta de emprego decente, sobre a produtividade brasileira são epidérmicas. A desigualdade social e a baixa produtividade são males que se retroalimentam.

No segundo caso, vale retomar o debate sobre nossa inserção internacional. O Brasil, em seus melhores momentos, em 2011, rivalizou com o Reino Unido na posição de sexta maior economia do mundo. Goste-se ou não de Lula e Celso Amorim, o fato é que o país se tornou voz reconhecida no G20, impulsionou decisivamente o Brics, o Mercosul e a integração das Américas do Sul e Latina. Todavia, regredimos tanto que a China nos retirou o lugar de maior parceiro comercial da Argentina.

Ocorre, porém, que o Brasil tem porte populacional, densidade econômica e fluxo de comércio que lhe cobram dispor de uma agenda internacional, diplomática e econômica condizente com o seu peso de nação talhada para ser importante. Menos que isso é complexo de vira-latas.

Diante de tanta baixaria que vem do Planalto, muitos alimentam o desejo de que adversários furem suas bolhas e se falem. Alguns dós-de-peitos suspiram por um inviável encontro Lula-FHC. De minha parte, sempre dei muito valor à revisão crítica do senador Tasso Jereissati sobre o papel do PSDB na queda de Dilma Rousseff. Acho-o um homem honesto e decente. A mim bastaria ver o ex-presidente Lula recebê-lo no Instituto Lula ou Tasso convidá-lo para uma conversa em terreno neutro.

Se possível, tudo convergindo para uma singela nota comum: “Brasileiros, com Bolsonaro não dá. Ele é a morte dos homens e das mulheres, da inteligência e da democracia. O Congresso Nacional deve removê-lo. Ontem”.

*Jornalista e consultor político, é assessor da bancada do PT na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Foi um dos redatores da Carta ao Povo Brasileiro, proposta por Lula em 2002


Cacá Diegues: A imaginação de Bolsonaro não tem limites

Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela

Ninguém me contou, eu mesmo vi Jair Bolsonaro declarar na televisão que tinha informação segura de que a eleição americana tinha sido fraudada. Como o vi, meses antes, dizer que, em 2018, tinha sido roubado, pois havia vencido a eleição para presidente no primeiro turno. Nos dois casos, como sempre faz, nunca apresentou prova alguma.<SW>

A imaginação do homem não tem limites. Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela, contando uma história lá da cabeça dele. A gente até acha graça do que considera desinformação. Mas, de repente, paramos pra pensar e descobrimos uma certa coerência nisso tudo, uma teia que ele tece aos poucos com seus parceiros. Como os galos da manhã de João Cabral, eles nos anunciam um outro dia que nasce radiante. Um dia de radiante horror.

Sua eleição deu-se por infeliz coincidência entre um candidato que representava políticos de quem ninguém queria mais saber e outro que ninguém conhecia, mas se parecia com aquele simpático conversa mole de botequim, sempre dizendo besteiras que nos fazem rir amorosamente. Com ele eleito, descobrimos que era tudo uma peça que a democracia nos pregava. Alguém aí tem hoje alguma dúvida de que, quando ele perder a eleição de 2022, vai declarar que houve fraude e armar um fuzuê para não deixar o poder? O homem só pensa nisso.

Na política e na vida, a mentira é arma poderosa, sobretudo na mão de um candidato que tem poder porque está no poder. O ministro do governo no STF afirmou que esvaziar os templos por causa da Covid é impedir a liberdade religiosa, o ir e vir garantido pela Constituição. Ele propõe, em contrapartida, uma restrição no número de fiéis em cada espaço de oração. E os que, nesse caso, ficam fora desse espaço nos templos não estão sendo impedidos de ir e vir, de exercer sua liberdade religiosa? Esse é um excelente modo de admitir o óbvio inconveniente (a pandemia), propondo uma falsa solução que excita os interessados contra quem age com correção.

Quero ver nossos finos conservadores enfrentando o demônio armado. Já, já ele acaba de formar sua milícia com as armas que está fazendo entrar no país legalmente, a preço de banana. Como já pode ter empolgado os PMs iludidos pela ausência de repressão no levante do Ceará. Ou os negacionistas sinceros, pelas mentiras inventadas pela turma da Bia Kicis sobre a morte do pobre soldado doente da Bahia. E, sobretudo, pelo empenho junto às Forças Armadas, que parece não estar dando resultado, mas que ninguém sabe dizer direito a quantas anda.

Depois da longa ditadura e de tantos anos de uma democracia que julgávamos sólida, o novo regime começou a pifar a partir de erros graves cometidos por Dilma Rousseff. Como não sabemos debater sem eliminar o adversário, os erros foram agravados pelo impeachment dela, uma violência absurda e desnecessária. Um gesto de impotência disfarçada na aparente onipotência de uma oposição que não sabia o que fazer. Nem o que estava fazendo, o que ficava claro na sucessão de tolices ditas antes do voto, para justificar o que ninguém tinha certeza.

Hoje, vivemos nesse inferno de poderes que disputam a culpa da morte de quase 400 mil brasileiros, em vez de tentar impedir que eles morram. Um inferno em que, num plano fechado, um vereador mata seu enteado de 4 anos como se estivesse numa pelada de futebol e uma deputada manda seus 500 filhos acabarem com seu marido. Como diz o assassino do menino Henry, o importante “é virar a pagina”. Mas, no curso desse lodo geral, avançamos sem saber o que nos espera na página seguinte.


Dorrit Harazim: Terra em transe

O capitão Jair e o Dr. Jairinho têm algo em comum: gostariam de virar a página. O primeiro é presidente do Brasil. Como a responsabilidade pelo caos pandêmico não sai de seu colo, ele explora tentativas cada vez mais bizarras de virar a página, de varrer a realidade fúnebre do país nem que seja aprofundando ao extremo o precipício. A mortandade que o capitão semeia é coletiva.

Já o Dr. Jairinho prefere semear terror individual. Por espancamento. Foi preso com a mulher esta semana pelo assassinato do enteado Henry, de 4 anos. Vereador carioca no quinto mandato e habituado a trafegar nas paralelas, Jairo Souza Santos Junior procurou varrer a realidade de seu crime ainda no hospital — pediu, ao arrepio da lei, que o corpo do menino não fosse encaminhado para o Instituto Médico Legal. Pretendia encaminhá-lo a um legista particular para, em suas próprias palavras, “poder virar a página logo”. Felizmente, não foi atendido. Mais tarde, segundo relato do devastado pai biológico da criança, o vereador teria se dirigido a ele em termos ainda mais crus: “Mermão, vira essa página, vida que segue. Você faz outro filho”.

Frieza insaciável existe.

Jair e Jairinho têm em comum uma desumanidade doentia. Ela parece não ter fim neste Brasil em transe, resignado a chorar. É natural chorar pelo menino Henry mesmo sem tê-lo conhecido, pois os elementos conhecidos do caso geram empatia universal: o horror e medo de uma criança brutalizada até desfalecer, a animalidade de um padrasto espancador, a frieza criminosa da mãe. Como não querer escancarar os braços para proteger o miudinho indefeso?

Mais complexa é a subtração diária de vidas brasileiras levadas pela Covid-19, esse matador silencioso, invisível, não humano. Mesmo quando tentamos individualizar alguma morte anônima igualmente cruel, o pranto não vem fácil em meio aos outros 350 mil que já se foram. Tome-se o caso da menina de 4 anos, mesma idade de Henry, cujo corpo foi encontrado no Hospital Materno Infantil de Brasília por vigilantes da instituição. Segundo o portal “Metrópoles”, o corpo sem vida estava há mais de 24 horas numa salinha sem ventilação na entrada da emergência pediátrica, à vista de pacientes que por ali passassem. Só que o pavor da menina com suspeita de Covid-19, sua solidão e asfixia antes de morrer são mais difíceis de imaginar. Permaneceu anônima, exceto para quem a perdeu.

Tinha razão o dramaturgo e romancista Max Frisch quando escreveu que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo inventa uma história que acredita ser sua vida. Nesse sentido — e apenas nesse sentido —, Jair Bolsonaro não é diferente do resto do mundo. Para manter sua vida ficcional vedada, ele precisaria “virar a página” de sua responsabilidade na tragédia brasileira. Não vai conseguir. Basta responder a uma pergunta de simplicidade cristalina que aponta a responsabilidade única do presidente da República no abandono do país: qual o único brasileiro que poderia ter mudado o curso da voracidade do vírus? A resposta independe das complexas deliberações do Judiciário e das tortuosidades do Legislativo. Ela se fundamenta no senso comum.

Desde o início da pandemia, a parte dos brasileiros em condição de optar pelo iluminismo entendeu a seriedade do perigo, adotou medidas protetivas individuais, assumiu sua responsabilidade coletiva. Sempre se manteve decidida a não compactuar com o obscurantismo. Para que o combate à Covid-19 tivesse alguma chance de êxito ou racionalidade, teria bastado convencer o outro Brasil. Esse outro Brasil em estado de mitomania, aguerrido, porém fiel, teria seguido com disciplina religiosa qualquer ordem de distanciamento, uso de máscara ou confinamento emanada da boca do seu líder. Tamanho poder e privilégio somente o presidente tinha, com tudo à disposição — cadeia nacional de rádio e TV diária, se quisesse, redes sociais, confiança cega de seguidores. Nenhum ministro da Saúde, nenhuma sumidade científica, nenhum acadêmico, celebridade ou vencedor do “BBB” teria, sozinho (nem em conjunto), eficácia semelhante. O presidente da República preferiu incentivar o descarrilamento de vidas.

Muito acima das lambanças generalizadas deste Brasil esgarçado, a responsabilidade de Bolsonaro é única. Apenas ele, sem precisar de mais ninguém, dado que o governo o seguiria, teve a chance de evitar o naufrágio. Nem sequer tentou. Optou pela morte.


Janio de Freitas: Há mais do que crimes de responsabilidade à mercê de uma CPI, há crimes contra pessoas

Tal coleção de crimes talvez encontre comparação nos abutres que agiram em porões da ditadura

Os 61 mortos por asfixia à falta de oxigênio por si sós justificam a CPI que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, precisou ser obrigado pelo Supremo a instalar. Esse horror sofrido em hospitais do Amazonas está envolto por quantidade tão torrencial de horrores que uma CPI é insuficiente para dar-lhes as devidas respostas.

Apesar de tantos fatos e dados à sua disposição, com fartura de comprovações já prontas e públicas, a mera possibilidade da CPI nos força a encarar outra tragédia: no Brasil de 4.000 mortos de Covid por dia, não se conta com seriedade nem para evitar-nos a dúvida de que a CPI busque, de fato, as responsabilidades pelo morticínio, as quais já conhecemos na prática.

A reação imediata dos contrariados é a esperável, mas também traz sua incógnita. O choque iniciado com o STF soma-se ao jogo duro do governo, sobre os parlamentares, para dominar tudo que se refira à CPI. Disso decorre um potencial alto de agravamento e de incidentes sob a nova, e ainda mal conhecida, disposição de forças derivada das alterações em ministérios e em cargos e correntes militares.

As juras de respeito à Constituição são unânimes nos que entram e nos que saem. Inúteis já porque nenhum diria o contrário. Ainda porque o passado atesta essa inutilidade. E, no caso da Defesa, não se pode esquecer que o general Braga Netto estava no centro do governo, onde aceitou ou contribuiu para os desmandos do desvario dito presidencial. Logo que nomeado, adotou uma prevenção significativa: excluiu da nota de celebração do golpe a caracterização das Forças Armadas como instituição do Estado. Não do governo.

comandante da Força Aérea, brigadeiro Baptista Jr., já está identificado como ativo bolsonarista nas redes sociais. Ministro da Justiça, o delegado Anderson Torres e seu escolhido para diretor da PF têm relevância à parte. O primeiro vê em Bolsonaro nada menos do que um enviado de Deus: “Quis Deus, presidente Bolsonaro, que esta condução em momento tão crítico estivesse em vossas mãos”. Imagine-se a obediência devida a um enviado.

O outro, delegado Paulo Maiurino, tem anos de atividade em política capazes, se desejar, de enriquecer a carreira de intervenções políticas da PF. Iniciada no governo Fernando Henrique pelo delegado Argílio Monteiro, depois recompensado com a candidatura (derrotada) a deputado federal pelo PSDB, foi o tempo do dinheiro “plantado” no Maranhão, dos caixotes de dólares “mandados de Cuba para Lula”, e outras fraudes, sempre a serviço das candidaturas de José Serra. Na Lava Jato a PF enriqueceu muito a sua tradição.

Com essas e mais peças, como a AGU entregue ao pastor extremado André Mendonça, está claro tratar-se de parte de um dispositivo político e armado. A pandemia e a mortandade não são preocupações. Nem dentro da própria Presidência, onde se aproximam de 500 os servidores colhidos pela Covid, com taxa de contaminação 13% maior que a nacional. E lá, para ilustrar a possível CPI, a “ordem do presidente” continua a ser “contra lockdown” (aspas para o ministro Marcelo Queiroga), contra máscaras e vacina, e pela cloroquina.

Antes mesmo de determinada pelo ministro Barroso, a possibilidade da CPI iniciou a discussão de táticas para dela poupar Bolsonaro. Será resguardar o agente principal da calamidade. O vírus leva à morte porque esse é papel que a natureza lhe deu. Bolsonaro fez e faz o mesmo por deslealdade ao papel que lhe foi dado e aos que o deram. E, de quebra, ao restante do país.

Há mais do que crimes de responsabilidade, numerosos, à mercê de uma CPI.

Há crimes contra pessoas. Há crimes contra a humanidade. Tal coleção de crimes talvez encontre comparação nos abutres que agiram em porões da ditadura. Ou talvez só se compare aos primórdios da ocupação territorial, com a escravização e as mortandades em massa. O choque não descansa: são 4.000 mortos por dia.

É razoável suspeitar que não haja, nem sequer em número próprio de uma CPI, gente com caráter para enfrentar uma criminalidade assim e ao que a ampare, como o ódio e a facilitação de armas letais.


Bruno Boghossian: Principal alvo da CPI da Covid deve ser o negacionista-chefe

Comissão pode investigar atos com impressão digital de Bolsonaro na pandemia

No pedido de criação da CPI da Covid, senadores anunciaram a apuração de "ações e omissões do governo federal". O objeto formal da investigação não menciona nomes específicos, mas nem precisava. Parlamentares dizem que um dos propósitos centrais da comissão é expor os atos praticados diretamente por Jair Bolsonaro na pandemia.

O presidente é o negacionista-chefe da equipe que administra o morticínio, mas sua imagem permanece intacta para uma parcela da população. Ainda que a reprovação a seu trabalho tenha crescido, o esforço esdrúxulo de Bolsonaro para se desviar de responsabilidades foi suficiente para ajudá-lo a preservar o apoio de cerca de 30% de brasileiros.

A intenção de alguns dos senadores que devem participar da CPI é furar essa blindagem. Eles pretendem usar a comissão para identificar ações que estejam marcadas pela impressão digital do presidente e mostrar o impacto que elas tiveram sobre o mau desempenho do país na contenção do vírus e na vacinação.

Essa missão surgiu porque Bolsonaro é um profissional na arte de negar o que diz e se esquivar de suas obrigações. O presidente mobilizou as engrenagens de propaganda do governo para convencer a população de que nunca foi contra a vacina, embora tenha sabotado os esforços nessa direção. Além disso, inventou a tese falsa de que foi impedido pelo Supremo de fazer seu trabalho.

Na CPI, senadores querem exibir provas de que o próprio Bolsonaro trabalhou contra a compra de milhões de doses de imunizantes, desestimulou o uso de máscaras, fez uma campanha agressiva contra medidas de distanciamento e usou a máquina pública para produzir e recomendar a aplicação de medicamentos ineficazes contra a Covid-19.

O presidente reagiu mal à decisão de instalar a CPI. O senador Renan Calheiros (MDB) afirma que o presidente só deve se preocupar se tiver cometido erros: "Se Bolsonaro fez tudo certo, como diz, ele não precisa se sobressaltar. A CPI vai concluir ou não pela responsabilidade dele".


Vinicius Torres Freire: As ideais da entidade ‘os empresários’

Este jornalista ouviu seis empresários de negócios que estão entre os cem maiores do país

“Os empresários” e “os militares” reapareceram na conversa política como entidades ou caricaturas de um modo que não se ouvia fazia décadas (mas não “os trabalhadores”). A gente sabe pouco dessas abstrações genéricas. Para aumentar um pouco a confusão, este jornalista ouviu seis empresários de negócios que estão entre os cem maiores do país.

A amostra é enviesada. São todos do centro-sul, nenhum do relevante agronegócio. É gente que lê, parece a velha elite tucana e participa do debate público, mas pede reserva em conversas que envolvam Jair Bolsonaro. A seguir, depoimentos sobre a “articulação” de empresários para 2022.

“Tem um grande desgosto com essa forma totalitária de agir. O Bolsonaro não tem adversários, tem inimigos.”

“Os empresários têm receio do poder de qualquer governo [por isso evitariam a exposição política]. O principal instrumento de retaliação é a Receita, não importa se está tudo correto. E esse governo tem também as redes sociais para te difamar e ameaçar.”

“No meu círculo, a coisa chegou ao seguinte ponto: para alguns, ruim por ruim [Bolsonaro ou Lula], melhor o Lula.”

“Quem escolhe candidato é o sistema político. Mesmo quando empresa dava muito dinheiro para campanha, isso não tinha tanta relevância. Se tivesse, os tucanos não tinham perdido tanta eleição. Agora, sem dinheiro e com rede social, a influência é ainda menor.”

“Empresário não articula nada, isso não existe faz tempo. O Brasil é heterogêneo e não tem organização empresarial, como nos EUA. Nem lá eles têm poder de ungir candidato.”

“Tem uns que se engancham num candidato, todo o mundo sabe quem são. Não é movimento organizado. Acho que existe mais influência em ideias do que militância política. Mas nem apoio a ideias liberais tinha até o desastre da Dilma.”
“Empresa tenta influenciar quem se lançou, quem ganhou? Tenta. Mas isso é desorganizado. Faz lobby no Congresso.

Faz programa de governo? Existem só dois ou três diferentes, fora detalhes. Mas isso [programas] já está dado, no debate.”

“Vocês vêm perguntar [das preferências], mas é óbvio. Aí aparece na mídia, empresários isso, empresários aquilo. Mas o que isso muda [na eleição]? É óbvio que podem ter influência, de outro jeito. Dependendo de quem vai ganhar, alguém segura o investimento porque teme o futuro, dólar sobe, o dinheiro sai [do país]. Mas isso não é política. É cálculo racional.”

“O empresário responsável vai preferir alguém que preserve a estabilidade econômica, que dê um jeito no ambiente de negócios. Tem gente que olha o que pode ganhar pessoalmente com o governo, mas não são tantos. Nesse jantar do Bolsonaro tinha bolsonarista ou quem sempre está com qualquer governo, talvez até com o PSOL.”

“O empresariado votou em Bolsonaro? No final, votou mesmo contra o PT. A maioria queria o Alckmin. Mas não tem voto qualificado, o eleitorado como um todo faz a escolha. Entre as opções que sobraram, isso que você chama de elite fez a opção que parecia pragmática. Foi um erro, mas foi o que foi.”

“Há uma insatisfação geral com a incompetência generalizada, fora um ou outro, Agricultura, Infraestrutura. Decepção absoluta com o Guedes. Não o conhecia até a eleição. Quando vi aquele discurso megalomaníaco e irrealista dele, lá na posse, senti que não ia dar certo.”

“Lula é muito inteligente. Mas fala muita bobagem sobre economia e tenta agradar a qualquer plateia, empresário ou esquerda. Então, a gente não sabe o que ele vai fazer. Incerteza é ruim para o país. E o Lula envelheceu, teve a prisão, a doença. O tempo passa, e a gente não percebe que perdeu certas capacidades.”
“O que tem mais é conversa informal, para tirar a temperatura, participação em vários grupos de WhatsApp. A gente convida político para ouvir [não cita nenhum de esquerda], agora até general da reserva.”

“A maioria nos grupos de [conversa] de que faço parte pensa uma agenda institucional, também de preocupação com reforma tributária pelo lado social, com educação, com renda mínima, com o conflito político radicalizado. Mas ter uma economia de mercado funcional não vai impedir o Brasil de ser mais justo. Ao contrário.”

“Tem conversa, mas não tem pressão política nos partidos para escolher esse ou aquele. Em quase 40 anos de empresa, nunca vi. Os políticos vivem em outro mundo. É ilusão de certos empresários e de intelectual de esquerda ver influência por aí.”

“Acho que um grupo organizado e público de apoio a candidatura dificilmente vai ter. Se tiver, vira alvo. E vai parecer que o ‘capital está querendo mandar’ no Brasil.”


Elio Gaspari: O governo já soube lidar com epidemia

Com um pé no atraso e outro no progresso, ditadura promoveu vacinação contra meningite em paralelo a ações de censura. Bolsonaro tem os dois pés no atraso

Sérgio Buarque de Holanda já ensinou: conservador é uma coisa, atrasado é outra. Bolsonaro e seu pelotão têm os dois pés no atraso. Outro dia, o jornal francês “Le Monde” publicou uma reportagem que faria a alegria do general Eduardo Ramos, aquele que não gosta de fotografias de sepultamentos. Louvava a campanha de vacinação brasileira que imunizou 80 milhões de pessoas em poucos meses com uma mistura de “ambição, audácia e paixão”. Só que isso aconteceu em 1975, quando o Brasil estava numa ditadura que tinha o outro pé no progresso.

A reportagem está no site do jornal (só para assinantes), mas na rede há um trabalho que conta a história da fabricação de uma vacina contra a meningite pelo laboratório francês Mérieux [Histoire du développement, de la production, et de l’utilisation du vaccin contre la méningite A (1963-1975), de Baptiste Baylac-Paouly ].

Em 1973, quando a epidemia de meningite ainda era chamada de surto no Brasil, o laboratório francês testava uma vacina e a aplicava com sucesso na África. No ano seguinte, a ditadura lidou com a doença.

O pé fincado no atraso, tendo reconhecido a epidemia (dois mil casos em São Paulo), chamava as notícias de “alarmantes”. Em julho do ano seguinte, a censura vetou uma longa reportagem de Clóvis Rossi. Ela falava de 200 pessoas mortas naquele mês.

Com o pé que tinha no progresso, em agosto, o ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, foi a Lyon, onde ficava a sede do Mérieux. Em São Paulo morriam vinte pessoas por dia no hospital Emílio Ribas. Sem apostas em tratamentos precoces ou parolagens, o Brasil correu atrás da vacina, que só era produzida pelo Mérieux. Tratava-se de imunizar 80 milhões de pessoas. Não se discutiram detalhes nem dinheiro. Os dois lados confiaram na boa-fé.

O laboratório de Lyon não tinha instalações para produzir 60 milhões de vacinas em menos de um ano. Tratava-se de multiplicar por cem sua capacidade. Fez as obras e começou a operar em 90 dias. Em meados de setembro (um mês depois da visita de Almeida Machado), remanejando estoques, despachou dois milhões de vacinas e começou a imunização de 500 mil crianças em São Paulo. O governo começou uma campanha nacional e, em 12 dias de janeiro de 1975, foram vacinadas quatro milhões de pessoas no Rio de Janeiro. No carnaval daquele ano os casos de meningite na cidade começaram a cair.

O Mérieux associou-se ao Instituto Oswaldo Cruz, e produziram dez milhões de vacinas por mês. Em abril (nove meses depois da ida de Almeida Machado a Lyon), começou a vacinação em São Paulo e, em cinco dias, foram vacinadas 10,3 milhões de pessoas.

Em julho de 1975, o Brasil tinha recebido 90 milhões de vacinas. Estava concluído um dos maiores programas de vacinação em massa do mundo.

Como a ditadura tinha um pé no progresso e outro no atraso, um mês antes da ida de Almeida Machado a Lyon para descascar o abacaxi, o Serviço Nacional de Informações reclamava das tais “notícias alarmantes”:

“Esses fatos, constantemente explorados pelos meios de comunicação social, e, em particular, as sucessivas notícias divulgadas sobre a existência de doenças graves, principalmente sobre a meningite, normalmente acompanhados de boatos, poderão criar ou manter a população em estado de insegurança, intranquilidade e apreensão, que pressupõe uma falsa noção de que, quando houver necessidade, não se contará com assistência médica, hospitalar ou preventiva por parte dos setores responsáveis do País.”

Passou o tempo, a epidemia é outra, e o atraso prevaleceu.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e sempre acreditou em todas as teorias de conspiração de Ubaldo, o Paranoico, inesquecível personagem do humorista Henfil.

Quando o idiota soube que o governo tem planos para transformar o prédio do Museu Nacional do Rio num simulacro de Palácio Imperial, teve seu momento de Ubaldo, associando paranoia à sua cretinice.

A paranoia seria a seguinte: como em 2022 comemora-se o bicentenário da Independência e em São Paulo será reinaugurado o Museu do Ipiranga, seria aconselhável evitar que o governador João Doria (o da vacina chinesa que não seria comprada) sediasse uma festa.

A cretinice é outra.

Antes de pegar fogo, em 2018, o Museu Nacional funcionava no casarão onde moraram D. João VI e os dois D. Pedro. No incêndio, as poucas lembranças dos imperadores viraram cinzas. Do prédio, sobrou parte da carcaça da edificação que um mercador de negros escravizados doou (ou foi obrigado a doar) a D. João. Ademais, o que havia ali era um museu de História Natural, com meteorito, múmias e objetos indígenas.

Museu Imperial, o Brasil já tem um, e é muito bom. Fica em Petrópolis, no casarão onde D. Pedro II se protegia do calor e das epidemias. Lá estão seu trono, sua coroa, as carruagens e a luneta com que via as estrelas. Não há por que mexer nele.

Tirar peças de um acervo para satisfazer vaidades políticas é oportunismo.

BBB no Supremo

Em julho, Bolsonaro indicará o substituto do ministro Marco Aurélio Mello para a vaga no Supremo Tribunal Federal.

Essa escolha era feita com discrição, comparando-se currículos, mas as coisas mudaram. O procurador-geral, Augusto Aras, e o advogado-geral da União, André Mendonça, disputam a vaga com tamanha ferocidade que o espetáculo assemelha-se às disputas do programa BBB, para ver quem vai para o paredão.

Privataria na pandemia

A pandemia estimulou a mobilização de empresários para colaborar com a saúde pública. Estimulou também a entrada de vigaristas. Basta lembrar o aparecimento de duas girafas. No ano passado, havia um inglês oferecendo 40 milhões de testes por mês. Em janeiro, apareceram 33 milhões de vacinas da AstraZeneca que seriam intermediadas por um fundo a um consórcio de empresas que repassariam metade ao SUS e ficariam com a outra parte. A dose sairia a US$ 23,79, enquanto no mercado ela custava US$ 5,25. A AstraZeneca disse que não vendia as vacinas, e o fundo denunciou a malandragem.

Finalmente, em março, vigaristas arrebanharam otários para serem vacinados clandestinamente numa garagem da Viação Saritur, em Belo Horizonte. Cada um pagou R$ 600 (cerca de US$ 100) pela picada. A enfermeira-frentista esteve presa, e os otários esconderam-se.

Em princípio, empresário entende de dinheiro. Quem quiser meter sua reputação nessas aventuras deve saber que elas têm duas balizas: numa ponta ficou o Itaú Unibanco, que tirou R$ 1 bilhão do seu caixa, formou um conselho e deu-lhe poderes para distribuir o dinheiro. Na outra, está a turma da garagem da Saritur. No meio, ficam as girafas dos testes ingleses, das vacinas do consórcio, dos projetos de isenções tributárias, leitos privatizados e outros avanços na Bolsa da Viúva.

Como dizem os crupiês: “Façam seu jogo, senhores”.


Ricardo Noblat: À falta do que fazer, Bolsonaro passeia e ataca João Doria

O fim de semana do presidente da República

Jair Bolsonaro foi às compras no fim de semana. Às compras de corações e mentes disponíveis em São Sebastião, região administrativa do Distrito Federal, a 26 quilômetros de Brasília.

Fez o de sempre e disse o de sempre. Comeu galeto assado do lado de fora de um estabelecimento comercial onde tentou entrar, mas foi barrado por uma empregada: “Não pode”.

Ali, respeitava-se o mínimo de distanciamento social. Sem máscara, e acompanhado de ministros sem máscaras, visitou refugiados venezuelanos a pretexto de conhecer como eles vivem.

Com um cachorrinho no colo, tentou conquistar a simpatia do grupo ao comentar: “Não tem mais animais na Venezuela. Comeram tudo. Não é só gato e cachorro não, até cavalo”.

Com direito à transmissão ao vivo por seus canais na internet, voltou a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal que avalizou o fechamento de templos e igrejas durante a pandemia.

Disse: “Lamento os superpoderes que o Supremo deu aos estados e aos governadores para fechar, inclusive, igrejas de cultos religiosos. É um absurdo dos absurdos”.

E para não perder a viagem, atirou novamente no governador João Doria (PSDB), seu alvo preferencial desde que o Instituto Butantan começou a fabricar a vacina chinesa Coronavac:

– Parece que esse patife de São Paulo quer quebrar o estado, quebrar o Brasil, para depois me apontar como responsável.

Em sua defesa, saiu-se com esta: “O pessoal que me acusa de ditador nunca viu uma palavra minha e um só gesto que eu fugisse da Constituição”.

Uma vez que o passeio já rendera boas imagens, embora a audiência tenha sido fraca, deu-se por satisfeito e foi embora. Enquanto isso, com passe livre, a Covid-19 fazia mais vítimas.


Rolf Kuntz: Fome no celeiro do mundo

Governo inepto e irresponsável faz o País reviver o pesadelo de 1983

A fome assola o Brasil, grande produtor de comida, um dos países com maior potencial para dar segurança alimentar a um mundo cada vez mais povoado. Com milhões de famílias sem renda para comer o mínimo necessário, a sociedade brasileira revive o pesadelo de 1983, o ano da grande crise da dívida externa. Naquele momento, como agora, campanhas de solidariedade, conduzidas por igrejas, sindicatos, grupos civis e também por famílias com pelo menos uma pessoa empregada, garantiram a sobrevivência de muita gente. Supermercados passaram a vender asas de frango, facilitando algum consumo de carne aos mais necessitados. Mas nem todos aguentaram a pressão, e os suicídios aumentaram.

Passados quase 40 anos, o jornalista econômico é de novo forçado a descrever quadros tétricos. Há, naturalmente, diferenças importantes – com alguns detalhes muito piores. A fome, hoje, é muito mais chocante, muito mais escandalosa, porque a oferta de alimentos é muito maior. Com ou sem crise, com maior ou menor inflação, a comida era mais cara no começo dos anos 1980. Os frutos da revolução agrícola, iniciada na década anterior com a Embrapa e com políticas de modernização, só se tornariam visíveis mais tarde.

Com enormes ganhos de produção e de produtividade, a alimentação consumiria, nas décadas seguintes, uma parcela menor dos orçamentos familiares, deixando mais espaço para outros gastos. No início dos anos 1990 alguns índices de inflação foram reformulados para refletir a nova ponderação das despesas.

A melhora dos padrões de vida foi uma das consequências, mesmo com a persistência de amplas desigualdades. Graças aos ganhos de eficiência, a produção agropecuária tem crescido, nas últimas quatro décadas, muito mais que as áreas ocupadas.

Entre as safras 1979-1980 e 2019-2020, a colheita de grãos passou de 50,87 milhões de toneladas para 257,02 milhões, enquanto a área cultivada cresceu de 40,16 milhões para 65,92 milhões de hectares. O rendimento mais que triplicou, passando de 1.267 quilos por hectare para 3.899. Em outras culturas, assim como na produção dos vários tipos de carnes, a eficiência também cresceu.

Com os ganhos de produtividade, o Brasil tornou-se um dos maiores exportadores de alimentos e de matérias-primas de origem agropecuária. Ao mesmo tempo, a oferta de alimentos ao mercado nacional cresceu. Os preços, apesar das oscilações, tenderam a diminuir em termos reais. Isso foi fundamental, é preciso insistir, para a demanda crescente de outros bens de consumo, como roupas, equipamentos domésticos, produtos eletrônicos e veículos. O mercado de usados, no qual o primeiro carro foi comprado por milhões de brasileiros, foi por muito tempo essencial para a expansão dos negócios no setor automobilístico.

Avanços continuaram, nestes quase 40 anos, apesar das muitas crises desse período, algumas de origem externa, outras geradas no País. O Plano Real, iniciado em 1994, criou condições para contas públicas mais arrumadas, inflação mais contida e políticas mais amplas de inclusão social. Apesar de tropeços importantes, em nenhuma dessas crises, nem mesmo na recessão de 2015-2016, houve episódios de fome parecidos com o de 1983. O grande retrocesso é agora indisfarçável.

Pelos dados oficiais, havia 14,3 milhões de desempregados, 14,2% da força de trabalho, no trimestre móvel encerrado em janeiro. Uma contagem mais ampla indicou 32,4 milhões de trabalhadores subutilizados, 29% da população economicamente ativa. A economia brasileira estava em queda antes da pandemia e sua recuperação, neste ano, será insuficiente para o retorno ao patamar, já muito baixo, de 2019. Não há surpresa, mas o governo agiu como se a crise devesse terminar em 31 de dezembro de 2020.

O País entrou mal em 2021, com o consumo em queda, a indústria emperrada e uma das maiores taxas de desemprego do mundo capitalista. O auxílio emergencial, já reduzido a partir de setembro, foi zerado em 1.º de janeiro, deixando dezenas de milhões de pessoas sem renda e sem perspectiva de melhora.

Os preços de alimentos haviam aumentado nos meses anteriores. Embora tenham subido menos neste início do ano, continuaram elevados. Ficou difícil abastecer as panelas e a fome chegou. Sem dinheiro para o gás, famílias passaram a cozinhar seu pouco alimento em fogões a lenha improvisados, em condições assustadoras, mostradas pela televisão.

Campanhas de socorro têm distribuído alguma comida, mas sem eliminar o problema e sem evitar, no primeiro trimestre, o retorno à fome de 1983. Atolado na incompetência, o governo central só retomou o auxílio emergencial há poucos dias. Favorecida pela inépcia e pelo negacionismo, a pandemia continua solta, a mortandade cresce e a economia se arrasta, enquanto o presidente se concentra em seus interesses eleitorais e familiares. Em 1983 havia pelo menos a esperança de retomada econômica e de continuidade da abertura política, enfim concluída no meio da década. Hoje o discurso mais ouvido no centro do poder, em Brasília, extravasa ambições autoritárias.

*Jornalista