Elio Gaspari: O governo já soube lidar com epidemia

Com um pé no atraso e outro no progresso, ditadura promoveu vacinação contra meningite em paralelo a ações de censura. Bolsonaro tem os dois pés no atraso.
Foto: Renato Alves / Agência Brasília
Foto: Renato Alves / Agência Brasília

Com um pé no atraso e outro no progresso, ditadura promoveu vacinação contra meningite em paralelo a ações de censura. Bolsonaro tem os dois pés no atraso

Sérgio Buarque de Holanda já ensinou: conservador é uma coisa, atrasado é outra. Bolsonaro e seu pelotão têm os dois pés no atraso. Outro dia, o jornal francês “Le Monde” publicou uma reportagem que faria a alegria do general Eduardo Ramos, aquele que não gosta de fotografias de sepultamentos. Louvava a campanha de vacinação brasileira que imunizou 80 milhões de pessoas em poucos meses com uma mistura de “ambição, audácia e paixão”. Só que isso aconteceu em 1975, quando o Brasil estava numa ditadura que tinha o outro pé no progresso.

A reportagem está no site do jornal (só para assinantes), mas na rede há um trabalho que conta a história da fabricação de uma vacina contra a meningite pelo laboratório francês Mérieux [Histoire du développement, de la production, et de l’utilisation du vaccin contre la méningite A (1963-1975), de Baptiste Baylac-Paouly ].

Em 1973, quando a epidemia de meningite ainda era chamada de surto no Brasil, o laboratório francês testava uma vacina e a aplicava com sucesso na África. No ano seguinte, a ditadura lidou com a doença.

O pé fincado no atraso, tendo reconhecido a epidemia (dois mil casos em São Paulo), chamava as notícias de “alarmantes”. Em julho do ano seguinte, a censura vetou uma longa reportagem de Clóvis Rossi. Ela falava de 200 pessoas mortas naquele mês.

Com o pé que tinha no progresso, em agosto, o ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, foi a Lyon, onde ficava a sede do Mérieux. Em São Paulo morriam vinte pessoas por dia no hospital Emílio Ribas. Sem apostas em tratamentos precoces ou parolagens, o Brasil correu atrás da vacina, que só era produzida pelo Mérieux. Tratava-se de imunizar 80 milhões de pessoas. Não se discutiram detalhes nem dinheiro. Os dois lados confiaram na boa-fé.

O laboratório de Lyon não tinha instalações para produzir 60 milhões de vacinas em menos de um ano. Tratava-se de multiplicar por cem sua capacidade. Fez as obras e começou a operar em 90 dias. Em meados de setembro (um mês depois da visita de Almeida Machado), remanejando estoques, despachou dois milhões de vacinas e começou a imunização de 500 mil crianças em São Paulo. O governo começou uma campanha nacional e, em 12 dias de janeiro de 1975, foram vacinadas quatro milhões de pessoas no Rio de Janeiro. No carnaval daquele ano os casos de meningite na cidade começaram a cair.

O Mérieux associou-se ao Instituto Oswaldo Cruz, e produziram dez milhões de vacinas por mês. Em abril (nove meses depois da ida de Almeida Machado a Lyon), começou a vacinação em São Paulo e, em cinco dias, foram vacinadas 10,3 milhões de pessoas.

Em julho de 1975, o Brasil tinha recebido 90 milhões de vacinas. Estava concluído um dos maiores programas de vacinação em massa do mundo.

Como a ditadura tinha um pé no progresso e outro no atraso, um mês antes da ida de Almeida Machado a Lyon para descascar o abacaxi, o Serviço Nacional de Informações reclamava das tais “notícias alarmantes”:

“Esses fatos, constantemente explorados pelos meios de comunicação social, e, em particular, as sucessivas notícias divulgadas sobre a existência de doenças graves, principalmente sobre a meningite, normalmente acompanhados de boatos, poderão criar ou manter a população em estado de insegurança, intranquilidade e apreensão, que pressupõe uma falsa noção de que, quando houver necessidade, não se contará com assistência médica, hospitalar ou preventiva por parte dos setores responsáveis do País.”

Passou o tempo, a epidemia é outra, e o atraso prevaleceu.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e sempre acreditou em todas as teorias de conspiração de Ubaldo, o Paranoico, inesquecível personagem do humorista Henfil.

Quando o idiota soube que o governo tem planos para transformar o prédio do Museu Nacional do Rio num simulacro de Palácio Imperial, teve seu momento de Ubaldo, associando paranoia à sua cretinice.

A paranoia seria a seguinte: como em 2022 comemora-se o bicentenário da Independência e em São Paulo será reinaugurado o Museu do Ipiranga, seria aconselhável evitar que o governador João Doria (o da vacina chinesa que não seria comprada) sediasse uma festa.

A cretinice é outra.

Antes de pegar fogo, em 2018, o Museu Nacional funcionava no casarão onde moraram D. João VI e os dois D. Pedro. No incêndio, as poucas lembranças dos imperadores viraram cinzas. Do prédio, sobrou parte da carcaça da edificação que um mercador de negros escravizados doou (ou foi obrigado a doar) a D. João. Ademais, o que havia ali era um museu de História Natural, com meteorito, múmias e objetos indígenas.

Museu Imperial, o Brasil já tem um, e é muito bom. Fica em Petrópolis, no casarão onde D. Pedro II se protegia do calor e das epidemias. Lá estão seu trono, sua coroa, as carruagens e a luneta com que via as estrelas. Não há por que mexer nele.

Tirar peças de um acervo para satisfazer vaidades políticas é oportunismo.

BBB no Supremo

Em julho, Bolsonaro indicará o substituto do ministro Marco Aurélio Mello para a vaga no Supremo Tribunal Federal.

Essa escolha era feita com discrição, comparando-se currículos, mas as coisas mudaram. O procurador-geral, Augusto Aras, e o advogado-geral da União, André Mendonça, disputam a vaga com tamanha ferocidade que o espetáculo assemelha-se às disputas do programa BBB, para ver quem vai para o paredão.

Privataria na pandemia

A pandemia estimulou a mobilização de empresários para colaborar com a saúde pública. Estimulou também a entrada de vigaristas. Basta lembrar o aparecimento de duas girafas. No ano passado, havia um inglês oferecendo 40 milhões de testes por mês. Em janeiro, apareceram 33 milhões de vacinas da AstraZeneca que seriam intermediadas por um fundo a um consórcio de empresas que repassariam metade ao SUS e ficariam com a outra parte. A dose sairia a US$ 23,79, enquanto no mercado ela custava US$ 5,25. A AstraZeneca disse que não vendia as vacinas, e o fundo denunciou a malandragem.

Finalmente, em março, vigaristas arrebanharam otários para serem vacinados clandestinamente numa garagem da Viação Saritur, em Belo Horizonte. Cada um pagou R$ 600 (cerca de US$ 100) pela picada. A enfermeira-frentista esteve presa, e os otários esconderam-se.

Em princípio, empresário entende de dinheiro. Quem quiser meter sua reputação nessas aventuras deve saber que elas têm duas balizas: numa ponta ficou o Itaú Unibanco, que tirou R$ 1 bilhão do seu caixa, formou um conselho e deu-lhe poderes para distribuir o dinheiro. Na outra, está a turma da garagem da Saritur. No meio, ficam as girafas dos testes ingleses, das vacinas do consórcio, dos projetos de isenções tributárias, leitos privatizados e outros avanços na Bolsa da Viúva.

Como dizem os crupiês: “Façam seu jogo, senhores”.

Privacy Preference Center