Folha de S. Paulo

Vladimir Safatle: Maio de 68 no Brasil

Luta deixou filhos e netos, de sangue e de espírito, que nunca se esquecerão

É sintomático o silêncio dominante atual a respeito de Maio de 68 no Brasil. Em circunstâncias normais, poderíamos esperar uma reflexão articulada a respeito deste momento importante da história nacional, suas aspirações e impasses. No entanto, algo funciona atualmente sob a sombra da lógica do esquecimento, como se fosse questão de melhor não lembrar o que pode sempre retornar.

Lembremos como a ditadura militar brasileira havia se imposto como uma experiência "transitória". Logo após o golpe, ainda se falava em eleições presidenciais em 1965. Foi aos poucos que a "intervenção militar" mostrou sua verdadeira face, a saber, aquela de um regime que nunca iria passar por completo, que mesmo depois de terminado saberia como continuar.

O sentimento social de sufocamento crescia com a promulgação de uma Constituição autoritária, com a consciência da impossibilidade da via eleitoral, como os casuísmos que apareciam diante dos resultados eleitorais desfavoráveis à ditadura.

Nesse contexto, as revoltas estudantis aparecem como o primeiro momento efetivo de resistência à ditadura. Elas colocavam em questão os modos de oposição reinantes, já que o Brasil desenvolvera uma ditadura com uma capacidade de amortização de tensões maior do que aquelas que conheceriam seus vizinhos.

Estamos a falar de uma ditadura que criou um partido de oposição para chamar de seu, não por acaso o conhecido MDB. Uma ditadura que aplicou não o princípio do assassinato em massa, mas do assassinato seletivo que tinha a força de paralisar todo o conjunto da vida social com um esforço menor.

Nesse horizonte, constituíram-se os primeiros grupos efetivos de luta armada no Brasil. Ou seja, a história de Maio de 68 no Brasil é indissociável dessa opção pela luta armada que levaria boa parte dos estudantes à clandestinidade.

A violência contra eles seria ainda mais brutal do que aquela que ocorreria em outros países latino-americanos. Pois até hoje seus corpos continuam desaparecidos, seus nomes, apagados da memória nacional, suas ações, recusadas.

Mas seria importante lembrar como o contexto legitimava tal escolha. O Brasil se situava em meio a uma ditadura claramente tipificada enquanto tal.

Um princípio fundamental a ser aceito em qualquer democracia que queira fazer jus a tal nome, mesmo uma democracia liberal, é: toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal. Mesmo segundo princípios liberais, a luta armada contra a tirania é um direito. Note-se como vários líderes da luta armada, como Carlos Marighella, eram até então atores políticos bastante integrados ao que se chamaria de jogo democrático. Marighella opta por organizar a luta armada apenas após a implantação da ditadura militar, abandonando assim a diretriz hegemônica do PCB de então. Ou seja, sua escolha é motivada por um fechamento do horizonte político nacional, ela responde a tal fechamento.

Impor a uma sociedade a brutalidade da ditadura, da censura e da exceção e ainda esperar que a integralidade de seus cidadãos não use de todos os meios para se rebelar é desconhecer as dinâmicas mais profundas da história dos povos.

Nesse sentido, Maio de 68 no Brasil mostrou claramente como emergia uma juventude que não estava disposta a continuar a ser sufocada. Ela foi fundamental para que o Brasil conservasse uma dinâmica de transformações possíveis e de tensões. Ela deixou filhos e netos, de sangue e de espírito, que nunca estarão dispostos a esquecer o que eles fizeram e o que representaram.

Há um dever de memória a ser feito, ainda mais nos momentos sombrios da história nacional.

* Vladimir Safatle é filósofo, é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo).


Julianna Sofia: Temer completa dois anos no Planalto enfraquecido e impopular

Presidente subsiste no cargo desde 17 de maio de 2017, quando foi solapado pela delação da JBS

A festança motivacional da Caixa Econômica Federal para 6.000 gerentes no Mané Garrincha, na próxima semana, é quase uma metáfora da gestão de Michel Temer —o presidente, sem voto, que completa dois anos no cargo neste 12 de maio.

O estádio de R$ 1,6 bilhão simboliza o legado superfaturado e corrompido da Copa, um elefante branco hoje subutilizado pelo governo local. Envolta em operações da Polícia Federal por desvios, a Caixa enfrenta um processo de enxugamento operacional (corte de agências e de pessoal) e de busca por eficiência, ao passo que é alvo sistemático dos ataques com fins eleitoreiros da ala política do governo do emedebista. Seu presidente é indicação do PP.

Enfraquecido e impopular, Temer subsiste no cargo desde 17 de maio de 2017, quando foi solapado pela delação da JBS e passou a drenar energia diária esquivando-se de denúncias de corrupção.

Com nomes incensados em sua equipe econômica original, obteve avanços na economia, ao tirar o país da pior recessão do período recente e derrubar a inflação e a taxa básica de juros a mínimas históricas. Conquistas ainda relativas diante do desemprego elevado, do crédito caríssimo para o tomador final, do inexistente investimento público e do quadro fiscal assustador —com teto de gastos e regra de ouro a ruir.

Retrocedeu na agenda ambiental, social e de costumes. É sintomático que nos dois anos de sua administração a Funai tenha hospedado três presidentes (um deles, militar), que regra flexibilizando trabalho escravo tenha sido vista —depois revista— e que mulheres no comando de ministérios sejam fato inusual.

Sob o emedebista, Executivo e Legislativo fizeram avançar uma pauta de interesse do empresariado e de setores de viés conservador. Investida recente tenta enfraquecer o controle de agrotóxicos, que serão nomeados “produtos fitossanitários”.

Um hábito singular de Temer no Palácio do Planalto é recuar (em qualquer tema). Na metáfora da festança, a Caixa ainda pode voltar atrás.

* Julianna Sofia é secretária de Redação da sucursal em Brasília. Atuou na cobertura de temas econômicos.


André Singer: Para onde vai Ciro?

Ambiguidades cercam a candidatura do ex-governador cearense

A filiação do empresário Benjamin Steinbruch ao Progressistas (antigo PP), noticiada nesta semana, de modo a poder se tornar vice na chapa de Ciro Gomes (Partido Democrático Trabalhista, PDT) à Presidência da República, expressa as ambiguidades que cercam a candidatura do ex-governador cearense.

Embora se trate, ainda, de balão de ensaio, a articulação existe. O irmão do candidato, Cid Gomes, um dos coordenadores da pré-campanha, considerou “excelente” o nome do industrial. O presidente da agremiação brizolista, Carlos Lupi, declarou que é “o que se quer de um vice”.

O dono da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) filiou-se, sem alarde, ao partido de Paulo Maluf às vésperas de se encerrar o prazo legal que permitiria candidatar-se.

De acordo com as notícias, dois Ciros teriam participado das conversas prévias à filiação: o Gomes e o Nogueira, presidente da sigla malufiana e senador pelo Piauí. No rastro da possível aliança existe a perspectiva de atrair, também, o DEM, com o qual os “progressistas” encontram-se, por ora, comprometidos.

Para quem está surpreso, convém lembrar que Ciro começou a carreira no PDS (ex-Arena), militou por muito tempo no PSDB, por meio do qual chegou a ministro da Fazenda, e passou, mais recentemente, pelo Pros (Partido Republicano da Ordem Social).

Embora crítico contumaz da aliança estabelecida pelo PT com o PMDB, sobretudo no segundo mandato de Lula, o político cearense nunca deixou de cultivar os velhos contatos conservadores. Manteve a simpatia do conterrâneo Tasso Jereissati, mesmo depois de deixar o PSDB, e cuidou de antigas pontes estabelecidas com o PFL (hoje, DEM), que o apoiou a presidente em 2002.

Depois da reeleição de Dilma, Ciro engajou-se na criação de uma frente parlamentar envolvendo forças conservadoras para substituir o papel chave do peemedebismo no governo.

A empreitada resultou em rotundo fracasso. Eduardo Cunha galgou a Presidência da Câmara e trouxe a guilhotina do impeachment para o centro da cena. Mas o líder pedetista parece continuar a crer que é possível contornar o PMDB, buscando alianças à direita dos seguidores de Temer (lembrar que foi uma senadora “progressista” que elogiou “levantar o relho” contra a caravana de Lula no Sul).

O pragmatismo de Ciro é compreensível. Trata-se de um político profissional disposto a fazer o necessário para ganhar. Atrair um grande capitão de indústria, como fez Lula com José Alencar, soma. Do ponto de vista da esquerda, entretanto, tais manobras complicam a formação de um programa comum.

* André Singer é cientista político e professor da USP, foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.


Demétrio Magnoli: A ciência política do negacionismo

Nos EUA, como no Reino Unido, o nacionalismo bebeu no pântano dos destroços da classe trabalhadora

Diana Mutz, da Universidade da Pensilvânia, afirma que o triunfo de Trump em 2016 não foi fruto de um levante eleitoral dos “deserdados da globalização”, mas o resultado de uma reação dos brancos às percepções de ameaça a seu status de grupo e à posição dominante dos EUA no mundo. Racismo, não insegurança econômica –eis o diagnóstico dela.

Na Folha (7/5), Vinicius Mota enaltece o artigo de Mutz, publicado na revista da Academia Nacional de Ciências, que “analisa os dados disponíveis com a melhor técnica”. Só que a “técnica” da autora está toda enviesada pela ideologia, o que a faz escolher as estatísticas inadequadas.

Trump perdeu no voto popular, por 2,9 milhões, uma diferença apreciável. Sua vitória deu-se no Colégio Eleitoral, pela transferência de quatro ou cinco decisivos estados da coluna dos democratas para a dos republicanos.

Mutz compara as percepções do conjunto do eleitorado americano em 2012 e 2016 –mas isso é irrelevante para se entender o resultado. A “melhor técnica” exigiria cotejar as percepções dos eleitores dos estados que mudaram de mãos. Ela precisaria investigar Pensilvânia, Ohio, Michigan, Indiana e Wisconsin –isto é, o Manufacturing Belt devastado pela longa recessão. Se o fizesse, porém, seria obrigada a olhar para o que não quer.

“Viver em alta renda –isto é, ser vencedor na globalização– fez subir a chance de voto em Trump”, sintetiza Mota, a partir das conclusões de Mutz. Errado, mesmo nacionalmente. Entre 2012 e 2016, as maiores transferências de voto de democratas para republicanos ocorreram nos condados com piores índices de saúde, que se concentram desproporcionalmente no Manufacturing Belt.

Na história recente, o voto branco sempre vai, majoritariamente, para os republicanos. Mas, entre 2012 e 2016, cresceu a parcela de votos nos democratas entre os com diploma universitário, enquanto aumentou a parcela de votos nos republicanos entre os sem grau universitário. Não custa lembrar: Romney, o republicano de 2012, era tudo menos um nacionalista e um populista.

Mutz registra, em favor de sua tese, que os EUA experimentaram recuperação econômica nos mandatos de Obama. Oculta, porém, que a retomada propiciou o crescimento real dos salários mais elevados, mas não dos salários médios e baixos, que permaneceram estagnados.

No Reino Unido, o Brexit triunfou por 1,2 milhão de votos. A diferença refletiu o forte apoio à saída da UE nas Midlands, regiões industriais antigas submetidas a prolongada depressão. Não há sinais, ali, de percepções de perda de status social pelos brancos –mas há expressiva contração da renda e redução de empregos qualificados. Como nos EUA, o nacionalismo bebeu no pântano dos destroços da classe trabalhadora.

Na campanha, Hillary Clinton quase não visitou os estados tradicionalmente democratas do Manufacturing Belt, enquanto Trump realizou intensa campanha pessoal em todos eles. Dos 650 condados que votaram em Obama por duas vezes, um terço escolheu Trump em 2016. Entre os brancos sem diploma, 22% mudaram o voto de Obama para Trump.

Assim como Clinton, Mutz circula bem longe de onde as coisas acontecem. À distância, qualquer gramado parece liso. Vítima dessa ilusão ótica, Mota qualifica a tese do levante dos “deserdados da globalização” como um produto da “máquina de fabulações que é o cérebro humano”.

O que é ilusão ótica em Mota, é “fabulação” ideológica em Mutz. O desastre de 2016 ativou o debate sobre a estratégia do Partido Democrata de formar coalizões de minorias e sobre as implicações de seu discurso multiculturalista.

Os democratas, dizem os críticos, abandonaram os brancos pobres aos seus próprios temores. Mutz esgrime “a melhor técnica” –no caso, a prestidigitação estatística– para praticar o negacionismo, salvando uma linha política fracassada. Trump sorri, agradecido.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Folha de S. Paulo: Sem Lula, PT, PC do B e PSOL devem apoiar Ciro, diz Dino

Para comunista, governador do MA, insistir em candidatura de ex-presidente é derrotismo

Por Thais Bilenky, da Folha de S. Paulo

SÃO LUÍS - Governador do Maranhão e aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Flávio Dino (PC do B) defendeu que o seu partido, o PCdoB, e ainda o PSOL e o PT abram mão de suas pré-candidaturas para apoiar Ciro Gomes (PDT) na eleição para a Presidência da República.

Para Dino, a multiplicidade de candidaturas ameaça o seu campo político de perder já no primeiro turno. "Está chegando o momento de admitir uma nova agenda. Se não oferecermos uma alternativa viável, você pode perder a capacidade de atrair outros setores do centro que se guiam também pela viabilidade", disse na sexta (4), na sede do governo.

Segundo Dino, a união da esquerda hoje se daria em torno de Ciro, porque ele "é hoje e o melhor posicionado". Lula está inabilitado e "o PT não tem nome capaz de unir nesse momento", disse.

Sem Lula nas pesquisas de intenção de voto, entre os nomes identificados como de esquerda, o cearense é o que herda a maior parcela do eleitorado lulista —15% no cenário mais favorável medido pelo Datafolha em abril. Manuela D'Avila (PC do B) atrai 3% dos votos do ex-presidente.

Dino disse que a prisão de Lula é "muito dilacerante, muito traumática, uma tragédia política, a maior derrota da esquerda brasileira desde o golpe [militar] de 1964".

"É pior que o impeachment [da ex-presidente Dilma Rousseff (PT)] pelo simbolismo de o maior líder popular do país ao lado de Getulio Vargas está fora da eleição", afirmou.

Pela dramaticidade do episódio, argumentou, foi necessário a simpatizantes viver o "luto para processar a perda".

Agora, um mês depois, aproxima-se o momento de Lula e aliados admitirem que sua candidatura se tornou inviável e começarem a traçar estratégias para vencer a eleição. Do contrário, sustentou o governador maranhense, a divisão pode resultar em tragédia ainda pior, que seria a derrota para a direita.

"O ponto de interrogação que está dirigido sobretudo ao PT é se nós queremos uma eleição apenas de resistência, de marcar posição, eleger deputados, ou ganhar a eleição presidencial", disse. "Temos chance de ganhar, a eleição porque o pós-impeachment deu errado. O fracasso do Temer é o fracasso da alternativa que se gestou a nós."

Sem nominar, o comunista discordou da postura de setores do PT, inclusive da presidente do partido, Gleisi Hoffmann, de insistir na candidatura de Lula. "A tática de marcar posição é derrotista e não honra a importância do Lula, porque abre mão da possibilidade de haver uma virada geral na sociedade que possibilite julgamentos racionais dele", afirmou.

A possibilidade de aliança já para o primeiro turno divide o PT. O ex-prefeito paulistano Fernando Haddad sustenta a necessidade de diálogo entre setores de esquerda. O ex-ministro Jaques Wagner deu declaração simpática à possibilidade de o PT indicar um vice em chapa de Ciro. Gleisi contestou. "Mas ele não sabe que o Ciro não passa no PT nem com reza brava?", reagiu.

Fora do PT, a controvérsia se mantém. Aliado de Manuela, o deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP) vê a hipótese de união com ceticismo.

"Ciro será candidato, o PT terá também. Boulos ficará na disputa. E ainda tem [o ex-ministro do Supremo Joaquim] Barbosa. Manuela traz frescor à disputa. É novidade, consistente. Não há motivos para não ser candidata", afirmou.

O presidente do PSOL, Juliano Medeiros, adota linha similar. "É necessário construir pontes entre partidos e setores sociais que estão preocupados com a escalada de ódio e intolerância", afirmou. "Mas a candidatura de Guilherme Boulos é indispensável ."


Celso Rocha de Barros: O PT no bicentenário de Marx

A democracia moderna não anda bem desde a crise da política dos trabalhadores

O último sábado foi o bicentenário de Karl Marx. É uma oportunidade para discutir a relação do pensamento de Marx com o maior partido de esquerda da história do Brasil, o Partido dos Trabalhadores.

Há um trabalho interessantíssimo de história intelectual ainda a ser escrito mostrando a influência de autores marxistas heterodoxos e pós-marxistas sobre o PT. Eurocomunistas gramscianos, autonomistas adeptos das ideias do grupo francês "Socialisme ou Barbarie" (socialismo ou barbárie), admiradores dos "operaistas" italianos, todos tinham em comum características que marcaram muito a experiência petista: a preferência pelos movimentos de base, em vez das vanguardas teóricas leninistas, e a recusa do economicismo característico do marxismo ortodoxo. A crítica ao leninismo era umretorno a Marx. A crítica do economicismo era uma correção feita ao velho comuna.

O artesanato ideológico envolvido na construção de um partido tão heterogêneo foi difícil, mas produziu um resultado muito positivo: o PT não apoiou o totalitarismo soviético. Quando Gorbachev, em 1991, sofreu um golpe da velha guarda comunista, a Folha publicou, na página 3, dois artigos: o do presidente do PCdoB, João Amazonas, tinha o título "Uma Notícia Alvissareira". Pelo lado do PT, o petista José Genoino defendia o processo de democratização e se opunha ao golpe. O PT ficou do lado certo.

Mas a independência do PT frente ao socialismo real teve ao menos duas consequências ruins.

Em primeiro lugar, desobrigou o PT de fazer a autocrítica que o PCB, por exemplo, não conseguiu evitar. Embora não apoiasse os outros regimes do socialismo real, o PT apoiava o castrismo. Eventualmente, a "exceção" que era o apoio ao regime cubano abriu as portas para o apoio ao regime chavista, a maior culpa da história do Partido dos Trabalhadores. Diferentemente de várias outras, ela é explicável exclusivamente por defeitos do próprio PT.

Em segundo lugar, as ideias marxistas heterodoxas ou pós-marxistas que influenciaram o PT tinham também seus problemas. O marxismo ortodoxo é, como se sabe, bastante economicista (e o próprio Marx gostava bastante de economia). Na reação a isso, os marxistas ocidentais produziram análises que enfatizavam a importância da política e da cultura na vida social. Grandes obras foram escritas sob essa perspectiva, mas a nova esquerda passou a ter um déficit de reflexão econômica do qual o PT até hoje se ressente.

Mas o principal interesse da história petista para a reflexão do bicentenário é outra. O PT, até mais do que os partidos de esquerda do primeiro mundo, tem que resolver, na prática, questões que estão no centro da discussão do bicentenário.

O PT, bem mais que os outros partidos de esquerda brasileiros, continua sendo o partido dos sindicatos. O que fazer com essa herança? Como organizar uma classe trabalhadora que não é mais a da indústria fordista? Que espaço para a política sobrou agora que a produção é global? Como garantir que a automação gere tempo livre e não miséria? Que espaço sobrou para uma política "dos trabalhadores" na democracia moderna?

Essa questão é especialmente importante porque, desde que as formas anteriores de política dos trabalhadores entraram em crise, a democracia moderna não anda lá muito bem. Nem a nossa nem nenhuma.

* Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.


Samuel Pessôa: Novo estelionato em construção

Dizer que aumento do gasto público é autofinanciável é populismo explícito

O professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas, “meca” do pensamento heterodoxo brasileiro) Marcio Pochmann, responsável pelo programa do candidato do PT, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no domingo passado (29), afirmou: “O fundamental no início do governo é um programa de emergência, que permita ao país sair da crise e voltar a crescer. Nós entendemos que a questão fiscal se resolve com volta do crescimento”.

É tanta bobagem que tenho dificuldade de acreditar que Pochmann de fato acredita no que falou. O crescimento já voltou —no ano passado, crescemos 1%, e, neste ano, a expansão será próxima de 2,6%—, além de sabermos que a economia não atende as condições do moto-perpétuo. Isto é, impulso fiscal não gera crescimento suficientemente forte para reduzir a dívida como proporção da renda nacional.

A política do pé na máquina foi empregada inúmeras vezes no Brasil. Antonio Delfim Netto no fim dos anos 1970, Dilson Funaro em 1985 e, mais recentemente, Dilma Rousseff em seu primeiro mandato. Sempre com resultados desastrosos.

Donald Trump aparentemente concordaria com cada palavra de Pochmann. Também o governo de Cristina Kirchner aplicou a ideia do moto-perpétuo. Mauricio Macri luta até hoje, sem grande sucesso, para reduzir inflação que insiste em rodar a 25% ao ano. Sem falar do caso da Venezuela.

Por outro lado, Pochmann foi contra o ajuste fiscal promovido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, que está na raiz do bom desempenho dos oito anos daquela administração.

Ou seja, Pochmann está simplesmente errado. A estultice contida na fala dele não está associada a proposições que tipicamente polarizam esquerda e direita. Pode-se defender maior progressividade dos impostos para combater a desigualdade. Seria uma proposição de esquerda, segundo Norberto Bobbio.

Pode-se argumentar que a maior progressividade teria efeitos perversos sobre a eficiência e, consequentemente, o crescimento. Seria proposição de direita, segundo Norberto Bobbio.

Ambas as proposições são defensáveis, e um economista, além de medir os custos e os benefícios de cada uma delas, nada teria mais a dizer sobre elas. São temas eminentemente políticos. É necessário um juízo de valor subjetivo para decidir. Somente a política tem essa delegação.

Já a proposição de que o aumento do gasto público é automaticamente autofinanciável é simplesmente errada.

Não estamos no terreno do debate de ideias esquerda versus direita. Trata-se de populismo explícito. Há profissionais de economia que se prestam a esse serviço. Tanto na esquerda quanto na direita.

Assim, minha interpretação é que o grupo político ao qual Pochmann está associado tem a avaliação de que é de seu interesse embarcar em uma campanha eleitoral escondendo da população, como fizera em 2014, os reais desafios do país. Um novo estelionato eleitoral encontra-se em gestação.

Tudo o que um político deseja é um profissional de economia, com alguma credencial acadêmica, que diga que os problemas se resolvem estimulando o crescimento. Nos meus 55 anos de vida, já vi esse discurso, pela direita e pela esquerda, inúmeras vezes. Nunca terminou bem.

Vale lembrar que Pochmann foi também contrário à focalização do gasto social nas famílias de menor renda, embrião do programa Bolsa Família. Era política pública dos neoliberais do Banco Mundial.

* Samuel Pessôa, físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV


Elio Gaspari: O movimento pode ser uma milícia

O MLSM mostrou que o que parece ser defesa do andar de baixo às vezes é bandidagem

Condenado por corrupção, o maior líder popular surgido depois de Getúlio Vargas está na cadeia. Na madrugada de 1º de maio desabou em São Paulo um prédio de 24 andares onde viviam 92 famílias que o ocupavam em nome de um Movimento de Luta Social por Moradia, o MLSM. Seja o que for aquilo que se chama de “movimento”, o MLSM é uma milícia que domina oito prédios e barracas de comércio espalhados pela cidade. No edifício que desabou cobrava aluguéis de até R$ 400 mensais.

Diante da exposição dos métodos do MLSM, deu-se uma reação, mostrando que havia um risco de satanização dos “movimentos”. Quem defende os “movimentos” sem condenar as milícias sataniza aquilo que pretende proteger.

Não se pode dizer que o MLSM seja um ponto fora da curva. Em 1997 o estado de São Paulo era governado por Mário Covas, avô do atual prefeito, Bruno, e três pessoas haviam sido mortas pela PM num conjunto habitacional da Fazenda da Juta, invadido pelo “movimento” dos sem teto do ABC. Durante a ocupação, apartamentos de dois quartos e pequena sala eram negociados por atravessadores. Um dos invasores era um jovem de 19 anos, solteiro. No Nordeste já houve filas de fazendeiros pedindo ao MST que invadisse suas terras para que pudessem buscar indenização do governo.

A caminho da cadeia, Lula disse: “Não sou um ser humano, sou uma ideia”, e saudou uma plateia dos “movimentos” habituados a “queimar os pneus que vocês tanto queimam,” e a fazer “as ocupações no campo e na cidade”. Prometeu-lhes: “Amanhã vocês vão receber a notícia que vocês ganharam o terreno que vocês invadiram.”

Lula, o PT e muitas organizações de mobilização social nada têm a ver com o MLSM ou picaretagens semelhantes. O problema está no fato de que jamais denunciam o que é feito na suposta defesa do andar de baixo. Admitindo-se que invadir prédios seja uma forma de buscar a justiça social (o que não é), fazer de conta que não se vê a atuação de uma milícia é suicídio.

Pensa-se que, se o objetivo é social, o resto não importa. Isso vale tanto para as invasões como valeu para a manutenção de contubérnios com empresários e políticos profissionalmente corruptos. Foi assim que se abriu a trilha de malfeitorias que levou o maior líder popular à cadeia, por corrupção.


Demétrio Magnoli: A conciliação do poder público com os bolsões de invasões é também um gesto político

A conciliação do poder público com os bolsões de invasões é também um gesto político

É lamentável que tenha gente querendo fazer uso político em cima de um incêndio”, disse um indignado Guilherme Boulos. Mas, como ele bem sabe, o material inflamado pelas chamas é todo feito de política —ou melhor, de uma tripla depravação política.

O mercado perfeito só existe no éter dos modelos econômicos puros. A cidade é a epítome da falha de mercado. Como o valor dos imóveis reflete suas localizações, o jogo de oferta e demanda tende à segregação social absoluta, expulsando os pobres para as periferias e, nesse movimento, separando geograficamente os empregos da força de trabalho.

Da disjuntiva, emanam tanto uma tensão social dilacerante quanto as políticas urbanas destinadas a estabilizar a segregação. As townships do apartheid, as cidades-satélites de Brasília, os conjuntos habitacionais das franjas de Paris, o Minha Casa Minha Vida pertencem, cada um no seu tempo e lugar, à mesma lógica implacável.

A ordem do absurdo exige, porém, níveis extremos de controle político. Nos seus interstícios, floresce a cidade ilegal: o cortiço, a favela, a invasão, a colonização de praças e viadutos por moradores de rua. A política infiltra-se em tudo.

Os habitantes do prédio Wilton Paes de Almeida pagavam, em dinheiro, a proteção oferecida por um certo movimento Luta por Moradia Digna. Os ocupantes de edifícios gerenciados pelo MTST pagam proteção em outra moeda: a presença nas passeatas e manifestações que projetaram um candidato presidencial.

Três vezes depravação. A conciliação do poder público com os bolsões de invasões, inclusive aqueles enraizados em imóveis inseguros, é também um gesto político, que reflete escolhas ideológicas ou a mera inércia de uma ordem precária. O incêndio é de Haddad e de Doria, em partes iguais.

Nabil Bonduki, um lulista como Boulos, fez “uso político” do incêndio para clamar por “uma estratégia de produção massiva de habitação social em áreas bem localizadas” (claro: chancelada pelos “movimentos de moradia sérios”). Mas a proposta de habitação social no centro expandido apenas troca o gueto de lugar.

As experiências das Habitações de Locação Moderada parisienses, de Havana Velha, da antiga Berlim Leste ou das cidades soviéticas já deveriam ter ensinado o suficiente sobre o lúgubre destino reservado a edificações de propriedade estatal cedidas em usufruto a moradores pobres. Gueto é ruína anunciada, como constataram tantos urbanistas livres da gaiola do dogma.

As chamas que consumiram o Wilton Paes de Almeida servirão para ofuscar ou iluminar? Na longa era do lulismo, o Minha Casa Minha Vida tornou-se eixo de uma santa aliança de negócios e política.

Numa ponta, o programa oferecia vultosos subsídios ocultos às construtoras. Na outra, gerava clientelas eleitorais a prefeitos e vereadores, além de seguidores compulsórios de líderes de movimentos de moradia. O produto final foi o congelamento do debate sobre o futuro de nossas cidades. Esquerda e direita combinaram, tacitamente, que ninguém pronunciaria as duas palavras proibidas: reforma urbana.

Não precisava ser assim. Londres e Paris acordaram, anos atrás, para a necessidade de reinventar seus centros expandidos por meio de projetos público-privados de uso múltiplo de áreas degradadas. As metas são evitar tanto a especialização funcional quanto a segregação residencial segundo faixas de renda. Na América Latina, cidades colombianas e chilenas adotaram iniciativas em direções semelhantes.

O edifício que desabou “era um ponto fora da curva na arquitetura, um prédio de vanguarda”, na descrição do arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, ou um “esgoto a céu aberto, enxame de mosquito”, no relato do pastor Frederico Ludwig. As duas imagens devem ser conectadas: o Wilton Paes de Almeida era o retrato de um país que, em nome dos interesses privados, depreda a cidade.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


UOL: Candidatura de Dilma ao Senado e impeachment ampliam racha entre PT e MDB em MG

O que parecia ser um plano infalível para recolocar a ex-presidente Dilma Rousseff diante dos holofotes não está saindo exatamente como o planejado pelo PT

Por Leandro Prazeres, do UOL

A eventual candidatura de Dilma ao Senado por Minas Gerais vinha sendo costurada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas a inclusão do nome de Dilma no concorrido cenário político mineiro causou ruídos dentro e fora do partido e é considerado um dos principais fatores que levaram à abertura de um pedido de impeachment contra o governador mineiro, Fernando Pimentel (PT).

As articulações em torno da candidatura de Dilma ao Senado por Minas Gerais ganharam força no início deste mês e teriam sido feitas por parte do PT mineiro e por Lula antes de sua prisão. No dia 6 de abril, ela transferiu seu título eleitoral do Rio Grande do Sul para Minas Gerais, abrindo caminho para uma eventual candidatura. O plano tinha quatro objetivos principais: usar a popularidade que Dilma ainda teria em Minas para ajudar a alavancar a candidatura à reeleição de Fernando Pimentel (PT); manter a combalida aliança do PT com o MDB em nível estadual e atrair novos aliados; preparar um palanque eleitoral sólido para o nome do PT na disputa pela Presidência da República; e aproveitar o desgaste do PSDB mineiro por conta das investigações contra os senadores Aécio Neves (PSDB) e Zezé Perrella (MDB) para ocupar espaços no Senado.

A candidatura de Dilma ao Senado parecia ainda mais viável na semana passada, quando o senador Aécio Neves virou réu em um processo no STF (Supremo Tribunal Federal) por corrupção passiva e obstrução de Justiça relacionado às suspeitas de que ele teria pedido R$ 2 milhões em propinas para o grupo JBS.

O problema é que a introdução do nome de Dilma no complexo xadrez político mineiro causou desconforto em parte significativa do MDB e até mesmo dentro do PT. Há algumas semanas, a ala do MDB mineiro que dava sustentação à aliança como PT, liderada pelo presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Adalclever Lopes, começou a dar demonstrações de incômodo.

O MDB gostaria de ter o caminho aberto para encabeçar candidaturas para as duas cadeiras em disputa no Senado. Fontes ouvidas pelo UOL afirmam que Adalclever estaria interessado em uma dessas vagas e que uma candidatura de Dilma reduziria as chances de o MDB consegui-las. Acomodar os interesses do MDB parece fundamental para os planos de reeleição de Fernando Pimentel. O partido não governa Minas Gerais desde 2003, quando Itamar Franco deixou o poder estadual. Mesmo assim, o partido é uma das principais forças no estado. Além de Adalclever, o MDB é o partido do vicegovernador, Antônio Andrade, e é a legenda que comanda o maior número de prefeituras no Estado: 164. O PT é apenas o nono em número de prefeituras: 41.

Diante do imbróglio, os caciques dos dois partidos chegaram a pensar em uma alternativa para ter Dilma disputando as eleições sem atrapalhar os planos do MDB ao Senado. O plano seria lançá-la como candidata a deputada federal em uma coligação proporcional envolvendo o PT e o MDB. O atual governador de Minas, Fernando Pimentel, que quer concorrer à reeleição. O projeto, porém, não teria o aval de Dilma, porque ela teria capital eleitoral para atrair votos que ajudariam a eleger parte da bancada do MDB na Câmara que votou pelo impeachment dela em 2016.

"A Dilma ia ajudar a eleger golpista? Não faz o menor sentido", diz o deputado estadual Rogério Corrêa (PT-MG), um dos principais entusiastas da candidatura de Dilma ao Senado. Oficialmente, o MDB nega desconforto com a candidatura de Dilma, mas, na última quinta-feira (26), Adalclever, até então aliado de Pimentel, autorizou a abertura de um processo de impeachment contra o governador com base em supostos atrasos nos repasses a prefeituras, fornecedores e à Assembleia Legislativa. Agora, ele se coloca como pré-candidato ao governo de Minas Gerais, assim como atual vice-governador, Antônio Andrade (MDB).

"A abertura do processo de impeachment não tem relação com a candidatura da Dilma. Nós fomos aliados no passado. Agora, nessas eleições, uma nova aliança precisa ser feita que pode ser com o PT ou não. Mas, pelo que parece, não será", disse Adalclever, que é filho do deputado federal Mauro Lopes (MDB-MG), o mesmo que, três dias depois de se licenciar do cargo de ministro do governo de Dilma Rousseff votou pelo impeachment da ex-presidente.

Um assessor próximo ao governador Fernando Pimentel, sob a condição de anonimato, disse acreditar que a disputa ao Senado pode ter sido um dos fatores que determinaram a abertura do processo de impeachment. Segundo ele, a relação do PT com o MDB estava desgastada e a possibilidade de a ex-presidente ser candidata pode ter instigado ainda mais os ânimos dos antigos aliados. O assessor disse, no entanto, que a decisão do MDB foi precipitada porque a candidatura Dilma nunca havia sido uma imposição de Pimentel ao grupo político.

Para o deputado estadual Rogério Corrêa (PT-MG), o PT não deveria recuar do projeto em torno de Dilma por conta do processo de impeachment. "Não é assim que se joga. A candidatura da Dilma não é uma espécie de moeda de troca para a gente ficar negociando. Temos força para reverter esse pedido de impeachment e acho que devemos manter a candidatura da Dilma de qualquer forma", afirmou.

Resistências dentro do PT
Entre petistas mais preocupados com a reeleição de Pimentel, a preocupação é sobre se a entrada de Dilma na disputa política em Minas Gerais traria mais benefícios ou problemas ao governador. A gestão de Pimentel vem sendo marcada pelas investigações da Operação Acrônimo e pela crise fiscal do estado que causou o atraso no pagamento dos salários de servidores.

Em um cenário tão complexo, perder um aliado com o peso do MDB não seria algo desejável. Além disso, a chegada de Dilma poderia atrapalhar os planos de políticos do PT que estariam "na fila" para alçar voos mais altos.
O deputado federal Reginaldo Lopes, por exemplo, é um dos pré-candidatos do partido ao Senado. Ele afirma que pesquisas indicariam que, sem Dilma no páreo, ele lideraria a corrida a uma das cadeiras em disputa. Com ela na disputa, o cenário seria mais incerto. "Sem ela, eu lidero. Com ela, eu fico atrás. Mas ela é muito mais conhecida do que eu", afirma. Lopes, no entanto, diz haver espaço para que ele e Dilma sejam candidatos do PT ao Senado. "Não vejo motivos para que a gente não seja candidato. Acho que há outros espaços a serem ocupados pelo MDB dentro da nossa aliança", disse.

Futuro da aliança em jogo
Diante do impasse envolvendo o nome de Dilma, o futuro da aliança entre PT e MDB está incerto. Oficialmente, o MDB aposta que terá candidatura própria ao governo de Minas Gerais. Uma definição sobre deverá ocorrer após a convenção estadual do partido, prevista para o início do mês de maio. Nos bastidores, o PT ainda tem esperança de que o MDB possa apoiar, ainda que parcialmente, a chapa de Pimentel à reeleição. "Todo partido tem direito de lançar candidatura própria, mas a gente acha que não faria sentido o MDB fazer isso agora. Temos uma aliança que já dura algum tempo. Além disso, não acredito que eles possam se aliar ao PSDB nessa disputa. Seria uma reviravolta muito improvável", diz o deputado estadual Rogério Corrêa.

A reportagem do UOL procurou, por telefone e por email, a assessoria de imprensa da ex-presidente Dilma Rousseff para falar sobre o caso, mas, até a última atualização deste texto, não houve resposta. O comentário será incluído assim que ela se manifestar.


dólar

Samuel Pessôa: O câmbio andou

Provavelmente a alta do dólar desde o início do ano veio para ficar

Desde 26 de janeiro o real desvalorizou-se, relativamente, à moeda americana, em 10%. Passou de R$ 3,15 por dólar para R$ 3,47. O câmbio andou pouco mais de R$ 0,3.

Sempre que olhamos andadas do câmbio, nos perguntamos: quais fatores motivaram sua variação? Fatores domésticos ou fatores externos? Será que o calendário eleitoral e todas as incertezas associadas ao processo eleitoral passaram a entrar no radar dos investidores?

Meu colega do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) Lívio Ribeiro produziu estudo que separa os movimentos do câmbio em seus componentes externos e domésticos. Rigorosamente os componentes domésticos constituem o resíduo da parcela dos movimentos do câmbio que não são descritos pelos componentes externos.

O resultado que Lívio obteve foi que aproximadamente 45% da desvalorização do câmbio, ou R$ 0,135, resultou de fatores externos. Eles foram: a valorização da moeda americana ante as divisas fortes, o aumento do custo internacional de capital, medido pela elevação da remuneração do título do Tesouro americano de dez anos, e o impacto dessas variáveis sobre o risco Brasil.

Do movimento de alta, 5%, ou R$ 0,015, deveram-se a fatores domésticos que pressionaram o risco Brasil –as incertezas eleitorais entram aí–, e os demais 50%, ou R$ 0,15, provêm da redução do diferencial de juro entre o Brasil, fruto da queda da Selic, e o juro americano de um ano. Somando as três parcelas, temos a desvalorização total de R$ 0,3.

Toda essa análise não consegue tratar de causalidade. É possível somente estabelecer correlações entre as variáveis.

Essa é a maior limitação da macroeconomia. Em geral os modelos macroeconômicos consideram correlações entre as variáveis, mas não conseguem estabelecer a causalidade entre elas. Esta segue da hipótese ou da visão de mundo do pesquisador.

A hipótese no estudo de Lívio é que o real não afeta diretamente o retorno do título do Tesouro americano de dez anos e a cotação do dólar ante as divisas das demais economias desenvolvidas, mas é afetado por esses fatores.

Vale lembrar que desde o início do ano o custo de capital de longo prazo no mercado internacional, medido pelo retorno dos títulos do Tesouro americano de dez anos, subiu de 2,65% para 3% e que o diferencial de juros para um ano entre o Brasil e a economia americana reduziu-se em um ponto percentual (de 4,7% para 3,7%).

A conclusão é que provavelmente a valorização do dólar desde o início do ano veio para ficar e está associada a fenômenos mais estruturais. Evidentemente, se a inflação brasileira pressionar e, em razão da ação do Banco Central, o juro real por aqui subir, o diferencial de juros da economia brasileira com relação à economia americana elevar-se-á. No entanto, não parece haver espaço para subidas de juros no curto prazo. Ainda temos visto surpresas desinflacionárias no Brasil.

Juntando tudo, a impressão que se tem é que muito lentamente a economia internacional, em particular a economia americana, se normaliza.

Rodando há mais de um ano a pleno emprego e a uma velocidade um ponto percentual acima da taxa de expansão potencial, os Estados Unidos crescem 2,5%, ante crescimento potencial de 1,5%, aproximadamente. Assim, o cenário de que o custo real internacional de capital será eternamente negativo –hipótese conhecida por estagnação secular– vai ficando para trás.

O tempo que temos para arrumar nossas inconsistências fiscais se reduz.
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Samuel Pessôa, físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV


André Singer: Esquerda deve unir forças para plantar as sementes da transformação

Conversa ocorrida entre Ciro Gomes e Fernando Haddad deveria ser encarada como positiva

Enquanto o noticiário continua a girar em torno de acusações, processos e depoimentos, os setores interessados na mudança da sociedade têm obrigação de apresentar uma proposta séria e organizada para tirar o país do buraco.

Para tanto, é indispensável construir uma plataforma a ser submetida ao eleitorado em outubro. Não se trata somente de competir com chances de ganhar, mas de plantar as sementes da transformação futura.

A conversa ocorrida entre Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT), na última segunda (23), deveria ser encarada como positiva, caso avance.

É claro que outros personagens do mesmo campo, como Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D’Ávila (PC do B), precisariam ser incorporados ao diálogo, na hipótese de se pensar um programa comum, e não apenas em arranjos de ocasião.

Por maiores que sejam as diferenças entre os citados personagens, todos fazem parte do arco que se opõe ao atual estado de coisas. Os seus partidos e, aliás, também o PSB, formalizaram uma frente pela democracia na Câmara dez dias atrás.

Para visualizar a necessidade absoluta de juntar forças, basta pensar no desafio representado pelo teto do gasto público que o governo Temer conseguiu impingir ao país.

Sem revogá-lo, dificilmente vai se encontrar um meio de fazer o Brasil voltar a crescer e retomar o combate à pobreza. Mas para reunir a maioria necessária no Congresso será indispensável somar muitas correntes e isolar os que desejam preservar a desigualdade.

Um dos segredos do sucesso representado pelo PT na história brasileira residiu na capacidade de Lula reger uma pluralidade de posições no interior do partido. Foi a tolerância dele que permitiu a todos seguirem sob o mesmo guarda-chuva. O PSOL foi a única divisão de maior peso em quase quatro décadas e, mesmo assim, esteve junto na hora extrema da prisão em São Bernardo.

Com Lula preso, a tarefa de unificar a área popular se complica. José Dirceu, que se revelou, mais uma vez, bom analista, advertiu na entrevista a Mônica Bergamo que se Lula não for mantido como candidato até agosto, o PT se dividirá em “quatro ou cinco facções”.

Em outras palavras, a ameaça de fragmentação existe dentro do próprio petismo, quem dirá fora dele. Mas política consiste em reunir aqueles que, espontaneamente, jamais se sentariam à mesma mesa.

Embora acompanhe o processo à distância, o cidadão médio intui a dificuldade envolvida na retomada de um ciclo favorável às massas. Não obstante, o espaço eleitoral à esquerda existe, devido ao sofrimento que a orientação em curso impõe aos trabalhadores.

Será que as agremiações existentes estarão à altura do desafio de preenchê-lo?

* André Singer, cientista político e professor da USP, foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.