Folha de S. Paulo

Demétrio Magnoli: A história de Anna

Sem o conceito de civilização do espetáculo, não se entende a política contemporânea de ultraesquerda

Anna foi o retrato da CUP, o partido “anti-sistema” Candidatura de Unidade Popular, que luta “pelos Países Catalães independentes, socialistas, ecologicamente sustentáveis, territorialmente equilibrados e desvinculados das formas de dominação patriarcais”.

No Parlamento catalão, exibia-se como revolucionária pós-moderna: cabelos curtos de corte irregular, franja reta, camisetas ornadas com slogans insurgentes. Diante da hipótese de um processo judicial decorrente de sua participação secundária na fracassada secessão da Catalunha, fugiu para Genebra –e reformou sua aparência.

A Anna do exílio voluntário, cabelos longos escorridos, roupas casuais de professora, a declarada vontade de retornar à docência, tornou-se uma perfeita senhorita suíça. As duas Annas, ou o percurso de uma a outra, ajudam a entender o que Mario Vargas Llosa batizou como a “civilização do espetáculo”.

Anna Gabriel Sabaté nasceu em 1975, ano da morte de Franco, em Sallent, povoado catalão dividido pelo rio Llobregat. Fala perfeitamente o espanhol –mas, em público, só usa o catalão. Não tem filhos –mas, se tivesse, gostaria de educá-los “em comunidade”, “numa tribo”. Tribo é a palavra-chave para entender Anna.

Seu avô e seu bisavô militaram na CNT, a central sindical anarquista que mandou em Barcelona durante uns poucos meses insurrecionais, entre 1936 e 1937. Dos velhos anarquistas, ela guardou o anticapitalismo.

Da “civilização do espetáculo”, um fruto do capitalismo tardio em sociedades ricas, extraiu o ecologismo e o feminismo. Uma companheira sua, Mireia Boya, sugeriu boicotar as eleições catalãs de dezembro, substituindo-as por uma “paella massiva, insubmissa e solidária”. Na paella ideológica de Anna, o ingrediente final é o encanto pelo romance da Revolução Cubana e pela autoritária (e machista) Venezuela chavista.

“Somos as filhas e netas das bruxas que não puderam queimar” –o brado ritual de Anna, sua marca registrada, contrasta com o percurso da CUP rumo a uma aliança com o PDeCat, o partido conservador catalão. Concluída após as eleições regionais de 2015, a aliança propiciou a maioria parlamentar de sustentação do governo separatista de Carles Puigdemont.

No processo, a CUP sacrificou a pulsão revolucionária no altar de um nacionalismo de corte étnico e aristocrático. O contraste não poderia ser maior: no discurso dos líderes nacionalistas oficiais, a Catalunha independente nascerá de uma derradeira batalha da Guerra da Sucessão Espanhola (1702-14); no de Anna, do levante de uma nação oprimida pelas engrenagens do capitalismo globalizado.

A CUP, estilhaço da esquerda pós-marxista, é constituída por duas facções em rusgas perenes, mas igualmente inspiradas pela “esquerda abertzale”, as organizações radicais bascas ligadas ao ETA. Dois anos atrás, no parlamento catalão, Anna celebrou a libertação de Arnaldo Otegi, um líder do ETA condenado por atos terroristas, acusando a Espanha de manter presos políticos. “Você não chega nem à sola do sapato de Otegi”, respondeu a um deputado indignado com a comemoração.

Anna milita na facção Endavant, cujas raízes encontram-se nos movimentos de ocupação de moradias (okupa) da década de 1990. No fim de fevereiro, concedeu entrevista em Genebra explicando que escolheu: “Um país onde meus direitos fundamentais são garantidos” –isto é, a próspera Suíça que lava mais branco.

Depois, posou diante do lago para o fotógrafo francês Laurent Guiraud, cabelos soltos, jeans da Diesel e, sinal remanescente de rebeldia, os antigos piercings de orelha. Andrea Vilallonga, especialista em imagem, explicou que seu novo look cumpre a função de dissolver a marca cultural da militante implacável.

Sem o conceito de “civilização do espetáculo”, não se entende a política contemporânea de ultraesquerda. Anna, a catalã, está entre nós.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional


Elio Gaspari: O PSDB está desunido e desorientado

Nas mãos de Geraldo Alckmin, o partido fundado por Mário Covas virou um PT chique, e FHC fez que não notou

O PT teve dois presidentes denunciados por corrupção (José Dirceu e José Genoino), o PSDB também (Aécio Neves e Eduardo Azeredo). Quando estourou o escândalo do mensalão, o PT decidiu peitar a investigação e o processo, o PSDB também. Veio a Lava Jato, e o PT resolveu continuar na tática da negativa da autoria e no enfrentamento político. O PSDB também.

Em 2007, quando estourou o escândalo do mensalão mineiro, Ruth Cardoso, mulher de FHC e sua consciência social, sustentou que o ex-governador Eduardo Azeredo deveria ser afastado da presidência do PSDB. Não foi ouvida.

Esse precedente deu a Aécio Neves razões para permanecer na presidência do partido. Só quando sua situação tornou-se insustentável, deu uma carteirada em Tasso Jereissati e apoiou a escolha de Geraldo Alckmin para o lugar.

Se essa onipotência fosse pouca, o partido de Mário Covas e Franco Montoro foi dominado pela mentalidade provinciana de Alckmin. Primeiro ele fritou a liderança do PSDB de São Paulo inventando o "gestor" João Doria.

Se tudo desse certo, ele fritaria os tucanos pela segunda vez elegendo para seu lugar o vice Márcio França, do PSB. Deu errado porque o "gestor" escapuliu da prefeitura paulistana e arrebatou a candidatura ao governo.

Ganha uma viagem a Pindamonhangaba quem for capaz de citar cinco realizações de França em sua carreira política e outras cinco de Doria na prefeitura.

As denúncias contra Azeredo e Aécio ameaçam explodir o PSDB, mas as articulações de Alckmin estão implodindo-o. Sua candidatura à Presidência poderá significar o coroamento do extermínio.

Em 2004, quando o juiz Sergio Moro escreveu um artigo comparando a Lava Jato à Operação Mãos Limpas italiana, lembrou que dela resultou a destruição do sistema partidário italiano. Petistas e tucanos não lhe deram atenção e hoje os dois principais partidos brasileiros estão feridos.

E o MDB? Numa repetição do que aconteceu na França do Setecentos, arrisca-se assistir a um triunfo do pântano.

O colapso das propostas dos tucanos e dos petistas não faz bem ao país. Se os dois partidos decidiram enfrentar o problema da corrupção protegendo corruptos, isso não invalida as ideias que defendem, até porque do pântano saem sapos, não ideias.

Montoro e Mário Covas já se foram. Do time de fundadores do PSDB resta Fernando Henrique Cardoso. Tem passado e, aos 86 anos, seu futuro está numa encruzilhada. Nela, se olhar para trás, poderá desempenhar um papel político relevante.

Infelizmente, seu último livro "Crise e Reinvenção da Política no Brasil"é um bufê de autoelogios, onde se alternam boas causas e platitudes.

Em alguns momentos, FHC parece-se com um Jean de Léry do século 21. Olha para o Brasil com o distanciamento do seminarista francês observando os tupinambás que o mantiveram cativo na baía da Guanabara no século 16. Lendo-o, percebe-se o que está faltando ao PSDB: um segundo volume do "Crise e Reinvenção" dizendo tudo o que FHC não quis dizer no primeiro.

O ex-presidente é um homem cordial e não gosta de confrontos, mas deve-se registrar que na sua "Reinvenção" faltou alguma coisa: em 238 páginas ele não precisou mencionar Geraldo Alckmin, candidato de seu partido à sucessão presidencial.


Samuel Pessôa: Qual é mesmo a divergência?

Moto-perpétuo é a crença de que o gasto público se autofinancia

Eu e Marcos Lisboa temos travado interessante debate com Nelson Barbosa sobre a economia do moto-perpétuo.

Moto-perpétuo é a crença de alguns economistas heterodoxos brasileiros de que o gasto público se autofinancia: o crescimento promovido pelo impulso fiscal mais do que compensa o efeito do gasto sobre o endividamento. No frigir dos ovos, a dívida como proporção da economia se reduz.

Exemplo de crença no moto-perpétuo encontra-se no texto "O papel do BNDES na alocação de recursos: avaliação do custo fiscal do empréstimo de R$ 100 bilhões concedido pela União em 2009", de Thiago Rabelo Pereira e Adriano Nascimento Simões, publicado na revista do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) em junho de 2010.

Os autores sustentam que o impacto dos empréstimos do BNDES sobre o crescimento e a receita de impostos mais do que compensa o custo fiscal das ações do banco. Temos a versão BNDES do moto-perpétuo.

Em sua última resposta na Folha, de 17 de abril, terça-feira passada, Nelson Barbosa alega que nós o acusamos injustamente de defender a economia do moto-perpétuo. Não fomos nós que o acusamos.

Como apontamos no artigo que iniciou nossa conversa, na seção Tendências/Debates de 26 de março, Nelson, em coautoria com José António Pereira de Souza no texto "A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda", apontou que " (...) o eventual financiamento do investimento público por meio da emissão de dívida não seria necessariamente incompatível com a meta global de redução da relação dívida/PIB do setor público brasileiro, visto que tal investimento resultaria na elevação da própria taxa de crescimento do PIB".

A resposta de Nelson Barbosa nesta Folha em 17 de abril não tratou da economia do moto-perpétuo. Barbosa cita trabalhos que calculam que o impulso fiscal sobre o crescimento econômico é positivo, por vezes superior a 1 e, sob algumas circunstâncias, superior a 2. Qualquer estudante de introdução à economia conhece esse fato.

Nossa discussão não se refere ao impacto do impulso fiscal sobre o crescimento. Refere-se ao fato de o impulso fiscal ter impacto muito forte sobre o crescimento da economia e sobre a receita de impostos.

O impacto inicial da elevação do gasto público sobre a dívida seria mais do que compensado pelo crescimento da receita de impostos e da economia, de sorte que a dívida pública, como proporção da economia, reduzir-se-ia no fim do processo. Por isso a denominação de economia do moto-perpétuo. Nenhum dos trabalhos mencionados por Barbosa trata desse tema.

Em tempo: na primeira coluna dessa troca de ideias com Barbosa, citamos artigo de DeLong e Summers publicado no Brookings Paper on Economic Activity em 2012, que descreve uma condição para que ocorra o moto-perpétuo. Mesmo considerado um multiplicador fiscal na casa de 2,5, a economia brasileira nunca atendeu a essa condição.

Resta a Barbosa apresentar algum trabalho acadêmico que mostre que a condição do artigo de DeLong e Summers foi atendida no Brasil entre 2006 e 2010.

Passou despercebido o artigo "Notícias de Maracaibo", de Paula Ramón, publicado na piauí de março. O nível de decomposição do poder público venezuelano assusta.

A Venezuela não caminha em direção à ditadura cubana ou norte-coreana. Caminha em direção à desintegração e total desorganização do poder público; caminha na direção da Somália.

* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV


Folha de S. Paulo: Presidenciáveis enfrentam mais de 160 investigações em tribunais pelo país

Problemas judiciais vão de Lava Jato a barbeiragem no trânsito, mostra balanço da Folha

Por Ranier Bragon , Camila Mattoso e Laís Alegretti

Pelo menos 15 dos 20 políticos cotados para disputar a Presidência da República em outubro são alvo de mais de 160 casos em tribunais do país inteiro.

De Lava Jato a barbeiragem no trânsito, há investigados, denunciados, réus, condenados e um preso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera as pesquisas eleitorais. Levantamento feito pela Folha nos tribunais superiores, federais e estaduais mostra que a Lava Jato e suas derivações, além de outras investigações de desvio, são pedras no sapato de ao menos oito presidenciáveis.

Esse pelotão é liderado por Lula —condenado a 12 anos e um mês—, o presidente Michel Temer (MDB) — alvo de duas denúncias e de duas investigações em andamento—, o senador e ex-presidente Fernando Collor (PTC) —réu na Lava Jato e alvo de outros quatro inquéritos— e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), investigado em dois inquéritos na maior operação de combate à corrupção da história do país.

Com exceção de Lula, que tem até 31% das intenções de voto, Temer, Collor e Maia não ultrapassam 2%, segundo o Datafolha. A condenação e prisão praticamente inviabilizaram a candidatura de Lula, mas o PT afirma que fará o registro do ex-presidente na disputa. Nos bastidores, no entanto, são cogitados para substituí-lo o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e o ex-governador da Bahia Jaques Wagner.

Sobre Haddad, há uma investigação aberta por suposto caixa dois, em decorrência da delação do empresário Ricardo Pessoa, da empreiteira UTC, um dos delatores da Lava Jato. Em relação a Wagner, ele foi alvo recentemente da Operação Cartão Vermelho (que apura suspeita de propina na reforma da Arena Fonte Nova). Outros dois outros casos foram enviados para o juiz Sergio Moro, responsável pela Lava Jato no Paraná.

O ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) teve seu caso enviado para a Justiça Eleitoral, o que o tirou da mira imediata da Lava Jato. Nesta sexta (20), o Ministério Público de São Paulo afirmou que também irá investigar se o tucano cometeu improbidade administrativa no episódio, que é a suspeita de recebimento caixa dois de mais de R$ 10 milhões. Delatores da Odebrecht afirmam ter direcionado o dinheiro à campanha do tucano ao governo paulista em 2010 e 2014. Segundo o Datafolha, Alckmin tem 8% das intenções de voto, no melhor cenário.

Tanto Alckmin quanto Haddad são alvos também de ações por questões administrativas, motivadas pela passagem de ambos pelo comando do Executivo paulista e paulistano. O ex-prefeito, por exemplo, responde a ação do Ministério Público por suposta falta de planejamento na construção de ciclovias. O tucano é alvo, entre outras, de ações da bancada do PT sob o argumento de ilegalidades em licitações e outras ações de governo. Outro investigado é o ex-presidente do BNDES Paulo Rabello de Castro (PSC).

Como representante de uma empresa de qualificação de risco, ele foi alvo de quebra de sigilo bancário e fiscal e depôs em investigação sobre possíveis fraudes em investimentos do fundo de pensão dos Correios, em fevereiro. Castro também tem quase um traço nas pesquisas (1%).

Um segundo grupo de presidenciáveis responde por declarações que podem ser consideradas crime. É puxado por Jair Bolsonaro (PSL), um dos líderes na corrida ao Planalto na ausência de Lula (17%).

O deputado responde a duas ações penais no STF sob acusação de injúria e incitação ao estupro, além de uma denúncia por racismo por palestra em que criticou quilombolas —na área cível, Bolsonaro foi condenado nesse último caso, em primeira instância, a pagamento de indenização de R$ 50 mil. Ele recorreu. As acusações de incitação ao estupro são motivadas por um bate-boca em 2014 com a deputada Maria do Rosário (PTRS). Bolsonaro disse, na ocasião, que não não a estupraria porque ela não merece.

“O emprego do vocábulo ‘merece’ (...) teve por fim conferir a este gravíssimo delito, que é o estupro, o atributo de um prêmio, um favor, uma benesse à mulher, revelando interpretação de que o homem estaria em posição de avaliar qual mulher ‘poderia’ ou ‘mereceria’ ser estuprada”, diz parte do acórdão da 1ª turma do Supremo ao acolher em 2016 a denúncia.

Ciro Gomes (PDT) é o campeão, em volume, de casos na Justiça. Ele acumula mais de 70 processos de indenização ou crimes contra a honra, movidos por adversários. Temer, chamado de integrante do “lado quadrilha do PMDB”, é um deles. Ciro foi condenado em primeira instância e recorreu.

Outros adversários que o processam são Bolsonaro (chamado de “moralista de goela”), os tucanos José Serra (“candidato de grandes negócios e negociatas”) e João Doria (“farsante”), e o presidente do Senado, Eunício Oliveira (“pinotralha, uma mistura de Pinóquio com Irmão Metralha”). O pedetista tem 9% das intenções de voto.

O ministro aposentado do STF Joaquim Barbosa (PSB), que chega a 10% das intenções de voto, foi condenado por danos morais por ter dito que um jornalista “chafurdava” no lixo. Cabe recurso. A Folha localizou ainda casos como o de Guilherme Boulos (PSOL). Além de processos relacionados ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, do qual é líder, ele teria batido em setembro na traseira de uma moto, arremessando-a contra a traseira de outro carro, segundo o boletim de ocorrência.

O dono do outro veículo disse à Justiça que Boulos prometeu falar com seu advogado sobre o conserto. “Desde então o requerido [Boulos] não mais atende suas ligações.” O número de investigações e processos pode ser maior porque o levantamento não inclui ações em segredo de Justiça, processos trabalhistas e eventuais ações movidas na Justiça de primeira instância de estados que não são os de origem ou atuação política do presidenciável. Há também tribunais que dificultam o acesso público.

OUTRO LADO
Os presidenciáveis negaram irregularidades e disseram que serão absolvidos. A defesa de Lula e as assessorias de Michel Temer e de Fernando Collor, alvos da Lava Jato não quiseram se manifestar. Joaquim Barbosa não respondeu.

Advogado de Jair Bolsonaro, Gustavo Bebianno afirmou que a Procuradoria-Geral da República agiu com viés político na denúncia sobre racismo e que o deputado fez apenas uma brincadeira. “O Jair é contrário a qualquer tipo de cotas. O que aconteceu no passado, com índio, negro, seja lá quem for, tem que ficar no passado. A gente tem que construir é daqui pra frente, um Brasil igualitário.”

Sobre acusação de incitar estupro, afirmou que Bolsonaro só revidou a agressão, em momento de cabeça quente. Também por meio de sua assessoria, Geraldo Alckmin afirmou que está à disposição para esclarecimentos e que tem “total consciência da correção de seus atos”.

Sobre ações populares relacionadas a sua gestão, afirmou que elas foram movidas pela oposição e grupos de interesse e que “visam prejudicar o nome íntegro de um homem dedicado à vida pública”.

Ciro Gomes disse, via assessoria, que não teve o nome citado “na Lava Jato nem em qualquer roubalheira” e que todos os processos estão relacionados a opiniões, não a desvio moral. “É um caso muito semelhante ao Grupo Folha, que sempre primou pela liberdade de expressão e acumula contra ela cerca de 75 processos de injúria, calúnia e difamação.”

Rodrigo Maia, investigado na Lava Jato, afirmou que tem prestado os esclarecimentos necessários, que confia na Justiça e aguarda que “tudo seja esclarecido com a maior brevidade possível”. Sobre a rejeição das contas do DEM durante sua gestão, em 2010, afirmou que o partido recorreu porque o julgamento ocorreu sem que a defesa fosse ouvida.

Paulo Rabello disse confiar na elucidação do caso: “A partir da análise do material entregue os investigadores terão total condição de elucidar o caso, esclarecer as responsabilidades e enquadrar os eventuais culpados”.

Jaques Wagner não comentou as investigações contra ele. Fernando Haddad disse que o caso relativo à delação de Ricardo Pessoa será em breve arquivado, assim como as ações por questões dministrativas de sua gestão na prefeitura.

Guilherme Boulos afirmou, via assessoria, que “o próprio autor da reclamação diz que quem atingiu o veículo dele foi um motociclista, que teria fugido depois do acidente —e não o pré-candidato”.

O advogado de Flávio Rocha (PRB), Marcellus Ferreira Pinto, disse que na única ação a que responde, por coação, calúnia e injúria, movida pelo Ministério Público para defender uma procuradora do Trabalho, “a mesma será julgada improcedente.”

Manuela D’Ávila (PC do B), investigada ao lado de outros políticos por uso de cota parlamentar na emissão de passagens áreas para terceiros quando era deputada federal, disse que já houve pedido de arquivamento em um dos casos, além de decisões favoráveis aos réus.

Guilherme Afif (PSD) disse que só respondeu a duas ações na área cível, sendo uma extinta. A outra, de propaganda política irregular, está na “fase de apuração do valor a ser
ressarcido por oito requeridos.”

Aldo Rebelo (SD) foi processado pelo ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira, que tentou censurar um livro sobre CPI que envolveu a entidade. O STJ revogou em 2017 a censura que fora acolhida.

Alvaro Dias (Pode) figura em antiga ação de execução do INSS. Sua assessoria jurídica disse que as peças do processo não estão disponíveis.

A Folha encontrou no nome de Henrique Meirelles (MDB) dois casos. Sua assessoria afirmou que se referem a cobrança de indenização por evento que ele não compareceu, mas que o ex-ministro ganhou as causas. A assessoria não respondeu se há outras ações.

Marina Silva (Rede) e João Amoêdo (Novo) afirmaram que não respondem a processos.


Demétrio Magnoli: O espelho imperfeito

Antes, Obrador denunciava os EUA pela criação do Nafta; hoje, denuncia Trump por pretender abolir o Nafta

No Zócalo, a extensa fachada barroca do Palácio Nacional à frente, constato que perdi as cerimônias de hasteamento da bandeira em honra a Emiliano Zapata (10 de abril) e a Benito Juárez (18 de julho). “Antes de serem uma realidade, os EUA foram, para mim, uma imagem. Desde crianças, nós, mexicanos, vemos esse país como o Outro. Um Outro que é inseparável de nós e que, ao mesmo tempo, é radical e essencialmente o estranho.” A passagem, de Octavio Paz (“O Espelho Indiscreto”, 1976), condensa uma relação de fascínio ritmada por ciclos de atração e repulsão. Juárez simboliza a atração: o México liberal, que queria a modernidade representada pelos EUA. Zapata simboliza a repulsão: o México da Revolução, hipnotizado pela política nacional-estatista, que queria ser o oposto dos EUA. A disputa presidencial mexicana recoloca o dilema, mas sob formas inesperadas.

Andrés Manuel López Obrador inaugurou sua terceira campanha presidencial em Ciudad Juárez, na fronteira com os EUA, local que concentra os dois simbolismos contrastantes. A cidade homenageia Benito Juárez, o presidente de humildes raízes indígenas que comandou a resistência à invasão francesa (1862-67). A ironia é especialmente aguda para a candidatura nacionalista de Obrador: Juárez restaurou a soberania mexicana graças ao apoio dos EUA, derivado da Doutrina Monroe. Hoje, 150 anos depois, Obrador lidera as pesquisas graças à repulsa universal dos mexicanos a Donald Trump. O parafuso da história dá mais uma volta e, pela enésima vez, o México pinta seu futuro com as tintas que escorrem da fronteira norte.

Obrador tem, às suas costas, a história do Partido da Revolução Democrática (PRD), fundado por Cuauhtémoc Cárdenas. Lázaro Cárdenas, o célebre pai de Cuauhtémoc, presidiu o país entre 1934 e 1940, concluindo a obra da Revolução Mexicana com a nacionalização da indústria petroleira, a reforma agrária e a criação do PRM (atual PRI), o partido que monopolizou o poder durante seis décadas. A hegemonia do PRI encerrou-se em 1989, no rastro de uma cisão provocada pela política de liberalização econômica do presidente Salinas de Gortari. Da cisão, surgiu o PRD, agrupando a ala nacionalista do PRI e diversas correntes de esquerda.

Salinas de Gortari encerrou uma era. Seu programa de privatizações foi coroado, pouco mais tarde, pelo tratado do Nafta, de 1994. Com o Nafta, Zapata cedia lugar a Juárez: o México engajava-se numa radical negação do passado ou, o que dá no mesmo, na retomada de um outro passado. O PRD nasceu como negação da negação, agarrando-se à herança de Lázaro Cárdenas e denunciando a parceria com os EUA.

Obrador, um populista clássico, já não está no PRD, mas no Morena, partido cortado no molde de seu imenso ego. Em tese, sua candidatura exprime a permanência do impulso nacionalista, antiamericano e terceiro-mundista que configurou o México moderno. “México First”: a campanha de Obrador forma uma imagem espelhada do “America First” de Trump.

Mas o dualismo, sempre tão sedutor, tem limites. De 1994 para cá, a ideologia do nacional-estatismo mexicano sofreu irreparável erosão. O PRD concorre em aliança com o PAN, de centro-direita, renunciando à utopia de restauração do mundo de Lázaro Cárdenas. Obrador, ele mesmo, arquivou sua oposição de princípio ao Nafta, preferindo bradar contra a corrupção a prometer uma ruptura com o acordo de livre comércio. De certo modo, a abertura econômica converteu-se num consenso nacional mexicano que exclui apenas a extrema-esquerda. Antes, Obrador denunciava os EUA pela criação do Nafta; hoje, denuncia Trump por pretender abolir o Nafta.

O “México First” de Obrador é uma nação integrada à globalização —com o Nafta ou com a China, a Bacia do Pacífico e a União Europeia. Aparentemente, o México aprendeu a lição que o Brasil não quer aprender.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Folha de S. Paulo: Ex-presidente lança 'manifesto do partido efeagacista' em novo livro

Para FHC, adversários da modernização são ultramercadismo, esquerda estatista e corporativismo

Vinicius Mota, da Folha de S. Paulo

A globalização, ao enfraquecer organizações como o Estado e os partidos e ampliar a autonomia do indivíduo, produziu um hiato entre um sistema representativo fossilizado, de um lado, e as aspirações de uma sociedade dinamizada, do outro.

É preciso reformar o ambiente partidário para reconectá-lo à vida dos cidadãos e reforçar o alicerce da democracia. Assim caminha o argumento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seu novo livro, "Crise e Reinvenção da Política no Brasil".

Aos 86, em plena forma, o sociólogo forjado na efervescente Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP dos anos 1950 vai além e delineia a sua plataforma para a reabilitação da política partidária.

Trata-se de ser libertário nos costumes, em temas como a liberalização das drogas e a descriminalização do aborto, radical no combate à desigualdade de oportunidades e compromissado com a eficiência, na economia e no governo, e com a integridade no trato da coisa pública.

A reportagem da Folha brinca com o político tucano, em entrevista na sede da Fundação FHC, no centro de São Paulo: "170 anos depois de Engels e Marx, o sr. lança o manifesto do partido efeagacista?".

Eles queriam transformar o sistema produtivo, retruca. "Eu quero uma coisa mais modesta, melhorar as condições de decisão política no Brasil."

Para completar o quadro propício ao surgimento do novo partido —ou bloco de poder, como prefere FHC, num fraseado emprestado do ideólogo marxista Antonio Gramsci (1891-1937)—, há também os adversários a combater.

Três deles são identificados ao longo dos oito pequenos artigos, todos inéditos, que compõem o livro.

Em primeiro lugar, FHC rejeita a ideologia do ultramercadismo e do individualismo possessivo. Identifica a emergência de pessoas participantes, preocupadas com seu bem-estar, mas também com temas da coletividade, como as várias desigualdades e as questões ambientais.

Esses cidadãos contemporâneos aderem a valores como decência e mérito e os exigem de seus representantes.

O segundo oponente a enfrentar, segundo FHC, é a "velha esquerda burocrática e estatista". A ideia de que o Estado, conduzido por um partido iluminado, pode ser o agente transformador do ser humano e da sociedade deveria ser enterrada, segundo se depreende da leitura dos artigos e da crítica dura ao período petista no governo federal.

Entre a direita e a esquerda ultrapassadas, "incorporando elementos de ambos os lados", atua o corporativismo, o terceiro e mais frequente adversário da plataforma de mudanças esboçada ao longo do livro.

Os partidos brasileiros, disse à Folha, foram capturados pela lógica cartorial do corporativismo. Tornaram-se uma "carta-patente para pegar dinheiro público". Com isso se distanciaram ainda mais da sociedade em ebulição.

O choque produzido pela Operação Lava Jato, ao expor o tamanho da corrupção no jogo do poder, catalisou essa crise de representação. "Além do mais, é uma coisa pro domo sua [em causa própria]? A sociedade não gosta. E generaliza", disse o tucano.

A reportagem indagou ao ex-presidente por que os partidos em geral, e o seu PSDB no caso de Aécio Neves, não criaram mecanismos para afastar correligionários envolvidos em escândalos de corrupção.

Negar-lhes legenda parece um meio de cumprir o objetivo, defendido no livro, de reaproximar as agremiações dos anseios dos cidadãos.

"Porque os partidos participaram desse processo, em grau menor ou maior", respondeu. Fez a ressalva de que no caso da Lava Jato o PSDB foi menos impactado pelo fato de não estar no governo federal no período dos desmandos.

"A matriz cultural brasileira é corporativista", disse o ex-presidente, enunciando uma ideia forte presente em seu livro. Tão forte que ele chama de intermezzo, em alusão à peça musical de curta duração, o período reformista que vai do governo Itamar Franco (1992) até o fim do primeiro termo de Lula (2006).

As defesas institucionais erguidas nesse intermezzo contra retrocessos estatistas e oligárquicos mostraram-se insuficientes: "Houve uma espécie de vitória ideológica da matriz tradicional brasileira sobre uma nova matriz. Perdemos muito da batalha".

Segundo Fernando Henrique Cardoso, as consequências políticas da debacle brasileira desta década talvez se revelem ainda mais graves que os efeitos da grande recessão. A economia, diz ele, mostra sinais de retornar aos eixos.

Na política, em contraste, predomina a incerteza profunda. "Quem vai ganhar a eleição? Não sabemos.

Como estamos mudando muito rapidamente, as pessoas têm medo. Essa ideia de que você quer o novo é uma ideia. Mas o novo é o desconhecido."

Este momento de ultrafragmentação e de crise aguda das forças partidárias, segundo interpreta o ex-presidente, joga nas costas de uma liderança singular a responsabilidade por transmitir essa mensagem ainda desconhecida que poderá galvanizar a sociedade nas eleições de outubro.

Que liderança? Aquela "que for capaz de expressar o que as pessoas sentem, mas ainda não sabem o que é". Esse enigma nem FHC nem ninguém parece capaz de decifrar.


FHC: economista e militante, Paul Singer juntava teoria e prática

 Somava ao conhecimento acadêmico características que nos embebeciam

Logo que recebi o pedido da Folha para me manifestar sobre Paul Singer fiquei pensando: o que o caracterizou como intelectual? Não tenho dúvidas, seu rigor metódico, seu amor aos dados, à pesquisa, e o nunca haver perdido a noção de que a economia, como as demais ciências sociais, não dispensa o olhar do humanista. Intelectual politicamente engajado, nunca o foi em detrimento dos valores que mencionei.

Talvez sua melhor contribuição no plano acadêmico tenha sido a junção entre economia, demografia e sociologia. Os livros que o tornaram inicialmente conhecido provêm deste encontro de vertentes: "Dinâmica Populacional e Desenvolvimento", de 1970, e "Economia Política da Urbanização", este publicado pela editora Brasiliense em 1973. Na época da publicação destes livros, Paul já trabalhava no Cebrap, em estreito contato com a pioneira em vários setores da demografia brasileira, Elza Berquó, e já se dedicara aos estudos urbanos. Graduara-se em 1966 como doutor em sociologia, sob a orientação de Florestan Fernandes, publicando, poucos anos depois, "Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana", onde analisa a evolução de cinco cidades brasileiras. Entre 1966 e 1967, estudara demografia em Princeton.

Mencionar seus primeiros livros não quer dizer que Paul Singer haja deixado de lado, no correr do tempo, sua curiosidade e a atração por temas novos. Os estudos sobre economia solidária, recheados pela experiência política como secretário do Planejamento da cidade de São Paulo no período de Luiza Erundina e, mais tarde, como secretário Nacional de Economia Solidária, no Ministério do Trabalho, função que exerceu a partir de 2003, levaram-no a ser um dos iniciadores deste tipo de análise. Sua ação e suas publicações neste novo campo deram-lhe, inclusive, amplas conexões intelectuais com os que se dedicaram a vislumbrar formas de trabalho que, mesmo inseridas nas economias capitalistas, não fossem motivadas nem engendradas apenas pela volúpia do lucro.

Ao ressaltar as contribuições de Paul na interface da economia com a demografia ou com o urbanismo não desdenho, tampouco, sua formação como economista. Graduado pela FEA, onde, posteriormente, foi professor (compulsoriamente afastado do ensino em 1969, como eu e muitos mais) desde sempre se preocupou com conhecer melhor as engrenagens do sistema capitalista e de suas evoluções. Quando, ainda nos anos 50, formou-se um grupo de jovens assistentes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP para ler sistematicamente a obra de Marx, não só "O Capital", mas também os densos volumes da "História Crítica da Mais-Valia", ele se juntou a nós e era quem mais sabia economia. Os que cursáramos ciências sociais tínhamos algum conhecimento, posto que àquela altura a disciplina era obrigatória. Eu mesmo, nomeado em 1953 assistente da cadeira de História Econômica da FEA, segui alguns os cursos lá para melhor entender o conteúdo da disciplina em que iria trabalhar.

Paul Singer, entretanto, somava ao conhecimento acadêmico duas características que nos embebeciam: trabalhara em uma fábrica de elevadores (pois se tinha formado como eletrotécnico no curso profissional secundário) e havia sido militante sindical. Ideal da época: juntava teoria e prática. O grupo que lera "O Capital" discutia os textos com paixão acadêmica, mas tinha pouca experiência política, com a exceção dele e minha. Paul havia sido membro do movimento a favor dos kibutzim israelenses (o Dror) e no Partido Socialista e eu pertencera ao Partidão de 1949 a 1954. Em nossas acaloradas discussões, nas quais debatíamos se haveria uma “antropologia fundante” para sustentar o marxismo (posição, notadamente, de Bento Prado) ou se seria melhor vê-lo como um “sistema objetivo” no qual as relações de produção fundamentariam sua própria lógica (com José Arthur Giannotti à frente), Singer era o ponto de sensatez. Destrinchava no texto em alemão as complicadas explicações de Marx e nos obrigava a aterrissar nelas, não se esquecendo de puxar a brasa para sua sardinha: haveria que desembocar em uma ação política que levasse à transformação da situação vigente.

Neste momento de recordação quero marcar também a figura humana. Sempre educado e atento, muitas vezes travestido de ingênuo, Paulo —eu nunca o chamei de Paul— era uma doce figura. Trabalhamos juntos anos a fio no Cebrap. Conheci sua primeira mulher, Evelyne, tanto no Brasil como no Chile e na França, foi a mãe do André (que nasceu na mesma maternidade e no mesmo dia em que nasceu minha filha Luciana). Fui amigo da Melanie, sua segunda esposa, com quem partilhamos tantas vezes os jantares e vez por outra as partidas de pôquer, que Paulo, como eu e outro grande amigo, Cândido Procópio de Camargo, gostávamos de jogar. Deixa saudades.

* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e foi presidente da República (1995-2002)

 


Demétrio Magnoli: Lula não é um preso político

PT e PSOL não se opõem à subordinação da Justiça ao governo, com a condição de que seja o seu governo

11 de julho de 2017. Na entrada do teatro Bolshoi, os espectadores foram informados do cancelamento da estreia do balé Nureyev, substituído de última hora pela peça de repertório “Dom Quixote”. Segundo a justificativa oficial, os ensaios tinham sido insatisfatórios.

No mês seguinte, o premiado diretor da peça, Kirill Serebrennikov, um crítico contumaz de Putin, compareceu a um tribunal de Moscou, que o sentenciou a um ano de prisão por corrupção.

Nureyev não estreou porque o Kremlin vetou a celebração de um gay —e, ainda por cima, emigrado– pela icônica companhia teatral. Serebrennikov foi condenado por razões políticas, não por corrupção. Lula não é um preso político, independentemente do que se pense sobre a sentença de Moro.

Na Espanha, autoridades do antigo governo da Catalunha respondem, em prisão cautelar, a acusações de rebelião. Os partidos nacionalistas catalães e o esquerdista Podemos classificam os encarcerados como presos políticos.

Os processos, porém, não mencionam ideias, mas ações: a convocação, em outubro passado, de concentrações populares para impedir que agentes policiais fechassem os locais de votação do plebiscito separatista, declarado ilegal pelo Tribunal Supremo. Discute-se, nos processos, se o grau de violência usado contra os policiais é suficiente para caracterizar rebelião contra a unidade espanhola.

Todo o contexto é político, mas os réus não são presos políticos. A Espanha distingue-se da Rússia pela independência do Judiciário. O Brasil figura ao lado da Espanha —e, por isso, Lula não é um preso político.

Preso político, ou preso de consciência, é o indivíduo encarcerado por suas ideias, mesmo quando a sentença descreva crimes comuns.

Na Turquia, desde o fracassado golpe de Estado de 2016, os tribunais condenaram centenas de jornalistas, professores e funcionários públicos por conluio com os golpistas. Os céleres processos turcos dispensaram provas firmes. Na Venezuela, o líder opositor Leopoldo López foi condenado a quase 14 anos de prisão por incitamento à violência nos protestos de rua de 2014.

A promotora-geral, responsável pelo caso, partiu para o exílio em 2017 e denunciou a fraude judicial da qual participou. Na Turquia e na Venezuela, há presos políticos; no Brasil, não. É que, aqui, os tribunais não são tentáculos do governo.

A prisão política é um ato de origem política, nunca de raiz judicial. Na Espanha, a propaganda secessionista é livre —tanto que partidos separatistas disputam eleições e, na Catalunha, exerceram o governo regional.

Na Rússia, na Turquia e na Venezuela, os governos limitam as liberdades civis, perseguindo opositores por meios judiciais. Na Espanha, como no Brasil, políticos governistas estão presos por corrupção. Na Rússia, na Turquia e na Venezuela, ao contrário do Brasil, a proximidade do poder é garantia de impunidade.

De Delúbio a Lula, passando por Dirceu e Palocci, todos os condenados petistas foram declarados presos políticos pelo PT –e, no caso de Lula, o PSOL aderiu à prática. Mas PT e PSOL não inscrevem Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Geddel ou Maluf no mesmo círculo. A razão para a duplicidade nos conduz à Venezuela: os dois partidos não se opõem à subordinação da Justiça ao governo, com a condição de que seja o seu governo.

Juízes erram, cedem a preconceitos, engajam-se em cruzadismos, sofrem pressões legítimas ou escandalosas (como a do comandante do Exército). Por isso, é tão importante o debate sobre a revisão judicial.

Mas, no Brasil, o governo não controla os tribunais, algo que Temer e seus aliados sabem por experiência própria. Decorre daí que nem a crença na tese delirante de uma conspiração universal dos juízes autoriza tratar Lula como preso político. O PT e o PSOL declaram-no preso político pelo mesmo motivo que tratam Leopoldo López como preso comum.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.

 


Folha de S. Paulo: É ilusão acreditar em perseguição contra Lula e PT, diz Bolívar Lamounier

Cientista político afirma que prisão do ex-presidente é resultado de processo legítimo

Por Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

A despeito da mobilização política gerada, a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é decorrência natural de uma série de graves irregularidades constatadas, avalia Bolívar Lamounier.

Para o cientista político, falar em perseguição da Justiça contra PT e Lula não passa de uma ilusão.

“Muita gente se recusa a reconhecer que houve corrupção em larga escala nos governos petistas”, diz.

Um dos fundadores do PSDB, Lamounier crê que a instabilidade política pode permanecer mesmo após a eleição, uma vez que o cenário de muitos candidatos e alta fragmentação partidária no Congresso favorece a formação de um governo debilitado.

A saída, defende, está na adoção do parlamentarismo.

Folha - Como o senhor avalia a prisão de Lula?
Bolívar Lamounier - É uma decorrência inevitável de tudo o que se apurou até aqui. É claro que o fato de ele ter sido um presidente de muita popularidade introduz um fator político muito forte. Mas, no essencial, foram constatadas irregularidades gravíssimas.

Muitos alegam que há uma perseguição contra Lula e PT.
Mas temos políticos de outros partidos também condenados. Um ministro do STJ acaba de confirmar a condenação a 20 anos de prisão do ex-governador Eduardo Azeredo (PSDB).

Mas a denúncia da Procuradoria-Geral da República sobre o mensalão mineiro foi feita há dez anos e Azeredo ainda recorre em liberdade. Isso não dá base ao argumento de que os processos correm mais rápidos contra o PT?
É uma ilusão acreditar nisso, não passa de uma falácia. Se Lula ficasse solto por alguns anos, com a capacidade de mobilização que ele tem, é evidente que criaria obstáculos para nunca ser preso. É claro que o Azeredo não representa risco nenhum para a sociedade, para o processo. É uma figura tranquila, serena, não sobe em palanque em dia sim e outro também. Houve também o caso de Geraldo Alckmin nesta semana. O STJ encaminhou o inquérito sobre ele para a Justiça Eleitoral de São Paulo, tirando-o do alcance da Lava Jato.
Os casos me parecem bem diferentes. Azeredo estava condenado. Contra Alckmin há uma suspeita, uma denúncia. São pesos totalmente diferentes.

Quais são as perspectivas do PT após a prisão de Lula?
O caso reforçou uma tendência do PT: abraçar as piores causas que você pode imaginar. Agora o partido está contra a prisão após condenação em segunda instância. Só prender o condenado após o fim do processo é uma jabuticaba brasileira, uma jabuticaba podre. Para defender esse absurdo e privilegiar Lula, o PT se agarrou ao Gilmar Mendes e ao Marco Aurélio, duas das figuras mais discutíveis do STF, para ser ameno.

Houve uma forte mobilização em defesa de Lula. A prisão do ex-presidente vai fortalecer essa militância?
Sim, num primeiro momento isso irá ocorrer. Criou-se uma fantasia de que Lula é um super-homem que veio do Nordeste. Isso é quase indestrutível em certos grupos. Muita gente se recusa a reconhecer que houve corrupção em larga escala nos governos do PT. A militância tem uma atitude muito ambígua a respeito da democracia. Tem um pé dentro e um pé fora. Usa o pé conveniente dependendo da hora. Agora pisa com o pé antidemocrático, questionado as instituições.

Quais cenários vê para a eleição presidencial?
Imagino duas situações. Podemos ter uma disputa radicalizada aos extremos, com Jair Bolsonaro (PSL) de um lado e quem Lula apoiar de outro. Seria uma carnificina no segundo turno.
Ou temos um cenário em que várias forças políticas, mais ou menos centristas, procuram convergência. O candidato poderia ser Geraldo Alckmin (PSDB), Henrique Meirelles (MDB), Flávio Rocha (PRB). O que despontasse nas pesquisas seria o nome, com o apoio dos outros. Esse é o melhor caminho.

Eleito um novo governo, teremos mais tranquilidade a partir de 2019?
Há muitos motivos de preocupação. Num cenário com muitas candidaturas e muitos partidos, um candidato pode ganhar tendo pouco apoio no Congresso. Foi o que ocorreu com Fernando Collor em 1989. Nesse caso, o governo será fraco, sujeito a muitas instabilidades. Aumenta a chance de um novo impeachment. Nossa estrutura institucional, com 35 partidos, não é viável. Vira uma espécie de balcão, o presidente compra um aqui, outro ali, para formar a maioria precária.

Qual a saída para esse impasse?
A chave para mim é o parlamentarismo. No presidencialismo, um Poder não pode legitimamente interferir no outro. Se você quer tirar a Dilma Rousseff porque há um desastre econômico em curso, tem que arranjar um crime de responsabilidade, uma coisa que ninguém entende direito o que é. No parlamentarismo não, você pode tirar por incompetência, pura e simplesmente. Basta dizer que o governo vai cair por não ter apoio no Congresso, por causar um desastre no país. A recíproca é verdadeira. Se um Congresso está barrando de forma não razoável os programas do Executivo, o presidente pode pedir a dissolução do Congresso, antecipar a eleição da próxima legislatura. É menos dramático e mais rápido.

Seu livro mais recente tem o título “Liberais e Antiliberais - A Luta Ideológica de Nosso Tempo”. Como isso se manifesta no Brasil?
No curso econômico, o Brasil praticamente nunca teve liberalismo. Os empresários assumiram uma atitude de mamar nas tetas do Estado, de mendigar dinheiro. E o Estado tem uma postura francamente intervencionista na economia. Essa foi a linha predominante até hoje. Mas isso começa a mudar, felizmente. Vemos hoje jovens estudando os autores liberais, formando grupos de estudos liberais. Tenho a mais profunda convicção de que o modelo de empresa estatal deu o que tinha que dar. Não precisamos mais de nenhuma delas. Dizer que a Petrobras é uma empresa estratégica para o fortalecimento do Brasil é uma bobagem sem tamanho.

Por esses critérios, quais, dentre os pré-candidatos à Presidência, são de fato liberais?
O João Amoêdo (Novo) me parece de fato liberal. O Alckmin assumiu ultimamente um discurso liberal. Vamos ver, com o rumo da campanha, com que força e energia defenderá isso. Talvez não tenha mudado tanto como parece.

E Bolsonaro?
Bolsonaro entregou a formação de seu plano econômico ao Paulo Guedes, o economista mais ultraliberal no Brasil, que privatizaria até cemitério. Mas eu duvido que consigam conviver num mesmo governo por mais de 90 dias. O Bolsonaro é um sujeito com pensamento de origem militar de baixa oficialidade, de uma geração que se acostumou a pensar que a Petrobras é importante para a estratégia do país. Não acredito que seguiria as ideias do Paulo Guedes até a última linha. O Bolsonaro é direita? Sim, mas no sentido limitado do sujeito que põe todas as fichas na questão da segurança. Então o eleitor do Bolsonaro tem que fazer a mágica mental de acreditar que ele conseguirá resolver o que o Exército não consegue no Rio. O eleitor tem que acreditar que se votar nele, dali a uns meses poderá andar sem medo na rua. Se o sujeito acha que isso é possível, boa sorte no voto.


Sem Lula, esquerda ou se une ou estará fora do 2º turno, diz Lessa

'Neutralização da esquerda' começa com impeachment e acaba com prisão, diz professor

Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fecha o ciclo de neutralização da esquerda no Brasil.

"Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula", diz Renato Lessa, professor de filosofia política da PUC do Rio e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Para Lessa, se os pré-candidatos da esquerda não compuserem uma frente, há o sério risco de a eleição de 2018 ser disputada entre um candidato de centro-direita e outro de extrema direita.

"Sei que vai predominar a discussão sobre a cabeça de chapa, mas essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar a uma conversa estratégica, ou teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia".

Folha - Qual é o significado da prisão do ex-presidente Lula?
Renato Lessa - Trata-se de algo gravíssimo, de consequências imprevisíveis. E é um processo que se completa. Cada vez mais perde materialidade o fato inicial que teria levado ao impeachment de Dilma Rousseff, as pedaladas, que eram práticas triviais, embora juridicamente condenáveis, nos governos anteriores.

No contexto de perda de maioria parlamentar de Dilma, isso levou ao impeachment. No entanto, achava-se que esse processo se esgotaria com o impeachment e a virada de governo, a substituição pelo poder do outro grupo. Mas essa manobra para trocar o grupo no poder se completa é com a prisão de Lula.

Pensando historicamente: o governo de Getúlio em 1945 termina não porque Getúlio era um ditador. Ele tinha deixado de ser um ditador, os militares que o apoiaram enquanto ditador o depõem quando ele começa a democratizar o regime. O governo João Goulart acaba do jeito que acabou. E não o governo Lula, mas Lula como personagem político que poderia voltar também sai de cena. É algo para se pensar: como terminam os governos de extração popular no Brasil?
O que se produziu nos últimos dois ou três anos foi um processo de neutralização de um segmento importante da política brasileira, a esquerda.

Em que sentido a esquerda está neutralizada hoje?
Houve um deslocamento do governo de uma maneira heterodoxa e depois a neutralização política do provável sucessor, Lula. São dois impeachments. Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula. Quebrou o vínculo da esquerda com sua base eleitoral, popular, tirando o principal líder de cena, Lula.

Um aspecto importante desse processo é o eixo Curitiba-Porto Alegre, com um grau impressionante de coordenação. Ao mesmo tempo, do lado do Supremo Tribunal Federal, uma negação de habeas corpus por 6 a 5. É inusitada a mudança da pauta não tratar do caso genérico em primeiro lugar para depois tratar dos casos particulares. Se fosse outra pauta, o resultado era outro, Lula não seria preso, o jogo continuaria.

É um processo obscuro, que produz consequências graves. O país está sendo governado pelo sindicato dos deputados. Os representantes se representam no governo, não representam ninguém por trás deles.

Essa ideia de que justiça se faz com a punição, esses comentários panglossianos de que com a prisão de Lula está garantido o Estado de Direito. É a hegemonia do discurso da limpeza, de prender todo mundo. O brasileiro quer ter um preso para chamar de seu. Ficamos com essa concepção de justiça. Pode continuar com fome, desigualdade, pessoas seis horas por dia no ônibus para trabalhar. Tudo pode. Mas tem que haver lisura.

Quão eficiente foi a manobra de neutralização da esquerda?
Idealmente, configurada a impossibilidade prática da candidatura de Lula e, para mim, já está configurada, é preciso trabalhar com o modelo que os uruguaios têm há bastante tempo, uma Frente Ampla de recomposição da democracia.

Mas o PT aceitaria uma Frente Ampla sem ocupar a cabeça da chapa?
Por isso comecei o raciocínio dizendo idealmente. Seria interessante que o Ciro Gomes conversasse com o Fernando Haddad, a Manuela D'Ávila, e alguém um pouco mais para o centro. A criação de uma frente ampla voltada para a recuperação do ambiente democrático e sinalizando pautas de igualdade social. E Lula deveria deixar uma mensagem de convergência.

Os candidatos desse campo terão de convergir para que algum deles chegue com chance de vitória no segundo turno. Há o risco real de haver um segundo turno entre a centro direita e o inominável, a extrema direita. Na prática, sei que vai predominar a discussão sobre quem vai estar na cabeça de chapa, mas, em algum momento, essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar para uma conversa estratégica, ou então teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia.

A prisão do Lula sinaliza que todos os políticos podem ser presos, ou há duas velocidades e duas medidas?
Mesmo que continuem a prender políticos, vão ser dois pesos e duas medidas, porque não vão conseguir prender, do outro lado, alguém com a estatura do Lula. Não existe um equivalente que desmonte o campo da centro direita brasileira, que represente um desafio brutal como a neutralização do Lula significa para o campo da esquerda.

Mesmo que a Lava Jato continue, ela vai pegar personagens periféricos, ou governadores como Sergio Cabral, que destruiu o próprio estado. O Aécio Neves não corresponde ao Lula em termos de estatura na organização e ele foi protegido. O próprio presidente Temer, até certo ponto, não é processado porque tem o sindicato dos deputados que garante a sua proteção. E mesmo que vier a perder o foro, sem mandato, o seu processo vai começar na primeira instância e sendo o presidente um especialista jurídico, vai transitar em julgado daqui 50 anos, mesmo se mantiverem a decisão de segunda instância.

Como fica a esquerda com Lula fora do jogo?
A esquerda tem um desafio enorme. Os nomes estão postos "“ Ciro Gomes, talvez Fernando Haddad e, com menor expressão eleitoral, mas com expressão política, a Manuela Dávila. Guilherme Boulos, pelo PSOL, vai numa linha completamente autonomista.

O PSOL tem a perspectiva de colher os despojos, não de cooperar numa frente comum.

Faria sentido esses três nomes conversarem e incluírem elementos de centro mais progressistas. Não sei se todos os tucanos estão satisfeitos com o que está acontecendo, talvez também o campo da Rede. É necessária uma conversa para a recomposição de um campo de centro-esquerda reformista moderno, capaz de dar segurança para a economia, mas, ao mesmo tempo, repor a perspectiva social.
Uma das questões é a dificuldade de encontrar o candidato de centro. Toda vez que se cita o candidato que seria de centro, em qualquer país do mundo, ele seria considerado de direita. Geraldo Alckmin (PSDB) não é de centro, tem valores conservadores. Não é um xingamento, e só uma topografia. Rodrigo Maia (DEM) também.

Qual é o impacto da comoção em torno da prisão do Lula? Qual é a força e durabilidade desse movimento?
Ela vai permanecer durante algum tempo. Mas vai depender muito de como a prisão vai ser feita, quanto tempo Lula vai ficar preso e qual é a capacidade que ele vai ter de falar da prisão, sua relação com o mundo aqui fora. A prisão produz efeitos, mas eles vão aos poucos se incorporando na rotina das pessoas, a menos que ele tenha um operador político aí ativando isso de alguma maneira.

O país hoje tem uma extrema direita aberta, com visibilidade, que representa o resíduo de boçalidade presente no Brasil, mas entrou no sistema político e tem um candidato competitivo. Não acredito que esse candidato vá perder votos porque o Lula vai sair. Esse candidato expressa demônios que estavam no fundo da garrafa e foram destampados a partir do processo de impeachment. Algo que mesmo os líderes do impeachment não imaginavam que pudesse acontecer. Os caciques do PMDB e PSDB não imaginavam que essa subcultura protofascista se disseminasse tanto.

Enquanto isso, não há discussão de uma agenda que precisaria ser discutida na eleição. Ninguém pode negar que a questão da Previdência precisa ser discutida, embora eu discorde da forma como o governo Temer fez isso. Uma boa hora para discutir é uma campanha eleitoral, com conteúdo, não só com marketing político.

Essa discussão não foi levada ao cidadão, tentou se passar essa agenda através de uma mudança heterodoxa no ciclo político.

Apesar de dizerem que Temer mantinha ótimo trânsito com o Parlamento, a mãe de todas as reformas, da Previdência, não vingou, a reforma trabalhista é uma medida provisória que vai vencer daqui a pouco. A única reforma que passou foi o teto de gastos, que fica prejudicado se a da previdência não passar.


Duas surpresas: Samuel Pessôa

O consumo das famílias cresceu menos do que se esperava, e o investimento superou as previsões

Na quinta (1º) o IBGE divulgou o crescimento da economia no quarto trimestre de 2017 ante o terceiro trimestre. O resultado frustrou um pouco as expectativas. O mercado esperava crescimento de 0,3%, nós no Ibre, de 0,2%, e o indicador foi 0,1%.

A frustração derivou de um crescimento do consumo das famílias menor do que se esperava, de 0,1%, em vez de 0,4%. Esse fato mais do que compensou a surpresa positiva do crescimento do investimento um pouco maior do que o projetado.

Os setores com desempenho abaixo do esperado foram o varejo e “outros serviços”, que são essencialmente serviços prestados diretamente às famílias.

A confiança do empresário tem voltado mais forte, compatível com a melhora do investimento. A confiança do consumidor, contudo, principalmente aquela que aparece no “indicador da situação atual”, ainda opera em níveis baixos.

A recuperação da economia é sólida, mas é lenta. É possível que o esgotamento do impulso fiscal advindo da liberação do FGTS explique a surpresa negativa no consumo.

Outra surpresa neste primeiro bimestre, agora positiva, foi a inflação bem mais baixa do que se esperava. O IPCA de janeiro foi de 0,29%, a prévia da inflação de fevereiro foi de 0,35%, sinalizando fechamento do índice em 0,30%. E é possível que em março a inflação seja de 0,20%. Ou seja, com as informações disponíveis até hoje, a inflação no primeiro trimestre será ao redor de 0,8%.

No relatório de inflação de dezembro, o Banco Central esperava inflação de 1,4% para o primeiro trimestre. É possível, portanto, que o ano se inicie com surpresa desinflacionária de 0,6 ponto percentual.

A maior parcela dessa surpresa desinflacionária tem ocorrido em serviços, item mais sensível à política monetária. Adicionalmente, pelo segundo ano consecutivo os modelos econométricos têm tido dificuldade de acompanhar a queda da inflação.

Há possibilidade real, apesar de não ser o cenário básico, de fechar o ano com inflação abaixo do piso de 3% estabelecido pelo regime de metas.

Aparentemente, a dinâmica da inflação brasileira mudou. É possível que a ociosidade da economia seja maior do que se imagina, provocando, portanto, maior força desinflacionária.

Adicionalmente, ocorreu uma alteração do regime de política econômica desde 2015, com o ajuste do ministro Joaquim Levy. Em um primeiro momento, em razão do ajuste do câmbio —necessário, pois o déficit externo em 2014 foi de 4,5% do PIB— e do descongelamento do preço da gasolina e de outras tarifas públicas, a inflação aumentou.

Demorou para cair em razão da elevada inércia e da baixa credibilidade do Banco Central à época. Passados esses fatores, estamos diante de um novo regime de política econômica.

Política fiscal e, principalmente, parafiscal (crédito dos bancos públicos), contracionista e maior credibilidade do Banco Central. É possível que, no novo regime de política econômica, o juro neutro seja substancialmente menor.

Juntando todos esses elementos, aparentemente mudou o processo de formação da inflação brasileira. Parece que navegamos mares desconhecidos. É, por um lado, uma boa notícia, pois ao longo da nossa história sofremos muito com inflações elevadas, e a novidade é que ela está surpreendentemente baixa. Por outro lado, esse novo regime demandará muito esforço de entendimento e abertura mental por parte da autoridade monetária.

Evidentemente, nada disso se manterá se não fizermos a reforma da Previdência.

* Samuel Pessôa é formado em física e doutor em economia. É pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

 


Samuel Pessôa: Eleição à vista

Oxalá na próxima eleição nós estejamos exorcizados dos erros básicos de política econômica

Iniciou-se o ano e, após a Copa do Mundo da Rússia, o tema mais importante de 2018 será a eleição.

É muito importante que, diferentemente do que ocorreu em 2014, o debate entre os políticos seja o mais aberto e franco possível.

Naquela oportunidade, eu participei do grupo que apoiou o senador Aécio Neves e, portanto, tenho minha parte de responsabilidade no processo. O maior erro que todos nós cometemos foi esconder da sociedade a situação fiscal dramática em que nos encontrávamos.

Eu, com meus erros, fui partícipe dessa empulhação. Não me regozijo.

Há dois enfoques totalmente distintos a serem considerados nesse tema. Primeiro, o tradicional debate esquerda versus direita.

A esquerda deseja carga tributária elevada e a construção de um Estado de bem-estar social para auxiliar as pessoas a viver e sobreviver em um mundo que muda e em que o risco é enorme.
Para alcançar esse objetivo, a esquerda está disposta a elevar a carga tributária.

A direita considera que elevações da carga tributária podem ter fortes impactos sobre a eficiência e o incentivo ao trabalho, à inovação, ao esforço e à poupança. Podem, portanto, gerar no longo prazo baixa taxa de crescimento da produtividade, estagnação e, no limite, regressão econômica.

Ambos têm razão. A sabedoria do eleitor vai determinar qual projeto melhor se adéqua às necessidades de nossa sociedade no presente momento.

Esse é o debate normal entre uma economia mais liberal e a construção de um Estado de bem-estar social.

Há outra dimensão em que os projetos políticos que têm sido oferecidos à sociedade diferem. E essa distinção não está associada à disjuntiva equidade versus eficiência.

Há diferentes entendimentos entre os profissionais brasileiros de economia sobre o impacto do planejamento e da interferência estatal no processo de desenvolvimento econômico.

A divergência ocorre com relação ao papel do intervencionismo estatal no desenvolvimento econômico. Diversos economistas heterodoxos brasileiros pensam que a Coreia do Sul, por exemplo, cresceu porque o Estado interveio fortemente no espaço econômico. Em razão desse entendimento, entre 2006 e 2014, as seguintes medidas foram tomadas:

Capitalização do BNDES em R$ 400 bilhões; tentativa de reviver a indústria naval; desastrosa gestão da Petrobras, que elevou o endividamento a mais de cinco vezes a geração de caixa; alteração do marco regulatório do petróleo; intervenção desastrosa no setor elétrico, que, segundo esta Folha, deixou conta de R$ 90 bilhões; proteção do programa Inovar-Auto a uma indústria infantil há 60 anos; insistência nos anacrônicos requerimentos de conteúdo nacional; incapacidade de o governo petista encaminhar os problemas da nossa infraestrutura deficiente; a tentativa frustrada, que muito custou à CEF e ao BB, de baixar na marra o spread bancário; a tentativa frustrada de baixar na marra a Selic; a manipulação das contas públicas; as desonerações desastradas que tanto custaram ao Tesouro; a tentativa frustrada de combater a inflação congelando preços de serviços de utilidade pública; e uma longuíssima lista de erros primários de condução de política econômica.

Note que nessa lista encontram-se erros (ao menos ao meu juízo) de formulação de política econômica que não estão associados à disjuntiva equidade versus eficiência. São erros que estão associados a um entendimento equivocado da forma como funciona uma economia de mercado.

Oxalá no próximo processo eleitoral nós estejamos exorcizados dos erros básicos de política econômica e nos concentremos no fundamental do debate político.

* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador associado do Ibre-FGV