Folha de S. Paulo

Demétrio Magnoli: Kim no paraíso

O termo histórico aplica-se efetivamente ao encontro entre Trump e Kim, mas por razões inesperadas

Tudo indica que a Coreia do Norte já tem um novo ministro da Propaganda. É um astro de reality show, só fala inglês e tem cabelo laranja. Donald Trump elevou Kim Jong-un à condição de estadista e parceiro dos EUA, cumulou-o de elogios, firmou um documento de princípios que reproduz a fórmula cunhada pela Coreia do Norte e, finalmente, fez uma inaudita concessão unilateral voluntária.

O termo “histórico”, banalizado pelos veículos de imprensa, aplica-se efetivamente ao encontro entre Trump e Kim –mas por razões inesperadas.

Do texto do comunicado conjunto salta o compromisso com a “desnuclearização da península Coreana”. Utilizada por Kim no seu encontro com o presidente sul-coreano Moon Jae-in, no final de abril, a expressão é uma senha norte-coreana para exigir a remoção do chamado “guarda-chuva nuclear” americano, que protege a Coreia do Sul e a retirada das tropas dos EUA estacionadas no país aliado desde a Guerra da Coreia (1950-53).

A exigência ritual americana de “desmantelamento completo, verificável e irreversível do arsenal nuclear da Coreia do Norte” não aparece no comunicado. Kim não cedeu um só milímetro; Trump recuou quilômetros.

Mais de quatro décadas atrás, na valsa da reaproximação dos EUA da China, Nixon não transformou os direitos humanos numa muralha contra a diplomacia –mas não renunciou ao dever de mencioná-los.

No Comunicado de Xangai, a declaração conjunta sino-americana de 1972, os pontos de acordo estavam precedidos por um elenco de divergências –entre elas, as referências americanas à “aspiração pela liberdade” e uma defesa das “liberdades individuais”.

Trump, em contraste, assinou um documento que silencia sobre os direitos humanos, e qualificou o ditador norte-coreano como “um homem muito talentoso” que “ama profundamente seu país”. O país amado por Kim é uma tirania feroz que encarcera mais de 80 mil dissidentes em campos de trabalho forçado. No Brasil, coerentemente, os adeptos incondicionais de Bolsonaro são, também, ardorosos admiradores de Trump.

Numa insólita entrevista concedida após o encontro, o presidente americano escolheu os adjetivos “provocativos” e “inapropriados” para se referir aos exercícios militares conjuntos conduzidos anualmente pelos EUA e a Coreia do Sul, ecoando termos usados rotineiramente pela própria Coreia do Norte. Das palavras, passou aos atos, prometendo suspendê-los de imediato.

A ruptura da aliança militar entre os EUA e a Coreia do Sul é uma meta estratégica da Coreia do Norte –e da China. Quando, em troca de nada, Trump anuncia a suspensão dos exercícios conjuntos, está dizendo que os EUA desprezam os compromissos geopolíticos assumidos com seus aliados. Os sul-coreanos e os japoneses interpretarão a mensagem como um alerta de que a segurança oferecida pela “Pax Americana” tem seus dias contados.

O espetáculo midiático protagonizado por Trump em Singapura é o maior golpe jamais desferido contra o regime de não proliferação nuclear. “A posse de um arsenal nuclear compensa –persiga-o até o fim, custe o que custar”– eis a lição dele emanada.

Iraque e Líbia: os regimes que abdicaram da busca de armas nucleares foram derrubados. Irã: o regime que congelou seu programa nuclear, submetendo-se a inspeções intrusivas, sofre a reimposição de sanções americanas. Já a Coreia do Norte, que testou mísseis intercontinentais e uma bomba de hidrogênio, ganhou o estatuto de interlocutor privilegiado da maior potência mundial.

A caminho de Singapura, Trump converteu a reunião de cúpula do G7 em palco de guerra verbal, anunciou a cobrança de tarifas protecionistas contra os aliados prioritários dos EUA e cobriu de insultos o chefe de governo do Canadá. O francês Macron ensaiou até a proposta de redução do G7 a G6. O paraíso de Kim corresponde ao inferno da ordem ocidental do pós-guerra.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Mario Sergio Conti: Matou Stálin e foi ao cinema

Uma sátira política ultrajante saída dos quadrinhos e da história para as telas do presente

"A Morte de Stalin" é insólito. Baseado numa história em quadrinhos francesa e dirigido por um escocês, o filme narra um putsch na pardacenta União Soviética de 1953. Mas, vá lá: vivemos numa cultura visual, fazem-se milhares de filmes tolos todo ano, há público à beça para birutices.

Ainda assim, "A Morte de Stalin" é subversivo. Está fora da ordem porque é um primor de sarcasmo. Por isso, foi banido da Rússia de Putin. O cinema de Moscou que o exibiu uns poucos dias, alegando não ter recebido a ordem de censura, foi invadido pela polícia. Suas sessões lotavam.

O filme foi feito por Armando Iannucci, que dirigiu o seriado americano “Veep”, uma comédia com uma vice-presidente mentecapta, vigaristas da política e marqueteiros fuinhas. No filme, a Casa Branca de agora dá lugar ao Kremlin de 65 anos atrás —o que aumenta muito a complicação de fazer rir.

Isso porque o prazo de validade da sátira política é curto. O Vampirão na escola de samba é divertido hoje. Mas tripudiar do Chupa-Cabras daqui a 65 anos? Quem se lembra da cara de Café Filho, o vice-presidente golpista e traidor de Vargas?

O fato de Stálin ser ultraconhecido implica outras dificuldades. Ele não foi um pascácio cheio de dedos, mas o protagonista de uma luta planetária que se estendeu por mais de 70 anos. Matou milhões de inocentes e inspirou ódio, pavor, adoração. Não é tranquilo debochar dele.

Chaplin fez algo assim em "O Grande Ditador", de 1942, a comédia na qual achincalhou Hitler. Na sua autobiografia, contudo, disse que não teria feito o filme se soubesse dos campos de extermínio: "Não poderia fazer graça com a insanidade homicida dos nazistas".

Enquanto “O Grande Ditador” é piegas e populista, “A Morte de Stálin” tem um pique anárquico. O humor negro é o trunfo do filme. Além de captar o ambiente de desconfiança paranoica que cercava Stálin, a graça ultrajante tira o espectador do sério.

Stálin jaz numa poça de xixi, vítima de um derrame, e seus comparsas estão lívidos de medo. Temem que o tirano sobreviva e se vingue da sua inação. Também têm medo que ele morra e, desfavorecidos, tenham que se haver com as multidões que os detestam. Odeiam o ditador, mas seus privilégios advêm da ditadura.

Ficam paralisados, por fim, porque um ano antes, ao fantasiar que seus médicos planejavam assassiná-lo, Stálin os atacou com fúria assassina. Os profissionais que o atenderam, dez horas depois de ter tido a síncope, foram tirados aos cacos da cadeia.

As estrelas do filme são Nikita Kruschev, que veio a ocupar o posto de ditador; Lavrenti Béria, o carrasco de Stálin; e o marechal Jukov, o herói da tomada de Berlim. A trinca que os interpreta é prodigiosa. Sem Steve Buscemi, Simon Russell Beale e Jason Isaacs o filme não seria tão engraçado.

Os atores reduzem figuras históricas a umas poucas características. Jukov é o milicão tapado de carteirinha, com cicatriz na cara e medalhas no peito. Béria, um carniceiro gordão e careca que resfolega. Kruschev, um conchavador ardiloso, audaz e espalhafatoso.

Seus comparsas na gangue que chefia o PC são seres emaciados pela covardia e ressentidos por décadas de humilhação. A morte do Pai dos Povos não os liberta: passam de imediato a conspirar uns contra os outros. Delatam, traem e trocam de aliados para tomar o poder. Suspeitam de si mesmos porque sabem que são vis.

“A Morte de Stálin” é um retrato frenético da casta stalinista num momento de crise. Também escancara o mecanismo de um golpe de Estado —tema sensível ao Brasil de ontem, hoje e de dias que virão. Não é pouco para o cinema sem graça e pouco pensante do presente.

Há outros retratos daquele instante soturno. A própria história em quadrinhos que deu origem ao filme, de Fabien Nury e Thierry Robin (ed. Três Estrelas, 152 págs.), é bem diferente. Dramática, ela enfatiza as feições mórbidas da situação e dos personagens —Béria lembra um rato.

Para quem quiser ir ao material bruto, há “Beria: Le Bourreau Politique de Staline”, de Jean-Jacques Marie (ed. Tallandier, 512 págs.). Com base nas atas do julgamento de Béria, memórias dos participantes do golpe e o que foi publicado recentemente na Rússia, o historiador francês conta o que se passou nos idos de 1953.

Moscou é longe, a vida é breve e o stalinismo já era. A arte e a política ainda vivem. Se Fernanda Torres e Roberto Schwarz se juntassem para filmar “A Morte do Morcegão” aprenderíamos algo sobre nós mesmos. Fica a sugestão.

*Mario Sergio Conti é autor de 'Notícias do Planalto' (1999); começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977.


Samuel Pessôa: Piora a conversa

Ajuste fiscal que não quer aumentar receita e não quer cortar despesa é enganar o eleitor

Na quinta da semana passada (14), o jornal Valor Econômico publicou entrevista de André Lara Resende e Eduardo Giannetti da Fonseca, assessores econômicos da candidatura de Marina Silva à Presidência.

O tom da entrevista foi ruim. Não há por parte deles noção da gravidade do problema fiscal e falta sentido de urgência.

A emenda do teto já é um ajuste fiscal muito gradual. Com ela, teremos déficit primário de 2014 a 2020, pelo menos. O cenário mais otimista é que o resultado primário positivo volte entre 2021/2022, mas em um nível que não estabilizará a relação dívida/PIB.

Sem a emenda do teto dos gastos ou com um teto mais brando, parte do ajuste terá de vir de uma maior carga tributária.

Ser contra a emenda do teto e o aumento da carga tributária, e a favor de um ajuste fiscal supergradual, é algo difícil de entender. Se o teto já significa um ajuste gradual, o que seria mais gradual ainda? Esperar a dívida pública chegar a 100% do PIB?

Talvez maior gradualismo fosse possível com forte reestruturação da dívida da União por meio de um rápido processo de privatização. Mas um processo de privatização veloz, mesmo em um governo forte, leva em média dois anos.

Há diversas formas de fazer ajuste fiscal: ou aumento de receita e/ou corte de despesa. Ajuste fiscal que não aumenta a receita e não corta a despesa é enganar o eleitor.

A despesa primária do governo central neste ano será de R$ 1,375 trilhão. A despesa discricionária total é de R$ 125 bilhões, mas a despesa realmente discricionária, que exclui gastos de outros Poderes e gastos obrigatórios definidos pela LDO, é de R$ 80 bilhões.

Construir base partidária de apoio no Congresso para aprovar projetos em um Congresso com mais de 28 partidos políticos requer atender políticas das diversas legendas. Isso significa execução de políticas públicas a partir da demanda dos partidos da base. Algo normal em qualquer democracia. O Congresso não vota baseado nos belos olhos do presidente.

O maior incentivo à votação da reforma da Previdência não está ligado ao envelhecimento da população brasileira. O maior incentivo é que a despesa da Previdência está “expulsando” —isto é, tornando cada vez mais inviáveis— as demais despesas. Para um gasto programado neste ano de R$ 1,375 trilhão, todo o debate orçamentário está em um subgrupo de R$ 80 bilhões.

Falar que “não é fiscalista”, que é contra o teto e que não quer aumento de imposto não promove o bom debate político de que necessitamos. É necessário um posicionamento mais claro ou estaremos alimentando a ideia de que é possível fazer ajuste fiscal apenas com combate à corrupção.

Ainda o tema dos caminhões. Laura Carvalho, na sua coluna de 7 de junho nesta Folha, repercutiu post de Bráulio Borges no Blog do Ibre. Bráulio argumenta que os subsídios do BNDES elevaram a oferta de fretes. Todo o problema do setor é fruto da queda da demanda por fretes.

Se a tese de Bráulio está correta, há duas consequências.

A primeira é que a demanda por aquisição de caminhões é insensível a preços. Seria legal Bráulio documentar esse fato pouco usual.

A segunda, que a inutilidade do BNDES é ainda maior do que diversos estudos têm apontado. Subsídio não consegue nem elevar a demanda por caminhões!

Ou seja, a quantidade de dinheiro do contribuinte que foi jogada no lixo quando o governo petista decidiu direcionar R$ 400 bilhões ao banco é ainda maior do que eu imaginava.

* Samuel Pessôa é Físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV


Marcos Troyjo: Trump desmonta mundo projetado por Churchill

Sob comando do presidente, EUA descortinam era de particularismo e relativismo moral

Já é extensa a coleção de mudanças que Donald Trump impôs ao papel dos EUA no cenário global. Dado o imenso peso relativo norte-americano, altera-se, por conseguinte, a própria ordem internacional.

Consciente ou não, com menor ou maior grau de intencionalidade, Trump vai aos poucos desmontando uma configuração mundial estruturada ao longo dos últimos setenta anos. E um dos principais projetistas do mundo que se está desmanchando foi Winston Churchill.

Por mais de sete décadas, os EUA capitanearam um mundo em grande medida delineado por Churchill em seu discurso “Tendões da Paz” (“Sinews of Peace”), mais conhecido como “Discurso da Cortina de Ferro”, proferido no Westminster College, no estado norte-americano do Missouri, em março de 1946.

Tal pronunciamento ofereceu aos EUA uma “moldura política” (“policy framework”, em inglês). E, em seu interior, é claro que a trajetória de política externa e visão de mundo dos EUA de Harry Truman a Barack Obama apresentou oscilações de estilo e foco.

Truman e Eisenhower foram engenheiros dos movimentos inaugurais da Guerra Fria. Kennedy e Johnson buscaram liderança americana num mundo que àquela altura parecia fadado ao conflito Leste-Oeste por muito tempo.

Nixon, Reagan e Bush sênior tentaram —e conseguiram— quebrar a espinha dorsal da União Soviética e assim “vencer” a Guerra Fria. Bush júnior inventou a Guerra ao Terror e aplicou a doutrina dos ataques preventivos (“preemptive”).

Carter, Clinton e Obama puseram ênfase nos EUA como “superpotência benigna” —protagonistas, sim, mas de um sistema multilateral baseado em regras.

Muitas dessas alternâncias respondem a conjunturas específicas. Em seu todo, no entanto, há uma viga mestra, um “conceito estratégico abrangente”, como descreveu Churchill em seu discurso do Missouri, na certeza de que a expressão agradaria os formadores de política externa e de defesa dos EUA.

Tal conceito teve menos que ver com a Cortina de Ferro ou a ameaça expansionista do comunismo soviético. Tampouco foi algo direcionado apenas a aplicações militares. O objetivo abrangente era “nada menos que a segurança e bem-estar, a liberdade e o progresso de todos os lares e famílias de todos homens e mulheres de todas as terras”.

Homem experimentado e do mundo, Churchill era cheio de imperfeições —e nada sacrossanto. Na condução quotidiana dos assuntos de estado, fez barbeiragens como ministro da Fazenda (“Chancellor of the Exchequer) ou primeiro lorde do Almirantado. Suas posições relativas ao colonialismo britânico ou ao voto feminino são para lá de questionáveis. Em nome de objetivos maiores, como derrotar o Terceiro Reich, não hesitou em costurar alianças com a União Soviética, regime que abominava.

Encontro do G7 no Canadá 

Assim, Churchill estava longe de ser um idealista, em seu discurso do Missouri, no entanto, parece ter encontrado fórmula em que, defendidos os cânones ocidentais (bandeira cuja liderança deveria caber aos EUA), todos poderiam ganhar.

Nessa linha, Churchill sugeria ao menos duas diretivas. A primeira: há uma família de nações pautadas por valores fundamentais do Ocidente: a democracia representativa, o estado de direito, a livre iniciativa; alguma noção, enfim, de civilização próspera e livre. A segunda, tais valores devem permanecer válidos não importa o antagonista ou a conjuntura. Não devem portanto esmorecer se o adversário for o fascismo, o comunismo ou o terrorismo.

Fica natural assim entender muito da pregação de Churchill que emerge de tais vetores. A formação de uma aliança ocidental, o valor de uma Europa Unida, o fortalecimento de um sistema multilateral a partir de uma efetiva Organização das Nações Unidas.

Essa visão de Churchill —concebida por indivíduo com amplo treinamento no que ele próprio denominava “a guerra como escola de aperfeiçoamento”— é menos “realista” e mais “moral”.

No campo semântico das relações internacionais, “realismo” é ortodoxamente compreendido como o poder “nu e cru”. O mundo é um tabuleiro em que, quando uns ganham, outros perdem —um “jogo de soma zero”. Aqui, a única régua ética é perseguir seus próprios interesses, mensurados em termos de obtenção de mais poder ou riqueza.

O Ocidente como moral —o projeto de Churchill— estima não apenas a superioridade de valores como democracia representativa, estado de direito e livre iniciativa, mas também sua ambicionada “universalidade”.

Na segunda metade dos anos 1940, Churchill enxergava os EUA no “pináculo do poder mundial”. Os EUA deveriam portanto liderar a construção de um mundo sustentado sobre os pilares ocidentais.

Na atual fase dos EUA presididos por Trump, abre-se mão de tal ambição de universalidade. Descortina-se uma era de particularismo e relativismo moral. Nela, talvez o próprio conceito de Ocidente tenha perdido a validade.

Vivemos uma trama em que o primeiro-ministro do Canadá é “ofensivo”. O ditador da Coreia do Norte, “talentoso”. Um mundo em que as instituições multilaterais são inclinadas a sempre constranger os EUA, fazendo com que Washington sempre saia perdedor de contenciosos arbitrados multilateralmente.

Encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un 

Trata-se de cenário em que alianças estratégicas —como a Otan— têm de ser revistas. E onde Duterte, Erdogan, Putin ou Kim podem ser considerados “grandes líderes para seus povos”.

O estranhamento dos EUA no G7, a fadiga do sistema multilateral, a equivalência moral de democracia e autocracia, o renovado mercantilismo comercial e o redesenho do mapa geopolítico a partir de noções como balança de poder ou esferas de influência —são todos traços da presente conjuntura global.

Talvez tais marcas não prevaleçam ao longo do tempo, evitando assim que se lancem bases firmes para uma nova ordem internacional em que a ideia de Ocidente não seja relevante. Ainda assim, é inegável que, por ora, o mundo projetado por Churchill está se despedaçando.

* Marcos Troyjo é diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia


Josué Pellegrini e Felipe Salto: Ajuste fiscal e gastos tributários

Benefícios sem retorno esperado devem ser revistos

O ajuste fiscal é recomendado por grande parte dos que discutem a situação das contas públicas no Brasil. Pudera. Diante do atual desequilíbrio fiscal, é difícil acreditar que o país poderá retomar o crescimento econômico sustentável. Como distribuir o ônus do ajuste requerido?

O tamanho da carga tributária e da dívida pública remete à necessidade de concentrar o esforço na redução do gasto público. Daí a importância de reformas para conter a despesa obrigatória. Entretanto, dado o tamanho do desafio, opções precisarão ser exploradas, como a revisão dos gastos tributários. A Instituição Fiscal Independente (IFI) se debruçou sobre esse assunto em seu relatório de maio.

Os gastos ou benefícios tributários são espécie do gênero desoneração tributária. Desobrigam determinados setores, empresas ou produtos de pagarem tributos, de acordo com as regras de aplicação geral, com o intuito de alcançar determinados objetivos econômicos e sociais.

Há o custo, representado pela perda de arrecadação pública, e o benefício esperado, não só para o contribuinte diretamente agraciado, mas também para toda a sociedade.

As perdas de receita com gastos tributários são estimadas regularmente pela Receita Federal, em que pesem as dificuldades para estimá-las de modo preciso. Aliás, os números se referem apenas aos tributos federais, pois estados e municípios pouco avançaram na produção dessas estatísticas, a despeito da exigência prevista no parágrafo 6º do artigo 165 da Constituição Federal.

Em 2017, essas perdas (só federais, ressalte-se) chegaram a R$ 270,4 bilhões, o equivalente a 4,1% do PIB ou a 20,7% da receita administrada pela Receita Federal. Vale dizer, de cada cinco reais arrecadados, um real deixa de sê-lo em benefício de alguém.

O montante recorde de perdas se deu em 2015, com 4,5% do PIB. O grande aumento ocorreu de 2012 a 2014, 0,3 ponto percentual do PIB ao ano. Apesar da queda nos anos recentes, as regras vigentes incentivam a expansão ou a criação de novos gastos tributários, ao mesmo tempo em que não estabelecem prazos de validade, revalidação e avaliação periódica para os gastos já existentes.

O uso intensivo de gastos tributários, a perda de receita resultante da queda da atividade econômica e o aumento dos gastos públicos foram os responsáveis pela forte deterioração das contas públicas nos últimos anos.

O simples retorno das perdas de receita com gastos tributários ao nível vigente em 2011, de 3,5% do PIB, 0,6 ponto percentual do PIB abaixo do montante atual, já daria importante contribuição ao ajuste fiscal.

É claro que a eliminação de alguns gastos tributários —ou a redução parcial de todos— não necessariamente seria o melhor modo de obter o referido esforço.

Outra estratégia: sujeitar cada gasto tributário a rigorosa avaliação, com base em análise de custo/benefício, e restringir ou eliminar aqueles gastos que não geram os retornos esperados para a sociedade.

O problema com essa estratégia mais cuidadosa é o tempo requerido. O modo como grande parte dos gastos tributários está estruturada dificulta a avaliação periódica. Ela requer, ao menos, objetivos, indicadores e metas explícitas. Em muitos casos, nem sequer há previsão de avaliação.

A combinação possível de estratégias dependerá do ritmo a ser imposto ao ajuste fiscal, o que é dado, em boa medida, por fatores fora do controle do governo ou do país.

De qualquer modo, haverá ainda a resistência dos potenciais prejudicados pela restrição dos gastos tributários —desafio que, aliás, estará presente em qualquer caminho que se trilhe rumo ao equilíbrio fiscal.

* Josué Pellegrini e Felipe Salto, respectivamente, analista e diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado


Samuel Pessôa: Não estamos nos anos 1990

O mercado opera como se estivéssemos no passado; hoje, o Estado é credor em dólar

Até algumas semanas atrás os investidores acreditavam que a sociedade elegeria um presidente centrista e estariam dadas as condições para a aprovação da reforma previdenciária e outras medidas necessárias para reconstrução do equilíbrio fiscal. Aparentemente, o mercado não acredita mais nessa tese.

Os investidores têm produzido forte processo de desvalorização da moeda e a aposta de que o Banco Central terá de subir os juros. Gestores do mercado entendem que os juros estão muito baixos, o que produz pressão pela saída de recursos.

A lógica dos gestores é que o regime cambial vigente no Brasil é de câmbio fixo ou administrado, e, portanto, a política monetária deve ser empregada para defender a moeda.

Diferentemente, operamos no regime de metas de inflação.

A taxa de juros é o instrumento regulador da demanda agregada. Se há excesso de demanda e, portanto, pressão inflacionária, os juros devem ser elevados. Se há carência de demanda agregada e, portanto, pressão desinflacionária, os juros devem ser reduzidos. Caso contrário, os juros devem ser mantidos.

A taxa de câmbio é livremente determinada pelo mercado. O papel do Banco Central é reduzir a variabilidade da cotação do câmbio. Em ano eleitoral, em que é natural maior incerteza quanto aos rumos futuros da política econômica, a necessidade de suavizar esses movimentos é maior.

O processo inflacionário está bem-comportado. Há dois choques externos, desvalorização de todas as moedas com relação ao dólar e elevação do preço internacional do petróleo, e o choque doméstico produzido pelo movimento dos caminhoneiros. Esses três choques adicionarão, provavelmente, um ponto percentual na inflação de 2018. Em vez de o IPCA fechar o ano na casa de 3%, fechará em torno de 4%.

No regime de metas de inflação, há a meta, no nosso caso de 4,5% no ano-calendário de 2018 e de 4,25% no de 2019, e há uma banda, de 1,5 ponto percentual, para a absorção de choques de oferta. Assim, se os choques colocarem a inflação, segundo as estimativas do Banco Central, em até 5,75% em um horizonte de uns 18 meses, não há motivos para a subida dos juros se o processo da inflação, excluindo os choques, continuar a ser desinflacionário.

Dado que a economia opera com grande ociosidade e dado que as últimas revisões da atividade econômica foram para baixo, não há sinais de que o processo inflacionário esteja mudando.

De fato, na sexta-feira (8), foi divulgado o IPCA de maio: 0,4%, um pouco acima do 0,3% que se projetava. Toda a diferença está nos preços que foram sensibilizados pela greve.

Os serviços continuam em sua trajetória de desinflação. Em maio, apresentaram deflação de 0,09%. Em 12 meses, a inflação de serviços encontra-se em 3,4%, e o núcleo dos serviços, em 3,3%. Não há, portanto, sinal de excesso de demanda que sugira a necessidade de subida de juros.

Por que, então, toda essa preocupação? Meu entendimento é que o mercado financeiro opera hoje como se estivéssemos nos anos 1990 ou em 2002.

Naquelas oportunidades, parte da dívida interna era denominada em dólares. Adicionalmente, a dívida externa era elevada. Quando o câmbio se desvalorizava, a posição patrimonial do Estado piorava muito.

Hoje, o Estado brasileiro é credor em dólares. Desde o começo do ano, a dívida líquida tem caído em razão dos movimentos do câmbio.

Não faz sentido fazermos política monetária com a cabeça dos anos 1990.

* Samuel Pessôa, físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV


Demétrio Magnoli: Ideias fora do tempo

'Unidade' é o eufemismo para chamado a renúncias em favor de Alckmin

Há quatro décadas, investigando o fermento liberal na obra de Machado de Assis, Roberto Schwarz inventou as "ideias fora do lugar". Dias atrás, na tentativa de refazer o cenário eleitoral, os tucanos inventaram as ideias fora do tempo.

O manifesto "Por um polo democrático e reformista" conclama "liberais, democratas, social-democratas, democrata-cristãos e socialistas democráticos" à união contra "populismos radicais, autoritários e anacrônicos". Seus 17 itens são sementes de um discurso capaz de seduzir a maioria dos eleitores, órfãos de representação política. Mas o tempo passou na janela e a notória Carolina não viu.

As "ideias iniciais para alimentar o debate", como o manifesto classifica suas proposições, traçam fronteiras com Bolsonaro (defesa da liberdade e da democracia) e com Ciro (busca do equilíbrio fiscal). Lá está a plataforma reformista nos campos da economia (Previdência, tributação) e das instituições (reforma do Estado, reforma política). O combate à pobreza é conectado à ampliação da produtividade e à qualificação dos serviços públicos (educação, saúde).

O texto enfatiza o combate à corrupção e à criminalidade, evidenciando que esses temas fundamentais não devem ser entregues à sanha do discurso demagógico. Contudo, no atual estágio da corrida eleitoral, tudo isso soa como operação da campanha de Alckmin.

Inicialmente firmado pelos tucanos FHC, Aloysio Nunes e Marcus Pestana e pelo senador Cristovam Buarque, do PPS, o manifesto apresenta-se como ponto de partida de uma "obra coletiva envolvendo partidos políticos e lideranças da sociedade civil". No universo onírico instalado por essas palavras, a eleição presidencial surge como horizonte distante: o ponto de chegada.

De fato, como o tempo não para, a fragmentação do centro político já se estratificou em diversas candidaturas. Nessas circunstâncias, "unidade" é o eufemismo para um chamado a improváveis renúncias eleitorais em favor do candidato tucano.

Rodrigo Maia e Henrique Meirelles são candidatos especulativos. DEM e MDB não usarão recursos escassos para investidas fadadas ao fracasso. Mas suas decisões sobre coligação dependerão das sondagens de opinião. Por outro lado, Marina e Alvaro Dias são candidatos firmes: eles não miram necessariamente o Planalto, mas a viabilização eleitoral de seus partidos.

A minirreforma política aprovada pelo Congresso ameaça inviabilizar a participação dos pequenos partidos no pleito de 2022. Os dois candidatos não sacrificarão seus projetos partidários no altar etéreo do manifesto da Carolina.

A maioria dos cientistas políticos profetiza que a próxima eleição presidencial terminará reiterando o modelo de todas as anteriores, desde 1994, polarizadas entre PSDB e PT. O argumento é que, apesar de tudo, prevalecerão as máquinas partidárias e uma inércia sistêmica.

A profecia acalenta as esperanças de Alckmin e pode até revelar-se correta, mas origina-se menos da análise objetiva que dos interesses profissionais dos analistas: os partidos tradicionais e seus candidatos, sempre é bom lembrar, formam o núcleo do mercado de trabalho dos cientistas políticos. No fim das contas, é a hipótese alternativa, de uma eleição de crise, mais parecida com a de 1989, que provocou o lançamento do manifesto tucano.

Desde a reeleição de FHC, no longínquo 1998, o PSDB desistiu de formular ideias políticas.

Sob os governos lulopetistas, acuado pelo discurso populista, trancou-se na jaula estreita da denúncia da corrupção. O manifesto seria uma retomada do fio partido e, talvez, a fonte de uma rearticulação do centro político --se produzido no rescaldo das eleições municipais de 2016.

O PSDB preferiu, porém, aguardar que o Planalto caísse no seu colo graças à inércia do sistema político. Agora é tarde: suas belas ideias perderam-se nas dobras do tempo.

*Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Folha de S. Paulo: Lideranças de centro lançam manifesto com aceno para eleitores da esquerda e da direita

Texto fala em manutenção do Bolsa Família e tolerância zero com o crime organizado

Daniel Carvalho, da Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Diante do protagonismo de pré-candidaturas mais à esquerda e à direita do espectro político, lideranças de partidos como PSDB, MDB, PPS, PV, PSD e PTB lançaram nesta terça-feira (5) um manifesto para tentar evitar a fragmentação das legendas de centro na eleição presidencial. Um site para reunir propostas também será criado.

O texto de oito páginas já tem 27 signatários, entre políticos e intelectuais como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e agora busca apoio de outras pessoas.

O DEM, partido com três deputados aparecendo como apoiadores, informou que, por uma questão de timing interno, não estava assinando o documento.

"Nós não assinamos. Como a gente está num processo de discussão interna, de respaldo interno à posição de Rodrigo [Maia], eu participei de toda a discussão, apoio a tese da discussão em si, mas me resguardei para um segundo momento. Temos um alinhamento total com Rodrigo", afirmou o deputado Mendonça Filho (DEM-PE), contrariando o idealizador do manifesto, Marcus Pestana (PSDB-MG), que diz que os parlamentares do DEM haviam assinado o texto.

Pré-candidato à Presidência da República, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), negou que tenha orientado seus correligionários a retirar assinaturas.

Acenando à direita, o "Manifesto por um polo democrático e reformista" fala em “postura firme” na segurança pública, “tolerância zero” com o crime organizado e desburocratização de licenciamento ambiental.

À esquerda, o grupo fala expressamente em continuar com o Bolsa Família, programa cuja manutenção foi uma das principais pautas da disputa entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) na eleição de 2014.

"O Brasil precisa recuperar a confiança no seu futuro. Não chegaremos lá voltando ao passado do autoritarismo ou ao passado mais recente do lulopetismo", disse FHC em uma mensagem lida pelo deputado Betinho Gomes (PSDB-PE). "As lideranças política precisam enxergar que está em jogo a recuperação da legitimidade democrática da autoridade pública ou a desorganização política, econômica e social do Brasil", afirmou o ex-presidente.

“O movimento não visa substituir o protagonismo de pré-candidatos ou dos partidos. Não é um movimento partidário. O manifesto não defende nomes, mas ideias e a convicção de que, se as forças democráticas se dividirem, teremos chance de repetir [a eleição de] 1989, quando essa fragmentação produziu a disputa entre extremos no segundo turno, Collor e Lula”, disse Pestana, um dos idealizadores do manifesto.

Os principais alvos do movimento -Jair Bolsonaro (PSL), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT)- não foram citados.

"Não estamos aqui criando inimigos, mas definindo posição política", disse o deputado Roberto Freire (PPS-SP).

Apenas os candidatos de centro foram nominados: Rodrigo Maia (DEM), Alvaro Dias (PODE), Geraldo Alckmin (PSDB), Marina Silva (REDE), Henrique Meirelles (MDB) e Flávio Rocha (PRB). Eles serão procurados para assinar o manifesto. Nenhum deles compareceu ao evento.

O texto aborda as crises política e econômica vivenciadas no país e afirma que a eleição deste ano se apresenta “talvez como a mais complexa e indecifrável de todo o período da redemocratização”.

“É neste sentido que as lideranças políticas que assinam este manifesto conclamam todas as forças democráticas e reformistas a se unirem em torno de um projeto nacional, que a um só tempo, dê conta de inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento social e econômico, a partir dos avanços já alcançados nos últimos anos, e afaste um horizonte nebuloso de confrontação entre populismos radicais, autoritários e anacrônicos”, diz o manifesto.

PRINCIPAIS PONTOS
Em 17 pontos, o texto defende liberdade e democracia; combate à corrupção; mudança do sistema educacional; equilíbrio fiscal, fortalecimento da administração pública e enxugamento do Estado; pacto federativo; reformas tributária, previdenciária e política; promoção de ciência e tecnologia.

O manifesto se coloca contra todas as formas de autoritarismo e populismo.

“A demagogia e atitudes hostis à vida democrática devem definitivamente ser afastadas do cenário nacional. À direita, se esboça o surgimento de um inédito movimento com claras inspirações antirrepublicanas e antidemocráticas. À esquerda, uma visão anacrônica alimenta utopias regressivas de um socialismo autoritário e antidemocrático e de um Estado intervencionista e onipresente”, diz o texto.

Com a assinatura do atual chanceler brasileiro, Aloysio Nunes (PSDB), o manifesto defende “política externa que privilegie os verdadeiros interesses nacionais, e não ultrapassadas e equivocadas identidades ideológicas”. “É inadiável e inevitável a abertura externa de nossa economia”, defende o texto.

O manifesto pede ainda “uma postura firme” na segurança pública, “baseada no princípio de tolerância zero com o crime organizado”.

O texto defende a qualificação do SUS (Sistema Único de Saúde); adoção de medidas “criativas e eficazes” para moradia e saneamento; desenvolvimento sustentável com estímulo à produção de biocombustíveis, mas sem deixar de lado o que o movimento chama de “nossa vocação petrolífera”.

O manifesto toca em temas sensíveis como o meio ambiente, defendendo a “modernização da atividade de licenciamento ambiental”, o que define como “rigor na defesa do meio ambiente [...] e desburocratizando e dando maior celeridade às licenças”.

No último e mais longo tópico, o movimento aborda a pauta social. Fala-se de “combate sem trégua” à miséria, à pobreza e às desigualdades sociais e regionais.

“As estratégias inclusivas devem sempre visar à emancipação do cidadão, a promoção de cidadania plena para todos e a mínima dependência do cidadão em relação à tutela estatal, embora programas de transferência de renda sejam fundamentais para o combate emergencial à miséria”, diz o texto, que fala ainda em aprimorar programas de assistência social e defende expressamente o Bolsa Família.

“Aprimorar programas de assistência social, dando-lhes caráter transformador. Um exemplo é o Bolsa Família, que deve ser mantido, recuperando seu caráter educacional de quando foi criado com o nome de Bolsa Escola, reunindo propósitos de transferência de renda e garantia de acesso de todos à educação de qualidade”, encerra o manifesto.


Demétrio Magnoli: A voz do povo

O que o brasileiro diz é que a roda de um caminhão esmagou o sistema político

Decifra-me ou devoro-te! Segundo o Datafolha, 87% dos brasileiros aprovaram o movimento que paralisou o país durante uma semana e 56% defenderam sua continuidade. Ao mesmo tempo, 87% rejeitaram os aumentos de tributos e cortes de gastos públicos necessários para atender às reivindicações do movimento —e 56% avaliaram que o resultado é prejudicial ao “brasileiro em geral”. A “voz do povo” não faz sentido lógico. Mas há método na loucura.

Sondagens sobre a opinião subjetiva a respeito de eventos em curso são investigações complexas. A formulação intrínseca e a contextualização das perguntas têm forte impacto nas respostas. Uma pesquisa do Ideia Big Data, divulgada em O Globo e realizada dias antes, registrou desaprovação majoritária ao movimento (55%). Não há, porém, como fugir ao desafio da esfinge expresso pela contradição interna exposta no relatório do Datafolha. Atrás dela, distinguem-se os contornos da ruína de nosso sistema político.

Greve é o eufemismo destinado a ocultar a precisa natureza de um locaute articulado entre as grandes empresas de transporte e setores politicamente organizados dos caminhoneiros autônomos. O movimento tornou letra morta o direito de ir e vir, provocou o colapso de atividades essenciais, causou perdas universais irreparáveis. À primeira vista, sacralizamos o “direito de manifestação”, elevando-o ao estatuto de dogma e aceitando que seu exercício extremado implique a abolição de todos os outros direitos. De certo modo, absorvemos a pedagogia do lulopetismo, que serve hoje ao bolsonarismo: o “povo organizado”, a corporação, vale mais que a nação.

O “brasileiro em geral” é o povo desorganizado, o cidadão comum. Os “brasileiros em geral”, alvos da sondagem do Datafolha, habituaram-se à ideia de que os interesses privados sempre triunfam. Os políticos beneficiam-se de propinodutos subterrâneos. Os empresários, de subsídios oficiais, refinanciamentos de dívidas, contratos superfaturados. Os juízes e promotores, de rendas privilegiadas, como a exorbitância do auxílio-moradia. Se as corporações de fidalgos podem, por que não a corporação dos caminhoneiros, que são gente comum? No elogio da baderna, avulta uma ânsia por igualdade.

Traçam-se paralelos errados, que contêm grãos de verdade relevante. O maio de 2018 não é, nem de longe, a retomada do junho de 2013. De fato, sob um aspecto decisivo, um evento representa o oposto do outro. “Brasil, é hora de acordar: o professor vale mais que o Neymar” —cinco anos atrás, na Paulista, protestava-se contra a subordinação do bem público ao interesse privado.

Agora, nas estradas interrompidas, exigiu-se o bem privado, às custas da imolação do interesse público. A desoneração da folha das transportadoras, o tabelamento do frete, a contratação de transporte sem licitação, o controle do preço do diesel serão pagos por mais impostos, mais inflação, menos educação e menos saúde. Mas, na percepção da maioria, dessa vez, para variar, triunfou uma “corporação dos humildes”. Somos todos caminhoneiros —eis uma mensagem expressa nas estatísticas do Datafolha.

Os grãos de verdade espalham-se além dessa constatação. Nas “jornadas de junho”, em 2013, o povo nas ruas dobrou a arrogância do governo, estragando a festa nacionalisteira da Copa.

Agora, nas estradas, segundo a interpretação predominante, o governo sofreu uma humilhação inédita, rendendo-se a gente sem sobrenome, sem rosto, sem cargo, sem partido. “Não aceitamos pagar a conta da derrota do governo” —o pensamento mágico, a dissociação absoluta entre causa e efeito, faz parte do raciocínio. Na visão da maioria, o mundo das regras cedeu lugar à regra da força.

O governo acabou? Sim, claro, mas isso é só o óbvio. Na véspera das eleições, o povo está dizendo que a roda de um caminhão esmagou todo o sistema político.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Gaudêncio Torquato: Os cinturões do governo

Caminhoneiros desafiam equilíbrio da gestão Temer

A constatação é de Carlos Matus, cientista social chileno, em seu clássico "Estratégias Políticas": "Não é possível combinar sacrifícios econômicos e recessão transitória com crescimento econômico, aumento do emprego e justiça social." Esse é o dilema que enfrenta o governo ante a greve de caminhoneiros, que conta com o apoio de empresários e a simpatia da população.

O desafio é equilibrar os três cinturões que balizam uma administração pública: o econômico, o social e o político. Tal equilíbrio é responsável pela fortaleza ou fragilidade das ações governamentais. Os campos se imbricam de forma que o sucesso alcançado por um afeta o outro.

Tomemos a economia: se produzir resultados de forma a resgatar a confiança dos setores produtivos, a frente política tende a olhar de maneira simpática para a gestão, com a consequente aprovação de projetos do Executivo. Foi o que se viu nos primeiros tempos da gestão Temer.

A linha adotada inicialmente foi bem-sucedida; mas, no que se refere à política de preços dos combustíveis, elogiada nos primeiros momentos e que propiciou loas ao presidente da Petrobras, Pedro Parente, hoje é alvo das críticas.

Dolarizar o preço da gasolina, aumentando-o ou diminuindo-o de acordo com a oscilação do barril de petróleo no mercado internacional, criou por aqui uma gangorra, com remarcações quase diárias na bomba. O impacto no bolso de caminhoneiros foi jogado no colo de um governo que, ao contrário da administração Dilma, não represou preços. E isso tirou a Petrobras do buraco.

A fatura chegou com uma gigantesca greve que paralisou setores vitais. Agora, as concessões feitas ao setor do diesel motivam outras áreas a fazer exigências.

O horizonte sinaliza nuvens pesadas. Os cofres do Tesouro não suportarão estender benefícios a torto e a direito —uma política que quebraria a coluna vertebral que segura a economia. O afrouxamento do cinturão econômico ameaça desfazer a identidade reformista do governo.

Já a área social ressente-se do seu pequeno PNBF (Produto Nacional Bruto da Felicidade), a partir do desemprego em massa e parcos resultados que a economia joga em seu bolso. Se a locomotiva econômica dá sinais das dificuldades para puxar os vagões do trem —ainda mais com os efeitos deletérios da greve dos caminhoneiros—, a ruptura social é o desenho à vista.

O fato é que a administração não tem tido a capacidade de "fazer com que as coisas aconteçam" dentro de parâmetros de normalidade. A rigidez nas contas públicas começa a perder força, derrubada pela pororoca que aumenta as carências e corrói as esperanças do povo.

As elogiadas iniciativas governamentais —teto de gastos, reformas trabalhista e educacional, terceirização, recuperação da Petrobras e do Banco do Brasil, resgate da credibilidade do país— estão sendo empurradas para longe pelos destroços que a greve provoca no seio social. E se outros movimentos emergirem com pautas reivindicatórias e de difícil atendimento? De onde o governo vai tirar recursos para ajustar, ao mesmo tempo, os cinturões econômico e social?

E como agirá o terceiro cinturão, o político, que também se apresenta frouxo e esgarçado? Em ano eleitoral, os representantes adotam uma postura de resguardo, voltando-se (e até votando) contra um governo impopular. Não se pode contar com o cinturão político para ajudar o governo a aprovar medidas fundamentais ao crescimento.

Partidos, grupos, operadores de estruturas disputam espaços de poder em torno de uma Torre de Babel. Ninguém se entende. Não é improvável vermos o pleito de outubro com multidões nas ruas. O momento exige bom senso.


Samuel Pessôa: Comédia de erros

Crédito barato para comprar caminhão provocou excesso de oferta e reduziu frete

Logo após a crise de 2009, os formuladores de política econômica passaram a estimular a compra de caminhões com empréstimos subsidiados do BNDES.

Achava-se que seria política contracíclica eficaz para ajudar a economia a sair da crise iniciada em 2008.

O programa de crédito muito barato persistiu até o primeiro mandato da presidente Dilma. De 2009 até hoje a frota de caminhões aumentou 40%. A economia, no mesmo período, cresceu 11%.

Não havia necessidade de tanto caminhão.

Evidentemente, o excesso de oferta de caminhões pressiona o frete para baixo.

A situação é especialmente difícil para o motorista autônomo. Os grandes operadores expandiram muito a oferta e podem contratar outros motoristas. Mesmo porque o mercado de trabalho muito fraco, com elevado desemprego, facilita as coisas para os grandes operadores.

A movimentação de veículos pesados nas estradas pedagiadas encontra-se quase 12% abaixo do pico de fevereiro de 2014.

As montadoras, por sua vez, trabalharam anos a plena carga para, em seguida, ficar anos com elevada ociosidade.

Em que pesem todos os estímulos para a compra de caminhões entre novembro de 2008 e novembro de 2013, a produção de caminhões excedeu os licenciamentos domésticos e a exportação em 40 mil unidades.

É claro que a reversão de cenário foi brutal. Para as montadoras e para os caminhoneiros.

O governo, na tentativa de amenizar a situação para os caminhoneiros, reduziu o pedágio em 2015, quebrando contrato com as concessionárias de rodovias. Tudo está na Justiça.

Entrementes as economias centrais vão se recuperando do estrago da crise de 2008, e os juros de dez anos pagos pelos títulos do Tesouro americano sobem e ultrapassam a marca fatídica de 3% ao ano. O real e demais moedas das economias emergentes perdem valor.

Simultaneamente, os problemas da Venezuela e as "trumpices" com o Irã pressionam o preço do petróleo em um momento de real fraco. O preço do petróleo em reais explode. Não há muito espaço para que a Petrobras não repasse os aumentos, pois ela foi muito machucada no período das vacas gordas para a economia brasileira, durante o qual foi instrumentalizada e mal gerida. Precisa reduzir seu endividamento.

A péssima situação fiscal e a incapacidade de Temer em aprovar a reforma da Previdência após o evento Joesley obrigam o governo a procurar receita onde dá. Eleva-se a tributação dos impostos federais sobre gasolina e óleo diesel.

Em meio a uma recuperação frustrada da economia, os fretes, pressionados pelos custos do diesel, nas rotas agrícolas, subiram de janeiro até abril algo como 40% em termos reais. Em geral, nessa época do ano, os fretes agrícolas sobem uns 20%. Caminhões perdem espaço para ferrovias, o que não é ruim. Mas com tanto caminhão...

Um conjunto incrível de intervenções totalmente desastradas explica movimento grevista muito rápido e que desorganizou a vida das pessoas como poucas vezes ocorreu.

Bom momento para nós voltarmos à agenda que estava posta em 2002: construirmos as condições para que a regulação do setor de comercialização dos subprodutos do petróleo ocorra de forma competitiva por empresas privadas.

Será necessário privatizar com sabedoria o setor de refino. Melhorar o marco regulatório e criar condições para que o comércio internacional ajude a disciplinar o mercado.

Para esse setor, no Brasil, as falhas de governo ultrapassam as falhas de mercado por larga margem.

* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV


Elio Gaspari: ‘Greve de caminhoneiros’. Onde?

De uma hora para outra, houve uma greve de caminhoneiros e o presidente da Petrobras, Pedro Parente, tornou-se o responsável por dias de caos. Duas falsidades.

O que houve não foi uma greve de caminhoneiros, mas uma doce parceria com os empresários do setor de transporte de cargas rodoviárias. Diante dele, o governo capitulou. A repórter Míriam Leitão mostrou que só 30% dos caminhões pertencem a motoristas autônomos. Na outra ponta estão pequenas empresas subcontratadas e grandes transportadoras. Uma “greve de caminhoneiros” pressupõe greve de motoristas de caminhão. Isso nada tem a ver com estradas obstruídas.

Pedro Parente não provocou o caos. Desde sua posse na presidência da Petrobras, ele descontaminou-a do caos que recebeu. Na base dessa façanha esteve uma nova política de preços, acoplada ao valor do barril no mercado internacional. É assim que as coisas funcionam em muitos países do mundo. Se o preço do diesel salgou a operação do setor de transporte de cargas, o problema é dele, não de uma população que foi afetada pelo desabastecimento e agora pagará a conta. Os empresários sabiam muito bem o tamanho da confusão que provocariam.

O sujeito oculto da produção do caos foi o governo de Michel Temer. No seu modelito Davos, orgulhou-se da política racional de preços dos combustíveis. Já no modelito MDB-DEM-PP-PR-PPS, fez de conta que ela não teria custo político. Deveria ter provisionado um colchão financeiro para subsidiar a Petrobras, mas essa ideia era repelida pelos sábios da ekipekonômica. Diante do caos, descobriram que o colchão era necessário.

O governo tolerou a bagunça e associou-se ao atraso. A primeira reação de Temer deveria ter sido a responsabilização dos empresários, desmistificando a ideia de “greve dos caminhoneiros”. Bloqueou estrada? Reboco o caminhão, caso ele não pertença ao motorista. Queimou o talonário do policial que multou o veículo? Prendo-o. Só mudou o tom e exerceu a autoridade na sexta-feira, usando a força federal para desobstruir estradas.

Desde o primeiro momento tratou-se do caso com o gogó, deixando que o problema deslizasse para a Petrobras e seu presidente. Conseguiram piorar a discussão, beneficiando grupos de pressão, com o dinheiro dos outros.

A lição de Pedro Parente para os sábios
Na entrevista teatral e inútil que os ministros deram na quinta-feira, o doutor Carlos Marun defendeu a capitulação do governo diante da suposta greve dos caminhoneiros, referindo-se ao que denominou de “realidade brasileira”.

Teve toda razão, mas essa realidade está aí há 518 anos.

Em 2013, o prefeito Fernando Haddad aumentou as tarifas de ônibus e foi para um evento em Paris com o governador Geraldo Alckmin. Numa esticada noturna, cantaram “Trem das Onze”. Deu no que deu. O economista Edmar Bacha, conselheiro econômico do candidato Alckmin, cunhou a expressão Belíndia. Hoje se vê que os economistas belgas precisam aprender a viver com a realidade da Índia.

A política de preços da Petrobras estava certa. O que faltou foi combinar com os russos, com o setor de transporte de cargas rodoviárias, com as empresas e, finalmente, com os motoristas de caminhão. Faltou sobretudo acautelar-se. Perplexos, os belgas acordaram na Índia.

Pedro Parente foi satanizado até mesmo pelo senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), que o acusou de “arrogância” e pediu sua demissão. O senador Eunício de Oliveira (MDB-CE) seguiu na mesma linha, e o candidato a presidente Henrique Meirelles, corifeu do liberalismo de Temer, foi gloriosamente evasivo.

Pedro Parente fez o que devia como presidente da Petrobras. Quem desafiou a “realidade brasileira" foram Temer, sua ekipekonômica e a claque belga que os aplaudia.