eleições municipais

Merval Pereira: Na janelinha

Nos Estados Unidos, um “Júnior justice” da Suprema Corte - ministro novato - tem, por tradição, a tarefa de fechar a porta da sala de reuniões depois que o último ministro chega. Uma demonstração de humildade diante dos mais antigos. Há até mesmo filmes que mostram essa cena, com o presidente da Corte advertindo um novato: “Você esqueceu de fechar a porta. É a tradição”.

Aqui, nosso ministro junior Nunes Marques mal chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, como diria o sábio popular senador Romário, “já está querendo sentar na janelinha”. Em sua primeira atuação, ele deu aquele voto pseudamente salomônico que aprovou a reeleição de seu amigo senador David Alcolumbre, e proibiu o deputado Rodrigo Maia, inimigo do Planalto, de fazer o mesmo.

Sua decisão monocrática de reduzir o prazo de inelegibilidade dos atingidos pela Lei de Ficha Limpa, fazendo com que ele seja descontado da pena cumprida, está causando séria perturbação dos tribunais eleitorais pelo país, e alimentando a percepção de que o novo ministro, nomeado ao acaso pelo presidente Bolsonaro, cumpre mais uma etapa do plano governamental de desmontar o aparato jurídico de combate à corrupção nos meios políticos, depois da aliança com o Centrão.

A atitude do ministro Nunes Marques foi tomada um dia antes do recesso do Judiciário, e em pleno período eleitoral. Isso quer dizer que centenas de candidatos que concorreram subjudice agora exigirão da Justiça Eleitoral suas posses, o que pode até mesmo alterar a composição das Câmaras de Vereadores. Ou até mesmo eleger algum prefeito.

O mais espantoso é que a Lei da Ficha Limpa foi colocada sob o escrutínio do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, e considerada constitucional pela maioria. O ponto específico agora alterado liminarmente pelo novo ministro foi analisado e considerado compatível com a Constituição e com a vontade do legislador, o Congresso Nacional.

O atual presidente do Supremo, Luis Fux, que era o relator do processo, tinha na ocasião a mesma opinião de Nunes Marques agora. Achava que a inelegibilidade, passando a contar somente a partir do fim da pena, era exagerada. O ministro Cezar Peluso, já aposentado, teve a mesma opinião, mas o ministro Marco Aurélio Mello rebateu o argumento lembrando que a utilização de recursos sobre recursos fazia com que a inelegibilidade não tivesse efeito prático, rejeitando a proposta de subtração do tempo decorrido entre a condenação e o julgamento dos recursos.

Sendo assim, a decisão monocrática do juiz novato foi contra um ponto da Lei da Ficha Limpa que já foi debatido pelo plenário, o que agrava a percepção de que, no Supremo, cada ministro é uma ilha que não se comunica com os outros, nem com as decisões já tomadas, sem que haja razão para um novo julgamento, mas apenas uma opinião pessoal

O caso, de todo modo, será avaliado pelo plenário depois do recesso, mas há uma movimentação no Supremo para que Nunes Marques altere sua decisão, para evitar o caos na justiça eleitoral. Ele pode definir que a medida só vale para a próxima eleição, para evitar que os tribunais eleitorais fiquem abarrotados de recurso durante o período de diplomação dos novos prefeitos e vereadores, ou, no limite, o presidente do Supremo, ministro Luis Fux, pode suspender essa liminar, com base exatamente em que essa lei já foi considerada constitucional pelo próprio STF.

Embora essa medida radical seja defendida por setores do judiciário, Fux parece inclinado a resolver o impasse pelo diálogo. A atuação do Supremo durante o recesso, que começou dia 20 de dezembro e vai até o dia 6 de janeiro, também está em discussão, pois quatro ministros já comunicaram que continuarão trabalhando nesse período.

Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio Mello, com isso, reduzem o poder do presidente Luis Fux, que fica de plantão durante o recesso com poder de decisão. Aliados de Luis Fux garantem que o Regimento do Supremo não autoriza essa atitude, e o presidente parece decidido a exercer seu poder integralmente. Sendo assim, qualquer decisão a ser tomada no recesso dependerá apenas do ministro Luis Fux, que poderá cassar liminares que considere injustificáveis.


O Estado de S. Paulo: Decisão de Nunes Marques libera 'fichas sujas' a assumirem mandato de prefeitos

Às vésperas do recesso do Judiciário, ministro declarou inconstitucional um trecho da Lei da Ficha Limpa que fazia com que pessoas condenadas por certos crimes ficassem inelegíveis por mais oito anos, após o cumprimento das penas

Breno Pires, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Uma decisão liminar (provisória) concedida pelo ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), livrou o caminho de políticos que concorreram nas eleições municipais de 2020 e saíram vitoriosos, mas tiveram o registro barrado pela Justiça Eleitoral devido à Lei da Ficha Limpa.

Individualmente, às vésperas do recesso do Judiciário, Nunes Marques declarou, no sábado, inconstitucional um trecho da legislação que fazia com que pessoas condenadas por certos crimes ficassem inelegíveis por mais oito anos, após o cumprimento das penas.

A ação foi proposta pelo PDT há apenas cinco dias, contra um trecho da Lei da Ficha Limpa, que antecipou o momento em que políticos devem ficar inelegíveis. Antes da lei, essa punição só começava a valer após o esgotamento de todos os recursos contra a sentença por certos crimes (contra a administração pública, o patrimônio público, o meio ambiente ou a saúde pública, bem como pelos crimes de lavagem de dinheiro e aqueles praticados por organização criminosa).

Com a lei, a punição começou imediatamente após a condenação em segunda instância e atravessa todo o período que vai da condenação até oito anos depois do cumprimento.

O partido apontou que é desproporcional deixar inelegível um político por tanto tempo e alegou ao STF que a punição deveria ser de apenas oito anos a partir do momento que começa a valer a pena, e não durante esse período mais oito anos “após o cumprimento da pena”. Para o partido, deve haver a “detração”, isto é, o tempo da punição deve ser computado desde o momento que ela começa a surtir efeito, ainda que de modo antecipado, e não apenas quando o caso encerra. O ministro Nunes Marques concordou, afirmando que essa condição é um “desprestígio ao princípio da proporcionalidade”.

A decisão de Nunes Marques valerá especificamente para os políticos que ainda estão com o processo de registro de candidatura de 2020 pendentes de julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Supremo. É o caso, por exemplo, do prefeito eleito de Bom Jesus de Goiás, Adair Henriques (DEM), que teve o registro barrado pelo TSE. Condenado por delito contra o patrimônio público em segunda instância em setembro de 2009, ele teve o registro eleitoral para 2020 autorizado pelo Tribunal Regional Eleitoral, mas, no TSE, perdeu.

De acordo com o voto do ministro Edson Fachin, o prazo de oito anos de inelegibilidade deve ser contado a partir de 6 de maio de 2015, data em que foi finalizado o cumprimento da pena aplicada a Adair. O fundamento da decisão é exatamente o trecho da Lei da Ficha Limpa que, agora, o ministro Kassio Nunes Marques declarou inconstitucional.

Além desse caso, advogados eleitorais ouvidos pelo Estadão reservadamente estimam que até cem candidatos que estavam barrados pela justiça eleitoral poderão assumir os mandatos, com base na decisão de Nunes Marques. Três advogados, que preferiram não se identificar nem fazer declarações, disseram à reportagem que têm clientes em situação semelhante e vão acionar o TSE. Os eventuais recursos serão analisados pelo presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso.

Integrantes do TSE consultados pela reportagem não comentaram a decisão do ministro Kassio Nunes Marques. Em conversas reservadas, no entanto, alguns ministros disseram que a forma como foi tomada a decisão não foi a mais adequada.

A principal crítica, no meio jurídico eleitoral, é que a decisão modifica as regras da eleição de 2020 após a realização. A situação é incomum. Normalmente, as regras eleitorais só podem ser alteradas faltando um ano para a população ir às urnas. Leis aprovadas pelo Congresso em um prazo de menos de um ano para uma eleição, por exemplo, só valerão para a seguinte.

A liminar do ministro avançou sobre um tema que já havia sido debatido pelo plenário do Supremo Tribunal Federal em 2012, durante julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa. Na ocasião, o ministro Luiz Fux, relator da ação, defendeu que o prazo de oito anos começasse a valer a partir do início da punição, e não após o cumprimento da pena. Apesar disso, a proposta enfrentou resistência dos ministros Marco Aurélio Mello e Cármen Lúcia, na ocasião. O plenário, então, entendeu por não modificar o que estava previsto na lei.

Kassio Nunes Marques, no entanto, decidiu não esperar para colocar em votação o caso no plenário do Supremo. Segundo ele, o trecho da lei questionado “parece estar a ensejar, na prática, a criação de nova hipótese de inelegibilidade”. O magistrado justificou a concessão da liminar afirmando que o pedido deve ser atendido imediatamente para não prejudicar quem foi eleito nessas condições. “Impedir a diplomação de candidatos legitimamente eleitos, a um só tempo, vulnera a segurança jurídica imanente ao processo eleitoral em si mesmo, bem como acarreta a indesejável precarização da representação política pertinente aos cargos em análise”. 

Com base na decisão dele, devem cair as decisões da justiça que determinaram a realização de novas eleições para prefeituras, nos casos em que o eleito estava na condição de ficha suja. Apesar disso, ainda pode haver recurso contra a decisão do relator no STF e, da mesma forma, também será necessária a análise do presidente do TSE.

O coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Marcelo Weick, elogiou a decisão do ministro Kassio Nunes Marques. “A Lei Complementar 135 (Lei da Ficha Limpa) completou dez anos. Natural que agora se avalie, longe do calor das emoções daquele julgamento das ADCs 29 e 30 (as ações no STF que discutiram a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa), os excessos e desproporções desta Lei, em especial nesse tormentosa e mal feita redação da alínea ‘e’. Caberá ao plenário do STF, tão logo retomada suas atividades em 2021, enfrentar essa questão que, reiteremos, vem em bom momento. A necessária reflexão desta desproporcionalidade de tratamento entre as inelegibilidade previstas na Lei 135/2010 (Lei da Ficha Limpa)”, disse.

O procurador regional eleitoral do Maranhão, Juraci Guimarães Junior, disse que a decisão afronta ao princípio da igualdade, pois os candidatos que já perderam todos os recursos possíveis não têm mais como apelar ao STF. Ele disse também que a decisão também ofenderia o princípio da anualidade da lei eleitoral. “A alteração do processo eleitoral, por força do art. 16, da Constituição Federal, deve ser feita um ano antes das eleições”, disse.

NOTÍCIAS RELACIONADAS


‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Em entrevista à revista da FAP de dezembro, professor da USP afirma que ‘bolsonarismo não vai se desmilinguir’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) José Álvaro Moisés diz que o projeto da frente democrática deve ser mantido, já que, segundo ele, a premissa é que “o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria”. “Isso é uma presunção em relação a um governo que não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment”, afirma, em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, publicada na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Moisés explica que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria porque, segundo ele, seria como se os bolsonaristas abrissem mão de governar. “Isso não vai acontecer”, afirma.

O professor da Unesp avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ele é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil.

Moisés publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995),"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Na avaliação do entrevistado, o grande desafio da oposição para superar o bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

Leia também:

Como o Brasil pode ter inserção positiva na economia mundial? Bazileu Margarido explica

‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Como o Brasil pode ter inserção positiva na economia mundial? Bazileu Margarido explica

Em artigo publicado na revista de dezembro da FAP, engenheiro diz que país tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O Brasil deveria buscar inserção positiva na economia mundial através da diversificação e agregação de valor à sua pauta de exportações e do investimento em inovação e tecnologia e nas novas oportunidades que estão surgindo na transição para uma economia de baixo carbono”. A análise é do engenheiro de produção e assessor econômico da liderança da Rede no Senado, Bazileu Margarido, ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com Margarido, há um cardápio extenso de atividades econômicas que deveriam ser incentivadas para a recuperação da economia depois da pandemia da Covid-19.

“O Brasil tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia, das fontes distribuídas de energia renovável e limpa, da agricultura de baixo carbono, da exploração sustentável de florestas nacionais, da universalização do saneamento ambiental, entre outras”, assinala. De 2003 a 2007, ele foi chefe de gabinete da então de meio ambiente, Marina Silva, antes de se tornar presidente do Ibama, de 2007 a 2008.

Segundo Margarido, esses investimentos têm capacidade para gerar milhões de empregos verdes e atrair capital externo ávido por um portfólio de atividades sustentáveis. Isso, segundo ele, para satisfazer as exigências de um novo consumidor, mais consciente dos limites das bases naturais que dão sustentação ao desenvolvimento.  

“Insistir na ocupação da Amazônia pela grilagem de terra, por pastos para criação extensiva de gado e pela mineração ilegal só vai nos levar ao atraso e ao isolamento político e econômico”, alerta o engenheiro. Ele também é mestre em economia e, de 2001 a 2002, foi secretário de Fazenda de São Carlos (SP).

Leia também:

‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Em artigo publicado na revista mensal da FAP, professor da Unesp avalia o que chama de ‘Ano 2’ do presidente

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mostra-se “despreparado para o exercício do governo, sequer consegue ganhar uma posição no contexto dramático de combate à pandemia, empreendendo ‘gestão’ desastrosa que não evitou os mais de 180 mil mortos em menos de 12 meses”. A afirmação é do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, Aggio também critica incapacidade do governo diante de “questões mais estruturais como as reformas tributária e administrativa que vão ficando para as calendas”.

“Sem liderança e sem rumo, a filiação de Bolsonaro a algum partido do Centrão tornou-se disputa rasa, quase um leilão, com vistas a um transformismo que garanta ao presidente um ‘novo’ protagonismo em 202’”, diz o professor da Unesp, em outro trecho de sua análise na Política Democrática Online de dezembro. “Num cenário ainda difuso, já se pode divisar, contudo, outros transformismos em projeção, todos visando alcançar o poder nas próximas eleições”, assevera.

Se, no Ano 1, o governo foi uma usina de péssimas ideias, no Ano 2 a imagem é de desolação, de acordo com o artigo do historiador. “2022 já começou e aos brasileiros importa superar a pandemia que nos assola bem como a crise que desorganiza a nação depois da sanha destruidora que se instalou no poder”, afirma Aggio, para acrescentar: “Só assim se poderá conceber em que termos avançaremos para o futuro, depois da breve – assim esperamos – ‘era Bolsonaro’”.

Em seu artigo, o professor da Unesp lembra que, no final do ano passado, publicou um artigo com o título “Bolsonaro, Ano 1”. “Mobilizei, intencionalmente, a demarcação temporal recorrendo àquilo que Benito Mussolini estabeleceu para a Itália quando instituiu o fascismo. Contava-se a sequência dos anos da ‘Era Fascista’, com início em 1922, ano da tomada do poder com a ‘Marcha sobre Roma’. Como todo aspirante a ‘revolucionário’, Mussolini acalentava a ideia de alterar o tempo histórico”, explica.

Leia também:

Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Cacá Diegues: Um prefeito

Zé Pelintra se impôs ao ódio ao carnaval

Temos finalmente um prefeito, coisa que nos faltava há quatro anos. O deputado Pedro Paulo já nos deu más notícias de como vai encontrar as contas da cidade. Mas pelo menos não somos mais obrigados a ver na televisão a cara do bispo tentando iludir não sei quem, com aquela voz e trejeitos de falsa realidade virtual. Seu coração não se partirá mais, o Zé Pelintra se impôs a seu ódio ao carnaval. Agora vamos trabalhar para recuperar a cidade de tanta crueldade com ela e seus (bons) costumes.

As mortes de João Alberto, assassinado num supermercado em Porto Alegre, e de Carlos Eduardo, vítima da tuberculose no chão de uma padaria em Ipanema, bem ilustram a violência brasileira. Não se trata apenas da morte de dois negros. Mas da morte de dois negros pobres que certamente não seriam assassinados, nem deixados sob um plástico às costas de insensíveis, se tivessem algum dinheiro para se virar. Não se trata apenas de racismo, mas de discriminação social agravada pelo racismo. A desigualdade, segundo o Índice Brasileiro de Privação (IBP), um IDH nacional criado pela Fiocruz, responde hoje por 30% da mortalidade de crianças de até 5 anos.

“A cultura é a própria identidade do Rio”, diz o plano do prefeito eleito anunciado antes da eleição“Ela presta homenagem à memória de nossa cidade.” E ainda é objeto de uma economia bem-sucedida. “Vamos refundar a Riofilme, que voltará a ter um papel de protagonista na produção audiovisual carioca.” Um papel que a produção carioca sempre teve no audiovisual brasileiro, desde sempre. No passado, Eduardo Paes garantiu ao setor 1% do orçamento municipal, o suficiente para manter nossos filmes sendo produzidos com sucesso.

O Brasil é um país múltiplo e diverso, sua melhor tradução pode estar num igarapé amazônico, nas areias de praia baiana, nos Pampas, numa cidade histórica de Minas, na Avenida Paulista. Ou nas favelas do Rio. Cabe aos criadores representá-lo como julgarem mais conveniente, não existe verdadeira cultura brasileira sem diversidade. Com a pandemia, pobreza e desigualdade cresceram, vizinhanças inteiras não têm esgoto, nem acesso à água, não importa se o cara é preto ou branco. Segundo o IBGE, o Brasil é hoje o nono país mais desigual do mundo.

Isso talvez devesse ser tema eleitoral da esquerda. Mas a esquerda preferiu disputar a eleição por hegemonia em seu campo. Se a simpática Benedita, a heroica Martha e Renata, a herdeira de Marielle, tivessem acertado uma aliança, seus votos somados teriam colocado a candidatura de esquerda no segundo turno, em vez da velha direita satânica do doutor Crivella. O vencedor escolheu a concertação, em vez da polarização doutrinária, entendeu que o pessoal está querendo é trabalhar em paz (quando tem emprego e, portanto, trabalho). Agora estão ameaçados de não poder se imunizar, porque o presidente não gosta de vacina. Para ele, já está bom se sobrarmos alguns para levantar a economia até 2022 e para morrer de Covid sem encher a paciência do Estado. E daí? Todo mundo morre, e o presidente não é coveiro.

A maioria desses “invisíveis” é hoje administrada por paramilitares ligados ao tráfico de drogas e às milícias. Desde que passou a ser desrespeitada a decisão do STF determinando que operações policiais em favelas só fossem realizadas em situação excepcional, o Rio conheceu 237 ações nas comunidades, mais de uma por dia. Ao todo, 145 pessoas foram mortas por policiais no mês de outubro, um aumento de 179% em relação a setembro. Entre as vítimas, crianças e adolescentes que não tinham nada a ver com isso.

Nunca se levam em conta experiências como as do Favela-Bairro ou das UPPs, que começaram bem e foram desmobilizadas pela própria polícia, pela corrupção e pelos governantes que não se interessaram em executar a melhor parte dos programas, a montagem nas comunidades de centros urbanos com atividades comerciais, de entretenimento e utilidade públicaDez anos atrás, em novembro de 2010, os traficantes foram expulsos do Alemão com estardalhaço e show na televisão. Com isso, instalaram-se ali, entre outros serviços, agências de banco, salas de cinema e um teleférico para servir à população obrigada a subir o morro. Quando, pouco depois, os bandidos voltaram, tudo isso foi abandonado por falta de segurança. O teleférico é hoje uma ruína enferrujada, monumento morto à incompetência e ao arranjo.

Bem depois da Abolição, Joaquim Nabuco escreveu: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Não é necessário ler Karl Marx para entendê-lo. Veja como, há um século e meio, a Suécia era muito mais desigual que o Brasil de hoje e, no entanto, deram um jeito nisso, sem gulags nem massacre de milhões. Para ser um bom prefeito, nem precisa saber nada disso. Basta sensatez e, quem sabe, um bom coração.


Demétrio Magnoli: Duas lendas sobre 2022

As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo deste ano

Nasceram, no berço do segundo turno das eleições municipais, duas lendas paralelas. A primeira assegura que o triunfo de Bruno Covas (PSDB) consolida a posição de João Doria como principal desafiante de Jair Bolsonaro na disputa pelo Planalto. A segunda, que o resultado de Guilherme Boulos (PSOL) o converte no eixo de reorganização das esquerdas para as eleições presidenciais. Nenhuma delas resiste ao crivo da análise realista.

A lenda número um parte das falsas premissas de que Covas obteve uma vitória avassaladora e, ainda, de que Doria cumpriu papel relevante na batalha da prefeitura paulistana. De fato, o prefeito alcançou apenas 32% dos votos no turno inicial, um desempenho relativamente modesto, e teve que carregar o fardo do patrocínio de um governador com alta rejeição na capital paulista. Já no turno final, o triunfo por margem folgada deveu-se à geometria da disputa: desde 2015, quando escancarou-se o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, a esquerda perdeu as condições de vencer eleições na cidade ou no estado de São Paulo.

Doria desponta como rival nacional do presidente graças, exclusivamente, à atual carência de alternativas fora do campo da esquerda. Essa carência, por sua vez, deriva tanto da implosão ideológica do PSDB, concluída com a própria ascensão de Doria, quanto do retumbante fracasso de Sergio Moro na sua tentativa de conquistar para o Partido da Lava Jato a maior parte do eleitorado bolsonarista.

As fraquezas do governador paulista são evidentes. Bolsonaro venceu uma eleição configurada como plebiscito sobre Lula. Doria chegou à prefeitura e ao governo estadual surfando alegremente a mesma onda do antipetismo. O ano de 2022 será, ao que tudo indica, também um pleito plebiscitário —mas sobre Bolsonaro. Não é fácil ver como Doria encarnaria um contraponto crível ao seu parceiro do passado recente. Um bolsonarismo de butique, suave e racional, parece um frágil contraponto ao bolsonarismo legítimo, forjado nas brasas do extremismo e do populismo.

A lenda número dois expressa, ao menos por enquanto, apenas o desejo de Boulos. De fato, sustenta-se numa avaliação exagerada do desempenho eleitoral do candidato do PSOL.

Boulos fez uma campanha inteligente, destinada a arredondar os ângulos agudos de sua persona política. Mas, no fim das contas, foi conduzido pela correnteza de vazante que acompanha o declínio petista. O Boulos dos 20% do primeiro turno herdou o vasto eleitorado de esquerda tradicionalmente atraído pelo PT. Já o dos 40% do segundo turno acrescentou o eleitorado que rejeita Covas, Doria ou ambos. Desse ponto de vista, sua votação surpreende tanto quanto o nascer cotidiano do sol.

O PT chegou ao turno final de todas as eleições paulistanas desde 1988. O solitário ponto fora da curva foi 2016. Boulos foi adotado por um eleitorado petista decepcionado com a candidatura do obscuro apparatchik Jilmar Tatto como o legítimo nome do partido. Isso faz sentido, mas não tem as implicações sonhadas por ele.

A versão de Boulos da ideia de renovação da esquerda é o retorno a um lulismo primordial, anterior ao pecado —isto é, ao mensalão e à Odebrecht. Seu projeto nunca foi de ruptura: ele almeja receber das mãos de Lula as chaves do castelo da esquerda. Mas, para isso, seria preciso brilhar fora do PT, num palco limpo, puro e casto. No início, apostou na criação de um partido-movimento, como foi o Podemos espanhol. Depois, conformou-se com o atalho oferecido pelo PSOL.

A solução não remove os obstáculos centrais. Numa ponta, Boulos depende de um improvável gesto de renúncia de Lula para tomar posse da máquina eleitoral petista. Na outra, sua promessa de unidade das esquerdas esbarra na sua opção pela reiteração infinita do discurso político e econômico lulista.

As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo de 2020.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


César Felício: O poder da palavra

Para Doria, há a vacina; e para Bolsonaro, a economia

As eleições de 2022 já começaram há muito tempo, talvez ainda antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro há quatro anos, mas ganharam tração evidente com a conclusão da eleição municipal. Está presente desde então em cada um dos atos, palavras e omissões de Jair Bolsonaro, João Doria, Bruno Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, Jaques Wagner, Ciro Gomes, Guilherme Boulos e Alexandre Kalil, entre outros.

Um exemplo, entre muitos, foi o anúncio feito ontem pelo governador João Doria de que “os brasileiros de São Paulo” começarão a ser vacinados contra covid-19 no mês que vem. Se ele realmente tem poder para fazer isso, ou se terá que ter o aval de outras instâncias, é algo ainda a ser esclarecido. A ocasião serviu, contudo, para o governador registrar a “ falta de compaixão com a vida dos brasileiros” do governo federal, que demonstra pouquíssima pressa em iniciar a vacinação, a despeito de todos os custos humanos, sociais, econômicos e políticos envolvidos nessa decisão.

A retórica e a prática anticientífica também são cálculo político de Bolsonaro. O presidente é um homem de redobrar as apostas, e já durante a campanha percebeu que o negacionismo mobiliza seus fiéis. Um estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV, feito ainda em outubro, mostra que houve um grande volume no YouTube de vídeos negativos sobre vacinas em geral e da Coronavac em particular, coisa como 15 milhões de visualizações.

Com baixa inserção nacional e amplamente rejeitado nos grandes centros de São Paulo, o governador tucano pode virar o jogo se a vacina produzida no Butantã em parceria com os chineses se comprovar eficaz.

Bolsonaro tenta minar o adversário, mas vive o seu próprio desafio. Será um complicador para o presidente viabilizar a sua reeleição se uma percepção negativa em relação à economia predominar. Fim do auxílio emergencial, desemprego em alta e o repique da inflação não ajudam a diminuir essa percepção.

É preciso pelo menos dominar a narrativa, e nesse sentido a recuperação do PIB, com o crescimento trimestral do PIB de 7,7%, foi muitíssimo bem vinda. O resultado ficou abaixo das expectativas do mercado, mas foi festejado nas redes com hastags mencionando “Bolsonaro 2022”, “Bolsonaro até 2026” ou coisas assim. A consistência da recuperação é tema para debate, mas a sequência recessiva foi quebrada. Politicamente é o que basta, por ora.

A exceção

Em abril de 2018, a executiva do mercado financeiro Cristina Monteiro recebeu um e-mail do Novo fazendo um chamamento para que ela entrasse no processo seletivo da sigla para concorrer a deputada estadual em São Paulo. O partido estava com dificuldades de cumprir a cota de 30% de candidaturas de mulheres. Ela não teve muitas dúvidas em largar 30 anos de trabalho em bancos e consultorias americanas, que lhe proporcionaram um patrimônio declarado de R$ 18 milhões, para entrar na corrida eleitoral de modo improvisado. Pegou a quarta suplência e deixou de ser eleita por 4 mil votos. Foi a eleição mais “outsider” do Brasil.

Este ano, Cristina foi candidata a vereadora, com convicção absoluta não só de que ganharia como a de que haveria muito mais casos como o dela na Câmara paulistana. Não foi o que aconteceu. Ela foi eleita, mas com 19 mil votos, menos do que esperava. O Novo conseguiu apenas duas vagas e o Patriotas, que abriga integrantes do MBL, também de corte liberal e “outsider”, ficou com três.

Cristina contou com a retaguarda da Rede de Ação Política de Sustentabilidade (Raps), ONG de capacitação política que nasceu de uma iniciativa de empresários, há oito anos. O Raps viu 17 de seus integrantes se elegerem prefeitos e 40 se tornarem vereadores, mas a maioria deles já tinham estrada política. “O eleitor não rechaçou os políticos com bagagem. Privilegiou gestões que se mostraram referência em relação à covid, por exemplo”, comentou a diretora executiva da entidade, Mônica Sodré.

A vereadora do Novo tornou-se assim exceção, não tendência. Chega à Câmara procurando ser realista e pragmática. Não quer comprar briga com os caciques tradicionais da política paulistana que devem continuar dando as cartas no Legislativo local. “A gente tem que escolher as guerras que quer entrar e fazer a política da boa vizinhança”, comentou.

Rota de fuga

Crise econômica e social, por um lado, e possíveis mudanças em controles migratórios, por outro, podem consolidar a rota de fuga do Brasil para os Estados Unidos. Mesmo com Trump, há indícios claros de que cresceu o interesse da colônia brasileira naquele país em fincar raízes por lá. A pista está em levantamento de um escritório de advocacia americano especializado no tema, o AG, com base em dados do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos.

Em 2012, último ano do governo Obama e do Brasil sem crise social e econômica, 11.441 brasileiros nos Estados Unidos obtiveram o “green card”. Em 2019, o primeiro da era Bolsonaro e o último de um Trump em sua plenitude, foram 19.825. Quase o dobro. Outra ferramenta, a do TRAC, um centro de estudos da Universidade de Syracusa, sugere que o número de indocumentados também aumentou no período.

O número de procedimentos de deportação passou de 1.399 em 2012 para 15.939 em 2019. Um salto de mais de dez vezes. O número chama a atenção sobretudo em comparação com 2018, quando foram abertos 5.986 procedimentos. No primeiro ano das especialíssimas relações de Bolsonaro com o governo republicano, o contingente quase triplicou.

Houve mais disposição de Trump em deportar, mas também mais empenho de brasileiros em fazer a América.

Segundo um advogado da AG, o brasileiro Felipe Alexandre, morador em Los Angeles há 32 anos, a expectativa é de um trato muito mais suave de Joe Biden em relação tanto à deportação de imigrantes quanto a de concessão de vistos definitivos para quem está no país legalmente. O empecilho momentâneo para 2021 é o sanitário, uma vez que o acesso de brasileiros aos Estados Unidos está limitado pela covid-19.

Terminada a pandemia, com um governo democrata em Washington e o Brasil enfiado no desenredo que se encontra, tudo indica que o fluxo ganhará força.


Míriam Leitão: Recomeço ou nova direção

Os prefeitos eleitos terão que começar a trabalhar imediatamente, mesmo antes da posse. Há desafios enormes. A boa notícia é que a situação das contas públicas das cidades está melhor do que se imagina. Houve muita transferências do governo federal neste ano, as cidades são menos endividadas do que os estados e há prefeitura com dinheiro em caixa. O erro será usar isso para aumentar gastos que não sejam os destinados às muitas urgências do momento. Na educação, serão dois anos em um, na saúde há a pressão da pandemia, na arrecadação, o imposto sobre serviços não vai se recuperar facilmente.

Eleição sempre renova as esperanças de que os problemas sejam resolvidos mais facilmente pelo gestor reeleito por causa de uma administração bem avaliada ou pela eleição de um novo gestor que resgate a cidade de erros passados. Aqui na coluna conversamos com alguns economistas que falam sobre a situação municipal. Giovanna Victer é presidente do Fórum Nacional de Secretários Municipais de Fazenda, e ela mesma é secretária de Niterói, onde o prefeito Rodrigo Neves, do PDT, elegeu seu sucessor Axel Grael no primeiro turno.

— Houve um aumento significativo do volume de transferências da União para os municípios. O critério foi o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e sem relação com a pandemia. Então houve cidade que teve mais receita do que gasto com saúde e o contrário também aconteceu — diz.

Normalmente, cidades menores ou de regiões mais pobres têm um repasse relativamente maior pelo critério de distribuição. Houve também outra forma de socorro aos estados e municípios, que em alguns casos cobriu a queda de arrecadação.O ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida também diz que essas transferências feitas via FPM, ou o socorro para a pandemia, fizeram com que em muitas cidades o ano esteja fechando bem, e com dinheiro em caixa para investir em 2021. Além disso, houve as remessas em 2019 e começo de 2020, por causa da cessão onerosa.
No ano passado, os 4.958 municípios acompanhados pelo Tesouro fecharam com superávit de R$ 32 bilhões. Mas em algumas cidades os gastos precisam ser ajustados. O Rio de Janeiro tem uma despesa bruta alta de 79% da Receita Corrente Líquida. E é também o município com o maior serviço da dívida, que chega quase a 9% da Receita Corrente Líquida. As despesas com pessoal saíram de 48% do gasto total em 2016 para 60% em 2019. Há situações bem diferentes entre as cidades.

— Haverá município pequeno em que o novo prefeito vai encontrar dinheiro em caixa. Minha preocupação é que esses prefeitos avancem sobre esses recursos e contratem despesas permanentes — diz Giovanna.

O problema é que esse caixa é “fictício”, como ela diz, porque vem dessas transferências especiais. Mansueto também alerta que os recursos da cessão onerosa não vão se repetir.

O dinheiro que sustenta as grandes cidades é altamente dependente da atividade econômica, como por exemplo o que vem do Imposto sobre Serviços. O setor tem segmentos que não voltaram à normalidade. E dificilmente conseguirão no curto prazo. E há muito a fazer no curto prazo:

— Precisamos retomar as políticas habitacionais, porque isso cria emprego e são muitos anos sem ter política de habitação. Tem impacto social importante. Vamos ter urgências sociais, como a de trazer as crianças de volta às escolas, há muitas abandonando as aulas, principalmente no Fundamental II. Precisamos de logística para a vacinação. E temos o desafio da retomada econômica que depende das políticas nacionais — explica Giovanna Victer.

Ela acha que a prefeitura do Rio não está quebrada, ainda que tenha despesa corrente maior do que a receita. Giovanna acredita que o Rio poderá aumentar a arrecadação se suspender subsídios e se reorganizar a prefeitura com um freio de arrumação.

No resto do país, Mansueto lembra que 684 municípios têm nota A de crédito e 809 têm nota B. Podem pegar empréstimo com o aval do Tesouro. Mesmo assim, prefeitos preferem procurar linhas da Caixa que são muito mais caras, mas mais rápidas. O Rio, por exemplo, pegou cinco empréstimos em 2017 e 2018, quatro na Caixa e um no Santander. Todos sem garantia da União. Mas em geral os municípios estão em situação melhor do que os estados e têm espaço para recomeçar com boa gestão.


Ana Carla Abrão: Novos mandatos, velhos problemas

Problemas estruturais continuam presentes em todos os municípios – e os novos prefeitos precisarão enfrentá-los

Há o que comemorar nos resultados das eleições municipais. Se comparadas às eleições anteriores, tão marcadas pela intolerância e pela agressividade, fica claro que uma brisa de temperança dominou. Com ela, ressurgiu a ideia de que há caminho no centro e uma sensação de que a população se vê menos inclinada a mitos, radicalismos e extremos. Tudo isso a conferir, mas algum alento veio das notícias da última noite de domingo.

Mas isso infelizmente não significa que a vida será mais fácil para os novos prefeitos. Apesar das folgas de caixa geradas pelos socorros do governo federal, cujos números foram levantados pelo economista Marcos Mendes e publicados pelo Estadão em matéria de Adriana Fernandes, problemas estruturais de sempre continuam presentes (e maiores) em todos os municípios – e precisarão de coragem dos novos prefeitos para enfrentá-los.

O tamanho do desafio se reflete no Ranking de Competitividade dos Municípios, recém divulgado pelo Centro de Liderança Pública – CLP e elaborado em parceria com a Gove. O relatório com indicadores de 405 municípios serve de guia para os novos gestores entenderem onde estão e o quanto há para fazer se quiserem melhor atender e servir a população das suas cidades. E é o que se espera deles. Afinal, toda nova eleição tem algo de otimismo, de expectativa de melhora, de uso de capital político recém-conquistado para que se faça o que é preciso. Quiçá seja assim desta vez. 

O ranking de municípios é um filhote do ranking dos Estados, há anos publicado pelo CLP em conjunto com a Tendências Consultoria e a The Economist Intelligence Unit. A avaliação abrange municípios com população acima de 80 mil habitantes e se baseia em 55 indicadores, organizados em 12 pilares e 3 dimensões. As informações coletadas se referem a 2019, não incorporando, portanto, os efeitos da pandemia nem tampouco dos recursos recebidos e aplicados ou não no seu combate.

A primeira dimensão analisa as instituições do município, focando nos pilares de sustentabilidade fiscal e funcionamento da máquina pública. A segunda olha para o atendimento à sociedade, composta pelos pilares de saúde e educação, avaliando tanto acesso quanto qualidade, além de saneamento e meio ambiente. Por fim, indicadores de inserção econômica, inovação, dinamismo, capital humano e serviços de telecomunicação compõem o terceiro pilar, de avaliação econômica.

A concentração no Sudeste é consequência do corte mínimo de 80 mil habitantes, mas quase 60% da população brasileira está abrangida pelo conjunto de municípios avaliados. Os resultados dizem o que já sabemos – e sentimos no dia a dia: há cidades brasileiras cujas avaliações relativas são positivas e que apresentam bons indicadores. Mas, no absoluto, a totalidade delas tem uma agenda de avanços a cumprir se de fato os novos gestores quiserem melhorar a vida dos seus eleitores e munícipes. O ranking atual mostra o município de Barueri no topo da lista, seguido de perto por São Caetano do Sul (SP) e na sequência as capitais São PauloFlorianópolis e Curitiba. Na lanterna surgem cinco municípios do Pará: Marituba, Tucuruí, Abaetetuba, Tailândia e Moju. Os destaques dos primeiros são as mazelas dos últimos, com educação, saúde e saneamento como os grandes heróis e também os maiores vilões.

São Paulo, maior e mais rico município do País, se encontra em posição de destaque graças a alguns dos indicadores que medem as dimensões de economia e a qualidade das suas instituições. Nas avaliações de funcionamento da máquina pública e desempenho fiscal, como tudo é relativo, a capital paulista figura na 4.ª posição na primeira, mas está medianamente posicionada na segunda, ocupando a 31ª colocação. Essas dimensões representam, respectivamente, 10,7% e 8,0% de peso no índice geral e medem questões como dependência fiscal, taxa de investimento, despesas de pessoal e endividamento na dimensão fiscal e custo da função administrativa, tempo para abrir uma empresa e qualificação do servidor como critérios de avaliação da máquina. Em alguns desses, como taxa de investimento e nível de endividamento, a capital não brilha.

Mas é na dimensão de atendimento à sociedade que a capital surpreende negativamente – e muito. São Paulo não só não aparece entre os cinco melhores avaliados em nenhum dos indicadores de educação, saúde, segurança ou saneamento, como ocupa uma injustificável 72.ª colocação no ranking geral dessa categoria.

Esse é um excelente ponto de partida para o prefeito eleito, Bruno Covas, cujas juventude e renovadas energias poderão levar adiante esse que é o maior dos mandatos conquistados nas urnas: o de cuidar das pessoas. Para isso, há pedras a serem quebradas, dentre elas uma mudança estrutural no funcionamento da máquina municipal, cujas qualidades têm de estar voltadas para o cidadão e não para si própria. 


Vinicius Torres Freire: Meteoros vermelhos caem, esquerda se renova e centrão domina

Eleição municipal foi uma onda cinza, dominada pelo crescimento do PSD e pelo ressurgimento do DEM

Os meteoros vermelhos que brilharam nesta eleição caíram. Os candidatos mais jovens da esquerda perderam, por diferença de votos maior do que as das projeções de véspera das pesquisas. O PT não venceu nenhuma capital. O PSOL conquistou Belém, com Edmilson Rodrigues, prefeito agora pela terceira vez, com um vice do PT, batendo o candidato bolsonarista.

De destaque, foi tudo. A eleição foi uma onda cinza, dominada pelas sub-legendas do centrão, pelo crescimento do PSD e pelo ressurgimento do DEM, onda confirmada neste segundo turno.

Guilherme Boulos (PSOL) perdeu para o PSDB em São Paulo, Marília Arraes (PT) perdeu para a “esquerda de centro” do PSB em Recife, Manuela D’Ávila (PC do B) perdeu para a velha política do MDB em Porto Alegre.

Sob certo aspecto, ainda assim essas derrotas têm um quê de ressurreição no fundo do poço. Nessas cidades muito grandes, simbólicas e importantes, candidatos de cara nova mostraram que a esquerda tem um grande potencial de votos. Deve haver mais gente no restante do país disposta a ouvir candidatos esquerdistas. Talvez seja necessário mudar a conversa.

As derrotas do PT e a passagem dos meteoros vermelhos indicam que o eleitorado desse campo do território político procura alternativas ou pode prestar atenção nelas. As lideranças nacionais da esquerda, ao menos em poder de voto, estão agora divididas em vários partidos, das velhas às novas, de Ciro a Boulos. O PT aparece no retrato, mas num canto.

Das legendas contadas como “esquerda” na geografia do Congresso, apenas o PDT de Ciro Gomes teve resultados razoáveis, em termos de números. Quase manteve o número de prefeituras conquistadas pelo país na eleição passada. Ganhou em duas capitais, Aracaju e Fortaleza.

O PT levou apenas 4 das suas 15 disputas de segundo turno, em redutos tradicionais em Minas Gerais, com duas prefeitas eleitas (Contagem e Juiz de Fora), e na região metropolitana de São Paulo (Mauá e Diadema).

Foi o partido com mais candidatos na disputa final deste domingo (em 2016, disputou apenas 7 rodadas finais). Mas esse desempenho não apaga nem traços do desastre na cidade de São Paulo e da derrota da renovação que seria Marília Arraes, novidade sabotada pelo PT local até quase as vésperas da campanha eleitoral.

Um problema do partido, notável neste século, pode explicar parte de suas dificuldades: o centralismo, o culto da personalidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o escanteamento das novas lideranças, o abafamento de quem ponha a cabeça para a fora, a desconexão crescente com os novos movimentos sociais. Tudo isso dificulta a renovação de quadros e ideias do PT.

Em parte, o PSOL, em especial o paulista, cresceu neste vácuo, mostrando caras novas e levando coletivos e movimentos sociais novos da periferia para o Legislativo.