Dorrit Harazim

Dorrit Harazim: A (re)descoberta de um Brasil

Desastre — que é mais que desastre e tragédia, é crime — fez emergir um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico

Nada mais no país parece estar no mesmo escaninho de antes das 12h28m de 25 de janeiro, quando as sirenes da barragem da mineradora Vale em Brumadinho permaneceram mudas. Termos como “alteamento a montante” ou “a jusante” saltaram de planilhas de engenharia para o vocabulário caseiro de uma sociedade em choque. E brotou algo novo dessa primeira semana de luto em que substantivos como legislação, fiscalização, prevenção, responsabilização escancararam sua porosidade letal. Algo quase inebriante, que só poderá ser avaliado por gerações futuras: a possibilidade, ou pelo menos a oportunidade, de ocorrer um início de mudança na história da construção/ formação do Brasil.

“Colheita da morte” é o título da célebre série fotográfica de Timothy Sullivan e Alexander Gardner que retrata a batalha mais sangrenta da Guerra Civil americana —a de Gettysburg (1863), na Pensilvânia. Em apenas três dias de combate, as tropas confederadas do Sul e o exército do Norte sofreram algo entre 47 mil a 51 mil baixas. Foi talvez o momento mais decisivo do conflito, aquele que redefiniu para sempre a história dos Estados Unidos. Não se espera tanto do “vale da morte” de Brumadinho. Mas o desastre —que é mais que desastre e tragédia, é crime — fez emergir algo há muito esquecido no cotidiano cínico e raivoso de hoje: um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico. Quem apontou para essa fagulha de convivência foi o repórter Juan Arias, no diário espanhol “El País”, ao propor o Corpo de Bombeiros atuando em Minas como candidato ao Prêmio Nobel da Paz de 2019. “Esses bombeiros fizeram de suas mãos[...] um instrumento de paz e ilusão de poder encontrar vida”, escreveu ele, argumentando que o país reaprendeu a torcer por uma mesma coisa.

No entender do jornalista, o lodo tóxico da Vale serve de metáfora política do Brasil envolto em corrupção, violência, desamparo social. E esses incansáveis socorristas conseguiram o milagre de, por um instante, unificar a sociedade. “Eles semearam paz num momento em que o ceticismo secava corações”, observou. Pouca coisa não é.

Rastejando feito catadores de caranguejos que entram no mangue e ali tateiam o dia inteiro em busca do crustáceo, as equipes Desastre — que é mais que desastre e tragédia, é crime —fez emergir um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico de emergência chafurdam na gosma tóxica em busca de vida, mesmo que seja apenas um pedaço de vida. Da torrente de testemunhos que compõem o dantesco cenário, um relato do repórter André Borges, do “Estado de S.Paulo”, se sobressai. É cru. Retrata o que não dá para ver sobrevoando a região de helicóptero.

Borges se juntara a uma equipe de 11 brigadistas numa margem com vegetação, com incursões no lamaçal de até seis metros de profundidade à procura, ainda, de sobreviventes. Em determinado momento, alguns chegaram ao que seria um corpo humano. “Com luvas”, escreveu o repórter, “um deles se abaixa e passa a recolher órgãos . Vísceras, estômago, fígado. Roupas. Em fila indiana vão passando o que encontram de mão em mão, até depositar as partes sobre uma manta metálica no chão”. Nas primeiras 24 horas, o cômputo oficial era de nove mortos e 300 desaparecidos. No meio da semana, a equação já era outra: 99 mortos para 259 desaparecidos.

Na sexta-feira, encerrando a primeira semana de luto com 115 mortos, pétalas de flores foram jogadas sobre o vale da morte onde 248 ainda permanecem misturados à terra em transe. Como diz o bordão, todos nós somos iguais perante a lei, mas não perante encarregados de aplicá-la.

Raiva e indignação são formas de comunicação densa — elas repassam informação e contagiam com mais velocidade do que qualquer outra forma de emoção. O americano Charles Duhigg, Pulitzer de reportagem em 1998, sustenta que a indignação é uma grande força social e que emoções à solta, sem reconciliação ou catarse no horizonte, podem tornar uma sociedade destrutiva. Ou, no caso, simplesmente anestesiada pelo uso retórico e previsível, por parte de pequenos poderes e poderosos nominais, de declarações que começam por “’É preciso...”

Não é por acaso que o tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros encarregado de divulgar as boas e más notícias à nação, emergiu como um bálsamo pela postura e linguagem precisas, com ausência igual de afetação e empulhação. A classe política brasiliense deveria fazer um intensivão moral-cívico com ele. Brumadinho tanto pode retratar o passado, o presente ou o futuro do Brasil. A escolha é nossa de fazer história.


Dorrit Harazim: O Jardim do Éden

Fórum que pretende reduzir desigualdade não se destina a resolver problemas, e sim a apresentar ideias e adensar networking entre poderosos

Aos 92 anos, o naturalista britânico Sir David Attenborough tem obra aclamada e capital moral para nos ensinar montes sobre a vida no planeta Terra. Pena que seu discurso no Fórum Econômico de Davos, esta semana, recebeu menos atenção do que o fato de o príncipe Albert de Mônaco tê-lo entrevistado no evento. Nada como um príncipe para turbinar o noticiário, independentemente da qualidade do sangue azul que corre nas veias da realeza.

Attenborough apresentou-se literalmente como um homem de outra era. “Nasci durante o Holoceno — o período de estabilidade climática que durou 12 mil anos e que permitiu aos humanos assentarem-se, cultivarem a terra e criarem civilizações”, explicou. Nesse período, o homem aprendeu a trocar ideias e mercadorias, tornando-nos “a espécie globalmente conectada que somos hoje”. Ao longo de sua vida, porém, tudo isso mudou. “O Holoceno acabou. O Jardim de Éden deixou de existir. Mudamos o mundo de tal forma que os cientistas já falam de uma nova era geológica...”

Difícil atestar se o alerta de Attenborough, segundo o qual ameaças ambientais são, em essência, o perigo número 1 para a economia global, teve algum impacto em Davos. Em contrapartida, levantamento feito pela ONG britânica CDP (sigla de Carbon Disclosure Project) junto a mais de sete mil empresas do mundo inteiro, mereceu a devida atenção. O trabalho revela os dois lados da moeda ambiental: o que impulsiona ainda mais os negócios, e o que ameaça paralisar gigantes corporativos. Ambos em decorrência dos mesmos desastres e tragédias climáticas.

A newsletter americana Axios pinçou algumas respostas-choque das empresas consultadas pela CDP sobre o impacto do clima nos seus negócios. A gigante farmacêutica Merck & Co, por exemplo, prevê um aumento no número de pessoas doentes mundo afora, o que alavanca a demanda por toda uma gama específica de medicamentos. As concorrentes Eli Lilly e Pfizer apostam na mesma linha.

A Apple, por seu lado, prevê que mais desastres tornarão essenciais a multiplicação de iPhones como ferramenta socorrista, enquanto a Coca-Cola manifesta grande preocupação com a escassez de água e os consequentes riscos de paralisação para suas operações. Disponibilidade de água cada vez menor também assombra os fabricantes mundiais de chips eletrônicos, e as grandes seguradoras temem não ter colchão para responder a sucessivas condições climáticas extremas. A conclusão dos analistas é que, diante da enormidade que se avizinha, o mundo corporativo talvez comece a demandar de governos políticas públicas ambientais mais severas.

Esse universo corporativo é o que frequenta Davos. Dos cerca de três mil participantes, perto de 900 são CEOs ou presidentes de empresas, e mais de 70 são líderes mundiais — embora nem sempre de primeiro time. O Fórum que pretende reduzir desigualdade e encarar a questão ambiental não se destina a resolver problemas, e sim a apresentar ideias e adensar o networking entre poderosos, influentes e famosos. Ou, como descreveu o escritor e analista de riscos Nassim N. Taleb, “o evento é uma desenfreada caça a pessoas de sucesso, que por sua vez querem ser vistas com outras pessoas de sucesso”. Mesmo veteranos de várias edições concordam com uma avaliação feita anos atrás pelo fundador da AOL, Steve Case: “Você sempre tem a sensação de estar no lugar errado, que tem alguma reunião muito mais importante acontecendo onde você não está. É como se o verdadeiro Fórum estivesse acontecendo alhures, em segredo”.

Como da primeira Davos a gente nunca se esquece, é certeiro o comentário do presidente Jair Bolsonaro entreouvido pela reportagem do “Estado de S.Paulo” sobre “os pobretões que estavam na minha mesa ontem”. O presidente referia-se ao jantar de véspera no qual o fundador do Fórum, Klaus Schwab, as rainhas da Jordânia e da Bélgica, e os presidente da Apple e da Microsoft estavam entre seus comensais. A presença física de bilionários em Davos é rotineira. Este ano a novidade foi ter o seu peso aquilatado em relatório da Oxfam, divulgado simultaneamente ao evento. A constatação de que apenas 26 desses indivíduos concentram um volume de riqueza igual ao de 3,8 bilhões de pessoas espalhadas pelo planeta assombrou até mesmo os mais cínicos. O brasileiro Jorge Paulo Lemann ficou fora dessa seleta por pouco — está em 29º lugar na lista dos mais bilionários, cujos ativos cresceram US$ 2,5 bilhões por dia.

O Jardim do Éden acabou, como disse Attenborough. No Brasil, a nova era se escancara no horrendo desastre ambiental de Brumadinho.


Dorrit Harazim: Alta rotatividade no império

Conselhos, argumentação, dados, experiência — nada disso funciona com Donald Trump, que toma decisões pautado por ímpetos

Quatro anos atrás, naquele passado longínquo anterior à era Trump, o general quatro estrelas James Mattis deu uma reveladora palestra na Califórnia sobre segurança nacional dos Estados Unidos. Para falar da prioridade em prover ordem e serenidade em casa, o ex-comandante dos Fuzileiros Navais recorreu a uma instrução que todo passageiro de voo comercial conhece bem — em caso de despressurização o adulto deve, primeiro, ajustar a máscara de oxigênio sobre o próprio nariz e boca, para só então tentar ajudar crianças ou necessitados à sua volta. Também o país precisa de uma sociedade madura para tomar decisões seguras, disse.

Sob este prisma, a bombástica renúncia de Mattis do posto de Secretário da Defesa parece confirmar o que está resumido em seis das 397 páginas do livro “Medo”, best-seller do jornalista investigativo Bob Woodward. No capítulo 37, o autor descreve uma delirante reunião de janeiro último no Salão da Situação da Casa Branca entre o presidente da maior potência mundial e seu Conselho de Segurança Nacional.

Woodward conta que Trump estava vociferante contra um tratado firmado entre Washington e Seul em 2006, por considerá-lo mau negócio. Exigia pela enésima vez que lhe explicassem por que a Coreia do Sul era aliada dos EUA. O que os Estados Unidos lucravam com isso? A resposta mais direta partiu de Mattis: “ Estamos fazendo tudo isso para evitar a Terceira Guerra Mundial”. A reunião foi um fracasso. O autor narra que na época o general chegara a comentar que o presidente se comportava como “um aluno de quinto ou sexto ano ” , cuja capacidade de compreensão não ultrapassava essa faixa etária. Trump jamais digeriu o alarmante quadro de nau à deriva descrito no livro.

Dos participantes de primeiríssimo time daquela reunião não sobrou pó. Rex Tillerson foi expelido da Secretaria de Estado, o general H.R. McMaster abandonou a Assessoria de Segurança Nacional, a chefia de gabinete da Casa Branca está acéfala desde a saída de John Kelly , e agora foi a vez de Mattis pedir as contas. Neste cenário de terra arrasada, 35 integrantes de primeiro ou segundo escalão renunciaram ou foram afastados por Trump nesses dois primeiros anos de governo.

Cabe, contudo, qualificar o caso atual. A docilidade quase servil do cambiante “Trump team” ao longo desses 24 meses deveria ter soado vários alarmes, desde a primeira reunião formal do gabinete pleno, em junho de 2017, quando Trump incentivou (ou foi alvo espontâneo) de singular adulação por parte de seus nomeados. Reunidos em torno da solene mesa oval de mogno do Cabinet Room, a galeria dos novos titulares de pasta ministeriais, diretores de agências federais e membros do estafe mais graduado se prestaram a uma tietagem explícita jamais vista na Casa Branca. Trump fora o primeiro a falar e deu o tom: elogiou a si mesmo ( “Nunca houve um presidente como eu...”). Em seguida, instruiu a todos que se identificassem, declinassem a sua posição no governo, e falassem algumas palavras. O que se seguiu foi mais constrangedor do que elogios ao chefe em festa de firma. Somente Mattis manteve a compostura possível.

Não só quando no poder como também ao sair, os muitos ex-membros to time Trump preferem não fazer barulho. Exceto a participante do reality show “O aprendiz” Omarosa Manigault-Newman, transformada por Trump em assessora de Relações Públicas e demitida por encrenqueira de alta voltagem, a regra é eclipsar-se, guardar as memórias para publicação futura, soltar alguns segredos para jornalistas à condição de anonimato, e trabalhar contra nos bastidores. Omarosa foi a única a publicar um livro “conta-tudo”, mas “Unhinged” é tão inconfiável e sem relevância quanto a autora.

James Mattis é a exceção. Já na palestra de San Francisco mencionada anteriormente, ele dissera que você só abandona seu comandante em circunstâncias horrendas, quando não resta outro meio de você transmitir a mensagem que deve. Em outra ocasião, ao mencionar que nunca considerou a ideia de invadir o Iraque uma boa ideia, embora tivesse comandado a divisão de fuzileiros navais que invadiu Bagdá em 2003, explicou que quando você elege um comandante em chefe, você lhe dá conselhos, mas em privado.

Conselhos, argumentação, dados, experiência — nada disso funciona com Donald Trump, que toma decisões pautado por ímpetos, necessidade de mudar o noticiário negativo, ou para turbinar o eleitorado cativo. Mas uma coisa é insultar e sistematicamente desconsiderar a expertise de subordinados, governando através da incerteza. Outra é ser comandante em chefe dos Estados Unidos e anunciar por Twitter decisões de relevância global como a abrupta retirada de tropas americanas da Síria. Mattis, o chefe do Pentágono, que tem 732.079 funcionários civis na folha de pagamento e 2,15 milhões de homens e mulheres de uniforme sob seu comando, não fora informado da decisão.

Sua carta de renúncia não apenas desmente a versão inicial do presidente de que o general partia para se aposentar, como representa um chamamento à subserviência a Trump pelo establishment republicano do país. Em 584 palavras alinhavadas em oito parágrafos o essencial do que os Estados Unidos de Trump arriscam perder consta da carta. Vale a leitura na íntegra.


Dorrit Harazim: Não estava tudo dominado

Em meio ao indigesto vendaval, o presidente surge um tanto atordoado com a evolução de um novelo que talvez esperasse aquietar-se

Fosse o episódio de menor relevância, seria o caso de perguntar o que andam fumando os advogados de Flávio Bolsonaro — junto ou em separado do cliente. O pedido de suspensão pelo STF da investigação sobre movimentações financeiras atípicas de Fabrício Queiroz, o encrencado ex-assessor do então deputado estadual e hoje senador, mais parece fruto de uma bad trip do que uma estratégia de defesa de causídicos para o filho 01 do presidente da República. Ficou escancarado que tem uma nau à deriva.

Como se sabe, o pedido de suspensão foi acatado pelo plantonista no atual período de recesso da Corte, ministro Luiz Fux, a quem caberá conviver com esse apêndice na biografia. A partir de 1º de fevereiro, o caso passa a ser examinado pelo relator Marco Aurélio Mello, a quem caberá a palavra final sobre o domicílio jurídico da investigação. O time Bolsonaro pleiteia que ela deve migrar para o Supremo sob escudo do foro privilegiado reservado a deputados federais e senadores. Ou então a investigação prossegue sob a lupa do Ministério Público fluminense, onde originou. Como previsto, caudalosos argumentos jurídicos dos dois lados não faltam, da mesma forma que sempre é possível desenterrar estatísticas radicalmente opostas a respeito de qualquer causa.

Mas chama atenção no jabuti entregue a Fux, além do súbito apreço pela figura do foro privilegiado, que ainda em 2017 o hoje presidente Jair Bolsonaro tachava de “privilégio porcaria”, o pedido de “ilegalidade das provas e de todas as diligências de investigação determinadas a partir dela”. Como assim? Zerar tudo? Mas tudo o quê? A perplexidade faz voar alto a imaginação.

Desde a revelação publicada no “Estado de S.Paulo” em dezembro sobre a movimentação bancária atípica de Queiroz, passando pela abertura da investigação de 28 deputados listados na planilha do Conselho do Controle de Atividades Financeiras (Coaf), nada do pouco que chega ao conhecimento público parece fazer sentido. Sobretudo no caso de Queiroz, o ora esquivo ora loquaz ex-assessor parlamentar, dublê de motorista e autodeclarado talento para fazer dinheiro. Qualquer advogado de porta de cadeia poderia prever que a curiosidade geral se afunilaria em personagem tão próximo do clã do presidente, e que seria imperioso tomar alguma dianteira, mesmo que apenas cosmética, para saciar o interesse.

Seja por presunção de mando, por certeza de poder alterar a pauta da mídia ou domar a curiosidade nacional, o time Bolsonaro escolheu o caminho inverso: o de varrer para debaixo do tapete uma trama na qual existe um cheque de R$ 24 mil de Queiroz na conta da atual primeira-dama, em que duas filhas e a mulher do ex-assessor têm protagonismo, e nove funcionários do gabinete do filho do presidente recém-eleito repassam dinheiro para Queiroz em datas suspeitas. Noves fora o resto.

Primeiro Queiroz é sumido, não comparece a depoimentos agendados, e reaparece num quarto do hospital Albert Einstein em São Paulo, convalescendo inclusive de uma cirurgia. Flávio Bolsonaro, por seu lado, afirma ter recebido uma versão plausível dos fatos e desdenha dois convites do Ministério Público para prestar depoimento, enquanto outros deputados também convocados acham mais prudente “colocar-se à disposição das autoridades”. Em meio ao indigesto vendaval, o presidente surge um tanto atordoado com a evolução de um novelo que talvez esperasse aquietar-se.

A este respeito, cabe, aqui, ressuscitar um ponto levantado pelo deputado federal Paulo Pimenta sobre a data em que Queiroz foi exonerado do gabinete de Flávio Bolsonaro: entre o primeiro e o segundo turnos da eleição do ano passado. Mais precisamente, 20 dias antes do início da operação que investiga o esquema de ilícitos na Assembleia fluminense. O parlamentar gaúcho, por arguto ou por petista, estranhou o fato de uma filha de Queiroz, Nathalia, também ter pedido demissão do cargo que ocupava em Brasília no gabinete de Jair Bolsonaro, no mesmo dia que o pai. Alguém teria sido avisado da ação da Furna da Onça que seria desencadeada pela Polícia Federal em conjunto com o Ministério Público?

Se foi e achou que estava tudo dominado, perdeu.


Dorrit Harazim: Sumiu o clima

A ausência do presidente americano rouba de Bolsonaro e Araújo, nossos estreantes em Davos, um escudo de peso

O presidente Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo talvez fiquem desapontados: ainda não será desta vez que haverão de conhecer o mito maior, Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos, emparedado na Casa Branca pelo impasse envolvendo a construção da prometida muralha mítica na fronteira com o México, anunciou que fará forfait em Davos. A paralisação do funcionamento da máquina do governo americano já entra em sua terceira semana, e nem Trump consegue edulcorar a dimensão da encrenca em curso.

Este ano, o Fórum Econômico Mundial começa no dia 22 de janeiro. Sempre no mesmo cenário alpino onde Thomas Mann, Nobel de Literatura de 1929, escreveu sua monumental “A montanha mágica”. Também como sempre, participará das centenas de mesas uma constelação de figurões de ponta da economia global, celebridades, ministros de Estado, chefes de governo, acadêmicos e ativistas. O encontro tem tantos defensores quanto adversários. Alguém já avisou a Jair Bolsonaro e Araújo que para o fundamentalista de direita Steve Bannon, cultuado como estrategista-mor da ascensão de Trump, a reunião anual desse “magma” é produto da treva? “A classe trabalhadora está cansada dos ditames do ‘partido de Davos’”, declarou o personagem em 2014.

A ausência do presidente americano rouba de nossos estreantes em Davos um escudo de peso. Pior, os deixam sós e soltos ao alcance de uma atrevida adolescente sueca de 16 anos, Greta Thunberg, que irrompeu no cenário mundial durante a 24ª Conferência da ONU sobre o Clima, em Katowice, Polônia, em dezembro, quando demonstrou saber se fazer ouvir.

De início, poucos entenderam o que fazia aquela criança de tranças Rapunzel, cara de bolacha e crachá pendurado no pescoço, sentada ao lado do secretário-geral das Nações Unidas. Ela foi uma das palestrantes. Seu discurso durou apenas quatro minutos, mas acordou os representantes de quase 200 países no plenário. Ninguém fez melhor em matéria de frescor, naturalidade e relevância não acadêmica. Vale a pena conferir na internet e redes sociais, onde Greta está por toda parte com sua cruzada pró justiça climática. Abaixo, um trecho do discurso em que a adolescente parecia ser o único adulto no salão:

“Não conseguiremos salvar o mundo jogando pelas regras do jogo. Porque essas regras precisam ser mudadas. Não viemos aqui implorar aos líderes mundiais que cuidem do nosso futuro. Eles nos ignoraram no passado e nos ignorarão novamente.

Viemos aqui para que eles saibam que a mudança está vindo, gostem ou não. As pessoas enfrentarão o desafio. E, como nossos líderes estão se comportando como crianças, teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo.”

Greta havia saído do seu casulo numa segunda-feira de retorno às aulas na Suécia, em agosto passado. Em vez de fazer o caminho da escola onde cursa a nona série, porém, ela tomou assento num degrau à frente da sede do Parlamento no centro de Estocolmo, e empunhou um cartaz onde se lia “Greve escolar pelo clima”. Era uma greve de uma só pessoa, que se repetiria a cada semana até os congressistas votarem as medidas que prometeram cumprir pelo Acordo Climático de 2015 assinado em Paris.

Como na Suécia ir à escola é obrigatório, ela estava infringindo a lei, mas ninguém ousou detê-la, até porque os pais a apoiaram. Não tardou, e a ela se juntaram mais colegiais, a ativista caiu no gosto de cidadãos comuns, a hashtag #We Dont Have Time (maior rede de mídia social para ação climática) a adotou, e, dali para a frente, uma vez por semana, ginasianos em várias cidades do mundo se juntam à sua cruzada. Esta semana foram 3.500 em Bruxelas, outros tantos em Helsinque. “E se um milhão, dez milhões de crianças mostrassem ao mundo que a escola é inútil se não houver futuro?”, pergunta Greta através do movimento #FridaysForFuture.

Em pleno invernão europeu, ela viajará de carro até Davos (65 horas ida e volta de Estocolmo) por ojeriza ao combustível usado na aviação civil. É provável que ela chegue cheia de ideias para o futuro de sua geração. Mas talvez não esteja preparada para ouvir que no Brasil recém-inaugurado o clima sumiu. A palavra “clima “ sumiu de dois ministérios — o das Relações Exteriores e o do Meio Ambiente — junto com “mudanças climáticas” e “aquecimento global”. O país que tem a oitava maior economia do mundo e é o sexto mais populoso do planeta se sentará à mesa em Davos para discutir a Quarta Revolução Industrial cheio de ideias para o passado.


Dorrit Harazim: Manual de conduta

Desde sempre, governantes eleitos elencam barreiras novas para evitar erros do passado e controvérsias do presente

Em 2014, o manual de conduta elaborado pelo Tribunal de Contas da União visando a disciplinar os integrantes do governo Dilma Rousseff tinha 32 páginas. Composto por “10 passos para a boa governança”, o documento era tão genérico quanto foi inútil. Começava com “Escolha líderes competentes e avalie seus desempenhos”, terminava com “Estabeleça diretrizes de transparência e sistema de prestação de contas e responsabilidade”, e passava por temas como “Estabeleça a estratégia considerando as necessidades das partes interessadas”. Cada passo enunciado em dois parágrafos vinha seguido de uma breve receita prática intitulada “O que você pode fazer para dar esse passo?” Deu no que deu, em nada. Dependendo da espinha moral de cada servidor, quem era honesto continuou honesto, e quem quis roubar, roubou. Assim é e sempre será.

Na semana do Natal de 2018, o site Poder360 antecipou o manual de conduta elaborado pela equipe de transição do governo Jair Bolsonaro, a ser empossado na terça-feira. São quatro páginas dirigidas a quem ocupar cargo em comissão no governo federal, com algum detalhamento do que será permitido e o que será vedado. Dos 16 itens listados sob a rubrica orientações gerais, como a obrigatoriedade de informar à Comissão de Ética Pública alterações “relevantes” no patrimônio, parece faltar (ou ter sido retirado na hora da publicação), o item número 5. Pode também ser mero lapso na correria rumo ao poder.

O documento contempla vários tipos de conflitos de interesse à espreita do agente público, da eterna e mal resolvida questão do nepotismo à sempre eletrizante questão do uso de veículos oficiais, e vedações ao uso/divulgação de informações privilegiadas. Caberia, talvez, detalhar melhor a proibição de “manifestar-se publicamente sobre matéria que não seja afeita à sua área de competência”, mas de um modo geral o texto pretende servir de bússola para quem de bússola precisa ou para quem está intencionado a operar por entre suas porosas linhas.

Governantes anteriores também baixaram normas semelhantes, sempre endereçadas a quem já está nomeado para servir ao país. Tarde demais. Em 2008, coube ao então candidato presidencial Barack Obama introduzir nos Estados Unidos o que até hoje se revelou a melhor fórmula de evitar surpresas a um recém-eleito: ele submeteu um questionário draconiano a candidatos a postos-chave, antes de sequer iniciar sondagens de nomeação.

Desde sempre, governantes eleitos elencam barreiras novas para evitar erros do passado e controvérsias do presente. Nenhuma foi tão eficaz quanto o temido questionário de sete páginas e 63 perguntas elaborado pela equipe de Obama. Quem não se dispôs a passar por crivo tão invasivo, ou se considerou por demais importante para se submeter a tal inquisição, foi automaticamente eliminado. Alguns candidatos ao primeiro escalão contrataram advogados de peso para conferir as respostas e desativar eventuais lacunas nos documentos anexados. “Dou graças a Deus por não pleitear um cargo no novo governo”, admitiu à época Michael Berman, que trabalhara nas transições dos democratas Bill Clinton e Jimmy Carter.

O interessante é que a informação pessoal obtida através do questionário não se destinava a desqualificar automaticamente o candidato, apenas permitiu à equipe de transição avaliar os riscos que correria, em caso de confirmação futura. Para os examinadores de currículos, havia um mantra: nunca supor que ninguém mais vai descobrir. Se eles acharam algo, diziam, mais cedo ou mais tarde alguém de fora também vai desenterrar.

O questionário de Obama mergulhava não apenas nos dados pessoais e profissionais dos 800 candidatos a postos sujeitos à confirmação pelo Senado, como de seus parceiros e filhos adultos. Tudo retroativo a uma década: diários, identidades em redes sociais, registros de infrações mínimas (apenas multas de trânsito de menos de US$ 50 não precisavam ser elencadas), empregos, empréstimos, falências, negócios, filiação em clubes ou associações de perfil discriminatório — nada escapava.

E caso escapasse, restava a última pergunta, que englobava qualquer potencial de controvérsia: “Forneça qualquer informação, inclusive de familiares, capaz de sugerir um conflito de interesse ou de tornar-se fonte de constrangimento para você, sua família, ou para o presidente eleito”.

Sabidamente, é fácil responder a qualquer questionário com uma sucessão de mentiras ou omissões de verdades. Ainda assim, o método parece ter tido o desejado efeito dissuasório: Obama completou seus dois mandatos na Casa Branca sem escândalo de roubalheira, malfeito ou abuso de poder. Mesmo para quem faz um balanço final mitigado de sua presidência, este é um troféu que a cada dia de mandato de Donald Trump reluz mais.

Para quem gosta de exercitar a imaginação e teve a inteligência ofendida pela entrevista ao SBT de Fabrício Queiroz, o ex-sumido ex-assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro intimado a explicar movimentações financeiras atípicas, o questionário Obama pode servir de passatempo. Está disponível na internet.


Dorrit Harazim: Bom mesmo é ser monarca

A rejeição ao desembarque de Trump em Londres, na próxima quinta-feira, é inédita para um presidente dos Estados Unidos em primeira viagem oficial
Não será uma visita triunfal, e a hospitalidade do povo anfitrião se anuncia frígida. O máximo que Donald Trump pode almejar é que seus três dias em solo britânico acabem rapidamente e transcorram sem grandes solavancos, com indigestão mínima. A rejeição a seu desembarque em Londres na próxima quinta-feira é inédita para um presidente dos Estados Unidos em primeira viagem oficial.

Sobretudo, quando essa viagem pouco se assemelha ao prestigioso convite que Trump recebera em janeiro de 2017 de Theresa May, primeira líder mundial a ser recebida na Casa Branca pelo então recém-empossado presidente. Por prematuro, o convite acabou se tornando uma encrenca anunciada: o Parlamento britânico e o Palácio de Buckingham ainda não haviam tido tempo de absorver a real dimensão da eleição de Trump e, como o resto do mundo, ainda estavam atordoados.

À medida que o estilo trumpiano foi tomando corpo em Washington, do outro lado do Atlântico a rejeição ao futuro visitante foi se solidificando. Parlamentares da oposição trabalhista informaram à primeira-ministra que impediriam Trump de discursar em Whitehall. Três milhões de cidadãos britânicos assinaram uma petição exigindo a retirada do convite. E mesmo o rebaixamento de “visita de Estado” para a atual “visita de trabalho” não parece ter arrefecido os ânimos em Albion.

Não que a diferença seja pequena. Pelo protocolo da modalidade “visita de Estado”, Trump teria direito a uma recepção de gala na corte de Elizabeth II, e, se assim o desejasse, poderia percorrer o trajeto do Mall até o Palácio de Buckingham numa carruagem folhada a ouro da rainha. À época do convite, foi-lhe atribuída a intenção de aceitar o mimo. Ele também seria recebido por Theresa May no histórico número 10 de Downing Street, haveria um tour dos aposentos ocupados por Churchill na II Guerra, e talvez um chá com Kate Middleton para a sra. Trump. Isso e muito mais. Sabidamente a Inglaterra é imbatível em pompa e circunstância.

Já na “visita de trabalho”, o incômodo hóspede permanecerá a maior parte do tempo providencialmente longe das vistas dos londrinos: um jantar black-tie no palácio de Blenheim, no condado de Oxfordshire, com direito a cerimônia militar e gaitas de fole em homenagem a seus ancestrais escoceses; um encontro com a rainha no castelo de Windsor, e com Theresa May em Chequers, a mansarda campestre de propriedade do governo situada no condado de Buckinghamshire, a sudeste de Londres.

Como o detalhamento exato de sua agenda ainda não foi divulgado, por onde andará Trump entre as 9h30 e 11h30 da manhã da próxima sexta feira, dia 13, adquire interesse especial. Durante este período, um boneco inflável de seis metros de altura em forma de bebê cor de laranja poderá ser visto flutuando acima da Westminster. O boneco tem topete amarelomanga, expressão raivosa, usa fralda e segura na minúscula mão um celular.

Batizado de “Trump baby”, ele custou o equivalente a R$ 83 mil reais coletados através de campanha popular. Fará parte da marcha “Stop Trump”, que promete reunir uma multidão no centro de Londres no mesmo dia e hora, e recebeu autorização do prefeito da cidade para pairar a cerca de 30 metros do solo. Seus idealizadores se autodenominam “ativistas de arte antifascista”. E argumentam que a única maneira eficaz de causar algum impacto em Trump é zombando dele. Para o prefeito Sadiq Khan, notório desafeto do visitante, a autorização se justifica por apoiar o direito a manifestações pacíficas de protesto “que podem assumir diversas formas”. A palavra final, porém, caberá à Polícia Metropolitana e à Agência Controladora de Tráfego Aéreo britânica, que podem, a qualquer momento, reavaliar os riscos.

É possível que, em meio ao material de leitura preparatório da viagem presidencial, algum assessor do presidente tenha incluído uma seleta de privilégios da monarca capaz de causar inveja a Trump. A lista simplificada foi elaborada por uma blogueira de nome Lorena. Em tese, Elizabeth II poderia, na condição de rainha de Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, e chefe da Comunidade das Nações, demitir um desses governos. Em tese, a monarca também tem o poder de iniciar uma guerra ou recusar a paz com algum país que julgue seu inimigo (toda lei britânica exige aprovação da monarca para se tornar efetiva). Demitir e poder punir inimigos devem soar bem para Trump.

Além disso, a rainha pode ficar no poder ad perpetuam, não deve nem precisa ser tocada por quem não tem sangue azul (o presidente americano tem horror a germes), não precisa de carteira de motorista nem passaporte, não paga impostos se não quiser (embora pague por vontade própria desde 1992), não está sujeita à Lei de Acesso à Informação e nunca pode ser presa ou processada, mesmo que cometa homicídio, por estar acima da lei.

Ah se Donald Trump pudesse ser monarca!

*Dorrit Harazim é jornalista