Dorrit Harazim

Dorrit Harazim: Tudo suspenso no ar

Com 74 anos e sobrepeso, Trump foi traído pelo vírus que há sete meses teima em negar

Deve ter sido difícil para a Casa Branca, à 1h11 da madrugada da sexta, 2 de outubro, divulgar o que sobrava da agenda de Donald Trump para o resto do dia. Reformatada às pressas pela notícia-bomba de que o presidente testara positivo para o coronavírus, a única atividade mantida foi o seu telefonema de apoio a idosos vulneráveis ao coronavírus. Ironia crudelíssima. Trump poderia ter dado o telefonema a si mesmo.

Com 74 anos de idade e sobrepeso (110 kg), colesterol alto, adepto da hidroxicloroquina, uma internação hospitalar de 2019 jamais explicada e ostentação de relatórios médicos que sempre davam a impressão de ter sido escritos pelo próprio paciente, Trump acabou traído pelo vírus que há sete meses teima em negar. Fosse ele apenas uma fraude de bilionário-ostentação, o problema seria pessoal. Dado o cargo que ocupa, o real estado de saúde do 45º presidente americano é de interesse nacional máximo e consequência global instantânea. Sobretudo quando são dois os vírus em colisão na Casa Branca: o corona e a desinformação sistemática usada pelo governante. Ambos podem se revelar mortais — o primeiro, para a vida humana; o segundo, para a vida democrática.

O resultado positivo do teste de Trump demonstra de forma inequívoca sua incapacidade de proteger a nação que o elegeu — a curva de 208 mil mortos e 7,2 milhões de infectados continua subindo — e de proteger-se de si mesmo.

Nos míseros 30 dias que faltam até a eleição de 3 de novembro — ominoso teste para o atual curso democrático dos EUA —, incertezas, medo e déficit de confiança deverão chegar a extremos. Como fica o funcionamento do país com as lideranças dos três poderes e do mais alto escalão do governo tendo tido contato de primeiro grau (sem máscara nem distanciamento) com Trump ou alguém próximo a ele? Diante do que se sabe sobre a chance de falsos negativos em testes sorológicos, todos deveriam permanecer quarentenados por 14 dias. Dificilmente conseguirão.

De uma hora para outra, a pandemia se tornou real. E, de uma hora para outra, a paciente contagem de falsidades e mentiras criadas pelo presidente — já são mais de 20 mil — deixou de ser vista como trabalho inútil do “Washington Post”. Ela explica a abissal falta de confiança na Casa Branca neste momento crítico. De sintomas inicialmente “leves”, pulou-se em algumas poucas horas à hospitalização do presidente. Como dar crédito a qualquer declaração oficial, seja do chefe da nação, de seu vice , chefe de gabinete, médico, porta-voz, estafe? Sem falar que, excetuando um tuíte madrugal do paciente, não só o país, como as lideranças do Congresso permaneceram sem informação oficial por mais de dez horas.

Sequer se sabe, ao certo, desde quando Trump está efetivamente infectado.

Pela narrativa inicial, ele se contaminou na quarta-feira, ao longo de vários périplos eleitorais — aéreos e terrestres — com sua assessora mais próxima, Hope Hicks, então já sintomática. Trump foi testado na quinta à noite. Contudo é bastante incomum para um paciente de Covid-19 receber resultado positivo já no primeiro dia após ser exposto ao vírus. É mais provável que ele tenha cumprido sua rotina da semana já infectado, mas sem sabê-lo, sempre sem máscara ou distanciamento. Vale registrar que, momentos antes do início do debate-embate de terça-feira, um dos médicos pediu aos convidados republicanos que usassem as máscaras cirúrgicas azuis recebidas. Era uma das regras obrigatórias do evento. Foi ignorada, inclusive pela primeira-dama, que dois dias mais tarde também testaria positivo.

Não foi a única regra atropelada naquele debate ímpar. Trump apostara todas as fichas no seu estilo betoneira. Imaginou triturar o adversário morno, deixando-o confuso e expondo suas fraquezas. Apropriou-se quanto pode dos 90 minutos regulamentares, invadiu o território do mediador, confiou no seu impacto macho tonitruante, insultou, interrompeu. Era mais do que uma questão de estilo, foi sua estratégia. Apesar da fragilidade de Joe Biden, porém, deu tudo mais ou menos errado — a começar pelos 3,8 milhões de dólares arrecadados pela campanha democrata nos primeiros 60 minutos do bate-boca.

Em 2016, durante seu treino com um sparring de debates antes do primeiro confronto mano a mano com Hillary Clinton, Trump foi informado do vazamento da explosiva gravação na qual ele se gabava de conseguir o que quisesse de qualquer mulher — “elas deixam você fazer tudo …agarrá-las pela xoxota… tudo”. Eram tempos mais inocentes, ainda se pensava que a revelação faria naufragar a ambição presidencial daquele meteoro alaranjado. Mas Trump venceu, cimentando sua certeza de impunidade, imunidade e invencibilidade eternas.

De repente, se vê atingido pela impensável possibilidade de derrota eleitoral. Precisaria reverter a tríade de fracassos nesta reta final da campanha — pandemia à solta, economia incerta, consequências legais de suas finanças fraudulentas caso volte a ser cidadão comum. Mas tempo e saúde para incendiar a eleição estão minguando.

“As regras são para os bobos, e eu sou esperto”, gostava de proclamar o presidente para alegria de seus seguidores. Não neste caso. Em linguagem que lhe cairia bem, “perdeu, mané”. A pandemia foi mais esperta.


Dorrit Harazim: Ontem e hoje

Coube aos russos, sempre eles, estragar o calendário da Casa Branca, ao receber aprovação da revista ‘Lancet’ à sua vacina

Mais de meio século atrás, quando a ONU batizou 1957 de Ano Internacional da Geofísica, os Estados Unidos informaram ao mundo que seriam o primeiro país a lançar um satélite da Terra. Segundo a propaganda absorvida piamente, os bolcheviques de Moscou não representavam qualquer ameaça. Além de bárbaros, ateus e ignorantes, engatinhavam em tecnologia. O governo e os próprios serviços de inteligência dos EUA acabaram acreditando na propaganda criada. “Os primitivos cossacos não conseguem fazer nada que nós não podemos”, avaliou o chefe da CIA, Allen Dulles, quando confrontado com imagens de instalações de foguetes na Sibéria, produzidas por aviões de espionagem.

Também os analistas de inteligência da União Soviética trabalhavam sob uma ótica equivocada, mas diametralmente inversa — estavam convencidos da superioridade americana. Por isso, interromperam um projeto de satélite avançado e decidiram disparar logo o que tinham à mão: uma simples esfera de metal com quatro antenas, dotada de um radiotransmissor potente e primitivo. Foi o bastante.

Quando o Sputnik 1 rompeu os céus e entrou em órbita, na manhã de 4 de outubro de 1957, a autoconfiança dos americanos ficou prostrada. “Este é um golpe devastador no prestígio científico, industrial e tecnológico dos Estados Unidos”, resumiu à época o senador Henry Jackson. A humilhação maior foi que o raio do artefato russo emitia sons captáveis por qualquer radiorreceptor que seguisse instruções divulgadas por Moscou. Pior: o traçado do satélite, acoplado a um pedaço de foguete que pesava nove toneladas, era visível por qualquer bípede da Terra que tivesse um binóculo. De uma hora para outra, os soviéticos pareciam dominar o desconhecido naquele início da corrida espacial.

Um mês depois, novo revés quando os russos lançaram ao espaço um segundo Sputnik com a primeira criatura viva a bordo — a cadela Laika. E, para encerrar aquele ano indigesto, ainda houve um nocaute autoinfligido. O governo americano planejou restaurar a confiança na tecnologia made in USA no dia 4 de dezembro e convidou o mundo para aplaudir. O lançamento de seu primeiro satélite seria feito à vista de todos, com inédita transmissão direta de Cabo Canaveral. Deu ruim. As milhões de pessoas grudadas em seus aparelhos de TV acabaram assistindo ao vivo à explosão do malfadado foguete.

Poderia ter sido um coup de grâce, mas deu-se o contrário: já no ano seguinte o Congresso americano aprovou um incentivo maciço ao ensino da Ciência, da Matemática e de Engenharia, e criou a Nasa como agência civil para a exploração espacial. Em 1969, decorridos12 anos desde a humilhação do Sputnik, os Estados Unidos fincavam bandeira e pés na superfície da Lua. As fronteiras da imaginação humana haviam sido escancaradas.

O episódio de 1957 é aqui rememorado por remeter a algo perceptível nos EUA de hoje: em plena pandemia, uma crise de confiança nas instituições de ciência e tecnologia mais veneradas no país. Ao nomear prepostos domesticados para dirigir o respeitado CDC (centro de combate e prevenção de doenças) e ordenar à agência reguladora de alimentos e medicamentos (FDA) que abraçasse terapias não comprovadas, Donald Trump desmontou o que tinha de melhor no combate ao coronavírus.

Também atropelou a confiança nacional numa vacina segura e eficaz. Governadores de vários estados e dezenas de entidades médicas do país já comunicaram que deixarão de seguir automaticamente as orientações do CDC. Na sua cavalgada anticientífica mais recente, o presidente chegou a sugerir que, dos 187 mil americanos mortos em oito meses de pandemia, apenas 6% tenham, de fato, morrido por Covid-19. As causas mortis seriam múltiplas.

Não espanta, assim, que 81 sumidades americanas, todas laureadas com um Prêmio Nobel de Medicina, Química ou Física, tenham divulgado uma carta aberta de adesão a Joe Biden nas eleições de novembro próximo. O manifesto foi publicado pouco depois de o “Washington Post” reportar que um dos principais integrantes da força-tarefa de Trump no combate ao vírus é defensor ferrenho da estratégia da “imunidade de rebanho”. Também devem ter levado em conta o proclame presidencial de que a primeira vacina contra a Covid-19 seria americana. Disse mais: ela começaria a ser distribuída no país no dia 1º de novembro — antevéspera da eleição.

Coube aos russos, sempre eles, estragar o calendário da Casa Branca. No mês passado, eles haviam registrado a toque de caixa, e sem respaldo científico conclusivo, uma primeira vacina de nome sugestivo — Sputnik V. Foi recebida com reservas e suspeição pela comunidade científica mundial. Mas esta semana ela recebeu aprovação de uma das principais revistas médicas do mundo, a britânica “The Lancet”, que considerou bom o desempenho da Sputnik V nas primeiras fases de teste.

Ao descartar a expertise e integridade de instituições científicas que há muito servem de referência ao mundo, Donald Trump arrisca igualar-se aos líderes russos a qualquer custo. Perde a ciência, perde a saúde da Terra e de suas gentes.


Dorrit Harazim: Trump coroado

O país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca

Leonard Cohen fez bem em morrer na véspera da eleição de Donald Trump em 2016. Deixou um vasto tesouro feito de palavras e música, entre elas a sublime “Aleluia”, canção-reflexão sobre amor e perda, espiritualidade e empatia. Muito da força desse hino à humanidade está no que ele deixa em aberto para interpretações múltiplas do que é ser, do que é viver. Difícil imaginar que Trump tenha sido fã do compositor canadense. Mais difícil ainda cogitar que Cohen algum dia se resignaria ao triunfo trumpista. Daí a vilania da rasteira post-mortem dada no artista por ocasião do festão de quinta-feira na Casa Branca: “Aleluia” foi entoada duas vezes, sem autorização dos herdeiros, na coroação do presidente-candidato à reeleição em novembro próximo. Nada transcendental, apenas um detalhe da grosseria em tudo o que leva a logomarca Trump.

Na cerimônia de encerramento da Convenção Republicana faltou apenas rebatizar o partido para Trump Party. De resto —da apropriação da Casa Branca como imobiliário do ocupante aos fogos de artifício proclamando “Trump 2020” sobre o Monumento a Washington —, o evento todo foi de adulação personalista. Nos jardins da “casa do povo americano” haviam sido plantadas 1.500 cadeiras para familiares e servidores públicos, não por servirem ao Estado, mas por serem servos de Trump. E, ao final de quatro dias de elegias, coube ao entronizado apresentar a sua versão fantasia de si mesmo.

Foi um discurso de 70 minutos que arrebatou a plateia. Mesclando fatos e ficção, o presidente proclamou-se predestinado guardião da Constituição e acenou com um futuro de grandeza nacional. Sobretudo, Trump incitou medo, recurso de eficácia comprovada em tantas eleições mundo afora. Richard Nixon disse o essencial em 1968 ao conquistar a Casa Branca: “As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa.”

Na semana anterior, a Convenção Democrata também procurara definir Donald Trump como uma ameaça nacional — mas à democracia. O partido do presidente optou por retratar o país como uma presa da violência urbana. Uma escumalha de foras da lei e da ordem estaria a rondar os subúrbios brancos, governantes democratas seriam incapazes de conter o caos urbano, a China acabará com a bonança americana e, resumiu Trump, “ninguém mais estará em segurança nos Estados Unidos de Joe Biden”.

O presidente referiu-se ao adversário Biden 41 vezes, ora como incompetente desvertebrado — “está há 47 anos no Congresso e nunca fez nada” —, ora como “cavalo de Troia” a serviço da extrema-esquerda socialista.

Mas a estocada de Trump mais letal contra o adversário, e talvez a mais temida pela campanha democrata, ainda está por vir. Trata-se da reiterada insinuação do presidente de que Joe Biden, aos 77 anos, estaria com a acuidade cognitiva comprometida, portanto sem condições de liderar a nação.

Dias atrás Trump chegou a sugerir que os dois candidatos se submetessem a testes toxicológicos antes do primeiro debate presidencial, marcado para 29 de setembro, com divulgação dos remédios que cada um toma. Alegou ter observado que Biden apresentou-se apagado e confuso nos dez debates democratas coletivos, e que apenas no último, contra Bernie Sanders, apresentara vigor cerebral. O repórter do ultraconservador “Washington Examiner” quis saber se Trump estava sugerindo testes como os que lutadores fazem antes de subir no ringue.

“Sim”, respondeu o presidente, “debate é como uma luta entre gladiadores. Só que no debate você usa o cérebro e a boca. E também seu corpo. Quero debater em pé, não sentado como quer a comissão organizadora.”

A esse contexto que, por si, já parecia insólito, veio se juntar, também esta semana, um inesperado conselho público da presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, para Biden: recusar-se a debater com Trump no formato habitual. A falta de civilidade e a notória enxurrada de afirmações falsas do presidente tornariam o debate inútil, argumentou Pelosi. Por ora, Joe Biden descartou a sugestão. Ainda bem.

A tática do medo adotada por Trump contém um risco evidente — alardear para o caos num país que está sob seu comando há três anos e meio. O papel de presidente como espectador, não responsável pelas desgraças nacionais, só existe no planeta Trump, porque o país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca. Mas esse país real existe — ele tem 180 mil mortos por Covid, é formado por uma sociedade dilacerada pelo racismo, pela violência policial, esgotamento e desgoverno. É esse o país que vai votar. Ou deixar Donald J. Trump se reeleger. Rest in Peace, Leonard Cohen.


Dorrit Harazim: Faltam 72 dias

Obama desvestiu-se da sua oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação corre perigo

Feliz do país que, como os Estados Unidos, tem no seu acervo de instituições democráticas algo tão peculiar como sua confraria de ex-presidentes. O seleto clube nunca conseguiu ter mais de seis membros, uma vez que ex-presidentes também morrem. Mas, desde que foi criado formalmente por Harry Truman, em meados do século 20, com estatuto e direito à sede própria perto da Casa Branca, os ex servem de esteio valiosíssimo para quem assume a Presidência. Os relacionamentos entre eles e com o titular na Casa Branca se forjam com o tempo. São relacionamentos por vezes surpreendentes, de afeto tardio, outras vezes hostis ou cheios de reservas, mas sempre respeitosos. Todos do clube passaram pela mesma experiência, conheceram as falácias do poder, acumularam cicatrizes no comando da nação. E todos, quando eleitos, recorreram ao clube em algum momento de seus mandatos. Menos Donald Trump, que não confia em ninguém.

Em outubro de 1981, diante da notícia-choque do assassinato do líder egípcio Anuar Sadat em atentado no Cairo, Ronald Reagan convocou três antecessores para representá-lo nos funerais de Estado: Gerald Ford, Richard Nixon e Jimmy Carter. A longa viagem tinha tudo para dar errado: Ford nunca se afinara com o encrenqueiro Carter, e este jamais escondera o desapreço por Nixon. Os três haviam se tornado ex-presidentes ou em desgraça, ou decepcionados, ou trucidados nas urnas. As questões de protocolo no voo foram espinhosas até para definir quem subiria primeiro no Air Force One. Mas ao final o trio já se tratava por Dick, Jimmy e Jerry. A partir dali, Ford e Carter estabeleceram uma parceria tão longeva que decidiram firmar um pacto — quem sobrevivesse ao outro faria o tributo final no funeral do morto. E assim foi.

Cabe também lembrar a tradicional “carta ao sucessor” deixada na mesa de carvalho do Salão Oval por todos os presidentes no derradeiro dia de poder. “Quando você ler esta carta você será Nosso Presidente… Torço por você”, escreveu o republicano George H.W. Bush em bilhete endereçado ao democrata Bill Clinton. E assim foi — Bush sênior sempre torceu pelo sucessor. Também Barack Obama, pouco após a posse em 2009, tratou de convidar para um almoço íntimo os quatro membros do clube dos ex da época: Bush pai e filho, Carter e Clinton. “Conseguimos deixá-lo à vontade falando de nossas próprias inseguranças, trocando lembranças”, contou Carter em livro. “Todos que ocuparam o posto entendem que o cargo transcende o indivíduo.”

Todos, menos Donald Trump.

Difícil imaginar o teor de uma hipotética “carta ao sucessor” redigida de próprio punho por Trump. Talvez um tuíte? Ou apenas sua assinatura garrafal? Ou nem isso? A tentativa de adiar a qualquer custo a passagem de bastão poderia levá-lo a desviar da caminhada democrática iniciada há 244 anos.

Foi pensando nisso que Barack Obama falou à nação esta semana. É útil ouvir e ler o discurso na íntegra para apreciar a escolha de cada uma de suas 2.298 palavras. O tom de voz sombrio tem peso equivalente ao conteúdo. Nada no texto é acidental ou retórico. Obama desvestiu-se de sua conhecida oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação americana corre perigo. A palavra “democracia” é repetida 18 vezes, e o alerta vem sem enfeites: “Este governo já demonstrou que, para vencer, derrubará nossa democracia se achar necessário”.

Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente afirma que outro presidente, no exercício do cargo, ameaça a democracia, é moralmente falido e inteiramente despreparado para liderar o país.

A fala de Obama fez parte da programação de quatro dias que oficializou a chapa Joe Biden/Kamala Harris no confronto com Trump. Mas ficará registrada como um dos discursos mais relevantes de toda a carreira pública do ex-presidente. Como a pandemia condenara a Convenção Democrata a um formato 100% virtual — alguns dos recursos utilizados deram muito certo, por sinal —, Obama escolheu o Museu da Revolução Americana na Filadélfia para lhe servir de pano de fundo silencioso, carregado de história. Foi mais decisivo do que Hillary e Bill Clinton somados.

Caberá ao amplo leque de vozes que acredita em “We, the People…” tentar empurrar o candidato democrata para a vitória perseguida por Joe Biden há 33 anos. A depender do seu discurso de aceitação, sozinho ele não conseguirá turbinar a nação “para além da escuridão atual”. Foi designado pela temperança de agregador e pela imagem de decência exigida no momento. Tomara que seja o suficiente. Cabe sempre lembrar que Donald Trump não é uma aberração solitária, nem a causa do estado de desagregação cívica do país. O ocupante da Casa Branca é apenas o sintoma mais berrante e perigoso da corrente obscurantista que o colocou no poder. Tem tudo para ser, também, um dos piores ex-presidentes da história.


Dorrit Harazim: O fator Kamala

Biden precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump

Que ninguém se engane: a indicação de Kamala Harris como vice do candidato democrata Joe Biden, que em novembro próximo disputa a Presidência com Donald Trump, é coisa grande. Não por ter sido surpresa — Harris sempre esteve entre as primeiras da lista de 11 finalistas sabatinadas para o cargo. É coisa grande por abrir caminho, algum dia e com séculos de atraso, a um autorretrato mais verdadeiro da sociedade americana em acelerada mutação.

Para Donald Trump e sua América nostálgica dos anos 1950, a indicação da senadora multirracial é desconcertante. Por um lado, fica difícil acenar com o fantasma do crime e caos urbano dominarem o país em caso de vitória democrata. O currículo de Harris, quando procuradora-geral da Califórnia, foi notoriamente durão — demais, até, para muitos jovens negros da época. Trump também não irá muito longe com seu bordão apocalíptico de uma “América comunista”, dado que Harris nunca foi da ala mais radical/progressista do Partido Democrata. Por fim, acusar a adversária de chapa, abertamente, de ser mulher, negra e de ascendência asiática, pode ser arriscado demais. Trump até tentou, em entrevista à rádio Fox Sports. Sugeriu que “algumas pessoas” diriam que “homens” poderão se sentir “insultados” com a indicação de uma mulher — tudo em fraseado indireto e no condicional, não atribuível a ele.

Kamala, como a candidata a vice prefere ser identificada em campanha, encarna tudo o que desestabiliza a escassa autoconfiança do ocupante da Casa Branca. Ela sabe quem é e domina o poder que deriva desse autoconhecimento. É debatedora afiada, capaz de desconcertar pesos pesados como o ex-ministro da Justiça Jeff Sessions e o ministro do Supremo Brett Kavanaugh, em sabatinas no Congresso. Foi impiedosa com o próprio Biden no primeiríssimo debate entre a plêiade de candidatos à indicação democrata, o que lhe valeu críticas de deslealdade partidária.

Ainda assim, Biden não a teme, precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump e servir de transição para tempos mais civilizados. Será presidente de um só mandato, se eleito e empossado aos 78 anos. Precisa de alguém capaz de substituí-lo desde o dia de sua posse.

Kamala Harris, de 55, é uma assombração para Mike Pence, o atual vice-presidente que mantém fidelidade ladina a Trump, pois pretende sair candidato solo em 2024. Seu debate televisivo com a adversária democrata tem tudo para ser tão faiscante quanto os dois confrontos agendados entre Trump e Biden. Sobretudo quando se sabe que 1 em cada 3 vice-presidentes da história dos Estados Unidos tornou-se chefe da nação, comparado a apenas 1 em cada 145 governadores ou 1 em cada 124 senadores.

Onipresente em defesa do chefe, Pence tem sido o contraponto perfeito para a destemperança errática do presidente. Monocromático no visual e monocórdio na fala, o máximo que Pence se permite é um ligeiro levantar de sobrancelha em sinal de lamento, nunca de rancor ou raiva. Divergiu publicamente de Trump uma só vez, às vésperas da eleição de 2016, quando veio à tona a famosa gravação chula, sexista e cafajeste do candidato. Na ocasião prevaleceu sua fidelidade à fé evangélica que norteia seu cotidiano — em 2002 ele afirmara nunca sentar-se à mesa para jantar com uma mulher que não fosse sua esposa, nem participar de eventos sem Kate em que bebidas alcoólicas seriam servidas. É esse personagem que eleitores americanos verão em confronto com uma adversária assertiva e incômoda em tudo.

Kamala tem dupla função. Uma, na atual campanha : bater em Trump sem receio de prejudicar o papel tiozão de Biden. Cabe-lhe apontar, através de dados e retórica, a incapacidade do presidente para liderar a nação, seja na guerra à pandemia seja na pacificação racial e social do país. Embora candidatos a vice tenham pouco impacto efetivo sobre a base eleitoral já constituída do presidenciável, talvez Kamala até consiga garantir o voto de mulheres negras em estados cruciais como Michigan e Pensilvânia, que tanta falta fez a Hillary Clinton em 2016.

Sua segunda função é mais duradoura e independe de vitória: apressar a urgente adequação do país a suas muitas gentes. Kamala Devi, filha de imigrantes , tem sangue negro e indiano, é casada há 6 anos com um advogado branco e judeu de Nova Jersey e tem duas enteadas adultas que a chamam de Mamala. Abriu caminho a fórceps, empurrada por pais que valorizavam educação, formação e atitude. Tem a cara, as cores e o vigor que a esclerosada máquina do Partido Democrata fingia ter, mas não abraçava de fato. Agora terá de ser na marra.

Kamala também tem a cara, cores e vigor que Donald Trump precisa deslegitimar a qualquer custo. O primeiro tiro indica o estado de alarme do 45º presidente dos EUA. Foi de um pódio da Casa Branca que Trump levantou a falsa hipótese de Kamala Harris não preencher os requisitos de cidadania americana para o posto. “Me falaram disso ainda hoje”, comentou meio en passant durante a coletiva de quinta feira. “Não tenho ideia se é isso mesmo …”, acrescentou com a habitual vileza de isentar-se de qualquer responsabilidade pelo que diz. Conseguiu, assim, colocar em roda uma falsa discussão sobre o que diz a 14ª Emenda de 1868, que concede cidadania americana a quem é nascido dentro de suas fronteiras territoriais — a jus solis que já ameaçara abolir por decreto. Pela Constituição dos EUA, são apenas dois os requisitos para se tornar presidente ou vice: ter nascido em solo americano e ter idade acima dos 35 anos. Kamala preenche ambos.

Outros tiros virão, mas as Kamalas já são muitas, e muitas mais virão. O que não muda é o medo que o presidente dos EUA tem de mulheres fortes e do poder que elas emanam.


Dorrit Harazim: Brincadeirinha séria

Trump não está propenso a aceitar um sucessor na Casa Branca já em 2020

O Nobel de Economia de 2008 e dublê de colunista Paul Krugman define o presidente dos EUA, Donald Trump, como a encarnação de um pesadelo que ronda tanta gente: ter um chefe incompetente que faz de tudo para se agarrar ao cargo e, de lambada, destrói a própria empresa sob seu comando. No caso, a firma se chama Estados Unidos da América. Crítico escancarado do 45º ocupante da Casa Branca, Krugman elenca as decisões e as inações de Trump nestes 6 meses de peste e conclui que, ao desastre epidemiológico e econômico no país, vem, agora, se juntar a falência política do negacionista em chefe. E que talvez já seja tarde para evitar, também, a sua eventual debacle eleitoral em novembro.

É desse contexto que brota a mensagem recebida na manhã da quinta-feira, dia 30, pelos 84,4 milhões de seguidores de Trump no Twitter . Poucos minutos antes, o mundo fora informado de que o PIB americano sofrera a maior queda desde a Grande Depressão. Sem tocar em assunto tão tóxico, o presidente mudou a chave com destreza. No estilo que domina como ninguém — adjetivos que gritam, interrogação final que simula inocência na pergunta — postou: “Com a votação universal por correio, 2020 será a eleição mais IMPRECISA e FRAUDULENTA da história. Será um grande constrangimento para o país. Adiar a eleição até que as pessoas possam votar de maneira adequada, segura e protegida???”.

De pronto instalou-se a habitual reação em cadeia aos disparates do presidente. Tal como ele planejara.

Para muitos, era preciso denunciar a intenção de Trump de tentar adiar eleições que nos EUA se realizam na mesma data desde 1845 — “na terça-feira depois da primeira segunda-feira do mês de novembro”, diz a lei. Tomando a pandemia como justificativa, Trump estaria tentando ganhar tempo e fôlego para se recuperar nas pesquisas eleitorais que no momento lhe são cruéis.

A preocupação soa desnecessária, visto que nem Trump nem qualquer presidente dos EUA tem autoridade para adiar a data eleitoral. Precisa da aprovação do Congresso, que jamais a concederia.

Para outros, o melhor é não perder tempo com mais esta patacoada do reality show trumpiano. Um pouco na linha defendida em 2016 pela criadora do “HuffPost”, Arianna Huffington, que à época prometeu confinar toda notícia envolvendo Donald Trump às páginas de entretenimento do site que comandava. Fracassou, claro, pois deu-se o oposto: desde o primeiro ano de mandato, foi Trump quem se esparramou por todos os setores de mídia do planeta — da política à economia, da cultura às páginas policiais.

Normalizar as aberrações do presidente, por mais estapafúrdias que pareçam, tampouco é prudente. Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro têm em comum desdizer rápido e sem cerimônia declarações que repercutem mal demais. Passam a tratá-las como “brincadeirinhas”, ou iscas de atormentar a mídia. Na verdade, são balões de ensaio, descartados quando não dão certo. Assim foi desta vez. “Se eu quero mudar a data?”, corrigiu Trump horas após lançar seu torpedo. “Não, quero que a eleição se realize. Mas não quero esperar três meses para só então descobrirmos que faltam votos enviados por correio, e que a eleição não valeu”.

A real intenção da postagem presidencial foi deslegitimar por antecipação o resultado das eleições de novembro. Já fez isso quatro anos atrás, quando saiu vitorioso no Colégio Eleitoral e conseguiu chegar à Casa Branca. Ainda assim, até hoje não reconhece a humilhante surra que levou de Hillary Clinton no voto popular. Difícil, portanto, imaginar que em 2020 será diferente, sobretudo se vier a ser derrotado pelo opositor democrata, Joe Biden. Daí o ataque frontal ao voto por correspondência, que em tempos de pandemia deverá se ampliar a todos os 50 estados do país.

O alvo é perfeito para os cenários apocalípticos anunciados pelo presidente: milhões de cédulas falsas impressas por algum país inimigo (China?), fraudes maciças por ação do Partido Democrata, colapso estrondoso do sistema postal americano.

Certamente não foi por acaso que Trump nomeou para chefe dos Correios um dos grandes doadores de sua campanha, Louis DeJoy, severo enxugador de gastos do serviço deficitário e que acumula atrasos nas entregas durante a pandemia. Problemas haverá, tanto na entrega quanto na devolução e contagem das cédulas enviadas por correio. E serão grandes. Fraudes também, como sempre.

Mas o fato cada vez mais identificável por trás das brincadeirinhas sérias de Donald Trump é este: o 45º presidente dos Estados Unidos não está preparado nem propenso a aceitar um sucessor na Casa Branca já em 2020. Com ou sem voto por correio.


Dorrit Harazim: O inimigo em casa

Sem data de vencimento para a pandemia, o estado de excepcionalidade em vigor também poderia ser expandido

A pesquisadora Roudabeh Kishi é diretora da ACLED, pioneiro instituto que analisa a pletora de dados produzidos no planeta sobre conflitos armados e protestos. Tudo em tempo real. Em recente artigo para a revista “Foreign Policy”, Kishi focou nas mudanças que o coronavírus vem provocando na natureza dos protestos, da repressão estatal e da violência criminosa mundo afora. A seu ver, em países onde as instituições democráticas regrediram algumas casas durante a pandemia, é provável que os líderes procurem capitalizar poderes emergenciais adquiridos no combate à praga.

Será forte a tentação de esticar esses poderes para além do dilúvio. Melhor se precaver desde já contra o descontentamento popular que a Covid-19 terá agudizado e que poderá ressurgir forte, somando-se à insatisfação com questões endêmicas como corrupção, racismo, má gestão, disparidades sociais. Sem data de vencimento para a pandemia, o estado de excepcionalidade em vigor também poderia ser expandido.

Neste sentido, o cenário americano é exemplar. Dias atrás o presidente Donald Trump anunciou uma operação batizada de LeGend, que autoriza forças militares e de segurança federais a combater a atual onda de violência urbana no país. Em tese, elas atuariam em conjunto com policiais locais, e a pedido dos governantes, como é norma também no Brasil. Na prática, porém, a medida excepcional adotada para domar “a chocante explosão de tiroteios, assassinatos e chacinas” foca apenas cidades lideradas por Democratas — como Chicago, Albuquerque, Kansas City, Portland. Nenhum dos seus governadores ou prefeitos solicitou reforço militar nem de agentes federais. Acolheriam de bom grado uma parceria no combate à violência, mas não aceitam medidas autoritárias. Sentem-se sitiados. Tem tudo para terminar mal.

Vale um breve retrospecto da militarização doméstica dos Estados Unidos para entender a gravidade da situação.

A primeira virada ocorreu nos anos 1980, por obra do presidente Ronald Reagan, que decidiu recorrer a forças federais para enfrentar a curva ascendente de crimes violentos da época. Com aprovação do Congresso, policiais passaram a ter acesso a bases, treinamentos e equipamentos militares, e a Guarda Nacional foi convocada para operações de combate às drogas. Disso brotou o infame Programa 1033, pelo qual material excedente das Forças Armadas — fuzis de assalto M-16, veículos blindados, lançadores de granadas — foi sendo cedido aos departamentos de polícia das grandes cidades. Unidades de SWAT que intervinham em média uma vez por mês passaram a arrombar e invadir domicílios (sem mandado) mais de 80 vezes no mesmo período. Tudo em nome da infame Guerra às Drogas.

A segunda virada ocorreu em 1997, depois que assaltantes de um banco em Los Angeles, munidos de fuzis e coletes à prova de bala, feriram 12 policiais desprovidos desses equipamentos. A partir daí, a porteira se abriu: policiais passaram a usar fuzis AR-15 mesmo em operações desvinculadas do combate ao narcotráfico. Em 2011, com o retorno das tropas que haviam deixado o Iraque em ruínas, a abundância de parafernália militar repatriada acentuou o fluxo. Até blindados resistentes a minas terrestres foram parar onde não deviam. Um ex-chefe de polícia de New Haven, Connecticut, contou em filme produzido pelo site Vox ter recebido ofertas de tanques, bazucas, e “tudo o mais que quisesse”. Recusou os mimos por pensar que “quando você deixa de ser visto como policial a serviço da comunidade, você passa a ser temido como um soldado em guerra”.

Não deu outra. Estudo recente envolvendo 10 mil policiais dos Estados Unidos revelou o quanto o comportamento do agente é afetado pelo armamento que usa e pela armadura que o esconde: 77% dos entrevistados disseram que se tornam mais agressivos e violentos quando paramentados; 83% responderam que assim amedrontam a população — e que não se incomodam com isso.

A terceira virada ocorreu em 2014, quando o jovem negro Michael Brown, desarmado, foi morto à queima-roupa por um policial branco de Ferguson, no Missouri, e a emergência do movimento Black Lives Matter foi reprimida com tanques e atiradores de elite. De lá para cá, a fervura entre cidadãos e forças da “lei e ordem” assume contornos inquietantes. Trump não só ampliou o repasse de material militar para departamentos de polícia de cidades menores como ampliou o recrutamento de civis para atuarem na prisão de imigrantes sem documentação, o que seria de competência da ICE, a Agência de Controle da Imigração e Alfândega.

O círculo agora parece se estreitar. A Autorização de Defesa Nacional que legalizou a prisão de cidadãos americanos suspeitos de terrorismo foi assinada por Barack Obama em 2011, Trump apenas a ampliou, ao classificar de organização terrorista o amontoado de grupos antifascistas violentos , e incluir no balaio de inimigos do povo o que lhe convier. Enquanto a pandemia não dá trégua ao país, a violência urbana é o inimigo ideal. O uso de agentes federais camuflados em ações clandestinas, como ocorreu em Portland na semana passada, é um convite à formação de milícias se fazendo passar por autoridades legais. Tudo em nome de uma guerra sem causa, exceto a de uma escalada da violência.


Dorrit Harazim: Fresta aberta

Saber, curiosidade e humanidade podem emergir após pandemia

Da cidade de Wuhan, onde nasceu, cresceu e escapou o novo coronavírus, os relatos que conseguem driblar a censura do regime chinês ainda são esparsos e picados. Talvez sejam necessárias mais algumas gerações até que se consiga historiar como a Covid-19 transformou aquela cidade em laboratório humano. Mas de Bergamo e comunas vizinhas na Lombardia, berço e epicentro da mortandade na Europa, os relatos de terra arrasada transbordam à medida em que a vida, ali, retoma seu curso. Ou o que dela restou. O repórter Eric Jozsef, do diário francês “Libération”, fez um dos apanhados mais impactantes do que foi aquele manto da morte sobre Bergamo. Diante da escalada pandêmica cada vez mais abstrata, por incompreensível e incerta — 14 milhões de infectados globais, Estados Unidos apontando para 150 mil mortos, Brasil ultrapassando 2 milhões de contaminados —, vale retornar ao horror concreto de menos de 5 meses atrás.

Na próspera Bergamo de 120 mil habitantes, os fornos crematórios não davam conta do fluxo de mortos. Três semanas após o registro do primeiro infectado no país, um comboio de caminhões militares atravessou as ruas desertas da cidade transportando dezenas de caixões para serem incinerados em outros burgos. Foi apenas o primeiro de 45 comboios noturnos semelhantes. Ao longo de 40 dias houve um enterro a cada 30 minutos. Ao todo foram 6 mil, muitos deles sacrificados em função da idade ou do estado de saúde. A jornalista local testemunha: “Houve dias em que parecia haver um atirador de metralhadora disparando a esmo”. A enfermeira não esquece: “Os olhos dos moribundos pareciam lhes saltar da órbita, como se o vírus estivesse ali. Era o olhar da morte”. O pároco relembra: “Tivemos de interromper o tocar de sinos por um mês, tantos eram os mortos”. O septuagenário que perdeu 3 irmãos em duas semanas sentencia: “Eram tantos avisos de óbito que eles passaram a ocupar os painéis publicitários. Uma geração inteira desapareceu”.

Hoje toma-se um spritz ou amaro em praças de Bergamo. Reaprende-se a viver com cautela. E diante da nova realidade, o medo cede à cobrança, à indignação. Onde estiveram as autoridades? Por que demoraram a decretar o confinamento? Qual o peso do lobby dos industriais para não interromper a atividade econômica na província responsável por 22% do PIB italiano? Um comitê de defesa das vítimas constituiu-se espontaneamente em busca de repostas e aponta para o que deve ocorrer em outros países. Mundo afora houve delongas iniciais por desinformação sobre o comportamento da nova peste. Em casos mais gritantes como os do Brasil e dos Estados Unidos, a ausência do poder público foi deliberada, mas por negacionismo.

Todos nós — indivíduos, entidades, lideranças, especialistas em saúde, a mídia, unanimidades nacionais como os doutores Anthony Fauci e Drauzio Varella — tivemos nosso momento delay de percepção do inimigo invisível. Seguimos à risca a recomendação inicial de não usar máscaras por dois motivos básicos: as de uso hospitalar (as únicas que existiam) poderiam vir a faltar para quem trabalha na linha de frente; ademais, seriam inócuas para a defesa de quem não estava infectado. Pensava-se que elas serviriam apenas para diminuir o potencial de transmissão dos já doentes. Um artigo postado em fins de fevereiro pela revista “Forbes”, acessado 4,5 milhões de vezes, teve por título “Não, você NÃO precisa de máscaras contra o coronavírus — Elas podem aumentar seu risco de infecção”. O artigo foi posteriormente atualizado para refletir a farta evidência científica de que máscaras são cruciais para todos nós.

Hoje está entendido que a Europa e a Organização Mundial da Saúde deveriam ter reagido mais rápido às notícias vindas da China, que os Estados Unidos de Donald Trump jogaram fora o tempo de preparo para o inevitável desembarque da peste em suas terras, e que o Brasil conseguiu superar com folga o patamar de desgoverno do colosso americano. O despreparo e a empedernida irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro continuam a estarrecer o mundo. Caso histórico de homem errado no cargo errado para a hora errada.

Não por acaso, Trump e Bolsonaro procuram se esquivar do fracasso. O primeiro, por ter a reeleição ameaçada. Como observou o professor Todd Belt, da Universidade George Washington, até 2016 o movimento anti-Trump era baseado no que poderia acontecer com o país caso ele fosse eleito; agora, é baseado no que já aconteceu em seus três anos e meio na Casa Branca, com o conjunto da obra desaguando no descontrole da pandemia. Bolsonaro, por sua vez, vivencia a sua tempestade perfeita. Não só na Saúde, como no Meio Ambiente, na Educação e na Economia, como na esfera pessoal/familiar. Nada mais parece estar dando certo.

Pois é desse desmonte de políticas públicas que frestas de racionalidade se entreabrem e conquistam espaço. Pode-se até vislumbrar um futuro escancarar de janelas para a realidade. Em entrevistas para o lançamento nacional do seu mamute mais recente (1.053 páginas), “Capital e ideologia”, o economista francês Piketty soa menos pessimista, fala em ponto de bifurcação possível no mundo sacudido pela pandemia e pela desigualdade.

Razão, ciência, saber, curiosidade e humanidade podem emergir com força da pandemia. “Por vezes é a intricada e mal compreendida dinâmica das moléculas, das células, organismos e ecossistemas que falam à nossa imaginação e deslumbramento”, escreveu Elizabeth Blackburn, codetentora do Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2009, solicitada a definir o belo. “Pode haver beleza na simples ideia de a Ciência procurar a verdade, ou no mero processo de investigação científica através do qual a criatividade e habilidade humanas revelam algo que parecia caótico e incompreensível”.

Cuidemos, pois, da frágil beleza do nosso único lar, a Terra, de todas as suas espécies e conhecimento.


Dorrit Harazim: Desmascarados

A sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva

O índice de estupidez de quem abarrotou bares e ruas do Leblon na noite de quinta-feira merece atenção para além de um simplório filtro por classe social. Nas franjas das periferias e comunidades, bailes funk também rolam adoidado ao arrepio de qualquer quarentena. Esses bolsões de incivilidade tampouco são coisa só nossa. Nos Estados Unidos, matriz brasileira de gestão irresponsável do coronavírus, exemplos de insensatez social ostensiva pipocam emNova York e Houston, lotam Miami Beach e assustam Los Angeles. A novidade é desafiar o amanhã embarcando em “Covid parties” sem proteção, propósito ou culpa.

À primeira vista, essa sofreguidão irreprimida pode evocar “A noite dos desesperados”, filme ambientado na Grande Depressão de 1929 com Jane Fonda em papel memorável. Mas só à primeira vista. Na obra do diretor Sydney Pollack, o grupo à deriva que desce aos infernos para vencer uma maratona de dança e conquistar um prêmio em dinheiro é arrastado pela necessidade. No filme, incentivados por um promotor sem escrúpulos e oportunista, eles arriscam tudo para sobreviver, inclusive a autodestruição. Já os festeiros afoitos de hoje jogam sobretudo com a vida alheia. E de graça, sem ganhar nada. São paspalhos.

Mas há um elo em comum entre a trama ficcional e o momento coronavírus atual: a figura do promotor oportunista. Em sua versão 2020 ele é tanto o prefeito que reabre sem ter fechado quanto o governador que rouba respirador ou o presidente que achincalha o uso da máscara. Impulsionados por estreiteza de visão, aposta negacionista ou pura irresponsabilidade, esses agentes do devaneio estão levando o país à neurastenia. E a sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva.

Virou notícia a iniciativa de um shopping da cidade de Botucatu, no interior paulista, que liberou a circulação de automóveis pelos corredores, no interior do prédio. O cliente precisa estar de máscara, não pode sair do veículo, mas retira suas encomendas diretamente na porta das lojas. Tudo seguindo as normas sanitárias vigentes na cidade, que foi rebaixada para a chamada fase 1 (vermelha) do Plano São Paulo, portanto de quarentena mais restritiva — apenas serviços essenciais podem permanecer abertos. Motos e carros movidos a diesel têm acesso vetado ao local, mas havia limite de velocidade para a circulação dos muitos SUVs que se enfileiraram no primeiro dia. Um sucesso. As imagens do chamado “drive-thru in door” são estupefacientes.

Se para uns consumir é pretender que nada mudou, para quem foi condenado a confundir cidadania com consumo voltar a comprar é necessidade. Em shoppings populares já abertos legalmente, o afluxo é quase desesperado.

O ativista ambiental britânico George Monbiot descreve assim o sistema falido em que vivemos, que depende de crescimento contínuo e exige que percamos nossa capacidade de tomar decisões ponderadas: primeiro satisfazemos nossas necessidades reais, depois nossos desejos intensos e vontades de ocasião. Por fim, somos induzidos a continuar a adquirindo bens e serviços de que não precisamos nem queremos. É quando abandonamos nossas faculdades discriminatórias e sucumbimos ao mero impulso, tragados por um ciclo de compulsão ao consumo. Monbiot cita como exemplos a existência de uma torradeira capaz de imprimir a imagem do dono no pão, de um porta-papel higiênico que envia mensagem a seu celular informando que o rolo está acabando e de uma escova de cabelo (para adultos) que informa se você sabe escovar corretamente o cabelo. O autor alerta para o fato de o meio ambiente não responder a sinais da Bolsa e do mercado.

Pandemias também não.

Dias atrás coube ao atual diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), dr. Robert Redfield, apresentar-se perante uma inquieta Comissão Parlamentar de Comércio e Energia. Indicado por Donald Trump, Redfield surpreendeu a todos na franqueza. Informou aos deputados que o governo americano “provavelmente vai gastar US$ 7 trilhões com esse viruzinho”. E acrescentou: “A realidade é que [a pandemia] botou esta nação de joelhos.” A última vez que se ouviu falar da nação de joelhos foi após o ataque terrorista às Torres Gêmeas de 2001.

No Brasil as contas ainda estão muito longe de fechadas — nem o custo em vidas, nem o financeiro. Mas o país já está firmemente alinhado à matriz como nação pária no combate civilizado à pandemia. Na Europa que se entreabre, brasileiro não entra por enquanto. Por pertinente, copia-se aqui trecho de entrevista do historiador John M. Barry, autor do aclamado “A Grande Gripe”, concedida esta semana a Ana Lucia Azevedo, no GLOBO:

— Como o senhor vê o posicionamento de líderes que negam a Ciência, como os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro?

— Serei diplomático. Eles são idiotas perigosos.


Dorrit Harazim: Sobras de guerra

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto

Não é de hoje que números redondos são ferramentas infalíveis para atrair leitores, concentrar homenagens, turbinar emoções. Não fosse a pandemia que imobiliza este 2020 fantasmagórico, o 250º aniversário do nascimento de Beethoven e os festejos pelos 75 anos do final da Segunda Guerra na Europa seriam mais tonitruantes. Basta comparar com o passado recente: em 2019 o mundo se entregou a comemorações voluptuosas pelos 50 anos de Woodstock, os 30 anos da Queda do Muro de Berlim, e tantos outros marcos históricos.

Em tempos de coronavírus, números redondos também são ferramenta de primeira linha, só que às avessas — eles nos arrancam do torpor de um amanhã incerto. Sabidamente o medo que mais imobiliza o ser humano é o medo de ver o que está à sua frente. Isso inclui o presidente da República. Para Jair Bolsonaro, cada novo número-choque da pandemia no Brasil tem impacto dobrado, pois atesta sua falha histórica como governante da nação em tempos turvos.

Na linha desse tempo pandêmico o mundo mal teve tempo de atravessar o choque do primeiro milhão de infectados. No momento rumamos para 10 milhões mundo afora, e logo mais a régua terá de ser levantada. Na manhã da última sexta-feira dados apontavam para 55.304 mortos no Brasil. Portanto nova barreira redonda derrubada, com a anterior (50 mil) já esquecida.

Como nossas mentes dificilmente registram o número por inteiro, é mais provável que em conversas de quarentenados tenhamos arredondado para 55 mil. Em textos jornalísticos ou legendas noticiosas, o número completo acaba encurtado para “mais de 55 mil”. Ou, “55,3 mil”. Acabam ficando de fora do nosso imaginário as chamadas “sobras da guerra” — no caso, os 4 últimos dessas 55.304 vidas perdidas para a Covid. É natural: quem pensa nos centavos diante de um cheque de 10 mil reais, certo?

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto. A morte em massa se torna a soma de vidas anônimas tragada por essa avalanche. Só que, ao contrário do que ocorre em furacões, terremotos ou guerras, a mortandade por pandemia é condenada ao silêncio. E esta, em particular, parece não ter fim.

Na Guerra do Vietnã, onde morreram 58.209 G.I.s, foi fácil levantar a identidade dos dois últimos soldados americanos a não voltarem para casa. Um se chamava Charles McMahon, estava prestes a completar 22 anos e desembarcara em Saigon 11 dias antes de morrer. O outro, Darwin Lee, de 19 anos, também era novato na guerra que durou 7 anos. Ambos tinham por missão proteger a Embaixada dos Estados Unidos. Morreram juntos na manhã do 29 de abril de 1976, atingidos por um foguete. No dia seguinte, a guerra acabou, Saigon foi tomada pelos comunistas, e o que restava de presença americana bateu em retirada afoita. Inglória das inglórias, os corpos de McMahon e Lee foram deixados para trás. Só conseguiram ser recuperados um ano mais tarde por mediação da diplomacia.

Historiadores da Segunda Guerra Mundial também puderam cravar a identidade do último soldado das tropas aliadas a morrer no front europeu: Charles Havlat, 34 anos. No dia 7 de maio de 1945 seu pelotão avançava na região da Tchecoslováquia quando sofreu emboscada de uma divisão de tanques alemães. Fatalidade: nove minutos antes fora negociado o cessar-fogo que levaria à rendição incondicional da Alemanha, comemorada em 8 de maio.

Difícil imaginar que pesquisadores do futuro conseguirão identificar a última vítima da pandemia de Covid-19 no Brasil. Isso porque, por trás de números tão monumentais, se escondem várias causas mortis. Inclusive a falta de medicamentes críticos em várias UTIs do país. O estoque de 22 insumos indispensáveis para pacientes que precisam ser intubados (sedativos, anestésicos, bloqueadores neuromusculares) está à míngua em 21 hospitais de referência, aponta um levantamento nacional divulgado esta semana. Sem esses medicamentos, o paciente não morre de Covid, morre por não poder ser intubado.

Também pode morrer por ter desistido de entender o emaranhado de protocolos de segurança e reclassificações de atividades.

Desistido de aguardar o auxílio emergencial do governo, desistido de se proteger. O método universalmente reconhecido como o mais simples e barato — o uso de máscara — é sabotado pelo presidente da República. Como levar a sério um protocolo municipal que libera viagens de pé em ônibus mas limita a ocupação no interior do veículo em 2 pessoas por metro quadrado? Isso, na cidade do Rio de Janeiro! O efeito sanfona das medidas de flexibilização desnorteia mais do que disciplina, a lição primeira de lavar as mãos com sabão não serve para os mais de 100 milhões de brasileiros hoje ainda expostos ao esgoto a céu aberto.

Em resumo, no Brasil de 2020 ainda vai se morrer muito durante a Covid-19. Sobras desnecessárias da soma de irresponsabilidades nacionais.


Dorrit Harazim: Abraço de afogado

Agora que a casa caiu, a esparrela das movimentações financeiras dos Bolsonaro será escancarada mais cedo do que tarde

Um silêncio nunca consegue ser de todo silencioso. Mais de meio século atrás, o compositor de música contemporânea John Cage sentou-se ao piano do Maverick Concert Hall em Woodstock (pois é, Woodstock), no Estado de Nova York, e apresentou a peça que o tornaria célebre. Durante 4 minutos e 33 segundos “tocou” o que seriam três movimentos com as mãos imóveis sobre o teclado fechado. Daí o nome da peça, “4:33”, e o estrondo que fez. A obra continua a ser apresentada por pianistas clássicos mundo afora, com cada plateia preenchendo o desconfortável silêncio ouvindo os sons ao redor. São sons do cotidiano imprevisível — um tossir, um ranger, um respirar pesado, um roçar de papel — que em salas de acústica afinada adquirem peso novo. No fundo, cada um ouve o que não pretendia escutar.

O abraço de três segundos desta quinta-feira entre o presidente Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub também se presta a leituras múltiplas. Cada um interpreta como quiser, mas não é ilícito ver na cena o abraço de um afogado. Um só — Bolsonaro.

Dadas as circunstâncias, os náufragos naquele enlace forçado deveriam ser dois — o ministro da Educação defenestrado e o chefe de Estado no seu dies mais horribilis desde a posse. Só que Weintraub pôde se programar para a cena, enquanto a explosiva prisão de Fabrício Queiroz horas antes deixara o presidente à míngua de oxigênio. Para o vídeo de três minutos em que anunciou sua demissão, Weintraub se apresentou de paletó aberto e mão no bolso, com uma sem-cerimônia estudada e cafajeste, sob medida para os “muitos Weintraubs” que ele disse ter descoberto no Brasil. Agraciado com um cargo de R$ 1,3 milhão anuais no Banco Mundial em Washington, disporá, se efetivado, desse colchão de distância das investigações judiciais que o envolvem no inquérito das fake news. Ainda que venha a ser alcançado pela Justiça, contudo, jamais conseguirá pagar a dívida histórica que contraiu com toda uma geração de brasileiros: ele foi, até o ultimíssimo decreto, o ministro da Educação mais ruinoso da História do Brasil.

Já Bolsonaro, seja na cena do abraço ou longe dela, não tem para onde ir. Encolhido, olhar vazado e desprovido de seu talento para farejar fraquezas alheias e improvisar, o presidente pareceu de cera no “abracinho” obtido a fórceps por Weintraub. Pouco a ver com o desconforto em demitir o décimo membro do seu Ministério. Tudo a ver com a implosão do esconderijo de Fabrício Queiroz. Amigo há décadas do atual presidente, Queiroz atuou como faz-tudo ao hoje senador Flávio, enquanto o filho 01 foi deputado estadual do Rio. Por isso, caso decida falar, Queiroz será a testemunha mais apta a elucidar a teia de ligações perigosas do clã Bolsonaro. Como escreveu a jornalista Míriam Leitão, o nome “rachadinha”, no diminutivo como é da cultura carioca, reduz o peso do crime que lhes é imputado. Trata-se, no mínimo, de desvio de dinheiro público, com fortes indícios de ser muito mais. A parceria tóxica com a criminalidade miliciana, se comprovada, apertará o cerco a um presidente já sitiado por outros inquéritos, com potencial de levar à sua cassação ou impeachment.

Teve efeito bumerangue a gritante mudez do presidente da República no dia da prisão de Queiroz. Assim como a obra “4:33” de John Cage adquire vida própria pelos ruídos fora da cena, o fatal silêncio de Bolsonaro na quinta-feira foi atropelado pelo desenrolar de fartos acontecimentos em tempo real. A diferença, claro, é que o músico vanguardista americano teve no silêncio a sua criação. Já Bolsonaro recorreu ao silêncio como refúgio para o medo. Embrulhado numa jaqueta de tamanho acima do necessário na live semanal, na noite de quinta-feira, parecia outro homem. Encolhera.

Entre os protagonistas principais da trama atual, a figura do advogado de melenas graúnas Frederick Wassef é a mais exótica até agora. Apesar de ser o advogado oficial de Flávio Bolsonaro e se dizer causídico do presidente (ou então, justamente por isso), teve a péssima ideia de manter Queiroz por meses em um sítio de sua propriedade, ao abrigo de uma eventual diligência do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Agora que a casa caiu, a esparrela das movimentações financeiras dos Bolsonaro será escancarada mais cedo do que tarde. Ela se encontra com um Brasil de mais de 1 milhão de infectados pelo coronavírus, um corolário de 50 mil mortos, um Ministério da Saúde à deriva e um governo insano.

Neste Brasil o silêncio começou a deixar de ser uma opção. Melhor assim.


Dorrit Harazim: O tempo encurta

No Brasil de Bolsonaro, dia sim dia não algum militar da ativa, de pijama ou de ministério nega riscos de qualquer tipo de golpe

A jornalista americana de origem russa Masha Gessen usa de impiedade cirúrgica quando descreve tiranos. Basta ler “O homem sem rosto”, seu livro-reportagem sobre Vladimir Putin, o líder russo de alma soviética ou líder soviético de alma russa, tanto faz — para reconhecer em Gessen amplo conhecimento em viciados do poder. A mais recente investida da escritora tem por título “Surviving Autocracy” (sobrevivendo à autocracia) e chega em boa hora. Embora a obra centre foco no esgarçamento do tecido democrático em curso com Donald Trump, o tema adquire urgência diante da proliferação de candidatos a autocrata mundo afora.

O presidente americano ainda estaria na primeira etapa de uma escalada ao poder antidemocrático, uma vez que as instituições, a oposição e a imprensa livre do país continuam de pé. Segundo uma sequência elaborada pelo sociólogo e ex-ministro da Educação húngaro Bálint Magyar, Trump vive a fase da “tentativa autocrata”. Ela antecede às duas seguintes do ciclo autoritário estudado por Magyar: a “ruptura autocrática” e a “consolidação da autocracia”.

Até recentemente Trump demonstrou ser um aspirante bastante sólido à supremacia do poder pelo poder, com eleitorado personalista fidelíssimo e um Partido Republicano curvado em servilidade. Mas tudo mudou com a devastação provocada pela Covid-19, que já ultrapassou a marca de dois milhões de contaminados e 110 mil óbitos nos EUA. A razia do vírus somou-se ao destemido despertar antirracista nas ruas do país e, de repente, a cinco meses da eleição presidencial, Donald Trump tem pressa.

Seu índice de popularidade voltou a despencar fora da bolha que lhe é fiel, e o adversário democrata Joe Biden, apesar de física e mentalmente fraquejante, está oito pontos percentuais à frente. Com ou sem pandemia, é imperioso para Trump voltar aos comícios em arenas fechadas, de forma a dominar o noticiário e turbinar o eleitorado. A adição de um pré-requisito para participar de seus comícios merece mais do que um rodapé na história: o apoiador precisa confirmar, on-line, ter ciência do risco de exposição ao coronavírus, e garantir, voluntariamente, que não vai acionar Donald J. Trump na Justiça no futuro. Temos aí um díptico perfeito da peste de 2020 e da mente do 45º presidente dos Estados Unidos. Como é que ninguém do Palácio do Planalto ou de seus porões não pensou em algo semelhante para Jair Bolsonaro?

Faz parte do perfil de um aspirante a autocrata ceder o poder em caso de derrota nas urnas, mesmo que esperneando e afogado em teorias conspiratórias. Mas e se ele quiser pular etapas e partir para a “ruptura”? Dias atrás, correu mundo um discurso em vídeo do general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos. Dirigida a cadetes da Universidade Nacional de Defesa, a fala visou a ouvidos civis e militares, republicanos e democratas.

A mais graduada autoridade militar americana pedia desculpas à nação. Milley servira de figurante a uma desastrosa encenação de Trump nas ruas, que resultara em violenta repressão a manifestantes pacíficos. “Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna… Nós que usamos as insígnias da nossa nação, que viemos do povo, devemos sustentar o princípio de Forças Armadas apolíticas…”, disse o general. Em privado, ele também alegou que fora convocado de surpresa pelo presidente e o acompanhou sem saber do que se tratava — o que por si só já seria péssimo, vindo de um chefe militar da maior potência mundial. Mais grave, contudo, é o fato em si: nos EUA de Trump foi necessário esclarecer que as Forças Armadas têm raízes firmes na base republicana da nação. Coisa rara, senão inédita. E inquietante.

Lá não é como no Brasil de Bolsonaro, onde dia sim dia não algum militar da ativa, de pijama, ou de ministério nega riscos de qualquer tipo de golpe —seja presidencial ou de quepe.

Por ora, a nossa aberração nacional tem tintas próprias. Na Praia de Copacabana a areia amanhecera com cem cruzes de madeira sobre covas rasas, simbolizando as mais de 40 mil vidas brasileiras que o coronavírus já levou e enterrou às pressas. Lá pelas tantas um bípede grisalho de peito estufado e passada firme sai do calçadão e adentra a instalação montada pela ONG Rio de Paz. Ele não usa máscara, prefere óculos de sol. Avança pela areia sem tirar o tênis e passa a arrancar as cruzes uma a uma, em movimento cadenciado, quase militar. Hesita só uma vez, indeciso diante da bandeira nacional que enfeitava uma das cruzes. Sacrilégio derrubar a bandeira pátria no chão. Tinha plateia, silenciosa.

Até que outro brasileiro irrompe na cena. Márcio Antonio perdera o filho de 25 anos para a Covid sem poder lhe dar um enterro decente. Caminhava pelo calçadão com a mulher quando percebeu o destruidor de cruzes em ação. De chinelo nos pés e camisa no pescoço, também invadiu a areia. Em cadência igualmente obsessiva foi refincando as cruzes tombadas uma a uma, com paixão. Foi xingado com estridências. Ouviu “Vai pra Venezuela!”, como se a Venezuela já não fosse aqui. De outro espectador recebeu o conselho de baixar o tom da raiva.

Se ninguém se mexer, os aspirantes daqui vencem.