Dorrit Harazim: O inimigo em casa

Sem data de vencimento para a pandemia, o estado de excepcionalidade em vigor também poderia ser expandido.
Foto: Acácio Pinheiro/Agência Brasília
Foto: Acácio Pinheiro/Agência Brasília

Sem data de vencimento para a pandemia, o estado de excepcionalidade em vigor também poderia ser expandido

A pesquisadora Roudabeh Kishi é diretora da ACLED, pioneiro instituto que analisa a pletora de dados produzidos no planeta sobre conflitos armados e protestos. Tudo em tempo real. Em recente artigo para a revista “Foreign Policy”, Kishi focou nas mudanças que o coronavírus vem provocando na natureza dos protestos, da repressão estatal e da violência criminosa mundo afora. A seu ver, em países onde as instituições democráticas regrediram algumas casas durante a pandemia, é provável que os líderes procurem capitalizar poderes emergenciais adquiridos no combate à praga.

Será forte a tentação de esticar esses poderes para além do dilúvio. Melhor se precaver desde já contra o descontentamento popular que a Covid-19 terá agudizado e que poderá ressurgir forte, somando-se à insatisfação com questões endêmicas como corrupção, racismo, má gestão, disparidades sociais. Sem data de vencimento para a pandemia, o estado de excepcionalidade em vigor também poderia ser expandido.

Neste sentido, o cenário americano é exemplar. Dias atrás o presidente Donald Trump anunciou uma operação batizada de LeGend, que autoriza forças militares e de segurança federais a combater a atual onda de violência urbana no país. Em tese, elas atuariam em conjunto com policiais locais, e a pedido dos governantes, como é norma também no Brasil. Na prática, porém, a medida excepcional adotada para domar “a chocante explosão de tiroteios, assassinatos e chacinas” foca apenas cidades lideradas por Democratas — como Chicago, Albuquerque, Kansas City, Portland. Nenhum dos seus governadores ou prefeitos solicitou reforço militar nem de agentes federais. Acolheriam de bom grado uma parceria no combate à violência, mas não aceitam medidas autoritárias. Sentem-se sitiados. Tem tudo para terminar mal.

Vale um breve retrospecto da militarização doméstica dos Estados Unidos para entender a gravidade da situação.

A primeira virada ocorreu nos anos 1980, por obra do presidente Ronald Reagan, que decidiu recorrer a forças federais para enfrentar a curva ascendente de crimes violentos da época. Com aprovação do Congresso, policiais passaram a ter acesso a bases, treinamentos e equipamentos militares, e a Guarda Nacional foi convocada para operações de combate às drogas. Disso brotou o infame Programa 1033, pelo qual material excedente das Forças Armadas — fuzis de assalto M-16, veículos blindados, lançadores de granadas — foi sendo cedido aos departamentos de polícia das grandes cidades. Unidades de SWAT que intervinham em média uma vez por mês passaram a arrombar e invadir domicílios (sem mandado) mais de 80 vezes no mesmo período. Tudo em nome da infame Guerra às Drogas.

A segunda virada ocorreu em 1997, depois que assaltantes de um banco em Los Angeles, munidos de fuzis e coletes à prova de bala, feriram 12 policiais desprovidos desses equipamentos. A partir daí, a porteira se abriu: policiais passaram a usar fuzis AR-15 mesmo em operações desvinculadas do combate ao narcotráfico. Em 2011, com o retorno das tropas que haviam deixado o Iraque em ruínas, a abundância de parafernália militar repatriada acentuou o fluxo. Até blindados resistentes a minas terrestres foram parar onde não deviam. Um ex-chefe de polícia de New Haven, Connecticut, contou em filme produzido pelo site Vox ter recebido ofertas de tanques, bazucas, e “tudo o mais que quisesse”. Recusou os mimos por pensar que “quando você deixa de ser visto como policial a serviço da comunidade, você passa a ser temido como um soldado em guerra”.

Não deu outra. Estudo recente envolvendo 10 mil policiais dos Estados Unidos revelou o quanto o comportamento do agente é afetado pelo armamento que usa e pela armadura que o esconde: 77% dos entrevistados disseram que se tornam mais agressivos e violentos quando paramentados; 83% responderam que assim amedrontam a população — e que não se incomodam com isso.

A terceira virada ocorreu em 2014, quando o jovem negro Michael Brown, desarmado, foi morto à queima-roupa por um policial branco de Ferguson, no Missouri, e a emergência do movimento Black Lives Matter foi reprimida com tanques e atiradores de elite. De lá para cá, a fervura entre cidadãos e forças da “lei e ordem” assume contornos inquietantes. Trump não só ampliou o repasse de material militar para departamentos de polícia de cidades menores como ampliou o recrutamento de civis para atuarem na prisão de imigrantes sem documentação, o que seria de competência da ICE, a Agência de Controle da Imigração e Alfândega.

O círculo agora parece se estreitar. A Autorização de Defesa Nacional que legalizou a prisão de cidadãos americanos suspeitos de terrorismo foi assinada por Barack Obama em 2011, Trump apenas a ampliou, ao classificar de organização terrorista o amontoado de grupos antifascistas violentos , e incluir no balaio de inimigos do povo o que lhe convier. Enquanto a pandemia não dá trégua ao país, a violência urbana é o inimigo ideal. O uso de agentes federais camuflados em ações clandestinas, como ocorreu em Portland na semana passada, é um convite à formação de milícias se fazendo passar por autoridades legais. Tudo em nome de uma guerra sem causa, exceto a de uma escalada da violência.

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