Dorrit Harazim: Fresta aberta

Saber, curiosidade e humanidade podem emergir após pandemia.
Foto: Alex Pazuello/Semcom
Foto: Alex Pazuello/Semcom

Saber, curiosidade e humanidade podem emergir após pandemia

Da cidade de Wuhan, onde nasceu, cresceu e escapou o novo coronavírus, os relatos que conseguem driblar a censura do regime chinês ainda são esparsos e picados. Talvez sejam necessárias mais algumas gerações até que se consiga historiar como a Covid-19 transformou aquela cidade em laboratório humano. Mas de Bergamo e comunas vizinhas na Lombardia, berço e epicentro da mortandade na Europa, os relatos de terra arrasada transbordam à medida em que a vida, ali, retoma seu curso. Ou o que dela restou. O repórter Eric Jozsef, do diário francês “Libération”, fez um dos apanhados mais impactantes do que foi aquele manto da morte sobre Bergamo. Diante da escalada pandêmica cada vez mais abstrata, por incompreensível e incerta — 14 milhões de infectados globais, Estados Unidos apontando para 150 mil mortos, Brasil ultrapassando 2 milhões de contaminados —, vale retornar ao horror concreto de menos de 5 meses atrás.

Na próspera Bergamo de 120 mil habitantes, os fornos crematórios não davam conta do fluxo de mortos. Três semanas após o registro do primeiro infectado no país, um comboio de caminhões militares atravessou as ruas desertas da cidade transportando dezenas de caixões para serem incinerados em outros burgos. Foi apenas o primeiro de 45 comboios noturnos semelhantes. Ao longo de 40 dias houve um enterro a cada 30 minutos. Ao todo foram 6 mil, muitos deles sacrificados em função da idade ou do estado de saúde. A jornalista local testemunha: “Houve dias em que parecia haver um atirador de metralhadora disparando a esmo”. A enfermeira não esquece: “Os olhos dos moribundos pareciam lhes saltar da órbita, como se o vírus estivesse ali. Era o olhar da morte”. O pároco relembra: “Tivemos de interromper o tocar de sinos por um mês, tantos eram os mortos”. O septuagenário que perdeu 3 irmãos em duas semanas sentencia: “Eram tantos avisos de óbito que eles passaram a ocupar os painéis publicitários. Uma geração inteira desapareceu”.

Hoje toma-se um spritz ou amaro em praças de Bergamo. Reaprende-se a viver com cautela. E diante da nova realidade, o medo cede à cobrança, à indignação. Onde estiveram as autoridades? Por que demoraram a decretar o confinamento? Qual o peso do lobby dos industriais para não interromper a atividade econômica na província responsável por 22% do PIB italiano? Um comitê de defesa das vítimas constituiu-se espontaneamente em busca de repostas e aponta para o que deve ocorrer em outros países. Mundo afora houve delongas iniciais por desinformação sobre o comportamento da nova peste. Em casos mais gritantes como os do Brasil e dos Estados Unidos, a ausência do poder público foi deliberada, mas por negacionismo.

Todos nós — indivíduos, entidades, lideranças, especialistas em saúde, a mídia, unanimidades nacionais como os doutores Anthony Fauci e Drauzio Varella — tivemos nosso momento delay de percepção do inimigo invisível. Seguimos à risca a recomendação inicial de não usar máscaras por dois motivos básicos: as de uso hospitalar (as únicas que existiam) poderiam vir a faltar para quem trabalha na linha de frente; ademais, seriam inócuas para a defesa de quem não estava infectado. Pensava-se que elas serviriam apenas para diminuir o potencial de transmissão dos já doentes. Um artigo postado em fins de fevereiro pela revista “Forbes”, acessado 4,5 milhões de vezes, teve por título “Não, você NÃO precisa de máscaras contra o coronavírus — Elas podem aumentar seu risco de infecção”. O artigo foi posteriormente atualizado para refletir a farta evidência científica de que máscaras são cruciais para todos nós.

Hoje está entendido que a Europa e a Organização Mundial da Saúde deveriam ter reagido mais rápido às notícias vindas da China, que os Estados Unidos de Donald Trump jogaram fora o tempo de preparo para o inevitável desembarque da peste em suas terras, e que o Brasil conseguiu superar com folga o patamar de desgoverno do colosso americano. O despreparo e a empedernida irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro continuam a estarrecer o mundo. Caso histórico de homem errado no cargo errado para a hora errada.

Não por acaso, Trump e Bolsonaro procuram se esquivar do fracasso. O primeiro, por ter a reeleição ameaçada. Como observou o professor Todd Belt, da Universidade George Washington, até 2016 o movimento anti-Trump era baseado no que poderia acontecer com o país caso ele fosse eleito; agora, é baseado no que já aconteceu em seus três anos e meio na Casa Branca, com o conjunto da obra desaguando no descontrole da pandemia. Bolsonaro, por sua vez, vivencia a sua tempestade perfeita. Não só na Saúde, como no Meio Ambiente, na Educação e na Economia, como na esfera pessoal/familiar. Nada mais parece estar dando certo.

Pois é desse desmonte de políticas públicas que frestas de racionalidade se entreabrem e conquistam espaço. Pode-se até vislumbrar um futuro escancarar de janelas para a realidade. Em entrevistas para o lançamento nacional do seu mamute mais recente (1.053 páginas), “Capital e ideologia”, o economista francês Piketty soa menos pessimista, fala em ponto de bifurcação possível no mundo sacudido pela pandemia e pela desigualdade.

Razão, ciência, saber, curiosidade e humanidade podem emergir com força da pandemia. “Por vezes é a intricada e mal compreendida dinâmica das moléculas, das células, organismos e ecossistemas que falam à nossa imaginação e deslumbramento”, escreveu Elizabeth Blackburn, codetentora do Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2009, solicitada a definir o belo. “Pode haver beleza na simples ideia de a Ciência procurar a verdade, ou no mero processo de investigação científica através do qual a criatividade e habilidade humanas revelam algo que parecia caótico e incompreensível”.

Cuidemos, pois, da frágil beleza do nosso único lar, a Terra, de todas as suas espécies e conhecimento.

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