Dorrit Harazim

Dorrit Harazim: A era da inocência acabou?

Não é apenas um perdigoto invisível que mata uma pessoa por minuto. É a falência múltipla dos órgãos do Estado

O entorno de George Floyd era uma barulheira só — carros passando, ronco urbano de Minneapolis à luz do dia, rádios da polícia apitando, transeuntes gritando que aquele homem negro imobilizado no asfalto, algemado pelas costas, precisava respirar. Apesar da barulheira, seu murmúrio final está registrado em vídeo e não carece de tradução: “Momma! Momma! I’m through”. A mãe de Floyd morrera em 2018. O filho que a invocou conseguiu chegar aos 46 anos até tornar-se o 11º caso de cidadão negro assassinado pela polícia de Minneapolis desde 2010. Teve altos e baixos na vida. Nasceu e cresceu no mesmo bairro texano do qual Beyoncé partiu para o estrelato, quase emplacou como atleta, quase terminou a faculdade, quase descarrilhou de vez ao ser preso por roubo à mão armada, mas retornou. Formou família, trabalhava onde possível e para isso foi parar em Minneapolis. Contraiu Covid-19, mas não sabia. Morreu rodeado da gente errada — sob as botas dos quatro policiais brancos de farto currículo de abusos, agora indiciados.

É possível que a partir da morte de Floyd a sociedade americana se olhe no espelho com menos complacência. Talvez tenha expirado o prazo de validade do mantra “não somos isso”, “somos melhor do que isso”, repetido com fervor após cada episódio de infâmia racista. Hoje, quem inunda as ruas em protesto e cobrança sabe que os EUA são, sim, uma sociedade racista, e parece disposto a aceitar a realidade para poder construir uma cidadania de que não precise se envergonhar. Passadas duas gerações desde que o governo Lyndon Johnson aprovou a Lei dos Direitos Civis em 1964, é o racismo no sistema prisional, judiciário e policial que entra em pauta. Como, porém, ele não se sustenta em nenhuma lei segregacionista, e portanto passível de ser derrubada sob pressão, trata-se de uma realidade mais encruada e complexa de ser desmontada. Ela depende essencialmente da formação moral ou disciplinar, e da índole de cada indivíduo com autoridade para bater, prender ou sufocar. E o ser humano, quando adulto e solto, é pouco confiável.

O menino negro Miguel Otávio Santana da Silva precisaria de mais 41 anos para chegar à idade de Floyd. Não deu. Morreu aos 5, sem qualquer ser humano por perto. Caiu do nono andar de um edifício em Recife enquanto a mãe, que trabalhava como doméstica no quinto andar do mesmo prédio, passeava com o cachorro da família por ordem da patroa. As circunstâncias dessa tragédia são o retrato cru e nu da vida brasileira. Mirtes, a mãe de Miguel, trabalhava há quatro anos para o casal Sérgio Hacker e Sari Corte Real. Errado: na verdade, segundo apuração da repórter Ciara Carvalho, do “Jornal do Commercio” de Pernambuco, Mirtes aparece na folha de pagamento da prefeitura de Tamandaré, cidade da qual o patrão é prefeito. Está cadastrada como gerente de divisão CC6, sem carga horária específica. Possivelmente uma “funcionária laranja” a mais, sem sabê-lo.

Os patrões de Mirtes haviam contraído a Covid-19. Ela, sua mãe e Miguel também estão entre os mais de 16 mil casos registrados no Recife. Com as creches da cidade fechadas por causa da pandemia, Mirtes levara o filho ao trabalho, sem suporte social ou patronal para evitar a exposição. Na tarde da tragédia a patroa requisitara os serviços de uma manicure, profissão considerada não essencial para tempos de coronavírus, mas essencial para a primeira-dama. Tudo errado novamente.

Relatos iniciais atestam que Miguel tornou-se choroso com a ausência da mãe, e câmeras do prédio mostram o menino, sob as vistas da patroa, conseguindo entrar sozinho no elevador, do qual vários botões foram apertados. Vê-se um Miguel desnorteado à procura da mãe, descendo no nono andar que lhe era desconhecido, com acesso fácil a uma área reservada à ventilação dos aparelhos de ar-condicionado do prédio. Ali ele teria subido num gradil e “virou estrela”, nas palavras da mãe. Foram 35 metros de queda do espigão de luxo conhecido como “Torres Gêmeas”. Apesar do alto padrão e localização nobre, o condomínio terá de explicar a elementar falha de segurança que permite a uma criança de 5 anos saltar para o vazio a partir de uma área comum.

Dentro do seu apartamento no quinto andar, a patroa só soube da morte do menino sob sua guarda depois que Mirtes encontrara o filho único no chão, na volta da caminhada. Miguel foi atendido pelo SUS. A patroa prestou depoimento no dia seguinte, pagou R$ 20 mil de fiança e responderá a processo por homicídio culposo. Invocando a Lei de Abuso de Autoridade, a delegacia encarregada do caso procurou não divulgar a identidade da patroa de Mirtes. É o Brasil cordial com prefeitos e primeiras-damas.

“Pois muito bem”, escreveu a acadêmica e feminista negra Djamila Ribeiro, em contundente artigo sobre negritude na “Folha de S.Paulo”, “Só que a era da inocência acabou, já foi tarde”.

Oxalá. Nas periferias da vida brasileira, não é apenas um perdigoto invisível que mata 1 pessoa por minuto. É a falência múltipla dos órgãos do Estado. Do governo Jair Bolsonaro. Se “escória maldita” há, é ali que ela está aninhada.


Dorrit Harazim: Talkey

Pouco apaziguante para um país que ultrapassara 330 mil casos de Covid-19 e um séquito de mais de 21 mil óbitos

A linguagem do decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em nada se assemelha ao idioma criado por Jair Bolsonaro para pregar a seus devotos. A sintaxe, o léxico, o conteúdo falam a dois Brasis cada vez mais estrangeiros. Na sexta-feira passada, porém, Celso de Mello se fez entender por todos ao lembrar que cabe ao Estado mandar apurar delitos apontados por “qualquer pessoa do povo”, mesmo que se trate de “alguém investido de autoridade na hierarquia da República”. Em outras palavras: nem o Mito está acima da lei, talkey? O causídico assinou dois despachos — bomba com poucas horas de intervalo —, autorizou a liberação quase integral do vídeo da polêmica reunião ministerial de 22 de abril último, e encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de apreensão do celular de Bolsonaro e de seu filho 02, o vereador bissexto Carlos. As duas decisões são desdobramentos das investigações sobre a suposta interferência do presidente na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro Sergio Moro.

A partir daí, o estado democrático de direito viu-se, mais uma vez, enroscado.

Com 48 horas de intervalo, o general de reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) também emitira dois comunicados à nação. O primeiro já teve sonoridade meio esquisita, embora pretendesse soar como afago aos historicamente inquietos. “Os militares não vão dar golpe. Isso não passa na cabeça dessa nossa geração… São provocações feitas por alguns indivíduos…”, garantiu o general durante uma live com o grupo Personalidades em Foco. Heleno acrescentou que deve isso à geração de seus instrutores, “vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política”. No segundo comunicado, em papel timbrado via Twitter, indignou-se com o pedido de apreensão e encaminhamento à PGR do celular presidencial. Considerou o pedido uma afronta à autoridade máxima, e uma interferência “inadmissível” do STF na privacidade de Bolsonaro e na segurança nacional. E assim sendo, alertava “as autoridades constituídas que tal atitude… poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Pronto, o “inadmissível” estava colocado na mesa. Para bolsonaristas, intolerável passa a ser o pedido de apreensão do celular do presidente; para ouvidos mais maduros, inquietante é o aceno pouco velado a uma eventual instabilidade nacional. Tudo pouco apaziguante para um país que ultrapassara a marca de 330 mil casos de Covid-19 e um séquito fúnebre de mais de 21 mil óbitos notificados.

Foi nesse pano de fundo que os brasileiros puderam acompanhar a transmissão de largos trechos da reunião ministerial de 22 de abril, peça-chave na investigação sobre as acusações feitas pelo ex-ministro Moro ao chefe do Executivo, e cujo sigilo o ministro Celso de Mello liberara.

O seu conteúdo será dissecado por anos a fio, por histórico, revelador, estupefaciente. Mas como esta coluna dominical está sendo enviada dois dias antes, no meio da transmissão do material libertado, cita-se aqui apenas uma rima presidencial pinçada às pressas, que não se refere às acusações de Sergio Moro mas não deixa de ser instigante. Palavras do presidente da República um tanto alterado, estilo haikai talkey:

“Os caras querem/ A nossa hemorroida!/ A nossa liberdade!/ Isso é que é a verdade” .

Também digno de nota foi a imagem na parede de um grupo de crianças lindinhas, todas branquinhas, olhando com enlevo para um cartaz do governo com os dizeres PÁTRIA AMADA, BRASIL. Servia de pano de fundo ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que podia ser visto e ouvido elencando seu rol de inimigos. “Odeio o termo povos indígenas” haverá de se tornar um clássico. Mandar prender todos os ministros do STF também. Não que o presidente ficasse atrás. “Estou armando o povo porque não quero a ditadura” e “Povo armado jamais será escravizado”, entoou com vigor o chefe da nação.

Talvez seja oportuno invocar o velho Bertolt Brecht dos tempos em que ele ainda acreditava na capacidade humana de renunciar ao mal. Marxista de raiz, o dramaturgo alemão escreveu este poema antes de Hitler apresar o mundo:

“O vosso tanque, general, é um carro-forte/ Derruba uma floresta, esmaga cem homens/ Mas tem um defeito/ — Precisa de um motorista/ O vosso bombardeiro, general/ É poderoso:/ Voa mais depressa que a tempestade/ E transporta mais carga que um elefante/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um piloto/ O homem, meu general, é muito útil:/ Sabe voar, e sabe matar/ Mas tem um defeito/ — Sabe pensar.”

Pensemos, pois.


Dorrit Harazim: E se…?

Caso Bolsonaro fizesse uma live defendendo o isolamento social, o índice de contaminação cairia para quanto?

‘Foi o derradeiro comando, o mais essencial”, escreveu George Orwell no clássico distópico “1984”, referindo-se à ordem da fictícia Oceania para que seus súditos rejeitassem tudo o que os olhos vissem e os ouvidos escutassem à margem da linha oficial. Donald Trump volta e meia adapta a citação quando aponta para o inimigo que adoraria domesticar: a imprensa independente. “Lembrem-se, o que vocês estão vendo e o que vocês estão lendo não é o que está acontecendo”, avisa sempre. No Brasil de Jair Bolsonaro o que se vê, ouve ou lê é bastante parecido com o que acontece intestinamente no governo manicomial eleito em 2018. Um assombro diário. E é o jornalismo arretado, investigativo, que nos permite ver e escutar. Já a tarefa de pensar fica a cargo de cada um.

Basta misturar alguns fatos da semana para constatar que eles mereceriam manter rigoroso distanciamento entre si. No Brasil que beira 15 mil mortes de Covid-19, o participante de uma reunião virtual de empresários com o chefe da nação se esqueceu de desativar a função “vídeo” e apareceu meio peladão na tela tornada pública. Debatiam-se os rumos da economia nacional. O país ultrapassa a barreira de 200 mil casos confirmados do vírus, o SUS pede socorro, erguem-se hospitais de campanha desossados e fraudados, aos moribundos resta esperar morrer fora da curva. Cinco meses após o primeiro caso da doença na China, Bolsonaro ainda se atrapalha com o uso de máscara e mistura “lockout” e “blecaute” com “lockdown” — talvez por horror ao real significado do termo.

Mas trocou de ministro da Saúde pela segunda vez em um mês, e comanda o país de 211 milhões de almas sem diretriz clara de enfrentamento da crise tríplice sanitária, política e econômica. A execução do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 virou cipoal de armadilhas para os mais necessitados, e a realização do próximo Enem também promete ser. Jair Bolsonaro, pseudônimo Airton, Rafael ou Paciente 05 nos testes negativos de Covid-19 que apresentou dias atrás, libera academias de ginástica, salões de beleza e barbearias como sendo serviços essenciais. Não fosse tudo tão sério, o conjunto daria um roteiro e tanto para o diretor Cacá Diegues filmar um “Bye Bye Brasil 2020”.

Se em tempos excepcionais é desejável que o mundo tenha líderes de qualidades adequadas, em tempos de crise pandêmica é mais crucial ainda. É quando a diferença entre exercer ou não uma liderança sólida vai definir o cociente de vidas salvas ou mortes desnecessárias. Estatísticos e formuladores de métricas da Covid-19 poderiam trabalhar com uma variável hipotética: e se Jair Bolsonaro fizesse uma live proclamando que doravante, para o bem da amada pátria e em nome de Deus, todos deveriam aderir ao distanciamento social — se necessário até mesmo a um isolamento temporário? Considerando-se a fidelidade já demonstrada pelos milhões de apoiadores do presidente-mito, é provável que uma boa parcela o seguiria de casa e bíblia na mão.

Nessa hipótese, como seria a mudança de comportamento da curva do vírus no Brasil? O índice de contaminação diminuiria para quanto? E a mortandade? Poderíamos regredir quantas casas no sombrio ranking global? Dá para calcular o efeito de mais leitos de CTI e respiradores com tempo de se tornarem operacionais. Talvez deixássemos de ser o país-pária da atualidade, e fronteiras se entreabririam para o Brasil quando o mundo retomasse sua rotina. A gritante subnotificação de óbitos e contaminados do país teria mais chances de ser computada e aperfeiçoar as políticas sanitárias?

O exercício de métrica serve apenas para jogar o foco no tamanho da (ir)responsabilidade do ocupante do cargo.

Liderança é uma questão de fatos, não de opinião, e nem todo chefe de nação nasce estadista. As dificuldades se agravam quando o governante tem consciência íntima de estar aquém do exigido para conduzir um país em crise. No caso da Covid-19, deve ser irreprimível a tentação de acenar com a falsa promessa de uma vacina iminente ou uma droga capaz de inverter o quadro. A aposta presidencial no uso da cloroquina deve ter essa raiz.

Já disponível para outras enfermidades como malária mas ainda não liberada para tratar o coronavírus em sua fase inicial, a poção mágica abraçada por Bolsonaro torna-se, agora, política oficial para pacientes do SUS. Os dois ministros da Saúde defenestrados, ambos médicos, se opunham à medida devido a seus possíveis efeitos colaterais. “Votaram em mim para eu decidir e esta questão passa por mim”, decidiu o presidente.

Nos Estados Unidos, onde o número de óbitos se aproxima dos 100 mil, o Instituto de Alergias e Doenças Infecciosas deu início a um teste clínico da droga em 2.000 adultos. Até a conclusão do estudo, nem Donald Trump, outro fervoroso adepto da droga, terá vez. O terceiro promotor ativo da cloroquina é o venezuelano Nicolás Maduro, formando um improvável eixo de líderes errados para tempos de pandemia.


Dorrit Harazim: Agora é pra valer

Brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas

‘Tudo sob controle... Não sabemos de quem”, gracejou o vice-presidente Hamilton Mourão para jornalistas à saída da cerimônia de posse do novo ministro da Saúde. Comentário ligeirinho, espirituoso e ferino de quem sabe que não pode ser demitido do cargo pelo presidente da República. Nesta toada a autofagia em Brasília avança mais rápido do que o coronavírus. Em tempos normais, os embates intestinos no poder federal talvez fossem o mais alarmante para este momento de calamidade. Em tempos anormais como agora, eles consomem o resquício de lucidez que o país algum dia achou que tinha.

Quem fica mais nu a cada dia não é apenas o chefe da nação que se pensava rei — é o Brasil cru, sem fantasia, que vai emergir da pandemia. “Vai ser a devastação de uma raça chamada favela”, alerta Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), do Data Favela e da FHolding. Athayde nada tem de incendiário. Ele se faz ouvir por conhecer o universo do qual fala. Em recente entrevista ao “Jornal do Commercio”, elencou as duas únicas opções para os 13,5 milhões que moram em favelas no Brasil — correr ou morrer afogado. “A favela está se contaminando. É gente que não pode parar, mas que ninguém vê...”, disse, referindo-se à base da pirâmide de serviços essenciais sem a qual o resto do país em quarentena entra em colapso. Athayde preferiria não falar de convulsão social, mas adverte que “as pessoas não vão morrer de sede do lado de uma caixa d’água porque ela tem dono”. E conclui: “A pior crise é a crise de perspectiva. A favela não quer desordem, sabe que é ela quem vai tomar o tiro de borracha. Mas ela perde a capacidade de sonhar. Por não ter mais nada, vai fazer o quê?”

Uma amostra do horizonte social se estreitando pode ser visto na tumultuada disponibilização do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais mais vulneráveis. Pela previsão inicial do governo, o total de beneficiados alcançaria 51,4 milhões, número já corrigido para mais de 70 milhões, ou 40% da força de trabalho nacional em idade adulta. É tentacular o tamanho desse Brasil carente de rede de amparo que agora sai da invisibilidade e se posta em filas de até 10 horas em frente a agências da Caixa Econômica Federal. É todo um povo fora dos cadastros do governo, ou cujos dados são precários, irregulares, e que sempre viveu na berlinda da cidadania. Uma parcela de povo que tinha mais o que fazer do que regularizar sua pendência eleitoral. Voto obrigatório também dá nisso.

A operação de fazer chegar R$ 600 a esse mundão invisível é das mais complexas, sem dúvida. Como supor que ela seria alcançável apenas via internet, realizável através do preenchimento de um aplicativo de cadastramento? Na aflição de perder a vez, quem ficou horas tentando contornar as dificuldades do sistema tratou de se garantir correndo inutilmente para agências físicas da Caixa e da Receita, formando muralhas humanas hospitaleiras ao vírus. Quem sempre recebeu migalhas confia pouco em promessas.

Mais tarde do que cedo, o fluxo emergencial haverá de se regularizar, mas até lá a Covid-19, nascida na China mais de quatro meses atrás e aportada no Brasil em fevereiro, terá feito outras tantas vítimas. Que haverão de se somar ao passivo social da era anterior ao coronavírus — entre outros, uma fila de espera no INSS de 1,6 milhão de pedidos de benefícios aguardando análise.

O temido colapso das redes públicas de saúde agora bate com impiedade à porta do Brasil. Metade dos leitos de UTI do país, ou quase a metade, está instalada em hospitais privados. Considerando-se que 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS, e que é esta faixa da população que começa a ser ceifada pelo vírus, a tragédia anunciada se instala pra valer.

A história já comprovou que ser humano (do verbo ser, não do substantivo “ser humano”) é uma atividade coletiva. Veremos o quanto. A partir desta semana a brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas. Com a nau em Brasília em modo disfuncional.


Dorrit Harazim: Julgamento da História

Tempos de crise aguda costumam representar o teste supremo para qualquer líder mundial

Verão de 2005 na Calota Norte. Quinze anos atrás os Estados Unidos estavam atolados em duas guerras das quais não se desvencilharam por completo até hoje — uma no Afeganistão, a outra no Iraque. O ataque terrorista islâmico do 11 de Setembro de 2001, que pulverizara as Torres Gêmeas de Nova York e humilhara a superpotência econômica e militar, ainda dominava a psiquê mundial. Ainda assim, de férias em seu rancho texano de Crawford, o presidente George W. Bush não largava a cópia de um livro sobre a pandemia da gripe de 1918.

Segundo relato do jornalista Matthew Mosk, da ABC News, Bush retornou à Casa Branca no fim daquele verão de 2005 obcecado com “A Grande Gripe”, do historiador John M. Barry. Tão obcecado que ordenou a criação do mais ambicioso e abrangente plano nacional de prevenção/combate a pandemias de que se tem notícia. Seus assessores de segurança interna tiveram de elaborar diagramas globais, criar sistemas de alerta precoce de um novo vírus, garantir o abastecimento federal em equipamentos hospitalares, financiar o desenvolvimento de uma vacina segura em velocidade máxima.

Em palestra para especialistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde naquele ano, Bush descreveu com presciência como uma pandemia se alastraria no país. E alertou: “Se esperarmos até o surgimento da pandemia, será tarde demais para nos prepararmos. Muitas vidas serão perdidas sem necessidade apenas porque falhamos em agir hoje”. Na plateia estava o mesmo dr. Anthony Fauci que hoje atua como voz da razão científica na cacofonia do governo Donald Trump.

Fauci sabe o altíssimo custo que os EUA pagam hoje por terem engavetado em delongas burocráticas e alternâncias políticas o plano de 15 anos atrás. Outras prioridades surgiram e foram sugando os US$ 7 bilhões que haviam sido alocados ao plano da época — uma ninharia se comparada à injeção de US$ 2 trilhões já liberada em 2020 para fazer frente aos estragos econômicos da atual pandemia. Sem falar no preço ainda mais alto e irrecuperável em vidas.

O episódio chama atenção pela ironia: George W. Bush, o malfadado 43º ocupante da Casa Branca no comando de duas guerras militares perdidas, talvez fosse o líder certo para encarar a Covid-19. Mas quem está no comando em 2020 é Donald Trump, que, apesar de nunca ter arrastado o país para confrontos militares, hoje se proclama “presidente em tempos de guerra”. Só que ele está perdendo a batalha em escala grande. Passados 101 dias desde que a China informou ao mundo a existência de um novo coronavírus, os Estados Unidos registravam o segundo maior número mundial de mortos e quase meio milhão de infectados. Pelas projeções iniciais, o país pode vir a acumular mais mortos do que na soma das suas quatro últimas guerras — a da Coreia, do Vietnã, Afeganistão e Iraque.

Convém não se enganar com o que costuma ser saudado como a “reviravolta” de Trump no combate à pandemia. Extenso levantamento investigativo do “Washington Post” revela a extensão dos danos causados ao país pelos 70 dias de negação e pregações iniciais do presidente. Forçado pela realidade, mudou de curso mas não de atitude ou visão. Continua a acenar com falsas curas instantâneas, inexistentes vacinas próximas, e farto suprimento de insumos. Quando lhe convém, isenta-se de qualquer protagonismo na condução do combate (“Eu não assumo qualquer responsabilidade”, anunciou no dia 13 de março) , e nunca lhe faltam culpados para o estado atual de calamidade — de Barack Obama à Organização Mundial da Saúde (OMS), passando pela China antes elogiada.

Como nenhum líder acerta ou erra sempre, Trump merece crédito ao se referir à OMS. A organização que deveria servir de bússola mundial para o combate à pandemia deixou-se engambelar tolamente pela China no início da crise. “Investigação preliminar das autoridades chinesas atesta não haver provas de transmissão pessoa a pessoa do novo vírus”, tuitou a entidade em janeiro, quando o fato da transmissão já era de conhecimento de Pequim desde o mês anterior. A OMS também elogiou a “transparência” do país asiático na divulgação de dados sabidamente inconfiáveis, e cedeu à pressão de Pequim para condenar restrições a viajantes saídos da China.

Tempos de crise aguda costumam representar o teste supremo para qualquer líder mundial. À popularidade momentânea, movida a medo e necessidade de segurança, nem sempre corresponde julgamento posterior. Nem mesmo o governador democrata de Nova York, Andrew Cuomo, cuja popularidade atingiu 87% de aprovação (inclusive 70% de eleitores republicanos) nas primeiras semanas da pandemia, deve escapar de revisão quando ficar clara a extensão da morosidade do estado em impedir que ele se tornasse o epicentro da Covid-19 no país.

Bem mais adiante, quando desempenho e liderança deixarem de ser uma questão de opinião pra se tornar uma análise de fatos, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, talvez desponte como a que melhor conduziu seu pequeno país-ilha de cinco milhões de habitantes na tempestade.

E Jair Bolsonaro já desponta como o mais irracional e irresponsável — tanto para ele próprio como para os brasileiros. “Isto não é uma presidência, é um culto. E como tal deveria ser tratado”, opinou um internauta referindo-se a Donald Trump. “Só que o líder de um culto nunca perde seguidores. São os seguidores que perdem a vida”. Vale para cá também.


Dorrit Harazim: Saindo dos trilhos

Mandetta e Fauci conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista

Dias atrás, um engenheiro da malha ferroviária do porto de Los Angeles, na Califórnia, pirou. Eduardo Moreno, de 44 anos, convencera-se de que a missão oficial do navio-hospital USNS Mercy,enviado pela Marinha para aliviar a profusão de infectados na Costa Leste, era mera operação de fachada. A embarcação seria, na verdade, parte de um golpe de Estado em curso. Por isso, ele resolveu agir: manteve um trem não tripulado da zona portuária em velocidade máxima, para muito além do final dos trilhos, e causou um estrondo/estrago monumental — a composição destruiu primeiro uma barreira de concreto, atropelou uma proteção de aço, e prosseguiu por vasta área de cascalho até parar. À polícia o autor justificou assim o rompante que pode lhe valer uma pena de até 20 anos: “Era a chance que eu tinha para chamar a atenção das pessoas sobre o que está realmente acontecendo aqui”.

Não se pode atribuir a insanidade do engenheiro ao coronavírus. Mas, à medida em que a humanidade sai dos trilhos pré-Covid 19, é de se prever que o planeta se torne mais propício a insânias individuais e coletivas.

Daí a importância de se manter sob rédea curta governantes inseguros no poder, destemperados por índole e/ou despreparados para apontar o rumo em tempos de perigo e medo global. As limitações e inclinações inerentes a cada dirigente tendem a se acentuar à medida que a espiral da calamidade for adquirindo forma mais cruel. Por enquanto, em países onde essa espiral está apenas começando, a real capilaridade do vírus e seu potencial de destruição apontam em uma única direção: dias piores virão.

Nas Filipinas do presidente Rodrigo Duterte, que sofre de várias insuficiências democráticas e comanda com poder quase absoluto o país de mais de 100 milhões de habitantes, a solução para o complexo problema atual é simples: as forças policiais e militares têm ordem de atirar para matar quem descumprir a quarentena imposta. Ponto. Não tem ministro da Saúde, governadores nem imprensa em condições de lhe fazer frente.

Já Estados Unidos e Brasil têm mais sorte: por força da necessidade e do gigantismo da crise, Donald Trump e Jair Bolsonaro optaram por terceirizar o problema, que acabou em mãos de quem não comunga das crenças e disparates dos dois presidentes. Trump e Bolsonaro acreditaram poder desresponsabilizar-se da marcha da pandemia içando a primeiro plano dois personagens que não poderiam ser mais diferentes entre si — o nova-iorquino Anthony Fauci, a maior autoridade americana em infectologia, e, aqui, o deputado formado em Ortopedia Luiz Henrique Mandetta, atual ministro da Saúde. Ambos conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista do combate ao coronavírus. Ambos, também, começam a pagar por isso.

Esta semana o franzino e bem-humorado Dr. Fauci , que já serviu a vários ocupantes da Casa Branca e chegou aos 79 anos de idade com biografia estelar, passou a precisar de proteção extra de agentes de segurança. Tem recebido ameaças de morte em demasia por parte de seguidores de Donald Trump. Em Brasília, Mandetta cometeu o pecado capital de seu Ministério da Saúde ter ultrapassado o presidente em aprovação na condução do combate ao vírus. Não só ultrapassou, esmagou: 76% a 33%, segundo o último Datafolha.

Sobreviver nessa dislexia nacional não tem sido fácil nos dois países. Em Washington, Donald Trump consegue embaralhar uma frase que começa com “Isto não é uma crise financeira, é apenas um momento temporário no tempo” com o anúncio da injeção de US$ 1 trilhão na economia do país. Em Brasília o comportamento de Jair Bolsonaro é ainda mais errático, sempre que tem um microfone pela frente. Para não concluir de forma sorumbática, vale recorrer às memórias de um generoso humanista do século 20, o escritor Paul Goodman. “Esperança é o contrapeso para o nosso enorme sentido de vulnerabilidade”, escreveu em suas memórias. “É a nossa permanente negociação entre otimismo e desesperança, a contínua negação do cinismo, ingenuidade.

Temos esperança justamente por termos consciência de que eventos tenebrosos são sempre possíveis e não raro prováveis. Mas as escolhas que fazemos podem impactar o seu desenlace”.


Dorrit Harazim: Depois do carnaval

Ginzburg argumenta que do conceito de vergonha faz parte a relação entre o ser individual e o ser político

Semanas atrás a “New Left Review” publicou oportuno ensaio do historiador italiano Carlo Ginzburg sobre a Vergonha — a coletiva e a individual, vinculada ou oposta à culpa. Tema bom para estes tempos em que sentir e professar indignação transbordante tornou-se um cacoete, muleta que alimenta mais do que combate as frustrações da vida em sociedade. Talvez seja a hora de reconhecer nossa vergonha — coletiva e individual.

Ginzburg sustenta que sabemos a qual país pertencemos não pelo amor que temos à pátria, mas pelo sentimento de vergonha que ela é capaz de gerar em nós. O autor do texto (filho da escritora Natalia Ginzburg) remonta aos tempos em que Aristóteles definiu a vergonha como uma paixão, não uma virtude. Também esclarece que não sentimos vergonha por opção ou escolha. “Ela recai sobre nós, invade nossos corpos, sentimentos, pensamentos como uma doença súbita”, escreveu ele. Alguns estudiosos diferenciam países como o Japão, que seriam imbuídos de uma “cultura da vergonha” — na qual o indivíduo é confrontado com uma sanção da comunidade à qual pertence —, de países mais chegados à “cultura da culpa” moldada pela civilização judaico-cristã, na qual a sanção é introjetada pelo próprio cidadão.

A percepção de vergonha também é um dos aspectos mais sutis do sóbrio documentário “The Long Way Home”, dirigido por Mark Jonathan Harris e narrado por Morgan Freeman. A obra, que recebeu o Oscar de Melhor Documentário em 1998, foca no Pós-Segunda Guerra dos sobreviventes judeus dos campos de extermínio nazistas. Ela mostra quando os prisioneiros perceberam que haviam se transformado em esqueletos vagamente humanos: somente no momento da libertação. Foi através do olhar de horror dos soldados que lhes abriam os portões que eles se viram horrendos, sentiram vergonha física de serem vistos assim. Espelharam-se no olhar do outro.

Foi Primo Levi, em “A trégua”, romance autobiográfico em que narra o retorno à vida após Auschwitz, quem evocou um tipo de vergonha não menos aterrador daquele período — a vergonha moral. Ele conta que quando seu grupo de prisioneiros viu-se frente a frente com quatro soldados russos que os salvariam, “eles não nos cumprimentaram, não sorriram; pareciam oprimidos não só pela compaixão como por um constrangimento confuso”. O lúcido Levi reconheceu ali a mesma vergonha sentida por ele e seus companheiros sempre que testemunhavam os horrores praticados no campo. Enquanto as vítimas do Holocausto e seus libertadores sentiram vergonha e culpa por não conseguir prevenir a injustiça, os perpetradores e seus cúmplices desconheceram esse peso. E assim é até hoje, mesmo em situações comezinhas da vida.

Mas qual razão para evocar tema tão grave da história da humanidade neste domingo de carnaval, justo quando a liberdade de ser alegre sem culpa sacoleja o Brasil inteiro? Por necessidade. Por achar que já deveria ter escrito antes. Por saber a qual país pertenço como jornalista.

Ginzburg argumenta que do conceito de vergonha faz parte a relação entre o ser individual e o ser político. Pertencemos simultaneamente a uma espécie, a um sexo, uma comunidade linguística, uma comunidade política, uma comunidade profissional, e assim por diante, até que um lote de dez impressões digitais termina nos definindo como seres únicos. Mas tudo junto e misturado, como já cansou de nos demonstrar a maravilhosa Regina Casé.

Hoje, no mundo que se considerava civilizado, reina perplexidade. Duas semanas atrás, ao receber o prêmio que anualmente homenageia o estadista e humanista sueco Olof Palme, assassinado 34 anos atrás, o escritor britânico John Le Carré se declarou sem rumo. “Algum dia alguém haverá de me explicar por que, numa era em que a ciência acumula tanto saber, quando a verdade deveria ser cristalina e o conhecimento humano está ao alcance de tantos, a oferta de lideres populistas e mentirosos tem tanta demanda?”, perguntou. Para Le Carré, ler e estudar a atuação de um só homem como Olof Palme ajuda a você se perguntar “quem você é e o que você poderia ter sido, mas não foi. E onde ficou sua coragem vocal quando ela foi necessária”.

É certo que não se fazem mais estadistas como antigamente, e de mais a mais as digitais nórdicas de Palme eram únicas. Também não é apenas no Brasil de 2020 que impera o extremo oposto, com a insidiosa normatização da incivilidade no poder.

Mas talvez seja o caso de acordar na Quarta-Feira de Cinzas com o propósito de corrigir o curso de aviltamento do discurso público nacional, cuja franca licenciosidade demanda freios legais. A cada um de se repensar para poder não ter vergonha.


Dorrit Harazim: O chipeiro e a jornalista

Hans River foi ingênuo ao subestimar as ferramentas com as quais Patrícia trabalha: apuração rigorosa, provas, comprovantes

Foi em abril de 2018 que o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, estreou no Congresso dos Estados Unidos como convocado de uma comissão do Senado sobre o uso abusivo de dados de consumidores. A empresa havia admitido ter usado sem autorização informações pessoais de 87 milhões de usuários no chamado escândalo da Cambridge Analytica, e o foco dos 44 senadores estava na ameaça de interferência digital criminosa nas eleições presidenciais americanas. “Zuck” esmerou-se em eludir perguntas incisivas, deslizou por respostas que lhe convinham, e ostentou uma estudada paciência diante do enciclopédico desconhecimento digital de alguns inquiridores.

Ainda assim, a armadura impassível do criador de 33 anos saiu avariada. Mas o poder inescapável de sua criatura, o Facebook, ficou intocado: até os senadores mais combativos na sabatina orientaram seus seguidores a acompanhar a sessão através do... streaming Facebook Live.

Na terça-feira passada, em Brasília, ocorreu a 19ª sessão da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instalada meio ano atrás para apurar a disseminação de notícias falsas na eleição presidencial brasileira de 2018. A testemunha única da sessão chamava-se Hans River do Rio Nascimento e tinha tudo a ver com o tema da “CPMI das fake news”: o depoente havia sido funcionário da Yacows, uma das empresas suspeitas de recorrer ao uso fraudulento de nome e CPF de idosos para registrar chips de celular, e disparar lotes de mensagens em benefício de políticos. O “Sr. Hans”, como passou a ser designado, havia se desentendido com o seu empregador em final de 2018, movera-lhe uma ação trabalhista, e à época fornecera valiosas informações e documentos à repórter investigativa Patrícia Campos Mello, da “Folha de S. Paulo”. Segundo a reportagem exclusiva publicada em dezembro daquele ano, a empresa Yacows prestara serviços a vários políticos e fora subcontratada por uma produtora (AM4) que trabalhou para a campanha do presidente eleito, Jair Bolsonaro.

Já por isso, e pelo fato de a testemunha ter sido convocada pelo deputado do PT Rui Falcão, era lícito supor que o depoimento do Sr. Hans resultasse em informações comprometedoras para o governo.

Nada saiu conforme o roteiro — nem para a oposição nem para o depoente, nem para a vida democrática, nem para a jornalista. Assistir à íntegra das cinco horas de transmissão pela TV Senado é de grande serventia, pois revela bem mais do que os momentos chulos e as ilações de vulgaridade abjeta contra a jornalista. A íntegra revela sobretudo a testemunha que, ao contrário de Mark Zuckerberg, adquiriu protagonismo por acaso e não sabe como sair dele sem deixar anéis e dedos.

Da aberrante narrativa criada por Hans River, de ser um ingênuo em meio a uma jornalista que lhe oferece favores sexuais em troca de matéria, consta, sim, uma verdade: o depoente foi e é ingênuo. Ingênuo ao subestimar as ferramentas com as quais a premiada Patrícia Campos Mello trabalha: apuração rigorosa, provas, comprovantes, documentos, checagem e, rechecagem. Ingênuo ao acreditar que conseguiria driblar perguntas com uma postura desenvolta, malemolente, distraída e desmemoriada. Ingênuo ao tentar engabelar a sessão com uma vídeo-aula sobre chipeiras —o equipamento que utiliza chips de celular com dados usurpados, usados em plataformas de disparos em massa no WhatsApp.

Hans River do Rio Nascimento se declara músico, sem recursos para pagar ao advogado a seu lado, é diabético, hipertenso e negro. Trabalhou como chipeiro na Yacows em condições medievais e ritmo alucinado, contando com rendimento suplementar pelas horas extras. Ao ver que não receberia o devido, entrou na Justiça. E ao dar entrada na Justiça, seu processo cruzou com o implacável faro investigativo da jornalista da “Folha”. Ela o contatou, ele concordou em falar, ela anotou, gravou e, antes de publicar, foi ouvir “o outro lado”— a Yacows. A partir daí, tudo mudou. Hans fez acordo com a empresa, quis retirar o que dissera e reaver o material entregue. Tarde demais.

Passado um ano e meio desde a publicação da reportagem coassinada por Artur Rodrigues, Hans River reapareceu com memória seletiva: não lembra o número do seu celular nem tem ideia do primeiro nome de Eduardo Bolsonaro, sentado à sua frente. Mentiu e omitiu tanto que a relatora da CPMI , deputada Lídice da Mata (PSB-BA), solicitou à Procuradoria-Geral da República que investigue o depoente. Fora alertado meia dúzia de vezes durante a sessão de que mentir em CPI é crime.

Repetir de público afirmação falsa de depoente não é punível por lei. “Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da ‘Folha’, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o Sr. Hans, em troca de informações”, reiterou o filho do presidente da República no Senado, no plenário da Câmara e via Twitter — o que, por sua vez, abriu a comporta de seus seguidores nas mídias sociais mais ferozes.

Como observou Natalie Southwick, coordenadora do Comitê de Proteção a Jornalistas com sede em Nova York, não deixa de ser irônico que uma audiência parlamentar sobre fake news tenha servido de combustível a uma campanha de fake news contra uma jornalista. Tempos brabos.


Dorrit Harazim: Fugir da questão ambiental não é opção

Convém não estragar notícias alvissareiras de outros países com o indigesto noticiário ambiental brasileiro

O sul-africano Kumi Naidoo é formado por Oxford e foi o primeiro diretor-executivo do Greenpeace oriundo do continente negro. Atuou por seis anos na combativa ONG ambiental. Em setembro último, assumiu o cargo de secretário-geral da Anistia Internacional e agora comanda a responsabilidade pela radical guinada da organização. Agraciada com o Nobel da Paz (1977) por defender a dignidade humana contra a tortura, a Anistia de Naidoo decidiu que a questão climática global passaria a nortear sua linha de atuação. “Somos conhecidos por nossa luta contra a tortura e a pena de morte”, explicou dias atrás ao diário francês “Libération”, “mas a mudança climática é potencialmente uma condenação mundial à morte”.

Para a biografia da primeira-ministra britânica, Theresa May, a questão ambiental também adquiriu contornos de guinada. Nas semanas que ainda lhe restam como interina à frente do governo (está oficialmente destituída do cargo desde anteontem, 7 de junho, e um novo premier será escolhido em julho), May quer salvar seu lugar na história como líder do que seria a segunda grande revolução do país — a ambiental.

Pressionado em parte por um inesperado ativismo de rua que se espraiou por cidades e vilarejos britânicos e assustou a classe política, o Parlamento aceitou, no dia 1º de maio passado, relatório elaborado por um órgão independente, a Comissão de Mudança Climática (CCC, em inglês) intitulado “Emissão zero: A contribuição do Reino Unido para parar o aquecimento climático”.

Talvez nem os autores das 277 páginas do relatório esperassem essa acolhida. Afinal, o país estava há três anos furiosamente paralisado e consumido pelo imbróglio Brexit, e era difícil imaginar alguma concordância nacional para debater e legislar sobre algo novo. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, os parlamentares trataram de trazer para dentro da House of Commons, via relatório da CCC, a agenda ambiental das ruas. A meta proposta não tem efeito vinculativo, mas, se cumprida, seria revolucionária: zerar as emissões de dióxido de carbono até 2050. Parece longínquo? É amanhã.

Seria preciso, entre tantas outras mudanças, trocar toda a frota de carros movidos a gasolina e diesel em seis anos, e proibir sua venda até 2030, o que a indústria automotiva já avisou ser inatingível. Os britânicos também teriam de abrir mão de seus onipresentes aquecedores a gás, consumir menos carne de boi e de cordeiro, prato predileto no país, quadruplicar a geração de energia limpa, plantar algo como 1,5 bilhão de árvores, mudar a forma de locomoção, mudar o uso da terra. Mesmo criando nova gama de indústrias e postos de trabalho, a transição seriá duríssima.

Tudo isso para aliviar a temperatura mundial em apenas 0,005 grau, uma vez que a Grã-Bretanha só é responsável por 1% das emissões globais de CO2. E mesmo que tudo corra conforme a meta, dizem seus detratores, nada garante que essa revolução ambiental seja seguida por países como a China, Índia ou Brasil, ao contrário do que ocorreu com a Revolução Industrial do século XVIII na Velha Albion, abraçada às pressas pelo resto do mundo.

Ninguém esquece que o presidente francês, Emmanuel Macron, ao tentar implantar uma ecotaxa sobre o preço do combustível, fez brotar o movimento dos Coletes Amarelos, que não lhe deu trégua em 2018. O levante dessa França periférica estava encapsulado no cartaz de um gilet jaune que dizia: “Enquanto as elites estão preocupadas com o fim do mundo, estamos preocupados com o fim do mês”. Como escreveu o colunista Feargus O’Sullivan no site CityLab, focado em problemas urbanos, agenda verde também precisa ser agenda antidesigualdade para não ser recebida com ressentimento.

Até porque, como se sabe, sai mais caro impedir pessoas de fazer o que sempre fizeram do que impedi-las de fazer algo novo

No futuro, aposta a vice-prefeita de Oslo, a norueguesa Hanna Marcussen, dirigir um carro no centro de uma cidade se tornará tão inaceitável e démodé quanto fumar em locais fechados. Neste quesito, Bruxelas (70% da meta cumpridos em 2019) e Madri (proibição total já em vigor, exceto para residentes) marcham a passos largos, apoiadas por exaustivas audiências públicas. Até 2025, 138 medidas similares estarão em vigor em outras cidades espanholas.

Convém não estragar estas notícias alvissareiras com o indigesto noticiário ambiental brasileiro. Melhor fechar a coluna com um dos motes da Anistia Internacional: “Mais vale acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”.


Dorrit Harazim: Passado, presente, futuro no 31 de março

‘Nenhuma de nossas crenças é inteiramente verdadeira’, disse Bertrand Russell, que anda fazendo falta no mundo de 2019

É conhecida a eletricidade intelectual do filósofo, matemático, historiador e crítico social Bertrand Russell, também chamado de “poeta da razão”. Recebeu o Nobel de Literatura em 1950 como poderia ter recebido o da Paz, pois a fundamentação dos jurados para agraciá-lo foi a de que seus escritos “promovem ideais humanitários e a liberdade de pensamento”. Sua vastíssima obra é marcada por um ceticismo de raiz.

Menos conhecida é uma de suas conferências transformada em livreto —“Pensamento livre e propaganda oficial” —, proferida na bicentenária Conway Hall Ethical Society de Londres. Naquele discurso Russell pregou a vontade de duvidar como essência do pensamento livre.

“Nenhuma de nossas crenças é inteiramente verdadeira. Todas contêm alguma penumbra de imprecisão, de erro”, disse. E entre as várias formas de aproximação da verdade, destacou “o controle de nossos próprios preconceitos através do debate com quem tem preconceitos contrários”. Também indicou que a classificação “livre” é vazia, a menos que se esclareça do quê algo ou alguém se libertou.

Bertrand Russell anda fazendo falta no mundo de 2019. Nos Estados Unidos, coube a um congressista reeleito pela sétima vez inaugurar novo patamar de retórica do ódio. Steve King, cuja afeição por supremacistas brancos é conhecida, postou um meme vislumbrando uma segunda Guerra Civil no país: um mapa dos Estados Unidos em forma humanoide, com dois soldados em combate, um azul e outro vermelho representando estados que votam Republicano ou Democrata. A legenda dizia tudo: “Um lado tem oito trilhões de balas, enquanto o outro lado sequer sabe qual banheiro usar. Adivinhem quem vai vencer ...” Pressionado, o parlamentar deletou a postagem, mas a palavra amaldiçoada — guerra civil — já havia impregnado as redes sociais.

Na Turquia, foi o próprio presidente Recep Erdogan que ressuscitou uma matança de outro século para apimentar a campanha de seu partido às eleições locais de hoje, 31 de março. Em pelo menos oito comícios, Erdogan utilizou segmentos do recente atentado a duas mesquitas na Nova Zelândia, inclusive algumas das horrendas cenas on-line, para incitar seus partidários. “Este ano”, avisou, visitantes anti-islâmicos que forem se aventurar até Gallipoli, no Estreito dos Dardanelos, voltarão para casa em caixões, “como seus avôs”.

Ele se referia a uma das mais longevas batalhas da Primeira Guerra Mundial, na qual as tropas do Império Otomano, em franca minoria, rechaçaram invasores da França e do Império Britânico, inclusive soldados da Nova Zelândia e Austrália. Ali morreram cerca de 600 mil soldados dos dois lados, e Gallipoli tornou-se ponto de romaria anual para os descendentes dos países envolvidos. A ver o que os aguarda no próximo 25 de abril, data de homenagear seus mortos.

Também dias atrás, outro presidente, o mexicano Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, teve a ideia de lançar contra a Espanha um petardo diplomático que remonta a 500 anos. Em carta enviada ao rei Felipe VI, ele exige que a antiga metrópole peça perdão por abusos praticados por Hernán Cortés contra os povos nativos durante a conquista das atuais terras mexicanas. “Houve matanças, imposições... uma conquista feita com espada e cruz”, diz a carta do presidente, que gostaria de celebrar em grande estilo o bicentenário da Independência do México, em 2021, livre da sombra do passado — o 500º aniversário da queda de Tenochtitlán também será em 2021.

Deu errado. A Espanha, país que até hoje não conseguiu inventariar sequer o morticínio de sua própria gente durante a ditadura franquista, rechaçou a exigência. No México, a presidente do Congresso Nacional Indígena, María de Jesús Patricio, qualificou a exigência de AMLO de marketing político. E de Córdoba, na Argentina, onde participava do VIII Congresso da Língua Espanhola, o escritor Mario Vargas Llosa atropelou a pauta e deu o coup de grâce. “O presidente do México se enganou de destinatário”, discursou o Nobel de Literatura. “Ele deveria tê-la enviado a si mesmo e responder por que o seu país, que se incorporou ao mundo ocidental há 500 anos e há 200 desfruta de plena soberania, ainda tem tantos milhões de índios marginalizados, pobres, ignorantes e explorados.”

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro teve a ideia de ofender o passado e atiçar a nação neste 31 de março. O recuo de “comemoração” para “rememoração” da data não muda o essencial. Ontem, hoje e amanhã, golpe militar e ditadura não são questão de semântica. São substantivos da história.


Dorrit Harazim: O Chile errado de Bolsonaro

Um primeiro relatório concluiu que 2.296 pessoas haviam sido assassinadas ou ‘desaparecidas’ em mãos de agentes do regime militar no país

O presidente Jair Bolsonaro pisou em solo chileno esta semana ofendendo de uma só tacada a memória do país anfitrião, a história do Cone Sul e o julgamento universal de humanidade. Só não ofendeu também a própria biografia porque desatinos repetidos não contam.

“Essa questão da dita ditadura aqui do Cone Sul tem que ser lavada à luz da verdade... Tem gente que gosta dele [do ditador Augusto Pinochet], outros que não gostam”, declarou ao desembarcar em Santiago para participar da gênese de um novo bloco regional de perfil direitista, o Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América Latina.

Era uma defesa aberta do comentário pornográfico feito pouco antes por seu ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni: “No período Pinochet”, sustentara Lorenzoni em entrevista à Rádio Gaúcha, “o Chile teve de dar um banho de sangue. Triste. Mas as bases macroeconômicas fixadas naquele governo...” Traduzindo: há banhos de sangue que vêm para o bem de reformas econômicas.

Por uma amarga coincidência de calendário, no dia da chegada dos brasileiros uma notícia aguardada há décadas agitava a vida nacional chilena: o julgamento de um crime particularmente horrendo da era Pinochet (1973-1990) — o “Caso Quemados” — chegava ao fim com a condenação de 11 militares a penas entre três e dez anos de prisão. Mesmo para o padrão de brutalidade do regime da época, a ação de uma patrulha militar sempre fora mal digerida, por simpatizantes de Pinochet. Ela ocorreu numa tarde de julho de 1986, quando dois jovens que participavam de um protesto foram surrados, encharcados com gasolina, queimados vivos e despejados na periferia. Por uma patrulha militar. Moradores que encontraram os corpos contorcidos conseguiram salvar Quintana, que tinha 18 anos e está desfigurada até hoje. Rojas, de 19 anos, não resistiu.

Triste, diria Onyx Lorenzoni. É preciso lavar os fatos à luz da verdade, contestaria Jair Bolsonaro.

Essa lavagem da história já foi feita. O democrata-cristão e veterano conservador Patricio Aylwin tinha 71 anos em 1990 quando assumiu como primeiro presidente da redemocratização chilena após 17 anos de regime militar. Ele foi uma espécie de Tancredo Neves, guardadas as características dos dois processos políticos. “Uma transição bem-sucedida não é possível sem a reconstituição da verdade”, sustentava até morrer, aos 92 anos.

Em 1991, ao receber o relatório de 1.350 páginas encomendado à Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação (Comissão Rettig), criada por ele para apurar denúncias de assassinatos, desaparecimentos e tortura, Aylwin foi à televisão em cadeia nacional. “O Estado e a sociedade como um todo são responsáveis pela ação ou pela omissão. Por isso, ouso assumir a responsabilidade pela nação inteira e, em seu nome, pedir perdão aos parentes das vítimas..”, disse ele, com voz embargada.

Aquele primeiro relatório elaborado por juristas e técnicos forenses ao longo de nove meses concluíra que 2.296 pessoas haviam sido assassinadas ou “desaparecidas” em mãos de agentes do regime militar. Em 2003, uma nova Comissão da Verdade sobre Prisão Política e Tortura (Comissão Valech), criada pelo ex-presidente Ricardo Lagos, listou 28.450 casos qualificados como vítimas oficiais de detenção ilegal, tortura, execução ou desaparecimento. E, oito anos atrás, o presidente Piñera, então em seu primeiro mandato, recebeu da mesma comissão um rol contendo 32 mil novas denúncias. Ou seja, não tem faltado luz à verdade.

O Chile tem, sem dúvida, muito a festejar — começando pelo Produto Interno Bruto que em 2018 acusou sua maior expansão dos últimos cinco anos. Mas convém não esquecer que Augusto Pinochet foi alvo de uma investigação também de suas finanças privadas. Ela durou nove anos. Segundo levantamento encomendado pela Corte Suprema do Chile, o ditador acumulara US$ 21 milhões ao morrer aos 91 anos. Apenas US$ 3 milhões desta fortuna podiam ser atribuídos a soldos. Ainda assim escapou de uma condenação por enriquecimento ilícito. Morreu em prisão domiciliar, condenado por violação de direitos humanos.

Não espanta, portanto, que os presidentes da Câmara e do Senado do Chile tenham se recusado a participar do almoço oferecido em homenagem a Bolsonaro por Sebastián Piñera. Eles conhecem a verdade. E respeitam a memória do país.


Dorrit Harazim: Cacofonia nacional

Chama a atenção nas tragédias do Rio o despreparo das autoridades para atender às expectativas mínimas de uma coletividade desnorteada

Pelas normas brasileiras, o instituto do luto oficial de oito dias ocorre somente em caso de morte de presidente. Quando o morto é um cidadão que prestou serviços considerados relevantes ao país, como foi o caso do vice-presidente (2003-2010) José Alencar, a homenagem dura sete dias. De resto, são três dias, sempre seguindo um ritual ao qual à nação costuma ficar indiferente: hasteamento da bandeira a meio mastro em todas as repartições públicas federais, estaduais ou do município que decretou a medida.

Não importa a natureza do que se pranteia nem a extensão de cada tragédia. Pode ser Brumadinho, com seus 157 mortos até agora (sem contar a mortandade ambiental), ou o município do Rio de Janeiro, onde o dilúvio-arrastão de quarta-feira arrancou entranhas de parte da cidade e fez sete mortos. E desde sexta-feira, três dias a mais de bandeiras a meio pau, desta vez em repartições estaduais para dar conta de dez adolescentes carbonizados no incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo, em Vargem Grande.

Todos estavam dormindo no momento em que o fogo se espraiou pela estrutura de tipo contêiner. Seus nomes agora são conhecidos por estarem mortos, não pelo que sonharam mostrar em campo. E é com este luto não oficial, íntimo e sem prazo nem regras para acabar, que famílias, amigos e torcedores vão ter de aprender a conviver. O moderno local de cinco mil metros quadrados não possuía o certificado do Corpo de Bombeiros que atesta o funcionamento dos dispositivos contra incêndio. O que chama a atenção nas duas tragédias da semana fluminense é o despreparo das autoridades para atender às expectativas mínimas de uma coletividade desnorteada. O general Dwight Eisenhower não criou apenas um bon mot ao assegurar que “planos não são nada, planejamento é tudo”, referindo-se à invasão do Dia D na Segunda Guerra. É quando tragédias ocorrem, sejam elas um ataque terrorista, uma tempestade bíblica, um incêndio de grandes proporções, que lideranças se constroem ou se esboroam.

Líderes costumam ser julgados tanto por seus atos como por suas inações. Em tempos de calmaria, qualquer pessoa pode ficar no leme. Já na urgência e sob forte pressão, há basicamente dois caminhos: responder ou reagir. Convém estabelecer a diferença entre os dois, pois ela não é pouca. Reação é reflexo enquanto uma resposta deriva de todo um procedimento previamente elaborado, de um plano que contemplou o implausível.

No Brasil a cacofonia tem sido gritante.

Em sua primeira comunicação com munícipes ansiosos por informação e orientação, o prefeito Marcelo Crivella declarou achar importante “entendermos de forma inteligente os fatos”.
Difícil imaginar que haja duas formas de entender um fato pertinente não mencionado pelo prefeito: em dois anos de governo, ele investiu apenas 22% dos recursos destinados a controle de enchentes, contenção de encostas, fiscalização e monitoramento. Dos R$ 564 milhões não utilizados, não deu notícias. Também fez referência a uma “civilização carioca”, e talvez algum dia esclareça se essa nova sociedade humana está em evolução ou involução.

O governador Wilson Witzel apresentou-se no Centro Integrado de Controle vestindo flamejante colete personalizado da Defesa Civil sobre camisa e gravata. Garantiu que desde a manhã do dia da hecatombe “ já estávamos monitorando todo o movimento climático” e que “ já estávamos atentos a esta chuva que estava por acontecer ...” antes de atribuir a dimensão da tragédia a erros de prefeitos e governadores anteriores. Pecado capital: se tem algo que causa irritação dobrada a uma população em apuros é ouvir recriminações intestinas de autoridades.

Paralelamente às tragédias, o Brasil tem um presidente da República que há duas semanas se comunica com a nação postando fotos e mensagens de sua cama hospitalar, enquanto aguarda ser liberado para assumir o espaço ocupado pelo vice. Seu estilo é, no mínimo, incomum, ao socializar o pronome da primeira pessoa: “Nosso estado de saúde... “Estamos muito tranquilos... seguimos firmes”. Ao porta-voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros, cabe o mérito de tentar desempenhar sua função dentro de uma total anormalidade.

Para a mídia encarregada da cobertura presidencial, o novo normal começa pelo aprendizado da linguagem de Rêgo Barros. Por exemplo, “Eu os iluminei ontem...” significa “eu informei vocês”. O apreço do general pelo futuro do indicativo de verbos (“tratar-se-á”), e sua saudação de encerramento das coletivas com um “Paz e bem” já foram assimiladas. O problema está no que não é dito.

No caso do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, que levou oito horas até fazer um comunicado de pesar, o que não foi dito é por demais abominável — a chave da tragédia pode estar com ele.