Dorrit Harazim: Depois do carnaval

Ginzburg argumenta que do conceito de vergonha faz parte a relação entre o ser individual e o ser político.
Foto: Youtube/Reprodução
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Ginzburg argumenta que do conceito de vergonha faz parte a relação entre o ser individual e o ser político

Semanas atrás a “New Left Review” publicou oportuno ensaio do historiador italiano Carlo Ginzburg sobre a Vergonha — a coletiva e a individual, vinculada ou oposta à culpa. Tema bom para estes tempos em que sentir e professar indignação transbordante tornou-se um cacoete, muleta que alimenta mais do que combate as frustrações da vida em sociedade. Talvez seja a hora de reconhecer nossa vergonha — coletiva e individual.

Ginzburg sustenta que sabemos a qual país pertencemos não pelo amor que temos à pátria, mas pelo sentimento de vergonha que ela é capaz de gerar em nós. O autor do texto (filho da escritora Natalia Ginzburg) remonta aos tempos em que Aristóteles definiu a vergonha como uma paixão, não uma virtude. Também esclarece que não sentimos vergonha por opção ou escolha. “Ela recai sobre nós, invade nossos corpos, sentimentos, pensamentos como uma doença súbita”, escreveu ele. Alguns estudiosos diferenciam países como o Japão, que seriam imbuídos de uma “cultura da vergonha” — na qual o indivíduo é confrontado com uma sanção da comunidade à qual pertence —, de países mais chegados à “cultura da culpa” moldada pela civilização judaico-cristã, na qual a sanção é introjetada pelo próprio cidadão.

A percepção de vergonha também é um dos aspectos mais sutis do sóbrio documentário “The Long Way Home”, dirigido por Mark Jonathan Harris e narrado por Morgan Freeman. A obra, que recebeu o Oscar de Melhor Documentário em 1998, foca no Pós-Segunda Guerra dos sobreviventes judeus dos campos de extermínio nazistas. Ela mostra quando os prisioneiros perceberam que haviam se transformado em esqueletos vagamente humanos: somente no momento da libertação. Foi através do olhar de horror dos soldados que lhes abriam os portões que eles se viram horrendos, sentiram vergonha física de serem vistos assim. Espelharam-se no olhar do outro.

Foi Primo Levi, em “A trégua”, romance autobiográfico em que narra o retorno à vida após Auschwitz, quem evocou um tipo de vergonha não menos aterrador daquele período — a vergonha moral. Ele conta que quando seu grupo de prisioneiros viu-se frente a frente com quatro soldados russos que os salvariam, “eles não nos cumprimentaram, não sorriram; pareciam oprimidos não só pela compaixão como por um constrangimento confuso”. O lúcido Levi reconheceu ali a mesma vergonha sentida por ele e seus companheiros sempre que testemunhavam os horrores praticados no campo. Enquanto as vítimas do Holocausto e seus libertadores sentiram vergonha e culpa por não conseguir prevenir a injustiça, os perpetradores e seus cúmplices desconheceram esse peso. E assim é até hoje, mesmo em situações comezinhas da vida.

Mas qual razão para evocar tema tão grave da história da humanidade neste domingo de carnaval, justo quando a liberdade de ser alegre sem culpa sacoleja o Brasil inteiro? Por necessidade. Por achar que já deveria ter escrito antes. Por saber a qual país pertenço como jornalista.

Ginzburg argumenta que do conceito de vergonha faz parte a relação entre o ser individual e o ser político. Pertencemos simultaneamente a uma espécie, a um sexo, uma comunidade linguística, uma comunidade política, uma comunidade profissional, e assim por diante, até que um lote de dez impressões digitais termina nos definindo como seres únicos. Mas tudo junto e misturado, como já cansou de nos demonstrar a maravilhosa Regina Casé.

Hoje, no mundo que se considerava civilizado, reina perplexidade. Duas semanas atrás, ao receber o prêmio que anualmente homenageia o estadista e humanista sueco Olof Palme, assassinado 34 anos atrás, o escritor britânico John Le Carré se declarou sem rumo. “Algum dia alguém haverá de me explicar por que, numa era em que a ciência acumula tanto saber, quando a verdade deveria ser cristalina e o conhecimento humano está ao alcance de tantos, a oferta de lideres populistas e mentirosos tem tanta demanda?”, perguntou. Para Le Carré, ler e estudar a atuação de um só homem como Olof Palme ajuda a você se perguntar “quem você é e o que você poderia ter sido, mas não foi. E onde ficou sua coragem vocal quando ela foi necessária”.

É certo que não se fazem mais estadistas como antigamente, e de mais a mais as digitais nórdicas de Palme eram únicas. Também não é apenas no Brasil de 2020 que impera o extremo oposto, com a insidiosa normatização da incivilidade no poder.

Mas talvez seja o caso de acordar na Quarta-Feira de Cinzas com o propósito de corrigir o curso de aviltamento do discurso público nacional, cuja franca licenciosidade demanda freios legais. A cada um de se repensar para poder não ter vergonha.

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