Dorrit Harazim: Saindo dos trilhos

Mandetta e Fauci conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista.
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Mandetta e Fauci conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista

Dias atrás, um engenheiro da malha ferroviária do porto de Los Angeles, na Califórnia, pirou. Eduardo Moreno, de 44 anos, convencera-se de que a missão oficial do navio-hospital USNS Mercy,enviado pela Marinha para aliviar a profusão de infectados na Costa Leste, era mera operação de fachada. A embarcação seria, na verdade, parte de um golpe de Estado em curso. Por isso, ele resolveu agir: manteve um trem não tripulado da zona portuária em velocidade máxima, para muito além do final dos trilhos, e causou um estrondo/estrago monumental — a composição destruiu primeiro uma barreira de concreto, atropelou uma proteção de aço, e prosseguiu por vasta área de cascalho até parar. À polícia o autor justificou assim o rompante que pode lhe valer uma pena de até 20 anos: “Era a chance que eu tinha para chamar a atenção das pessoas sobre o que está realmente acontecendo aqui”.

Não se pode atribuir a insanidade do engenheiro ao coronavírus. Mas, à medida em que a humanidade sai dos trilhos pré-Covid 19, é de se prever que o planeta se torne mais propício a insânias individuais e coletivas.

Daí a importância de se manter sob rédea curta governantes inseguros no poder, destemperados por índole e/ou despreparados para apontar o rumo em tempos de perigo e medo global. As limitações e inclinações inerentes a cada dirigente tendem a se acentuar à medida que a espiral da calamidade for adquirindo forma mais cruel. Por enquanto, em países onde essa espiral está apenas começando, a real capilaridade do vírus e seu potencial de destruição apontam em uma única direção: dias piores virão.

Nas Filipinas do presidente Rodrigo Duterte, que sofre de várias insuficiências democráticas e comanda com poder quase absoluto o país de mais de 100 milhões de habitantes, a solução para o complexo problema atual é simples: as forças policiais e militares têm ordem de atirar para matar quem descumprir a quarentena imposta. Ponto. Não tem ministro da Saúde, governadores nem imprensa em condições de lhe fazer frente.

Já Estados Unidos e Brasil têm mais sorte: por força da necessidade e do gigantismo da crise, Donald Trump e Jair Bolsonaro optaram por terceirizar o problema, que acabou em mãos de quem não comunga das crenças e disparates dos dois presidentes. Trump e Bolsonaro acreditaram poder desresponsabilizar-se da marcha da pandemia içando a primeiro plano dois personagens que não poderiam ser mais diferentes entre si — o nova-iorquino Anthony Fauci, a maior autoridade americana em infectologia, e, aqui, o deputado formado em Ortopedia Luiz Henrique Mandetta, atual ministro da Saúde. Ambos conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista do combate ao coronavírus. Ambos, também, começam a pagar por isso.

Esta semana o franzino e bem-humorado Dr. Fauci , que já serviu a vários ocupantes da Casa Branca e chegou aos 79 anos de idade com biografia estelar, passou a precisar de proteção extra de agentes de segurança. Tem recebido ameaças de morte em demasia por parte de seguidores de Donald Trump. Em Brasília, Mandetta cometeu o pecado capital de seu Ministério da Saúde ter ultrapassado o presidente em aprovação na condução do combate ao vírus. Não só ultrapassou, esmagou: 76% a 33%, segundo o último Datafolha.

Sobreviver nessa dislexia nacional não tem sido fácil nos dois países. Em Washington, Donald Trump consegue embaralhar uma frase que começa com “Isto não é uma crise financeira, é apenas um momento temporário no tempo” com o anúncio da injeção de US$ 1 trilhão na economia do país. Em Brasília o comportamento de Jair Bolsonaro é ainda mais errático, sempre que tem um microfone pela frente. Para não concluir de forma sorumbática, vale recorrer às memórias de um generoso humanista do século 20, o escritor Paul Goodman. “Esperança é o contrapeso para o nosso enorme sentido de vulnerabilidade”, escreveu em suas memórias. “É a nossa permanente negociação entre otimismo e desesperança, a contínua negação do cinismo, ingenuidade.

Temos esperança justamente por termos consciência de que eventos tenebrosos são sempre possíveis e não raro prováveis. Mas as escolhas que fazemos podem impactar o seu desenlace”.

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