demetrio magnoli

Demétrio Magnoli: Depois da ‘orgia estratégica’

Demétrio Magnoli / O Globo

A queda de Cabul, no 15 de agosto, 76º aniversário da rendição japonesa, “pode ser interpretada como o fim do segundo período de orgia estratégica dos EUA”, escreveu Shen Yi no Global Times. O jornal é um veículo em língua inglesa de propaganda nacionalista da China, e Shen Yi quase certamente é um pseudônimo inspirado no nome de um arqueiro mitológico chinês. A China teme que o novo regime afegão provoque ondas de instabilidade na Ásia Central, mas celebra a derrota histórica dos EUA.

Segundo Shen Yi, a hegemonia americana desde 1945 compõe-se de ciclos de expansão-orgia-contração. O primeiro ciclo iniciou-se com o envolvimento no Vietnã e culminou com a queda de Saigon, em 1975, que provocou um prolongado recuo. O segundo começou em 2001, com as intervenções no Afeganistão e no Iraque, esgotando-se agora, sob o impacto da humilhação imposta pelo Talibã.

“Cabul não é Saigon”, garantiu Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, argumentando que foi cumprida a missão de suprimir as redes de terror responsáveis pelos atentados do 11 de Setembro. De fato, Cabul é pior que Saigon — e a China sabe disso. O Vietnã do Sul resistiu por dois anos após a retirada das forças americanas, enquanto o Estado afegão dissolveu-se antes da partida dos últimos contingentes militares ocidentais. Sob o Talibã, o terror jihadista tem condições propícias para se reorganizar no Afeganistão.

Os EUA cometeram um erro estratégico maior no Afeganistão, derivado do pecado da húbris. Depois da derrubada do Talibã, converteram o país em semiprotetorado americano. À sombra das tropas americanas e da Otan, ergueram um sistema político e construíram um Exército afegão. Rússia, China, Irã e Paquistão tinham interesse direto na estabilidade regional — na eliminação dos jihadistas do núcleo geográfico da Ásia Central. Mas, sob a “orgia” neoconservadora, os EUA preferiram caminhar sozinhos — e hoje colhem os frutos amargos daquela escolha.

Joe Biden adicionou, ao erro estratégico, o equívoco tático fatal de curvar-se ao acordo de retirada firmado por Donald Trump com o Talibã. Na prática, o acordo implicava o abandono das forças militares afegãs, que dependiam de logística e apoio aéreo oferecidos pelos EUA e pela Otan. A rendição sem combate do Exército afegão, álibi repetido sem cessar por Biden, foi prevista pela inteligência americana. As cenas de caos na capital afegã são o produto inevitável dos atos convergentes do republicano e do democrata.

O equívoco tático reflete algo mais profundo. Como no Vietnã, a sociedade americana cansou-se da longa guerra travada em terras distantes, revertendo ao isolacionismo. Sob esse aspecto decisivo, Trump triunfou — e os EUA perderam. É isso que a China celebra, pela voz de Shen Yi.

Na Guerra do Golfo de 1991, auge da hegemonia americana, George H. Bush seguiu a Doutrina Powell. Os EUA conduziram uma ofensiva devastadora, alcançaram o objetivo estratégico, e concluíram a operação com rápida retirada do Iraque. Na década seguinte, George W. Bush desviou-se da trilha do pai, embrenhando-se na aventura da “reforma do mundo” pregada pelos neoconservadores. As ocupações do Afeganistão e do Iraque foram justificadas pela ambição desvairada de edificar democracias protegidas pelas baionetas americanas. O 15 de agosto de Cabul assinala o fracasso definitivo da doutrina neoconservadora.

O passado pesa como rocha sobre o presente. Durante 20 anos, milhões de afegãos, especialmente as mulheres, experimentaram direitos e liberdades que os EUA prometeram perenizar. Biden simula amnésia, insistindo na ficção de que a presença das forças ocidentais no Afeganistão destinava-se exclusivamente a combater a ameaça internacional jihadista. Os afegãos que tentam escapar para o aeroporto ou erguem a bandeira nacional em perigosas manifestações de rua não esqueceram.

Traição — eis o nome aplicado à retirada americana pelos afegãos deixados para trás e pelas mulheres que encaram a perspectiva de um novo confinamento doméstico. O arqueiro chinês comemora a traição dos EUA, que o mundo inteiro viu.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/depois-da-orgia-estrategica.html


Demétrio Magnoli: Vírus verde e amarelo

Entrou na moda proclamar que o Brasil converteu-se em risco biológico global

Sob a hashtag #VariantBresilien, a xenofobia contra brasileiros espalha-se pelas redes sociais e as ruas da França. Na nossa língua comum, difunde-se também em Portugal (Folha, 17/4). O vírus tem pátria?

No auge da nossa segunda onda pandêmica, entrou na moda proclamar que o Brasil converteu-se em risco biológico global. “O Brasil é uma ameaça à humanidade e um laboratório a céu aberto”, disse Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz, obtendo eco entre divulgadores científicos pop e comentaristas de jornais e TV. É asneira —mas uma daquelas asneiras que se quer inteligente.

A fogueira da pandemia chegou ao Ocidente pelo túnel da Lombardia. Na época, ninguém teve a ideia de rotular a Itália como “ameaça à humanidade”. Depois, o incêndio tomou a Europa, antes de atingir níveis assombrosos nos EUA —e, felizmente, o rótulo repulsivo permaneceu sem uso. Por que o Brasil, não os outros?

Vírus sofrem mutações. As mutações surgem por acaso, fixando-se segundo as regras da seleção natural. Variantes mais contagiosas, possivelmente mais letais, do coronavírus emergiram no Reino Unido, na África do Sul, nos EUA. O Brasil é o berço da P.1, que circula também no Chile, na Argentina e no Uruguai. Nas ilhas britânicas, identificou-se a B.1.1.7, hoje predominante na Europa e, talvez, nos EUA. A sul-africana B.1.351 parece resistir à vacina da AstraZeneca. O que há de singular com o Brasil?

As variantes se difundem sem precisar viajar em aviões, navios ou automóveis, pelo fenômeno da convergência evolutiva que propicia o aparecimento independente de mutações similares em regiões geográficas diferentes. A Índia ultrapassou o Brasil e lidera as estatísticas globais de contágio. Lá, identificou-se a B.1.617, que carrega 13 mutações. #IndianVariant, vamos brincar de xenofobia?

No rastro dos atentados jihadistas do 11 de setembro de 2001, o Ocidente aprendeu a lição abominável de associar o terror à figura do estrangeiro muçulmano. Duas décadas depois, sob a pandemia, estreia uma versão adaptada do filme antigo que associa um letal inimigo invisível aos estrangeiros. Trump escreveu o roteiro básico; discípulos distraídos o imitam, introduzindo mudanças ajustadas às suas próprias agendas políticas.

O ex-presidente americano inventou o “vírus chinês”, correlacionando uma nação a um agente infeccioso submicroscópico com a finalidade de cobrir o fracasso sanitário de seu governo. No Brasil, o cordão de puxa-sacos liderado por Bolsonaro e Ernesto Araújo reproduziu, à exaustão, o álibi xenófobo trumpiano. Um ano depois, antibolsonaristas operam com o mesmo bisturi, apelando à deturpação do discurso científico para identificar uma nação a variantes daquele agente infeccioso.

Trump disseminou a tese conspiratória de que o vírus foi fabricado num laboratório chinês, do qual teria escapado para contagiar o mundo. O tema do Brasil como ameaça biológica planetária bebe na mesma fonte e repete um refrão similar. “O Brasil é um laboratório a céu aberto para o vírus se proliferar e eventualmente criar mutações mais letais. Isso é sobre o mundo.” (Miguel Nicolelis). “O país está se tornando uma ameaça global à saúde pública.” (Pedro Hallal).

Se o fim é virtuoso, por que se preocupar com os meios? Que tal proceder como Trump, quando se trata de alertar sobre a onda epidêmica avassaladora no Brasil, denunciar o negacionismo sem fim do governo federal, salvar vidas? A resposta é que, depois da pandemia, ainda haverá um mundo —e seus contornos políticos serão largamente definidos pelos conceitos cristalizados nesses meses sombrios.

Uma coisa é marcar a testa de Bolsonaro com o sinete da vergonha; outra, bem diferente, é traçar um círculo sanitário ao redor dos brasileiros. O vírus não tem pátria. Pandemias não têm hino ou bandeira. #IndianVariant, é por aí que queremos ir?​ 


Demétrio Magnoli: Da vacina ao protesto

Se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?

 “Qual vacina devo tomar, doutor?”. Nos EUA, na Europa e até no Brasil, médicos são confrontados com a inédita indagação. Jamais perguntamos a marca da vacina tríplice de nossos filhos ou do imunizante contra a febre amarela. Contudo, com a pandemia de Covid, a população mundial foi exposta a um curso relâmpago de imunologia cujo efeito colateral é a obsessão por comparar vacinas. Por que não selecionar a vacina como escolhemos automóveis ou celulares?

Mike Ryan, da OMS, deu a resposta certa e óbvia: a decisão racional é tomar o primeiro imunizante que lhe for oferecido. O raciocínio justifica-se por duas razões, uma “egoísta”, outra “altruísta”. A primeira: como todas as vacinas aprovadas previnem a imensa maioria dos casos graves, vacinar-se logo é proteger sua própria saúde. A segunda: cada pessoa imunizada contribui na redução da pressão sobre o sistema hospitalar.

Depois de meses de angustiante expectativa sobre o desenlace dos testes de imunizantes, o mundo foi informado de que, no lugar do temido fracasso universal, a ciência operou um pequeno milagre. As vacinas pioneiras, de tecnologia inovadora (Pfizer/BioNTech e Moderna), exibiram taxas de eficácia em torno de 95%. As seguintes, porém, apresentaram taxas menores, entre os 66% da Janssen ou 63% da AstraZeneca/Oxford e os 50% da Coronavac.

Aquilo que, antes, seria celebrado como triunfo, ganhou ares de decepção. Daí a pergunta que atormenta os médicos. A imprensa não prestou o melhor serviço público ao destacar, em manchetes, o número singular que indica a taxa de eficácia geral das vacinas. De um lado, porque há três taxas diferentes de eficácia: contra infecção, morbidade ou mortalidade. De outro, porque os testes de fase 3 não são comparáveis entre si.A Pfizer testou em amostra da população adulta; o Butantan testou a Coronavac entre profissionais de saúde da linha de frente, normalmente expostos a cargas virais maiores. Testes em diferentes países captaram a ação vacinal contra variantes diversas do vírus. Só conseguiremos cotejar imunizantes ao longo dos próximos meses, a partir de experimentos controlados ainda em andamento.

A publicidade ilusória das taxas de eficácia tem implicações negativas. Os EUA renunciaram a direcionar o produto da Janssen, que não exige ultracongelamento, às pequenas cidades, pois a decisão lógica seria fulminada pela (falsa) acusação de discriminação contra os pobres.Na União Europeia, governos acuados pela lentidão na imunização decidiram cobrir seus erros deflagrando uma guerra retórica contra a AstraZeneca.

O francês Macron chegou, ridiculamente, a dizer que a vacina seria “quase ineficaz” para maiores de 65 anos. O bombardeio oportunista prejudicou ainda mais o processo de vacinação, nutrindo resistências ao uso de um dos principais imunizantes disponíveis na região. Inexistem cardápios de vacinas. Os sistemas de saúde aplicam a vacina que está à mão. Mas, e se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?

Na ausência de nítidos motivos imunológicos, minha resposta derivaria de critérios éticos. Na Europa, eu optaria pela AstraZeneca. A associação da farmacêutica com a Universidade de Oxford comprometeu-se a vender seu produto sem lucro durante toda a pandemia, o que merece aplausos. Além disso, o gesto expressaria minha aversão à hipocrisia de Macron e cia.

No Brasil, pelo contrário, eu escolheria a Coronavac, como forma de reconhecer a persistência heroica e a competência do Butantan –e de protestar, solitariamente, contra os escandalosos atrasos da Fiocruz na entrega de doses da AstraZeneca. Felizmente, não terei opção: vacino-me com a primeira que chegar a meu ombro. Será, de qualquer modo, um protesto contra o negacionismo criminoso de Bolsonaro e a estúpida campanha antivacinal de seus acólitos.


Demétrio Magnoli: O maior erro de Biden

Joe Biden imagina-se, com boas razões, na posição ocupada por Franklin Roosevelt em 1933. Seu pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão aquecerá uma economia que já retomou a expansão, direcionando-a para tecnologias transformadoras. Seus primeiros gestos diplomáticos revitalizam as alianças transatlântica e transpacífica que sustentam a influência global dos EUA. Mas nada disso minimizará as consequências de um pecado capital: seu governo segue o roteiro do nacionalismo vacinal de Donald Trump.

O nacionalismo vacinal é a regra entre os países ricos. O Canadá comprou vacinas para imunizar cinco vezes sua população, mas enfrenta dificuldades com o lento fornecimento de doses. A União Europeia adquiriu vacinas em abundância, mas o fez tarde demais e enfrenta carência de imunizantes. Por isso, em desespero, ameaça invocar o Artigo 122 do Tratado da UE, uma lei extraordinária, para impedir a exportação de doses da Oxford/AstraZeneca produzidas em seu território ao Reino Unido. O governo britânico, que aplicou rapidamente a primeira dose em dois quintos da população, impôs um controle oculto à exportação de vacinas.

“As vacinas são para braços americanos primeiro”, declarou Biden, alinhando-se ao nacionalismo vacinal de Trump. Os EUA utilizam a Lei de Produção de Defesa, instrumento criado durante a Guerra da Coreia (1950-53), para impedir exportações de imunizantes sem autorização federal. O America First não terminou com a troca de comando na Casa Branca, mas retraiu-se à esfera da vacinação.

Há exceções pontuais dignas de nota. O Quad, articulação de segurança patrocinada pelos EUA que abrange Japão, Índia e Austrália, prometeu fornecer um bilhão de doses aos países do Sudeste Asiático, num gesto de contenção da influência regional da China. Há pouco, Washington concordou em remeter suas doses estocadas da Oxford/AstraZeneca ao Canadá e ao México. Nesse caso, a “generosidade” é apenas uma extensão do nacionalismo vacinal: a reabertura da fronteira norte depende da imunização no Canadá, e a pandemia só poderá ser declarada extinta nos EUA quando o México vacinar a maior parte de sua população.

A vacinação em massa nos EUA, além de medida sanitária urgente, é parte da estratégia geopolítica de Biden, que depende de uma pujante retomada do crescimento econômico. Mas o nacionalismo vacinal implica renúncia à projeção de influência americana em vastas áreas do mundo em desenvolvimento. China e Rússia agem, agressivamente, para preencher o vácuo.

Três vacinas de origem chinesa (Sinopharm, Sinovac e Cansino) são os principais imunizantes aplicados em parte do Sudeste Asiático, no Paquistão, na Turquia e em países da África do Norte. A Sputnik V, de origem russa, também difundiu-se por países da Ásia Central e do Oriente Médio, da África e mesmo da Europa Central (Hungria e Sérvia).

Pior para os EUA, do ponto de vista geopolítico, é o sucesso da diplomacia vacinal chinesa e russa na América do Sul. O Brasil vacina essencialmente com o imunizante da Sinovac, algo que obrigou o governo Bolsonaro a desistir da aventura insana de barrar a chinesa Huawei do leilão de 5G. No Chile, único país que imuniza velozmente na região, mais de 90% das doses aplicadas são da vacina da Sinovac, sobrando à da Pfizer/BioNTech cerca de 8%. A Argentina, por sua vez, depende principalmente da Sputnik V.

A vacina da Pfizer/BioNTech é quase exclusivamente aplicada em países ricos. A vacina da Moderna não foi nem sequer oferecida a países em desenvolvimento. A África do Sul adquire o imunizante da Oxford/AstraZeneca por mais de duas vezes o preço pago pela União Europeia. A África inteira, com população de 1,3 bilhão, só garantiu 300 milhões de doses para os próximos meses.

Tedhros Adhanom, da OMS, descreveu o cenário como um “fracasso moral catastrófico”. Na hora decisiva da pandemia, o abandono do mundo em desenvolvimento pelos EUA e por seus aliados europeus tende a provocar, ao lado do “fracasso moral”, uma marcante redução da influência global das potências ocidentais. A sombra destrutiva de Trump ainda pesa sobre a Casa Branca.


Demétrio Magnoli: O paradoxo do centro

Siglas têm nas mãos fracassos gravados na memória coletiva, mas não têm narrativa

Lula versus Bolsonaro. As sondagens indicam um segundo turno moldado pela mesma polarização política de 2018. Mas isso, como sabe qualquer especialista em pesquisas, é o som do passado —e eleições são sobre o futuro.

Tanto o ex como o atual presidente comandam minorias consolidadas, potencialmente capazes de impulsioná-los ao turno derradeiro, mas não de garantir-lhes o triunfo diante de uma terceira opção. A paisagem é mais ampla que o cenário numérico: objetivamente, o chamado "centro" tem uma oportunidade singular de bater um e outro em 2022. Em tese, a missão exige apenas uma campanha eficaz de esclarecimento político.

Não se trata de apontar, no plano ideológico, as simetrias verdadeiras e falsas (pois existem as duas) entre as candidaturas polares. Eleições só são sobre ideologia para a minoria que se imagina politizada. Trata-se de identificar e descrever dois fracassos históricos inapeláveis.

O fim do longo ciclo global de expansão das economias emergentes iluminou os contornos completos do lulismo. Lula/Dilma produziram uma devastadora recessão econômica junto com o assalto corrupto às empresas estatais.

A plataforma lulista, um varguismo atualizado, é essencialmente conservadora: perpetuar as engrenagens de um Estado perverso que premia o estrato superior do funcionalismo e os empresários dependentes de contratos públicos suspeitos ou gordos subsídios estatais. Seu resultado é condenar-nos à ineficiência econômica, gerar sucessivas crises fiscais e impedir a qualificação dos serviços públicos universais.

O governo Bolsonaro revelou-se, desde o início, uma regressão autoritária e, no campo econômico, um estelionato eleitoral. Paulo Guedes, o superministro que prometeu as chaves do paraíso, não entregou privatizações, concessões, abertura comercial ou reformas estruturais. No lugar disso, caminhamos a passos largos para uma combinação tóxica de inflação e estagnação.

Mas a perversão bolsonarista evidenciou-se inteiramente durante a pandemia. O negacionismo chucro, a sabotagem perene das medidas de contenção sanitária, a irresponsabilidade na aquisição de vacinas, a inação diante da tragédia em Manaus formam uma coleção de crimes contra a saúde pública. Bolsonaro é um vírus letal.

O centro político tem tudo nas mãos: a experiência recente, gravada na memória coletiva, de dois fracassos consecutivos. Mas não tem narrativa, discurso, programa ou rosto. E isso porque, desde o segundo turno de 2018, rendeu-se ao bolsonarismo. Os principais partidos centristas —o PSDB, o MDB e o DEM— associaram-se, em graus variados, ao governo da extrema direita. A adesão, aberta ou oculta, pesa como chumbo. Não há sabão capaz de limpar as mãos que tocaram uma poça tão pútrida.

A explicação sugerida pela esquerda para o gesto vergonhoso está errada. A coalizão bolsonarista não representa a elite econômica nacional, melhor servida nos governos FHC e Lula. Pelo contrário, é uma liga frágil que reúne fanáticos extremistas, militares ressentidos da reserva, facções da polícia e milícias criminosas, máfias regionais de desmatadores, bispos de negócios e uma franja periférica do empresariado. Bolsonaro capitaneia a nau de um governo lúmpen.

As raízes da estranha adesão podem ser procuradas no antipetismo visceral difundido durante a louca aventura econômica dilmista ou, talvez, numa camada bem mais profunda da nossa história, que remete à truncada, precária absorção dos valores democráticos. Qualquer que seja a explicação, o advento do bolsonarismo provou uma tese angustiante: no Brasil, o centro político desconhece a fronteira de princípios que deveria separá-lo da direita reacionária.

2022 não está escrito nas estrelas. Mas a eleição que tinha tudo para encerrar duas experiências falimentares parece caminhar rumo à reencenação da farsa vulgar de 2018.


Demétrio Magnoli: Dantons de araque

Procuradores da força-tarefa nunca ligaram para ideais, e sim para busca pelo poder

Danton fez a Convenção fundar o Tribunal Criminal Extraordinário em março de 1793. Um ano depois, sob o Terror jacobino que ajudou a implantar, acusado de enriquecimento ilícito, foi submetido a uma encenação judicial e executado na guilhotina. Moro e sua camarilha de procuradores não terão o destino do revolucionário francês, mas merecem sentar no banco dos réus.

Moro, um juiz que sonhou ser presidente, é o elemento passageiro. Mais perene é o caldo de cultura no qual surgiu a força-tarefa. No seu voto, Gilmar Mendes acertou ao indicar que o timão da Lava Jato foi comandado por uma panelinha de procuradores dispostos a usar a lei como subterfúgio para alavancar um projeto político. Aí é que entra a figura de Danton.

Paralelos têm limites. Danton viveu e morreu por seus ideais. No meio do caminho, descobriu que parira um monstro e tentou domá-lo, mas já era tarde. Os procuradores da força-tarefa nunca ligaram para ideais, preferindo cavalgá-los em benefício de suas carreiras e, sobretudo, da busca pelo poder. São Dantons de araque, personagens de uma pantomima, não de uma tragédia. Mesmo assim, o paralelo ilumina algo relevante.

Nosso Ministério Público foi criado como uma espécie de Comitê de Salvação Pública. Na moldura desse poder estatal sem clara delimitação de função e sem controle externo, jovens procuradores nutriram-se da crença na reforma do mundo pela interpretação voluntarista dos códigos legais. O Brasil seria salvo por fora da política, essa lagoa de dejetos imundos, graças à ação obstinada de funcionários de Estado armados com a prerrogativa de investigar e acusar. A força-tarefa foi o fruto maduro da árvore do jacobinismo judicial.

A Lava Jato começou iluminando as vastas teias corruptas que ligam a elite política ao meio empresarial, mas degenerou no projeto de implodir o sistema político para conduzir um juiz ao posto mais alto da República. No trajeto, borrou a fronteira que separa os atos de processar e julgar, pisoteou as garantias dos réus, transformou-se em ator político e arrastou o STF para a lama.

Xi Jinping cimentou seu poder absoluto por meio de uma campanha anticorrupção no interior do Estado-Partido. Putin manipula tribunais amestrados para perseguir supostos corruptos. Só estúpidos acreditam que os fins justificam os meios. O sequestro político do sistema de Justiça seleciona e pune corruptos convenientes, junto com inocentes cuja culpa é fazer oposição, enquanto autoriza a corrupção dos cortesãos. No Estado de Direito, o produto final do jacobinismo judicial é a anulação de investigações e o triunfo da impunidade. Os procuradores que pintaram o sete não têm o direito de atribuir a outros a responsabilidade pelo melancólico desfecho.

Falta-lhes direito, sobra-lhes cara de pau. Aqui, em meados de 2017, critiquei as inclinações jacobinas do Partido dos Procuradores. Carlos Fernando Lima, decano da força-tarefa, retrucou identificando no meu texto a maléfica intenção oculta de proteger "a indecorosa festa desses vampiros". Pouco depois, à provecta idade de 55, aposentou-se com proventos integrais, atravessou a porta giratória e foi advogar na área de compliance para clientes que temem cair nas garras de seus camaradas procuradores.

A postagem do heroico combatente incluía uma citação de Danton e, à sorrelfa, a tese de que o Terror assegurou a vitória final dos altos ideais da Revolução Francesa. Não conseguiremos circunscrever a corrupção às franjas do sistema político sem extirpar a cultura salvacionista que impregna o Ministério Público, separando as esferas da Justiça e da política. A cabeça de Danton rolou na guilhotina no 17 do Germinal do Ano II. Um futuro processo de Moro e dos procuradores deve ser justo e imparcial, porque isso é o certo e para ensinar-lhes a lição jurídica que não aprenderam.


Demétrio Magnoli: Lockdown, só usa quem pode

Bolsonaro afirmou que lockdowns “não funcionaram em lugar nenhum do mundo”. É cascata, como tudo que escorre da boca do presidente. Doria retrocedeu São Paulo para a “fase vermelha”. Atenção: não é, nem de longe, lockdown. Brasil afora, em meio à escalada da pandemia, governadores e prefeitos tornaram-se alvo de um bombardeio de críticas por não declararem lockdowns. No caso, os gestores têm razão: lockdown, só usa quem pode.

Lockdown é um extensivo congelamento da economia e da sociedade. Só os setores mais essenciais são autorizados a funcionar. A circulação de pessoas é restringida ao máximo. Funciona, pois a drástica redução de interações sociais ao longo de dois a três meses diminui radicalmente a taxa de transmissão do vírus. Não é, porém, uma varinha mágica. Como persiste alguma mobilidade social, e o vírus atravessa, impávido, a porta das residências, continuam a ocorrer contágios. Lockdowns não substituem a imunização coletiva.

A Nova Zelândia eliminou o vírus combinando lockdowns com fechamento de fronteiras. O sucesso, replicado por raros países, deve-se à circunstância de que, na etapa inicial (e oculta) da pandemia, as ilhas neozelandesas não experimentaram elevadas taxas de contágio. Hoje, porém, a reabertura de fronteiras depende da vacinação em massa da população. Na Europa, os lockdowns só conseguiram achatar temporariamente as curvas pandêmicas, impondo repetições do traumático processo.

O lockdown tem impactos políticos, econômicos, sociais e psicossociais devastadores. A restrição de direitos e liberdades, as perdas de negócios e renda, a insegurança e a solidão que provocam não devem ser menosprezados. Como a amputação, lockdown é um recurso extremo destinado a salvar o bem mais precioso — no caso, a funcionalidade do sistema hospitalar. Bolsonaro é incapaz de entender isso, mas as sociedades modernas proíbem-se, moralmente, de assistir à morte de pacientes sem atendimento.

Estados totalitários, como a China, podem deflagrar lockdowns à vontade. Basta girar a chave do maquinário estabelecido de controle social. Nas nações democráticas, há pré-condições indispensáveis para implantar o lockdown: um consenso político mínimo, um nível razoável de coesão social e o monopólio estatal do uso da força. Os EUA jamais aplicaram um lockdown nacional pela ausência da primeira dessas condições. No Brasil, faltam as três.

O voto tem consequências, acima e abaixo do Equador. Bolsonaro ainda comanda cerca de um terço dos eleitores e conta com um apoio amorfo de uma maioria parlamentar, como ficou evidenciado na eleição das mesas do Congresso. Nas esferas estadual e municipal, o bolsonarismo representa uma força política significativa. Não se fará lockdown sob o atual governo. O Brasil vive — e morre — com suas escolhas democráticas.

Nas nações europeias, formadas por extensas classes médias, os lockdowns sustentaram-se sobre o pilar do Estado de Bem-Estar. As duras restrições foram compensadas por políticas de preservação das empresas e dos empregos. Nada disso evitou a eclosão de manifestações de massa contrárias às medidas sanitárias emergenciais. No Brasil, porém, a extensão da pobreza e da informalidade exigiria, para a imposição de lockdown nas nossas derramadas periferias urbanas, a mobilização generalizada dos aparatos de repressão. Os gestores, felizmente, não se engajarão em desvarios desse tipo. Nota importante: a esquerda que clama por lockdown seria a primeira voz a condenar as violências policiais decorrentes.

O Brasil não é Araraquara. Há tempos, o Estado brasileiro perdeu o controle sobre a totalidade do território nacional. No Rio de Janeiro, um lockdown exigiria negociações das autoridades com chefes de milícias e do narcotráfico, algo que também seria necessário em favelas fincadas noutras metrópoles. Quando Eduardo Paes descarta a alternativa, não opta pela morte, mas meramente pelo realismo.

Compreendo o desespero dos epidemiologistas que exigem lockdown. Desconfio do discernimento dos comentaristas políticos que ecoam o mantra desses dias sombrios.


Demétrio Magnoli: Bolsonaro 3.0

Quando Bolsonaro anunciou a troca do presidente da Petrobras, recordei as conversas que mantive com figurões do “mercado” no intervalo entre os dois turnos da eleição presidencial de 2018. A turma da alta finança deplorava as ideias políticas do candidato nostálgico pelo AI-5, mas confessava que ele teria seus votos: afinal, diziam, Paulo Guedes garantiria o triunfo de uma política econômica liberal. Pobres liberais ricos de miolo mole...

O governo Bolsonaro original exibia duas faces. Um lado do rosto era Olavo de Carvalho: o reacionarismo delirante de uma ultradireita mística, que almeja restaurar passados diversos, nossos e estrangeiros. O lado complementar era Guedes: um liberalismo econômico de ângulos retos, inculto e inconciliável, extraído de cartilhas de autoajuda para banqueiros de investimento.

Sob pressão do inquérito sem fim do STF, parte da mobília foi lançada fora do caminhão. A famiglia acima de todos! A espada erguida pelos juízes sobre a cabeça dos filhos do presidente dissolveu as lealdades frágeis. O espectro do impeachment fez o resto. Bolsonaro livrou-se, silenciosamente, do “núcleo ideológico”, ou seja, das camarilhas de idiotas e oportunistas que surfaram a onda da “nova política”.

O governo Bolsonaro 2.0 foi inaugurado pelo abraço úmido do Centrão. No lugar da revolução reacionária, a “velha política” de resultados. As eleições ao comando da Câmara e do Senado — em especial, a derrota de Rodrigo Maia — mostraram que a geringonça poderia funcionar. Guedes, porém, continuava lá, no fundo do palco, encenando truques vulgares à luz pálida de um holofote com filtro.

A gestão responsável de Roberto Castello Branco à frente da Petrobras provocou a segunda ruptura. De olho no preço dos combustíveis e, principalmente, na chantagem perene dos aliados caminhoneiros, Bolsonaro vestiu a armadura de Dilma Rousseff. A empresa pública de capital aberto será convertida, uma vez mais, em loja de conveniência do Planalto. “Um manda, outro obedece”: um general de pijama transformará os piores instintos presidenciais em política de preços da estatal petrolífera.

O governo Bolsonaro 3.0 foi inaugurado na sexta-feira fatídica da confirmação parlamentar da prisão de Daniel Silveira e da defenestração presidencial de Castello Branco. No Congresso, o Centrão deu as costas ao que resta do “núcleo ideológico” e cantou as glórias eternas da democracia, ignorando o pedido de clemência de um valentão de araque que borrava as calças. No Planalto, o presidente bombardeou o castelo já arruinado de Guedes, humilhando publicamente o fiador de seu governo junto ao “mercado”.

Bolsonaro 3.0 consagra uma aliança nem tão excêntrica assim, entre o fisiologismo do Centrão e o corporativismo militar. Numa ponta, situa-se a base de parlamentares sem preferências ideológicas, mas extensa prática no esporte da captura dos fragmentos lucrativos da máquina estatal. Na ponta oposta, um “Partido Militar” que, simulando falar o idioma da ordem e progresso, busca obter privilégios pecuniários para os homens em armas e empregos públicos de prestígio para generais e coronéis da reserva. O retrato da aliança é o general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, plenipotenciário do presidente no balcão de negócios do Congresso.

A esta altura do jogo, a decisão que Guedes rumina só tem relevância simbólica. O amuleto eleitoral de Bolsonaro, falsamente exibido como czar da Economia, pode renunciar, para fingir que leva para casa o falso brilhante de sua dignidade, ou permanecer como vaso ornamental em meio aos destroços de um jardim clássico. Ninguém mais se importa.

O estelionato eleitoral de Dilma Rousseff foi um experimento na mentira. A presidente que trocou o “novo paradigma macroeconômico” pela ortodoxia de Joaquim Levy renunciava a suas convicções para tentar sobreviver à tempestade. O estelionato eleitoral de Bolsonaro é, pelo contrário, um exercício de restauração da verdade. O presidente fecha o círculo, retornando a suas raízes. Roberto Schwarz tinha razão: no Brasil, o liberalismo não passa de uma ideia fora de lugar.


Demétrio Magnoli: Eu acuso!

Primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo

Na Califórnia, o Conselho de Educação de São Francisco mudou os nomes de 44 escolas, varrendo figuras racistas do passado e, de passagem, também Abraham Lincoln. Na Folha (19/1), Marcelo Coelho reativou a campanha pelo cancelamento de Monteiro Lobato, rotulando-o como um “racista delirante”. Ezra Klein tem razão ao concluir que, por essas vias, transforma-se a política mais em estética que em programa (Folha, 12/2).

Cada geração tende a reinventar a história à sua imagem, atribuindo aos personagens do passado as virtudes ou pecados que tocam nas sensibilidades do presente. O Lincoln oficial é Grande Emancipador; o dos dirigentes escolares de São Francisco é o político que se opunha tenazmente ao exercício do sufrágio pelos negros. Depois de cancelar os líderes da Confederação, a esquerda identitária americana precisa seguir adiante, condenando ao opróbrio todos os que não abraçam seus valores. O primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo, inscrevendo os personagens que estuda na moldura de sua própria época. Mas o anacronismo constitui a ferramenta imprescindível dos emissários da atual política simbólica.

Lincoln simplesmente compartilhava as ideias predominantes no seu tempo. Lobato debatia-se com as encruzilhadas reais ou imaginárias da metade inicial do século 20. O método de pinçar frases racistas em suas obras ou cartas pessoais serve, exclusivamente, para obter aplausos da plateia cúmplice que milita no identitarismo acadêmico.

Que tal democratizar o anacronismo? Eu acuso W.E.B. Du Bois, “pai fundador” do movimento negro americano, de nutrir certas simpatias pelo nazismo. Acuso Abdias do Nascimento, prócer do moderno movimento negro brasileiro, de propagar as ideias fascistas da Ação Integralista Brasileira. E acuso milhares de negros do Brasil do século 19 de terem sido proprietários de escravos. Minhas cápsulas de verdades fora de contexto, artimanhas no palco do ilusionismo, esclarecem tanto quanto a sentença inquisitorial lançada contra Lobato.

As musas da Sorbonne costumavam soprar nos ouvidos dos intelectuais brasileiros. Não mais. Hoje, os cavaleiros andantes da política identitária seguem gurus americanos –e querem que o Brasil seja os EUA. O problema é que, quando se trata de nação e raças, a América Latina tomou rumo diferente.

Enquanto os EUA praticavam a segregação racial oficial, o mexicano José Vasconcelos (1882-1959) e o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) enalteciam a miscigenação. Lobato não adotou nenhum dos dois polos, ensaiando um raciocínio inclinado à conciliação de raças. Os três, porém, pisavam um chão ladrilhado por conceitos raciais que só seriam superados na metade final do século 20. A acusação a Lobato nada diz sobre o escritor, mas pinta um retrato preciso de seus acusadores.

A crítica literária Ana Lúcia Brandão recolocou o debate sobre Lobato no seu devido lugar (Folha, 15/2), descortinando amplos horizontes para divergências civilizadas. Vã esperança: Coelho retrucou comparando-a aos terraplanistas. Se não rezam pela cartilha de Bolsonaro, são comunistas; se contestam o manual de cancelamento da política identitária, serão terraplanistas. Vamos mal.

A política estetizada ignora os dilemas que interessam às pessoas comuns. As escolas de São Francisco permanecem fechadas –mas seus nomes foram devidamente sanitizados. O Pisa revela que o ensino público brasileiro continua a sonegar o direito à educação aos filhos de famílias de baixa renda de todas as cores –mas temos cotas raciais nas universidades e cercaremos com bandeiras de alerta as frases suspeitas de Lobato. São Paulo empurra seus pobres a periferias cada vez mais distantes –mas logo removerá a Estátua do Empurra da entrada do Ibirapuera.

A estética nos consome: lancetamos símbolos. Sorte da direita populista.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: A vacinação como espetáculo

No lugar de imunizar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas

No Brasil, em média, vacinamos menos de 300 mil por dia. Sem escassez de imunizantes, seríamos capazes de vacinar perto de 2 milhões. Mas, mesmo agora, poderíamos vacinar facilmente 600 mil. A lentidão, que amplifica as mortes, não escandaliza quase ninguém. A indignação concentra-se na já lendária figura do fura-fila. É que, de fato, mais que vacinar, queremos colocar todo mundo no seu lugar numa hierarquia de prioridades. Na sociedade do espetáculo, passar julgamento moral vale mais que salvar vidas.

A cidade do Rio reservou um dia inteiro para cada grupo etário de um ano, dos 99 aos 80. Vacinas e enfermeiros despendem horas ociosas, diariamente, à espera do idoso "certo". Legal, isso: garante que o idoso de 89 anos não passe na frente do camarada mais velho, de 93, participante de um grupo de maior risco. São Paulo foi na mesma linha, economizando só um pouco do ridículo: reservou uma semana completa para a faixa dos 90 anos ou mais. Nas unidades de saúde, manhãs inteiras passaram na janela sem a presença de um único "vacinável". Bem planejado: assim, evitamos aglomerações.

A fila perfeita é, claro, imperfeita. Profissionais de saúde, nossos heróis, vêm primeiro. Daí que imunizamos psicoterapeutas de 60 anos que trabalham online antes de gente comum com mais de 80 anos. A parcimônia cumpre função não divulgada: vacinando bem devagar, escapamos do vexame de interromper a campanha por esgotamento das doses —e, portanto, o governo federal oculta seu atraso na aquisição de imunizantes. Por essa via, na sociedade do espetáculo, o negacionismo de direita estabelece uma aliança tácita com o humanismo de esquerda.

"Somos um país só!", gritou o Ministério da Saúde na deflagração da campanha da vacina, dizendo nas óbvias entrelinhas que o comando pertence ao governo federal (Bolsonaro), não ao governo paulista (Doria). Mas, num "país só", a estratégia de imunização em cenário de escassez priorizaria as regiões mais afetadas, que são também os berços de cepas mutantes do vírus. O Amazonas tem cerca de 510 mil habitantes com mais de 50 anos. Já poderíamos ter injetado a primeira dose em todos eles, sem deixar de vacinar os agentes de saúde da "linha de frente" e parcela dos idosos do país inteiro, se o slogan de Pazuello fosse mais que uma peça de propaganda política.

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, não desconhece o efeito narcótico da fotografia da fila perfeita. Lá no começo, determinou a imunização exclusiva dos profissionais de saúde —e decretou multa de US$ 1 milhão para quem vacinasse algum fura-fila. Resultado: uma campanha em ritmo de tartaruga manca, em cenário de abundância de doses. Cuomo só mudou de ideia quando emergiram imagens de ampolas descartadas por vencimento de prazo, saltando do zero ao infinito para autorizar a vacinação de todos os idosos com mais de 65 anos. Na sociedade do espetáculo, é a foto errada, não a razão, que provoca correções de rumo.Quantos artigos destinados a envergonhar fura-filas já foram publicados na Folha? Compare o espaço preenchido por eles com aquele destinado a questionar a eficácia prática de nossos critérios de vacinação. O cotejo oferece uma janela para a paisagem banhada de sol da hipocrisia nacional.O julgamento moral, fundamento da cultura do cancelamento, está na moda. Apontar o dedo acusador para o fura-fila legal (a psicoterapeuta online) ou ilegal (o estudante de medicina que nunca entrou num hospital) confere prestígio social, uma almejada recompensa psicológica.

A eficácia da vacinação depende de sua abrangência demográfica, pois todos estaremos imunes se a ampla maioria for imunizada. Mas preferimos esquecer isso para tratar a vacinação como questão individual. Por meio desse truque, no lugar de vacinar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas.


Demétrio Magnoli: Moro, o ‘nada jurídico’

Rosangela Moro, advogada do marido, acionou o STF pedindo a Fachin a revogação da liminar de Lewandowski que dá à defesa de Lula acesso às mensagens trocadas entre Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa de Curitiba. A reclamação ilumina o desprezo do Partido da Lava-Jato pela verdade factual e, ainda, pela verdade jurídica.

A peça da advogada repete as duas alegações básicas do ex-juiz e dos procuradores: 1) “Não há prova da autenticidade das mensagens”; 2) As mensagens “não provam fraude na condenação ou suspeição do juiz”.

A primeira afirmação é uma tentativa de circundar, por um artifício jurídico, a questão da verdade factual. Temendo cometer perjúrio, os acusados não declaram que as mensagens são falsas — mas referem-se a elas como se fossem diálogos entre terceiros desconhecidos sobre os quais nada sabem.

A segunda afirmação, se verdadeira, tornaria a primeira desnecessária. Afinal, se os diálogos não contêm ilegalidades, por que não admitir sua autenticidade? Contudo, como as trocas de mensagens evidenciam graves violações da lei, a advogada tira da cartola um terceiro coelho manco e solicita a eliminação processual delas: seriam um “nada jurídico”, devido aos meios ilegais utilizados na sua obtenção.

Nos diálogos, Moro oferece orientações aos procuradores sobre fontes, os instrui sobre possíveis provas e combina com eles a sequência de operações policiais. São evidências abundantes de conluio entre o Estado-julgador e o Estado-acusador. A gangue de Curitiba suprimiu do processo legal o juiz imparcial.

A verdade jurídica não é idêntica à verdade factual, pois a segunda só se torna a primeira quando percorre a estrada do devido processo. Sorte de Moro e de seus comparsas: a verdade factual expressa nas trocas de mensagens seria suficiente para condená-los por subversão do processo legal, se não tivesse vindo à luz pelo túnel da ilegalidade. Tal circunstância não implica, porém, a completa invalidação jurídica dos diálogos criminosos.

A jurisprudência não admite o uso de provas obtidas ilegalmente para condenar alguém, mas permite utilizá-las para sustentar a presunção de inocência. Lula pode até ser factualmente culpado — mas, na vigência do estado de direito, não é possível condená-lo ao arrepio do devido processo. É dever do STF anular as sentenças condenatórias do líder petista tingidas pela mão de gato de Moro.

Moro enxerga a lei como fonte de privilégios e discriminações. No pacote anticrime que formulou quando ministro de Bolsonaro, introduziu o “excludente de ilicitude”, mecanismo destinado a impedir a punição de crimes cometidos por policiais. Na reclamação ao STF, sua advogada alega que as trocas de mensagens “não provam inocência” de Lula, como se cidadãos acusados tivessem o ônus de provar ausência de culpa.

“Nada jurídico” — o qualificativo não serve para invalidar os diálogos que repousam no STF, mas define à perfeição os processos conduzidos pelo Partido da Lava-Jato. As mensagens expõem acertos entre o juiz e os procuradores para plantar notícias na imprensa e financiar a divulgação de propostas legislativas, além da ambição de reformar o sistema político-partidário. Nada jurídico, tudo político: a gangue manipulava suas prerrogativas de agentes da lei para deflagrar um projeto de poder centrado na figura de Moro.

A demanda da advogada ao STF pretende soterrar tanto a verdade factual quanto a jurídica. A guerra contra a verdade tem a dupla finalidade de evitar a desmoralização jurídica da gangue e de conservar os resíduos de um projeto político envenenado pela associação de Moro com Bolsonaro.

Na hora da morte da força-tarefa, o Partido da Lava-Jato conta com três fiéis militantes no STF. Mesmo assim, diante do grito das evidências, a manutenção integral das condenações tornou-se um sonho improvável. Circula, por isso, a ideia criativa de preservar, ao menos, o legado da interdição de candidatura de Lula. “In Fux We Trust”: o compromisso imoral concluiria, melancolicamente, a trajetória de juízes que confundem a lei com suas próprias convicções políticas.


Demétrio Magnoli: Biden tem oportunidade de converter vacina em bem público global

Presidente dos EUA tem oportunidade de converter vacina em bem público global

George W. Bush será sempre lembrado pelo desastre humano e geopolítico que provocou com a guerra no Iraque. Contudo, uma iniciativa singular do ex-presidente salvou algo como 17 milhões de vidas: o Pepfar (Plano Presidencial Emergencial para Assistência à Aids). Joe Biden tem a oportunidade de se inspirar no plano de Bush para liderar a imunização global contra a Covid-19.

O Pepfar nasceu em maio de 2003, à sombra da invasão do Iraque, que começara dois meses antes. Sob a coordenação do Departamento de Estado, o programa direcionou, de lá para cá, mais de US$ 85 bilhões para os países foco e para o Fundo Global de Combate à Aids. A lúgubre curva de mortes por Aids na África Subsaariana começou a ser achatada graças aos recursos e à assistência técnica providenciados pelos EUA. O modelo do Pepfar oferece a melhor resposta americana à "geopolítica vacinal" chinesa.

Segundo estimativas do Duke Global Health Institute, os países ricos, que abrigam 16% da população mundial, contrataram 60% das vacinas prometidas até agora. A iniciativa Covax, da OMS, destinada a prover imunização global, prevê a entrega, até junho, de apenas 140 milhões de doses para a África, onde vive 1,3 bilhão de pessoas. A célere vacinação da população mundial é um imperativo moral. Mas é, igualmente, a única ferramenta capaz de domar a pandemia, reduzindo as probabilidades de surgimento de incontáveis mutações do vírus pela persistência prolongada dos contágios. "Ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo", explica o slogan da Covax.

O triunfo do nacionalismo vacinal teria efeito bumerangue, castigando tanto os países pobres quanto os ricos. A União Europeia, apesar da insistência na retórica da solidariedade global, não parece preocupada com isso. A Comissão Europeia tenta ocultar seu atraso na imunização com ataques despropositados à AstraZeneca, única farmacêutica que distribui vacinas a preço de custo, e com a ameaça de bloquear a exportação de doses produzidas no seu território. Sob Trump, os EUA agiram ainda pior, abandonando a OMS e negando-se a contribuir com o financiamento da Covax.

A China opera no vácuo gerado pelo nacionalismo hipócrita de americanos e europeus. O governo chinês definiu suas vacinas como bens públicos globais e lançou-se a uma diplomacia da imunização, estratégia seguida também pela Índia. Contudo, os discursos humanitários chineses e indianos mal escondem a cuidadosa seleção dos países beneficiários, que obedece a nítidas prioridades de política externa.

Biden promete patrocinar, ainda em 2021, uma "cúpula das democracias". O conceito, em estágio inicial de formulação, inscreve-se na moldura da rivalidade global entre EUA e China. Seria uma articulação diplomática destinada a contrapor os valores das democracias representativas ao sistema de poder totalitário. A ideia enfrenta uma coleção de dificuldades práticas. Mas, para além delas, como superar a percepção de que o conclave de democracias ricas forma o mapa completo das nações privilegiadas pelo acesso preferencial às vacinas?

Os EUA só podem triunfar na "guerra de valores" se conseguirem provar que a democracia funciona melhor que a tirania, especialmente quando o mundo enfrenta uma dramática emergência sanitária. A superpotência injeta nos seus cidadãos vacinas de alta tecnologia, baseadas em mRNA, que tem elevada eficácia e cuja fabricação é mais simples e rápida. Estima-se que, com meros US$ 4 bilhões e uma rede de parcerias público-privadas, o governo americano poderia instalar capacidades produtivas suficientes para imunizar a população mundial no horizonte de um ano.

Os chineses dizem que a vacina deve ser um bem público global. Biden tem a oportunidade de converter essa visão em realidade. É bem melhor que reunir os acumuladores de vacinas numa redoma sanitizada.