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Demétrio Magnoli: Manaus é a prova de que já não dispomos de um governo funcional

Os doentes do Amazonas não morreram do coronavírus, mas do desleixo, da incúria, da inépcia, do desinteresse criminoso

Jair Bolsonaro comete crimes de responsabilidade diversos desde que subiu a rampa do Planalto. Dezenas de pedidos de impeachment protocolados na Câmara ainda aguardam encaminhamento, pois Rodrigo Maia sabe que o destino do presidente não será decidido no tabuleiro das leis, mas no da política. A tragédia de Manaus marca uma reviravolta no cenário: depois das mortes por asfixia, o impeachment transitou do éter dos sonhos para a esfera das possibilidades.

A histeria do impeachment é, hoje, a maior ameaça ao impeachment. O Congresso não impedirá o presidente pelo chiclete ou pelo leite condensado. Os escândalos culinários provavelmente indicam um rastro de esquemas corruptos ligados a superfaturamentos, fornecedores fantasmas e lavagem de dinheiro. Contudo, a investigação do labirinto demandaria meses, obscurecendo o crime maior que tem o potencial de abreviar o pesadelo nacional.

Manaus é a prova de que já não dispomos de um governo funcional. Nos países modernos, retirantes não perecem de inanição na beira da estradas, não porque a miséria foi extirpada mas porque o Estado é capaz de mobilizar meios emergenciais para evitar o desenlace fatal. As mortes por falta da cilindros de oxigênio nos remetem a um passado mais ou menos distante, quando famélicos desabavam, exaustos e desamparados, fugindo das secas nordestinas. Na época, faltavam-nos aviões, helicópteros, estradas, caminhões e recursos financeiros. Hoje, tudo isso existe: o que falta é governo.

Os doentes do Amazonas não morreram do coronavírus, mas do vírus do desleixo, da incúria, da inépcia, do desinteresse criminoso. As sondagens de opinião evidenciam que o povo entendeu a cadeia de comando: Pazuello, general de ópera bufa, não passa de um estafeta do autêntico culpado. Não é casual que, dias atrás, um tanto apavorado, sob zurros de uma chusma de lambe-botas, o ocupante do cargo presidencial tenha batido seus próprios recordes na olimpíada da malcriação.

Impeachment é, essencialmente, uma decisão política. Só se impedem presidentes cujas taxas de aprovação caíram às profundezas abissais. Bolsonaro continua longe dessa zona escura e fria, mas submerge em velocidade acelerada. Os sinais de alarme, que começaram a soar no Planalto na hora do nocaute imposto por Doria na batalha da vacina, dispararam quando emergiram as aterradoras cenas manauaras.

De lá para cá, o governo entrou no modo pânico. O presidente rastejou aos pés dos chineses para implorar por suprimentos vacinais e, nos círculos internos do poder, cogita-se oferecer em sacrifício público os corpos lacerados do trapalhão da Saúde e do místico ocultista do Itamaraty. No atual estágio da crise, Bolsonaro já não pode salvar-se a si mesmo: para voltar à tona, depende da incompetência de seus adversários.

Impeachment é a soma de um crime de responsabilidade com uma narrativa política persuasiva. Dilma caiu pois contou-se uma história (verdadeira, aliás) sobre estelionato eleitoral, caos econômico e corrupção política. No caso de Bolsonaro, a sanitização do Planalto exige a releitura da história da pandemia sob a lente de aumento da agonia dos hospitais de Manaus. O oxigênio —ou melhor, a falta letal dele— confere sentido ao negacionismo perene, à sabotagem do distanciamento social, ao curandeirismo do “tratamento precoce” e ao atraso da imunização.

Há cinco anos, petistas inconformados asseveravam que o uso do instrumento constitucional do impeachment debilita as democracias. A verdade é bem mais complexa. Sucessivos impedimentos de chefes de Estado certamente iluminam instabilidades dos sistemas democráticos. Mas a remoção de presidentes catastróficos é a derradeira ferramenta de defesa da democracia. O Brasil, apesar de tudo, não merece o governo da ultradireita boquirrota e delirante. Uma praga por vez é suficiente.


Demétrio Magnoli: Trump, Cruz e o Compromisso de 1877

Para trumpistas, a ‘nação verdadeira’ foi sitiada pela massa de ‘estrangeiros’

A invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro, não impediu a certificação da vitória de Joe Biden — nem o espetáculo parlamentar de fundação do Partido de Trump. Na retomada dos trabalhos do Congresso, mais de cem deputados republicanos e meia-dúzia de senadores ainda insistiram em contestar os resultados eleitorais. À frente deles, o senador Ted Cruz, do Texas, invocou como precedente o Compromisso de 1877. A referência sintetiza o programa do Partido de Trump.

A eleição presidencial de 1876 foi travada entre o republicano Rutherford Hayes e o democrata Samuel Tilden. Na época, os republicanos eram o “partido da União”, dos vencedores da Guerra Civil (1861-65), e os democratas eram o “partido da Confederação”, das elites sulistas derrotadas. Tilden triunfou no voto popular, mas o desenlace no Colégio Eleitoral dependia de 20 delegados de quatro estados contestados. Depois de uma longa disputa judicial e parlamentar, concluiu-se por uma barganha. O Compromisso de 1877 deu a Casa Branca a Hayes, em troca da retirada das forças militares que ocupavam os estados da antiga Confederação.

À primeira vista, o paralelo entre as eleições de 1876 e 2020 não tem sentido. Na primeira, de fato verificaram-se irregularidades e fraudes generalizadas nos quatro estados decisivos. Na segunda, meticulosas recontagens e inúmeras decisões judiciais confirmaram a absoluta lisura do pleito. Cruz, porém, invocou o Compromisso de 1877 para delinear uma plataforma política: o Partido de Trump almeja a retirada das tropas da Lei dos Direitos de Voto que, em 1965, ocuparam o conjunto dos EUA.

Bandeiras confederadas, o símbolo do supremacismo branco, tremularam no comício de Trump que precedeu a invasão do Capitólio. O Compromisso de 1877 encerrou a Reconstrução: o parêntesis aberto em 1865 de intervenção do governo central na antiga Confederação. Logo, as velhas oligarquias retomaram o poder nos estados sulistas e formularam as leis de segregação racial. Com base na conciliação federativa, uma catarata de regulamentos estaduais reduziu a pó o direito de voto dos negros inscrito na 15ª Emenda (1870).

Tilden, o derrotado de 1877, pertencia ao Partido Democrata, que representava as oligarquias sulistas. O movimento pelos direitos civis, de Martin Luther King, inverteu o cenário. As leis dos Direitos Civis (1964) e dos Direitos de Voto (1965) foram patrocinadas por governos democratas. O Partido Republicano converteu-se no “partido do sul” — mas manteve-se longe da bandeira confederada e do supremacismo branco. Trump promove a ruptura com a tradição de Lincoln. Sua facção republicana sonha anular as garantias legais da igualdade de direitos, restaurando a nação original, de colonos brancos e protestantes.

Só uma estreita minoria de idiotas hipnotizados pelas lendas conspiratórias de mídias sociais acredita, de fato, que Biden triunfou graças a uma fraude eleitoral. A grande mentira, porém, encontra tradução diferente na extensa base de fiéis trumpistas. Trump obteve a maioria do voto branco, mas perdeu devido ao peso eleitoral dos negros e latinos. É isso que o núcleo de eleitores trumpistas interpreta como fraude. Para eles, a “nação verdadeira” foi sitiada pela massa de “estrangeiros” de “sangue” latino ou africano.

No seu mandato único, Trump concentrou-se em mudar a composição da Suprema Corte, indicando juízes “originalistas” — ou seja, adeptos da interpretação literal da Constituição escrita pelos fundadores. A Constituição “original” não abrange as leis dos direitos civis. Convenientemente relida, poderia autorizar as legislaturas estaduais a restringir a inscrição de eleitores de minorias. Eis a meta principal do Partido de Trump.

O Partido de Trump, uma facção do Partido Republicano, é um movimento restauracionista do nacionalismo branco. As correntes supremacistas e as milícias nativistas que circulavam na periferia do sistema político encontram nele uma grande organização unificadora. A violência política da extrema-direita transforma-se em elemento central e perene da política americana. É esse o legado de Trump.


Demétrio Magnoli: Na nossa fila de privilégios e direitos, as crianças ocupam o último lugar

Por que todos os sindicatos de profissionais que trabalham presencialmente não impetram ações judiciais, como o dos professores?

Raphaela dos Santos, 5, de Paraisópolis, esqueceu como escrever seu nome e os números. Ana Júlia, 5, quase vizinha, ainda escreve seu primeiro nome, mas não o segundo. A Prefeitura de São Paulo não definiu data para reabertura das escolas, mas garante que aplicará medidas de recuperação de conteúdos que “eventualmente foram perdidos” (Folha, 27/12). 2020 ficará na memória como o ano em que o Brasil tirou a máscara, evidenciando que, na nossa fila de privilégios e direitos, as crianças ocupam o último lugar.

“Não venha comparar as nossas escolas com as da Europa!” Benin, Chade, Burkina Faso, Guiné Equatorial, República do Congo, Serra Leoa e Cabo Verde —anote esses nomes, professor. São alguns dos países africanos que, em outubro, já tinham retomado aulas presenciais. Sugiro uma atividade para o dia distante da volta à escola: colori-los no mapa. Título: onde sobrevive o direito à educação.

 “A vida primeiro! As crianças infectarão os professores e seus próprios familiares.” A ciência diz coisa diferente. Crianças não são grupo de risco e não participam significativamente da cadeia de transmissão. Mas, ao que parece, o consenso científico vale apenas quando não colide com os interesses corporativos. E, de mais a mais, sempre haverá algum “especialista” de rede social disponível para afirmar o que se quer ouvir.

“Só depois da vacina —e da reforma física dos edifícios escolares.” A Apeoesp, que recusa o retorno antes da Volta do Messias (o Jesus, não o Jair), solicitou ao STF a vacinação dos professores na “primeira etapa”, antes da maioria dos idosos. Não está só: junta-se a entidades de promotores e ao próprio STF, que pediram à Anvisa o mesmo privilégio. De qualquer modo, as vacinas não foram testadas em crianças, justamente porque não pertencem aos grupos de risco. Assim, por enquanto, nem mesmo se planeja a imunização de crianças. O álibi perdurará.

“Ação judicial em defesa da vida.” A Apeoesp impetrou um mandado de segurança no TJ de São Paulo “para que as aulas presenciais não retornem em plena pandemia”. Na prática, se os juízes cederem à chantagem sindical, a rede estadual de escolas públicas permanecerá fechada ao longo de todo o primeiro semestre. É missão dos professores ensinar a lição da igualdade de direitos. Por que todos os sindicatos de profissionais que trabalham presencialmente não impetram ações judiciais similares?

 “Bolsonarista genocida!” Bolsonaro é como um relógio quebrado, que marca a hora certa duas vezes por dia. São “genocidas” os pediatras que apelam pela volta às aulas? A Unicef? A OMS? A linguagem boçal da extrema direita encontra espelho perfeito na linguagem pilantra do sindicalismo docente. A segunda, aliás, reforça a primeira, tecendo os fios das insistentes taxas de aprovação do presidente negacionista entre os pobres.

 “Greve geral, pela vida!” Médicos e enfermeiros não fizeram paralisação. Motoristas, comerciários, entregadores compareceram todos os dias. Trabalhadores dos setores essenciais circularam em ônibus, trens e metrô. A quarentena de uns depende da aglomeração de outros. Mas a chantagem funciona: políticos espertos, como Covas, sempre temem a ira santa dos sindicatos de professores.

No site da Apeoesp aparece um mapa colorido com os 320 municípios paulistas que “rejeitam o retorno precoce das aulas presenciais”. A peça cartográfica foi atualizada em meados de outubro, precisamente quando completou-se a reabertura escolar naqueles sete países africanos. É uma ilustração sem igual da escala de prioridades, da mendacidade e do oportunismo de nossa elite política, da qual faz parte a aristocracia sindical docente.

O mapa deve ser guardado —e não só para os cursos de ciência política. Algum dia, a Raphaela aprenderá a ler. Saberá, então, quem sabotou a vida dela, em nome da vida.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Progressistas que celebram cancelamento da conta de Trump buscam pacto com plutocratas da internet

É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo as mídias sociais às mesmas regras de responsabilidade da imprensa

 “Não me diga que ele foi banido por violar as regras do Twitter”, tuitou o opositor russo Alexey Navalny sobre Trump, “eu recebo aqui ameaças de morte todos os dias, há anos, e o Twitter não bane ninguém (não que eu peça isso)”. Twitter, Facebook e congêneres são veículos de crimes contra a humanidade. Em Mianmar, serviram à campanha de limpeza étnica dos militares contra a minoria rohingya e, na Índia, à operação oficial de anulação da cidadania dos muçulmanos de Assam. Os progressistas que celebram o cancelamento da conta de Trump buscam uma aliança faustiana com os plutocratas da internet.

Navalny erra apenas ao definir como censura o gesto do Twitter. Censura é, sempre, um ato estatal contra a liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão abrange também o direito de empresas privadas de se dissociar de discursos que consideram intoleráveis. Mas que ninguém se engane: no caso das plataformas globais de mídias sociais, os banimentos seletivos não derivam de padrões éticos mas de cálculos de negócio.

O ato extremo do Twitter, bem como a suspensão temporária imposta a Trump pelo Facebook, inscrevem-se numa estratégia defensiva.

Nos EUA, por razões distintas, as gigantes das mídias sociais entraram na mira de democratas e republicanos. No horizonte, encontra-se a hipótese de fragmentação legal dos oligopólios da internet. O “cancelamento” do presidente que termina seu mandato à sombra da invasão do Capitólio destina-se a lustrar a imagem das big techs perante o novo governo democrata e sua maioria parlamentar.

Um jorro celebratório acompanhou o banimento de Trump —e não só nos EUA. Os progressistas brasileiros não ocultaram suas esperanças de que o cancelamento virtual siga seu curso até Bolsonaro. No fundo, acalenta-se a perspectiva de grande barganha: vocês excluem as vozes odientas da direita nacionalista; nós evitamos a derrubada da muralha que protege o vosso castelo.

O nome da muralha é impunidade, o privilégio que separa as big techs dos veículos tradicionais de imprensa. As empresas jornalísticas estão sujeitas à responsabilização judicial pelos discursos que publicam. Se, nesta coluna, calunio ou difamo alguém, a Folha compartilha a responsabilidade pelo discurso criminoso —e, por isso, um editor supervisiona meu texto. Twitter, Facebook et caterva, pelo contrário, não devem explicação alguma sobre as mensagens difundidas por seus usuários. São, portanto, livres para auferir lucros de campanhas de ódio movidas por governantes, partidos, igrejas ou organizações extremistas. Para eles, o crime compensa.

O privilégio da impunidade ancora-se na alegação de que as empresas de mídias sociais não exercem funções editoriais: suas páginas eletrônicas seriam folhas em branco preenchidas por usuários soberanos. Desde sempre, as regras de uso sinalizaram a falsidade. Há um “editor oculto”, um software, que demarca os limites da palavra permitida. Mas o banimento de Trump escancarou a paisagem. As big techs fazem curadoria de conteúdo, de acordo com critérios políticos de conveniência. No império de Putin, ninguém bloqueia as ameaças à vida de Navalny; nos EUA do triunfo democrata, cancela-se a conta do presidente em desgraça.

Jack Dorsey, do Twitter, e Mark Zuckerberg, do Facebook, os Editores Supremos, deixaram impressões digitais na escrivaninha, na tela, nas paredes e no teto.

É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo-os ao mesmo universo de regras de responsabilidade que regula a imprensa. Ah, isso implodiria o modelo de negócio dos gigolôs da xenofobia e do extremismo? Que pena...

Desconfio, porém, que os progressistas preferem a aliança faustiana. Quem liga para Navalny, os rohingya ou os muçulmanos de Assam? Eles são, afinal, um preço baixo a pagar pela exclusão de Trump e Bolsonaro.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Vale tudo

Pandemias enlouquecem pessoas sãs

O governo Bolsonaro, sabotador profissional de cada uma das medidas restritivas destinadas a conter a pandemia, decidiu subitamente adotar uma iniciativa sanitária extremada que viola o direito fundamental dos brasileiros de regressar ao país. O veículo do crime é a Portaria 648, de 23 de dezembro. Ela exige, de todos os passageiros de voos destinados ao Brasil, a apresentação de teste PCR negativo no embarque.

Assinada pelo ministro André Mendonça, da Justiça, por Eduardo Pazuello, do Ministério da Saúde, e por Antônio Barra Torres, da Anvisa, a portaria é um atestado de analfabetismo funcional. No artigo 7, aparece a exigência ilegal. Contudo, antes, o caput explicita que o documento somente “dispõe sobre a entrada no País de estrangeiros”, uma limitação de abrangência reafirmada no artigo 3, segundo o qual “as restrições de que trata esta Portaria não se aplicam ao brasileiro, nato ou naturalizado”. O que vale, afinal?

Nessas plagas por onde cavalgou Abraham Weintraub, esqueça a lógica interna do texto. “Um manda, e o outro obedece”, ensina o rebaixado general Pazuello, um filósofo da nacionalidade. Assim, na prática, explica o Itamaraty, devem-se ignorar tanto o caput quanto o artigo 3. Vale o artigo 7, que efetivamente desloca o controle imigratório brasileiro da PF para as companhias aéreas, numa modalidade inédita de parceria público-privada. Sem o PCR negativo realizado até 72 horas antes do embarque, brasileiros não retornam — a não ser, claro, a bordo de jatinhos privados, pois a portaria renega o princípio da igualdade perante a lei.

E se, em algum lugar do mundo, não há teste disponível no prazo definido? Ou se o teste dá resultado positivo? Nessas hipóteses, o cidadão terá embarque recusado — e deve reclamar ao bispo do aeroporto.

A portaria infringe o mais básico direito fundamental de nacionalidade, que é voltar à pátria, e desafia a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo 13 assegura a todas as pessoas “o direito de regressar ao seu país”. Bolsonaro trocou “a pátria acima de tudo” por “o vírus acima de todos”. Numa decisão liminar, o sábio ministro Humberto Martins, do STJ, confirmou a validade do vale-tudo, invocando a “saúde pública”. Ele assinaria a portaria, expondo falhas educacionais que se estendem do curso de Direito às aulas de interpretação de texto do ensino médio.

Há muito mais coisas erradas entre nós do que imaginam os indignados com Bolsonaro. Analistas conceituados sustentam que a portaria está correta — menos o caput e o artigo 3. Basicamente, argumentam que a saúde pública, um direito coletivo, sobrepõe-se aos direitos individuais, inclusive os fundamentais. Que tal fuzilar portadores do coronavírus para reduzir os contágios?

Pandemias enlouquecem pessoas sãs. Disseram por aí que, especialmente no caso de um PCR positivo, a proibição de embarque é medida indispensável. A opinião, inspirada por um distraído senso comum, sublima o fato conhecido de que não se solicitam testes nos voos domésticos (que são bastante seguros, pois todos usam máscaras, e o ar das aeronaves é trocado em breves intervalos). Mas, sobretudo, ela justifica a mais cruel violação de direitos: o brasileiro doente terá que buscar tratamento no estrangeiro, esteja onde estiver. O correto, obviamente, seria embarcá-lo, adotando cuidados sanitários especiais, como o remanejamento de outros passageiros.

A imprensa demorou a abordar o assunto — e parece encará-lo como uma distração secundária. O ministro Marco Aurélio Mello reconhece os direitos fundamentais que seu colega do STJ despreza e, portanto, registrou a inconstitucionalidade da portaria infame — mas isso foi numa entrevista, não no plenário do STF.

Nenhuma outra nação ousou negar, por meio de ato legal, o direito de regresso de seus nacionais. Diversos países exigem deles testes no desembarque, às vezes junto com quarentenas. O Brasil, porém, quer ser singular, inimitável. Não contentes com um presidente que provoca aglomerações, fenômeno raro, decidimos vetar o retorno de brasileiros, algo único. O governo é o vírus.


Demétrio Magnoli: Futuro da democracia nos EUA depende do desenlace da guerra pela alma do Partido Republicano

Trump não é um desequilibrado nem armou um golpe de Estado; a tocha que o presidente acendeu continua a queimar

 “Nunca concederemos”, exclamou Trump diante de uma malta de milicianos e supremacistas brancos reunidos no parque da Elipse, chamando-os a “marchar até o Capitólio”. Quase cem anos atrás, Mussolini deflagrou a marcha sobre Roma, mas ele mesmo não marchou, seguindo para o conforto de Milão. O presidente americano imitou a covardia do Duce, encerrando-se na Casa Branca enquanto seus vândalos percorriam a avenida Pensilvânia. A versão original foi uma sedição triunfante; a cópia, uma encenação que fugiu ao controle do mestre.

Cria corvos e eles te arrancarão os olhos —o provérbio espanhol explica a derrota de Trump. Os corvos violaram o roteiro, invadiram o Congresso e interromperam a sessão de certificação da vitória de Biden, alterando os termos da disputa pela hegemonia no Partido Republicano. No fim, lívidos, os principais líderes republicanos —o vice, Mike Pence, e o líder do Senado, Mitch McConnell— abandonaram o presidente e isolaram a camarilha de congressistas engajados na negação da democracia.

Trump não é um desequilibrado nem armou um golpe de Estado. A tocha que acendeu continua a queimar, apesar do fracasso de 6 de janeiro. O presidente sabe, desde novembro, que carece de meios para impedir a posse de Biden. O grito de fraude difundido pelo país destina-se a submeter o Partido Republicano, prendendo-o na jaula do nacionalismo branco. Trump 2024 —a campanha começou e seu estandarte é a restauração dos “direitos dos colonos”.

No teatro parlamentar de 6 de janeiro, o núcleo de congressistas trumpistas contestou a certificação dos resultados dos estados decisivos, exigindo o descarte dos “votos ilegais”. As recontagens e decisões judiciais confirmaram a legalidade de todos os sufrágios. Mas, na linguagem cifrada do Partido de Trump, ilegais são os votos dos negros que inclinaram o pêndulo para o lado de Biden. O programa Trump 2024 é conferir às legislaturas estaduais a prerrogativa de suprimir o direito de voto dos negros.

A Constituição escrita pela nação de colonos atribuiu aos estados o poder de designar seus delegados ao Colégio Eleitoral. No início do século 19, com a expansão da democracia, leis estaduais transferiram ao sufrágio popular a seleção dos representantes. Depois, entre 1865 e 1869, no rescaldo da Guerra Civil, as emendas 13, 14 e 15 delinearam uma “segunda Constituição”, que estendeu aos negros o direito de voto. Contudo, na prática, a densa trama de leis e regulamentos estaduais esculpida para restringir o voto dos negros perdurou mais um século, até a Lei dos Direitos de Voto, de 1965. O trumpismo almeja retroceder os ponteiros do relógio da história em 60 anos, anulando as conquistas do movimento pelos direitos civis.

No rastro da derrota eleitoral, o presidente articulou com republicanos do Senado de Michigan uma tentativa de invalidar, na legislatura estadual, os delegados eleitos ao Colégio Eleitoral. Frustrada no nascedouro, a operação não chegou a provocar julgamento numa Corte Suprema de maioria conservadora, inclinada à interpretação “originalista” da Constituição. Mas a chama da utopia regressiva não se apagou.

No fatídico 6 de janeiro, Trump pretendia reforçar o teatro parlamentar da contestação eleitoral com a encenação de um levante das ruas. “Vocês nunca recuperarão nosso país com fraqueza”: a meta era usar as hordas de arruaceiros para intimidar os congressistas republicanos recalcitrantes, sujeitando-os à vontade do mestre. A invasão do Capitólio —uma derivação lógica mas imprevista da incitação presidencial— produziu efeito inverso, desorganizando a marcação de cena.Partido conservador e democrático ou partido reacionário do nacionalismo branco? Há uma guerra aberta pela alma do Partido Republicano, que durará quatro anos. Do seu desenlace depende o futuro dademocracia americana.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: As sociedades não podem ser reduzidas a curvas de gráficos epidemiológicos

No Brasil, como em tantos países atravessados por fundas desigualdades e severas restrições fiscais, quarentenas esbarram em limites estreitos

No feriado natalino, 20 cidades amotinaram-se contra a determinação estadual que colocou São Paulo na “fase vermelha”.

Simultaneamente, manifestações de comerciantes em Manaus obrigaram o Governo do Amazonas a cancelar o decreto de fechamento dos setores “não essenciais” e, dias antes, em Búzios (RJ), verificaram-se protestos populares contra a decisão judicial de fechar o município aos turistas.

Milhões tomaram o rumo das praias no Réveillon. As quarentenas vergam, aos poucos, sob o peso conjugado da tensão social e da anomia política.

No começo de tudo, delineou-se uma corrente de epidemiologistas que, hipnotizados por modelos estatísticos, preconizaram estritas quarentenas sem fim, até o extermínio do vírus.

Depois, quando desistiram do sonho impossível, alguns deles clamaram por rígidos lockdowns de um mês, garantindo que o congelamento absoluto interromperia a pandemia, uma profecia desmentida pelas experiências práticas de inúmeros países. Hoje, ainda imunes às lições recentes, mas imitados por hordas de “influenciadores digitais” fantasiados de santos, lamentam terem sido ignorados e retomam o antigo discurso.

O Brasil, segundo país com maior número de óbitos contabilizados pela Covid-19, ocupa o 22º lugar na lista da taxa de óbitos, atrás de países como a Itália, a Espanha, o Reino Unido, a França e a Argentina, que fizeram lockdowns radicais. Todos os países ocidentais nos quais o vírus se espraiou antes de março exibem elevadas taxas de mortalidade.

A exceção notável é a Ásia oriental, um mistério cuja explicação talvez se encontre na relativa imunidade conferida por intensos contatos prévios com outros coronavírus. Nada disso exime de culpa o negacionismo místico do governo federal, mas inscreve na moldura correta o impasse atual.

As sociedades não podem ser reduzidas a pontos e curvas de gráficos epidemiológicos. No Brasil, como em tantos países atravessados por fundas desigualdades e severas restrições fiscais, quarentenas esbarram em limites estreitos.

comportamento dos jovens, aqui ou na Europa, só pode ser alterado por períodos relativamente curtos. Jornalistas que apontam o dedo acusador para aglomerações de ambulantes, pancadões da periferia ou praias lotadas fugiram das aulas de sociologia.

A pandemia é o teste de fogo das lideranças políticas. Bolsonaro não é Merkel e nem mesmo Trump, que ao menos deflagrou a corrida pela vacina. Nosso governo apostou no vírus —isto é, na polarização política, na guerra contra moinhos de vento, na sabotagem perene das medidas indispensáveis de restrição sanitária. A ironia é que, dez meses depois, Bolsonaro está vencendo —e não só graças aos efeitos mágicos do cheque emergencial.

Os contágios disseminam-se, principalmente no transporte público, na economia informal, nos bares festivos, em farras de bacanas ou bailes dos pobres. Mas as ferramentas restritivas dos governadores miram outro alvo: o comércio e os serviços formais, que já esgotaram suas reservas econômicas e sua capacidade de resistência.

Para surpresa dos que praticam o esporte do trabalho remoto ou recebem salários do Estado, desata-se um conflito que se esparrama pelas ruas e encurrala os prefeitos. Sua implicação epidemiológica é a desmoralização das quarentenas e seu fruto político é a conversão dos setores da população mais afetados em neobolsonaristas. O fim do auxílio emergencial tende a acelerar a dupla crise.

Na Europa, onde a pandemia foi enfrentada por um sólido consenso político, a parede das quarentenas começa a fissurar. No Brasil, que elegeu Bolsonaro, ela desaba em câmera lenta. Inexistem soluções simples para o impasse, mas o ponto de partida é reconhecer sua natureza, que não é epidemiológica.

A vacinação em massa tardará. Os governadores que negam o negacionismo precisam formular novas estratégias.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Que vontade de nascer americano

Pela direita, mas também pela esquerda, a linguagem política brasileira mimetiza os temas, os argumentos e até os escândalos teatralizados da ‘guerra cultural’ que consome os EUA

 ‘Disseram que eu voltei americanizada, que não suporto mais o breque do pandeiro e fico arrepiada ouvindo uma cuíca’. A Carmen Miranda “americanizada” de 1940, baiana caricatural da Broadway, não é nada perto do Brasil de 2020. Pela direita, mas também pela esquerda, a linguagem política brasileira mimetiza os temas, os argumentos e até os escândalos teatralizados da “guerra cultural” que consome os EUA.

O culto bolsonarista é uma religião de contrabando. Nos EUA, a ala reacionária do Partido Republicano definiu-se pela tríade “God, guns, gays”. Por aqui, uma extrema-direita sem tradição macaqueia a missa americana, organizando-se ao redor de bispos de negócios, difundindo a homofobia e erguendo a bandeira do “armamento do povo”. No rastro do plágio, o Partido Militar — isto é, os generais do Planalto, rendidos a um capitão arruaceiro — rasga as cartilhas antigas que ensinavam as lições da ordem, do planejamento, da hierarquia e da autoridade.

A direita voltou americanizada: não suporta mais a geometria do progresso de Benjamin Constant ou o sonho integrador de Cândido Rondon. Seus arautos marcham à sombra das bandeiras entrelaçadas dos EUA e de Israel, recitam os versos do America First e, hipnotizados por um guru místico, anunciam a batalha final contra os demônios gêmeos do “globalismo” e do “comunismo”. Eles inscreveram na pedra o ideal de um Brasil isolado, o “pária orgulhoso” de Ernesto Araújo, um missionário da Internacional Cristã, essa relíquia achada entre os destroços da Santa Aliança.

“Drill, baby, drill!” Sob a égide do negacionismo climático, a direita brasileira traduz o lema dos fanáticos perfuradores de poços americanos tocando fogo nas florestas da Amazônia e no Pantanal. O bolsonarismo fala uma língua estranha que pensa ser inglês.

 “Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu lês negro onde eu leio branco” (William Blake). A esquerda engajou-se no contrabando antes ainda da direita. Das universidades americanas, em contêineres lacrados, trouxe as políticas identitárias, a teoria racial crítica, a crença fundamental de que nosso gênero e a cor de nossa pele determinam implacavelmente nossas existências, ideias, conceitos e preconceitos.

Queima o que adoraste, adora o que queimaste. A esquerda reinventada, falsa baiana, renunciou às oposições tradicionais e instaurou novos contrapontos, que são essenciais e, portanto, imutáveis. No lugar de povo/elite ou proletariado/burguesia, entronizou as dicotomias mulher versus homem, homo versus hetero, preto versus branco. Daí, desistiu do horizonte da igualdade, substituindo-o pela reiteração perene da diferença. Escola pública de qualidade? Não: cotas raciais. Reforma das polícias? Não: reservas de gênero e raça no Congresso.

A esquerda brasileira já foi anarquista, modernista, cosmopolita, comunista, tropicalista e sindicalista — mas, em cada uma de suas encarnações, conservou-se fiel à convicção de que existe uma nação única, cozida no forno do passado. Não mais. #MeToo, #BlackLivesMatter: nossa esquerda vive a história dos outros e já nem sabe mais falar português.

É um duplo divórcio da realidade brasileira. A extrema-direita enxerga, em meio a brumas, uma nação sem leis ou instituições, habitada por colonos armados e pregadores puritanos agarrados a cruzes: os EUA imaginários do faroeste. A esquerda, por sua vez, confunde seu país com um outro: os EUA das Leis Jim Crow, da segregação legalizada, do censo que classifica as pessoas em categorias raciais estanques.

Nas franjas, a imitação rompe os últimos diques. Surge, pela primeira vez, um movimento antivacinal no Brasil. Mais realistas que o rei — e em contraste com o próprio Trump, herói maior —, seus militantes copiam o individualismo anárquico dos libertários da extrema-direita americana. Simetricamente, pela esquerda, o “colorismo” ultrarracialista exige a troca de “negros” por “pretos”, e os mensageiros radicais das políticas identitárias adicionam letrinhas misteriosas à sigla LGBT para instituir “lugares de fala” cada vez mais exclusivistas.

Viva Carmen Miranda. Feliz 2021.


Demétrio Magnoli: O sermão nosso de cada dia

Jornais descobriram atalho de confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no seu público-alvo

Reza a sabedoria convencional que o advento das redes sociais provocou a crise existencial da imprensa em curso. O fenômeno é mais complexo: a crise deve-se, essencialmente, à resposta adaptativa escolhida pelo jornalismo profissional ao desafio posto pelas redes.

Diante da perda dramática de receitas publicitárias, os jornais engajaram-se na fidelização de leitores ou espectadores. Na batalha de vida ou morte, descobriram um atalho: falar, preferencialmente, para um segmento da sociedade definido por certas visões de mundo. Ou, dito de modo diferente, confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no público-alvo.

Os veículos de imprensa entregaram-se a alinhamentos ideológicos cada vez mais nítidos. Nos EUA, exemplo icônico, as redes CNN e MSNBC tornaram-se porta-vozes informais das correntes mais liberais (ou seja, à esquerda) do Partido Democrata, enquanto a Fox firmou-se como arauto da ala reacionária do Partido Republicano. A última cresceu numa estridente oposição a Obama. As duas primeiras, assim como o New York Times, obtiveram retumbante sucesso comercial com a denúncia inclemente de Trump. Hoje, sem o “diabo laranja”, indagam-se sobre o rumo a seguir.

O atalho conduz a uma armadilha fatal. As pautas, os enfoques e a linguagem do jornalismo profissional tendem a se submeter à lógica discursiva das redes sociais. A Folha, que renasceu nos anos 80 com sua adesão ao movimento das Diretas Já!, uma posição editorial justificada pelo imperativo de reconquista da liberdade de imprensa, decidira não tomar parte em novas campanhas políticas, já que o sistema democrático garante a pluralidade de opiniões. Agora, porém, patrocina a campanha “#Use amarelo pela democracia”, uma bandeira anti-bolsonarista de forte apelo no seu leitorado que equivale a desistir de conversar com todos os brasileiros.

“Um bom jornal é uma nação dialogando consigo mesma” (Arthur Miller). A renúncia a esse ideal tem amplas consequências jornalísticas, como indicam as críticas da jornalista Bari Weiss, que se demitiu do NYT.

Espelho, espelho meu. As redes sociais alimentam seus seguidores com o discurso que eles querem ouvir. O jornal capturado por um nicho selecionado de leitores procede quase da mesma forma. “Toda pressão empurra para publicar mais um artigo sobre como Trump é um monstro ou um palhaço”, constata Weiss. Ela não gosta Trump, mas rejeita o tribalismo político dos dois lados: “Cada vez mais, o NYT e outros veículos mostram uma pequena faixa do país, um mundo como os editores ou os leitores gostariam que fosse”.

A pluralidade ideológica dos colunistas de opinião, item no qual a Folha dá um banho no NYT, não soluciona o problema. A ferida situa-se no núcleo do fazer jornalístico, não em editoriais apropriadamente duros (mas evitando a pulsão panfletária expressa em frases como “estupidez assassina de Bolsonaro”), ou na indispensável denúncia das torrentes de fake news. O ponto crucial é que o universo da notícia sofre uma compressão e uma amputação.

O jornal que pronuncia sermões imita a linguagem do pregador ou do militante —e, nesse passo, inclina-se a conceder a eles um palanque desproporcional à influência que exercem. As pautas identitárias extremas saltam da periferia do debate público —isto é, de obscuros refúgios acadêmicos— para o centro do palco. A reportagem sujeita a trama factual a uma mensagem apriorística. O comício deles contagia, infecta, espalha o vírus; a nossa manifestação de protesto purifica, liberta.

Sermão é um ato religioso: uma cisão entre “nós” e “eles”. O jornal que só conversa com os seus inscreve-se na moldura da intolerância discursiva, potencializando as engrenagens de polarização das redes sociais. Mesmo quando fala sem parar de amor, saúde, igualdade, solidariedade, justiça e inclusão.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Bolsonaro usa versão vulgarizada de Lênin para praticar nacionalismo de extrema direita

Os 'liberais bolsonaristas', essa curiosa irmandade de falsários, precisam substituir seus manuais de cabeceira

 “Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo”, publicado em 1917, inaugurou o chamado marxismo-leninismo. Marx enxergava a luta de classes como motor da história. No seu livro, Lênin flexionou o conceito, introduzindo a ideia de que as burguesias das nações industriais exploravam não só o próprio proletariado mas, ainda, os “países atrasados” coloniais e semicoloniais.

Bolsonaro não deve ter lido nem Marx nem Lênin, mas utiliza uma versão vulgarizada do segundo para praticar seu nacionalismo de extrema direita.

Segundo Lênin, no “estágio supremo” do capitalismo, as burguesias imperialistas deflagrariam guerras incessantes pela partilha de esferas de influência, abrindo caminho à revolução mundial. Os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, fundaram a Terceira Internacional e mobilizaram a teoria leninista para definir a linha dos partidos comunistas nos “países atrasados”.

Neles, os comunistas deveriam forjar “frentes nacionais” —ou seja, alianças anti-imperialistas com as elites locais. Nascia, no pensamento de esquerda, o argumento de legitimação de regimes autoritários apoiados na bengala retórica do nacionalismo.

Pretexto perfeito. Os regimes autoritários pós-coloniais na África culparam as potências coloniais do passado e os imperialistas do presente por seus fracassos. Fidel Castro alegou que as carências cubanas derivavam da sabotagem imperialista dos EUA.

A ditadura de Suharto na Indonésia exigiu fidelidade à Pancasila, uma “filosofia oficial” destinada a preservar a nação das “influências ocidentais” (o liberalismo e o comunismo).

Os militares argentinos deflagraram a Guerra das Malvinas, contra os britânicos, invocando o anti-imperialismo. A China acusa o imperialismo de atentar contra sua soberania sempre que confrontada com denúncias de violações das leis de Hong Kong ou dos direitos humanos dos muçulmanos do Xinjiang.

Imperialismo: Bolsonaro redescobriu o artefato que cansou de utilizar no passado, quando acusava potências estrangeiras de pretenderem “roubar nosso nióbio”. O velho imperialismo volta ao centro do palco, apenas rebatizado como “globalismo”.

Na sua mórbida campanha anti-imunização, Bolsonaro fez mais que declarar as intenções de não tomar a vacina e de submeter os brasileiros a um (ilegal) termo individual de responsabilidade. Em outubro, o presidente ensaiou exigir que, antes de ser usada no Brasil, uma “vacina estrangeira” fosse “aplicada em massa no seu país de origem”.

Depois, na reunião dos Brics, declarou que “o Brasil busca uma vacina própria” —isto é, nacional e soberana. Na prática, seu Ministério da Saúde corre, atrasado, para importar agulhas e seringas.

Junto com o nacionalista grão-russo Putin e o nacionalista de esquerda López Obrador, do México, Bolsonaro ocupou os últimos lugares na fila do reconhecimento da vitória do “globalista” Biden —mas ainda adiantou-se a Kim Jong-un. Destacou-se dos colegas, porém, ao dar um passo à frente para tornar-se o único governante do mundo que reproduziu as sentenças de Trump sobre uma fictícia fraude eleitoral nos EUA.

Biden prometeu cobrar os compromissos do Brasil com o Acordo de Paris e a preservação ambiental. Bolsonaro retrucou batendo os tambores da “soberania nacional”, um ritmo praticado há décadas pelo nacionalismo militar. Acrescentou, numa imitação das bravatas de Saddam Hussein, a ameaça de trocar a “saliva” da diplomacia pela “pólvora” de batalhões dispostos a invadir Washington.

A Faria Lima jamais será a mesma. Os “liberais bolsonaristas”, essa curiosa irmandade de falsários, precisam substituir seus manuais de cabeceira. Na canoa bolsonarista, Paulo Guedes deve trocar Hayek e Friedman por Lênin. Ou, para facilitar, em diapasão mais nacional e popular, por Jones Manoel, o queridinho de Caetano Veloso e da esquerda neostalinista brasileira.


Demétrio Magnoli: 2 + 2 = 5

A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva

A pandemia “é uma coisa política”. A Covid-19 “não é tão grave”. As UTIs “não correm risco de colapso”. As quarentenas “destinam-se a quebrar a economia”. Você, como eu, ouve teorias da conspiração desse tipo quase todos os dias. São bolsonaristas? Sim, mas não apenas. Ignorantes? Claro, mas também indivíduos com diplomas universitários — e de instituições prestigiosas. Não se (auto)engane: uma cisão cognitiva profunda atravessa a sociedade.

A extrema-direita não monopoliza as teorias da conspiração. O governo dos EUA sabia de antemão sobre os atentados do 11 de setembro (e talvez até tenha sido responsável por eles). Os EUA deflagraram a guerra na Síria para fortalecer Israel. Os judeus, donos do dinheiro, controlam Wall Street e dirigem a política americana no Oriente Médio. Sergio Moro perseguiu Lula, pois é agente do FBI ou do Departamento de Justiça dos EUA. 2 + 2 = 5: em certas circunstâncias, a esquerda compartilha a paixão pelo pensamento mágico.

A aprovação de Bolsonaro cresceu ao longo da pandemia — e não só entre beneficiários do auxílio emergencial. Na crise sanitária, dois Brasis separaram-se um pouco mais. Numa ponta, situa-se a população que circula na economia digitalizada e no funcionalismo público: os que conservaram seus empregos e salários durante as quarentenas. Na outra, a população presa à economia analógica ou presencial: os que enfrentam o desemprego, a perda de renda, a falência de negócios, a dissolução de patrimônios. Esqueça a conversa condescendente de que “estamos no mesmo barco”. Tente enxergar a paisagem do ângulo desses últimos.

Os “progressistas”, acampados na economia digitalizada, selecionaram seus especialistas. Os mais aclamados, arautos de uma epidemiologia fundamentalista, projetaram milhões de óbitos no Brasil, mesmo sob nossas precárias quarentenas. Nessa linha, exercitando o pensamento mágico, exigiram rígidos lockdowns de duração ilimitada. Como essa exposição do mais cru elitismo foi interpretada do lado de lá, entre trabalhadores “essenciais” de transportes e supermercados, donos de pequenos negócios comerciais, entregadores de aplicativos, ambulantes, empregadas domésticas?

A oferta de intelectuais e acadêmicos é elástica: todas as correntes políticas têm um estoque deles. Surgiram, previsivelmente, os especialistas do negacionismo. Primeiro, eles definiram a Covid como “gripezinha”. Depois, engajaram-se na “guerra da cloroquina” e na denúncia da “vacina chinesa”. No trajeto, apoiando-se nos dramáticos exageros e nas óbvias manipulações dos especialistas aclamados, engajaram-se nas suas próprias manipulações estatísticas, exibindo gráficos que comprovariam um absoluto fracasso de todas as quarentenas. A “ciência” — isto é, um discurso cifrado acompanhado por números —também pode ser posta a serviço de teorias da conspiração. Você tem uma “prova científica”? Ok, eles também: 2 + 2 = 5.

Teorias da conspiração sempre existiram, ainda que se espalhem mais rápido na era das redes virtuais. A demanda por elas vem de baixo, especialmente em tempos de crise, como resposta a difusas angústias sociais. Seu sucesso reflete a fragilidade dos laços de confiança que conectam a massa da população à “elite pensante”. A verdadeira novidade, fonte da força inédita que adquiriram, está no papel desempenhado pelas lideranças políticas da direita populista. Quando, como fazem Trump e Bolsonaro, o chefe de Estado torna-se porta-voz da irracionalidade, rompe-se a barreira psicológica da vergonha, coagulam-se crenças insanas e cada um ganha o direito de proclamá-las em público sem medo da censura alheia.

A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva. A “elite pensante” não se interroga sobre as raízes da difusão popular de teorias da conspiração. Prefere a via fácil: dialoga exclusivamente com seus pares, repete incansavelmente suas próprias verdades e, nariz cada vez mais empinado, exibindo superioridade moral, faz troça dos “ignorantes”. Não entendeu o óbvio: rindo deles, você reforça as crenças que imagina combater. 2 + 2 = 5.


Demétrio Magnoli: O Doria da vacina contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público

Suspeito que, em 2022, todas as versões do governador marcharão juntas, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo

"Os dois fazem política com a vacina" —no rastro do bate-boca entre João Doria e Eduardo Pazuello, sobraram analistas dispostos a colocar um sinal de equivalência entre o governador paulista e Jair Bolsonaro. A pretensa identidade sustenta-se na ideia de que a política é um domínio tóxico —e no corolário segundo o qual, quando se trata de uma pandemia, deve ser substituída pela pura razão científica.

Nenhuma nação enfrentou a pandemia sem apelar à razão política, pelo simples motivo de que existem argumentações científicas capazes de justificar diversas abordagens (embora nem todas: cloroquina não vale!). A Itália aplicou rígidos "lockdowns". A Alemanha, quarentenas moderadasA Suécia, suaves restrições sanitárias. Nos três casos, especialistas conceituados divergiram entre si e os governos adotaram as decisões finais, guiadas pela política. No caso da vacina, Doria faz a boa política, norteada pelo interesse público mais vital —e, se isso o beneficia politicamente, melhor para ele.

O lance magistral foi a divulgação antecipada do cronograma de vacinação paulista. O xeque ao rei obrigou o governo Bolsonaro a mover suas peças.

O governo federal apostou tudo numa única vacina, a de Oxford/AstraZeneca, cujos testes sofreram atraso. Ignorando a Coronavac, que mantém contrato com o Butantan, Pazuello anunciara o início da imunização para as calendas de abril. De repente, açoitado por Doria, o ministro da Doença girou 180 graus, negociando a compra de estoques da vacina Pfizer/BioNTech, algo que antes descartara. Mais: no compasso do pânico, antecipou o começo da vacinação para "dezembro ou janeiro", um compromisso que dificilmente poderá honrar.

O plano original de Brasília era usar a Anvisa para postergar a aprovação do imunizante que o presidente rotula como "vacina chinesa" até depois da inoculação das primeiras doses da "vacina federal". Tratava-se de sacrificar deliberadamente as vidas de milhares de brasileiros no altar da febre ideológica bolsonarista e dos cálculos eleitorais de Bolsonaro. Doria frustrou a ofensiva da infantaria presidencial contra a saúde pública.

A guerra prossegue, em novos teatros. O contra-almirante Barra Torres, chefe da Anvisa, um soldado raso tão obediente quanto o submisso general Pazuello, ameaça enrolar a avaliação da Coronavac por infinitos 60 dias, que valem (na cotação atual) cerca de 39 mil óbitos. Mas, sob pressão da opinião pública e da peregrinação de estados e municípios às portas do Butantan, é provável que o Congresso ou o STF dispersem a caravana da irracionalidade, impondo a vacinação geral.

O Doria da vacina, que emerge vitorioso do bom combate, contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público.

O primeiro é o governador que propiciou o fechamento eterno das escolas paulistas. Pelo mundo afora, em nações ricas e pobres, estudos avalizados pela OMS comprovam que escolas não são focos significativos de contágios. O prolongado cancelamento das aulas presenciais cobra preço devastador das crianças pobres e de seus pais. Mas, curvado à resistência corporativa dos professores e ao compreensível temor de famílias assustadas, Doria virou as costas à ciência na qual proclama se inspirar.

O segundo é o governador que cumpre a promessa eleitoral de proteger uma polícia treinada no esporte de "atirar para matar". A letalidade policial em São Paulo bate recordes históricos, vitimando centenas de jovens nas periferias —sem, obviamente, arranhar os negócios do PCC. O Doria da vacina, que é o da vida, convive pacificamente com o Doria da morte, um político semibolsonarista pronto a surfar a onda da barbárie.

Qual Doria se apresentará como alternativa a Bolsonaro em 2022? Suspeito —e espero estar errado— que todos eles marcharão juntos, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.