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Demétrio Magnoli: Duas lendas sobre 2022

As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo deste ano

Nasceram, no berço do segundo turno das eleições municipais, duas lendas paralelas. A primeira assegura que o triunfo de Bruno Covas (PSDB) consolida a posição de João Doria como principal desafiante de Jair Bolsonaro na disputa pelo Planalto. A segunda, que o resultado de Guilherme Boulos (PSOL) o converte no eixo de reorganização das esquerdas para as eleições presidenciais. Nenhuma delas resiste ao crivo da análise realista.

A lenda número um parte das falsas premissas de que Covas obteve uma vitória avassaladora e, ainda, de que Doria cumpriu papel relevante na batalha da prefeitura paulistana. De fato, o prefeito alcançou apenas 32% dos votos no turno inicial, um desempenho relativamente modesto, e teve que carregar o fardo do patrocínio de um governador com alta rejeição na capital paulista. Já no turno final, o triunfo por margem folgada deveu-se à geometria da disputa: desde 2015, quando escancarou-se o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, a esquerda perdeu as condições de vencer eleições na cidade ou no estado de São Paulo.

Doria desponta como rival nacional do presidente graças, exclusivamente, à atual carência de alternativas fora do campo da esquerda. Essa carência, por sua vez, deriva tanto da implosão ideológica do PSDB, concluída com a própria ascensão de Doria, quanto do retumbante fracasso de Sergio Moro na sua tentativa de conquistar para o Partido da Lava Jato a maior parte do eleitorado bolsonarista.

As fraquezas do governador paulista são evidentes. Bolsonaro venceu uma eleição configurada como plebiscito sobre Lula. Doria chegou à prefeitura e ao governo estadual surfando alegremente a mesma onda do antipetismo. O ano de 2022 será, ao que tudo indica, também um pleito plebiscitário —mas sobre Bolsonaro. Não é fácil ver como Doria encarnaria um contraponto crível ao seu parceiro do passado recente. Um bolsonarismo de butique, suave e racional, parece um frágil contraponto ao bolsonarismo legítimo, forjado nas brasas do extremismo e do populismo.

A lenda número dois expressa, ao menos por enquanto, apenas o desejo de Boulos. De fato, sustenta-se numa avaliação exagerada do desempenho eleitoral do candidato do PSOL.

Boulos fez uma campanha inteligente, destinada a arredondar os ângulos agudos de sua persona política. Mas, no fim das contas, foi conduzido pela correnteza de vazante que acompanha o declínio petista. O Boulos dos 20% do primeiro turno herdou o vasto eleitorado de esquerda tradicionalmente atraído pelo PT. Já o dos 40% do segundo turno acrescentou o eleitorado que rejeita Covas, Doria ou ambos. Desse ponto de vista, sua votação surpreende tanto quanto o nascer cotidiano do sol.

O PT chegou ao turno final de todas as eleições paulistanas desde 1988. O solitário ponto fora da curva foi 2016. Boulos foi adotado por um eleitorado petista decepcionado com a candidatura do obscuro apparatchik Jilmar Tatto como o legítimo nome do partido. Isso faz sentido, mas não tem as implicações sonhadas por ele.

A versão de Boulos da ideia de renovação da esquerda é o retorno a um lulismo primordial, anterior ao pecado —isto é, ao mensalão e à Odebrecht. Seu projeto nunca foi de ruptura: ele almeja receber das mãos de Lula as chaves do castelo da esquerda. Mas, para isso, seria preciso brilhar fora do PT, num palco limpo, puro e casto. No início, apostou na criação de um partido-movimento, como foi o Podemos espanhol. Depois, conformou-se com o atalho oferecido pelo PSOL.

A solução não remove os obstáculos centrais. Numa ponta, Boulos depende de um improvável gesto de renúncia de Lula para tomar posse da máquina eleitoral petista. Na outra, sua promessa de unidade das esquerdas esbarra na sua opção pela reiteração infinita do discurso político e econômico lulista.

As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo de 2020.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: A eleição que não terminou

Partido Republicano corre o risco de ser reduzido a movimento de contestação do sistema democrático

‘Nós precisamos considerar o antigo vice-presidente como presidente eleito. Joe Biden é o presidente eleito.” A declaração do governador de Ohio, o republicano Mike DeWine, riscou o céu de Washington uma semana depois que a apuração dos votos da Pensilvânia concluiu a disputa pela Casa Branca. O óbvio caiu quase como uma bomba nas hostes republicanas, ainda congeladas pelo negacionismo eleitoral de Donald Trump. A eleição americana não terminou: ela prossegue sob a forma de um conflito existencial no interior do Partido Republicano.

Trump assentou sua estratégia pós-eleitoral em três pilares. O primeiro: a alegação de que o candidato democrata fraudou a vontade popular. O segundo: o Partido Republicano, submetido a sua liderança incontestável, rejeitará de modo monolítico qualquer diálogo com o governo do suposto usurpador. O terceiro: o partido funcionará, desde já, sob o signo de sua candidatura presidencial de 2024.

Trump começa a erguer o Comitê de Ação Política “Save America” (Salvar os EUA), destinado a operar como direção efetiva do Partido Republicano. Simultaneamente, prepara-se para criar uma nova rede de TV, concebida como veículo pessoal e alternativa à direita da Fox News. O projeto trumpiano é subordinar as bancadas republicanas na Câmara e no Senado a suas conveniências, transformando-as em máquinas de sabotagem permanente do governo Biden.

Os tribunais derrubarão, uma a uma, as alegações vazias de fraude de Trump. Biden será, certamente, empossado em 20 de janeiro. Mas Trump planeja jamais reconhecer a legitimidade do novo presidente, esticando até o limite a corda que prende os EUA ao mastro da democracia representativa. Se os republicanos o acompanharem nessa aventura, reduzirão o partido à condição de movimento nacional-populista de contestação do sistema democrático.

A ascensão da direita nacionalista produziu dois tipos de deslocamento nos sistemas político-partidários ocidentais. Países como França, Itália, Alemanha e Espanha experimentaram o declínio de partidos moderados tradicionais e a emergência de um grande partido de direita. Nos EUA, porém, assim como no Reino Unido, o deslocamento ideológico realizou-se no interior de um dos dois partidos históricos, que foi capturado pelo nacionalismo.

No caso do Partido Conservador britânico, verificou-se uma captura parcial, impulsionada pela rejeição à União Europeia e pelo plebiscito do Brexit. Já o Partido Republicano dos EUA conheceu uma cisão mais profunda com seu passado.

O governo de Boris Johnson flerta com a xenofobia e com o nacionalismo, mas não contesta os fundamentos da democracia parlamentar ou os valores básicos do Ocidente. O governo Trump, por outro lado, operou no plano internacional como parceiro de regimes autoritários (Putin, Erdogan, Orbán) e, no plano nacional, como motor de restauração da “nação de colonos brancos”. Nesse passo, os republicanos assumiram as feições de partido da reação.

A resistência republicana a Trump percorreu a campanha presidencial pela voz do Projeto Lincoln, uma dissidência do partido que fez campanha aberta por Biden. O presidente eleito recebeu mensagens de congratulação da velha guarda republicana, representada por figuras como o ex-presidente George W. Bush, o ex-candidato presidencial Bob Dole e o atual senador e também ex-candidato Mitt Romney. Contudo, fora eles e um punhado de parlamentares, o partido segue mais ou menos alinhado ao negacionismo eleitoral trumpiano. É por isso que a declaração do governador de Ohio tem especial relevância.

A encruzilhada diante da qual se encontra o Partido Republicano interessa ao mundo inteiro. Se os republicanos se ossificarem como partido antidemocrático controlado por Trump, será comprometida a estabilidade política da maior potência mundial e se acelerará a tendência ao declínio internacional dos EUA. Se, pelo contrário, a maioria cindir com Trump, restabelecendo a tradição moderada republicana, a nação americana voltará a conversar, e os movimentos populistas de direita, na Europa e no Brasil, sofrerão um golpe devastador. Olho nos EUA.


Demétrio Magnoli: Regra de ouro 'um eleitor, um voto' é estranha à democracia dos EUA

Adotar a fórmula clássica exigiria uma refundação tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil

Caos. Na noite fatídica, 3N, apurações congelaram à espera da contagem de votos enviados por correio em estados decisivos, enquanto Trump declarava vitória na guerra ainda incerta. República de bananas: o presidente contestava a apuração de milhões dessas cédulas, sugerindo a declaração de um vencedor antes da contagem de todos os votos.

Aritmética ocultista. Calculava-se, alta madrugada, as probabilidades de empate, dependentes da repartição dos delegados nos dissidentes Maine e em Nebraska, que fogem à regra do “vencedor leva tudo”. Mais uma vez, como há 20 anos, o sufrágio desviava-se rumo à tortuosa estrada vicinal dos tribunais. E, novamente, como em 2000 e 2016, erguia-se o espectro da cisão entre o voto popular e o Colégio Eleitoral.

Um eleitor, um voto. A regra de ouro das democracias é estranha à democracia americana. No seu lugar, inventou-se a regra do sufrágio estadual ponderado pelo sistema do Colégio Eleitoral. O republicano George W. Bush triunfou, em 2000, por 271 a 266, mesmo perdendo por meio milhão de votos. Trump venceu, em 2016, por 304 a 227, perdendo por quase três milhões de votos.

História. Os EUA nasceram, em 1776, como uma confederação das antigas colônias britânicas, transformando-se na atual federação com a Constituição de 1787. Os federalistas articularam um pacto entre as elites estaduais que assegurava a cada uma delas as autonomias de tributar, impor taxas alfandegárias e conservar o trabalho escravo. O artigo 2º da Constituição estabeleceu o Colégio Eleitoral, concedendo às assembleias estaduais a prerrogativa de escolher os delegados que elegem o presidente.

Nas décadas seguintes, universalizou-se a prática de selecionar os delegados pelo voto popular estadual e, em 1836, generalizou-se a regra do “vencedor leva tudo”.

Filosofia. A democracia é a vontade da maioria? Mais ou menos: democracia é a vontade majoritária temperada por instituições que protegem valores perenes e os direitos da minoria. O Colégio Eleitoral foi justificado como vacina contra o populismo, a tirania da maioria. O argumento corre paralelo ao outro, anacrônico e cada vez menos invocado, da preservação da autonomia estadual e das liberdades dos estados menos populosos. Há, porém, democracia quando o voto nacional majoritário pode ser ignorado seguidamente?

Reforma. Há duas décadas, desde o trauma da Flórida, crescem os clamores pela eliminação do Colégio Eleitoral. Um eleitor, um voto —a fórmula clássica exigiria uma refundação constitucional dos EUA tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil, entre 1865 e 1869, com as três emendas que aboliram a escravatura, definiram a cidadania e proclamaram o direito universal de voto. Um caminho alternativo, proposto por diversos estados, é a reforma do próprio Colégio Eleitoral pelo estabelecimento da distribuição proporcional de delegados. A via reformista seria uma ruptura com a tradição, mas cabe na moldura da Constituição.

Reforma impossível. A substituição da regra do “vencedor leva tudo” pela proporcionalidade converteria o Colégio Eleitoral num espelho levemente distorcido do voto popular. As mudanças demográficas dos EUA impulsionadas pela expansão das grandes cidades e pelo crescimento relativo da minoria latina tendem a inclinar fortemente o voto popular para o lado dos democratas. Nesse cenário, é difícil imaginar a possibilidade de triunfos republicanos num hipotético Colégio Eleitoral proporcional. Os estados republicanos não renunciarão à tradição de quase dois séculos.

Guerra civil. Os EUA têm apenas dois partidos que contam. O voto popular direto ou um simulacro dele, pelo Colégio Eleitoral proporcional, significariam a virtual eliminação da perspectiva de poder de um deles. Partido único? A nação desceria o abismo de uma nova guerra civil antes disso.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Em defesa da Liberdade e Luta

Movimento não se distinguia pelas festas mais divertidas, mas porque seu 'Abaixo a ditadura' tinha validade universal

“Libelu – Abaixo a Ditadura”, de Diógenes Muniz, venceu o festival É Tudo Verdade. Eduardo Escorel, numa crítica aguda, disse que o documentário não é sobre Liberdade e Luta ou sobre a ditadura militar, mas sobre um grupo de sexagenários que revisitam, melancolicamente, sua juventude. Meia verdade: são dois filmes em um.

Há, no filme explícito, uma história dos anos quentes de 1975-79, cujo apogeu foi 1977, quando o movimento estudantil golpeou duramente o regime militar, preparando o tiro fatal desferido pelas greves do ABC lideradas por Lula. Esse documentário ficará, como narrativa envolvente de um período tão decisivo quanto pouco estudado.

Já o filme oculto, cujo argumento foi desvendado por Escorel, perecerá logo, vitimado pelo vírus da irrelevância. Contudo, circunstancialmente, ele ensina algo sobre a atual esquerda brasileira.

“A minha é uma geração derrotada, pois não conseguimos mudar o Brasil”, lamenta Eugênio Bucci, um dos “libelus” entrevistados. A réplica lúcida aparece na sequência, pela voz de Josimar Melo: “Conquistamos a democracia”. O tom geral melancólico deriva da pouca importância atribuída a essa conquista por vários dos ex-militantes.

Também dei meu depoimento, concentrando-me no roteiro do filme explícito. Porém, indagado, não escondi que minha saída da Libelu (ou melhor, da organização trotskista que a impulsionava) refletiu uma ruptura intelectual com o marxismo —isto é, com a ideia de que um partido singular possui o monopólio da verdade histórica. Nos depoimentos, diversos dos antigos “libelus” definiram-se como, até hoje, “de esquerda” —e um ou outro aplicou-me o rótulo de “direitista”.

É um tanto engraçado —e só interessa como sintoma. Mensurados sob parâmetros europeus, meus valores me situariam na centro-esquerda. Por isso, a rotulação ajuda, mesmo que subsidiariamente, a decifrar a fragilidade ideológica da oposição de esquerda a Bolsonaro.

Muitos dos “libelus” que falaram à câmera tornaram-se lulistas, inclusive os ainda militantes da corrente trotskista do PT. Do ponto de vista dos lulistas, só existem “esquerda” (eles mesmos e seus “companheiros de viagem”) e “direita” (todos os demais). A extrema direita raciocina do mesmo modo, só que pelo avesso: se você não é bolsonarista, então é “comunista”. A linguagem binária compartilhada tem a finalidade de identificar o inimigo, convertendo a política em guerra.

“Abaixo a ditadura” —a palavra de ordem relançada em 1977 pela Liberdade e Luta convenceu-me a entrar na organização trotskista. Mas não só ela. Junto, atraiu-me a repulsa dos trotskistas da época a qualquer ditadura, de direita ou esquerda. Pedíamos, por exemplo, a libertação de dissidentes presos por regimes comunistas atrás da Cortina de Ferro, na Polônia e na Tchecoslováquia, uma informação que não aparece no documentário. Afastei-me quando, após as greves operárias, a “nossa” ditadura cambaleava. No fundo, suspeito que muitos de nós militávamos, de fato, pela democracia, não pela miragem da revolução socialista.

Os ex-“libelus” repaginados como lulistas regrediram à posição das correntes de inspiração castrista que concorriam pela liderança do movimento estudantil daqueles tempos. Hoje, denunciam o autoritarismo “de direita”, mas calam-se —ou, pior, até aplaudem— o autoritarismo “de esquerda”. Sua indignação diante dos saudosistas do AI-5 contrasta com sua simpatia pelos regimes cubano e venezuelano. A melancolia que invade o filme reflete essa ruptura crucial com as convicções verdadeiramente fundamentais dos anos de juventude.

Liberdade e Luta não se distinguia, no movimento estudantil, por promover as festas mais divertidas, mas porque seu “Abaixo a ditadura” tinha validade universal. Nisso, ela estava coberta de razão, tanto no plano político como na esfera moral. Viva os “libelus”.​

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Geração abandonada pela escola será testemunho histórico da crise do coronavírus

As meninas e meninos abandonados pela escola entregarão comida por aplicativo na próxima emergência sanitária

"As aulas recomeçaram porque deixamos a pele, o estômago e os olhos em cada medida que cada instituto adotou, por sua conta e risco, com dinheiro do próprio bolso e hora extra." A diretora de um colégio público de Sevilha (Espanha), que preferiu permanecer anônima, falou com orgulho —e, como tantos educadores entrevistados pelo jornal El País, proferiu saraivadas de críticas aos governos nacional e regional. Mas ela e seus colegas enfrentaram o medo para evitar o nascimento de uma Geração Covid.

O Brasil, pelo contrário, certamente terá uma Geração Covid —isto é, milhões de crianças e adolescentes que carregarão, pela vida afora, o fardo de um ano sem escola. Segundo os indícios disponíveis, quase 30% deles não voltarão jamais à sala de aula. São, em geral, estudantes do ensino médio perdidos para sempre. Muitos outros sofrerão rupturas definitivas na sua capacidade de aprendizagem.

Escolas são redes de proteção social. Na Índia, há fortes sinais de aumento de 20% nos casamentos de meninas pré-adolescentes provocado pelo longo fechamento das escolas e, ainda, de um novo salto no trabalho infantil. No Brasil sem aulas, milhares de adolescentes pobres são cooptados pelas facções criminosas ou capturados por redes de prostituição de menores. Eles não entrarão nas estatísticas fatais da epidemia.

"Nas tragédias, o protocolo da humanidade é salvar primeiro as crianças", lembrou Viviane Senna, que não teme dizer verdades inconvenientes. A reportagem do El País (21 de setembro) revela que os professores espanhóis resolveram seguir o "protocolo da humanidade". Também mostra que, com todas as diferenças, o sistema público de ensino deles partilha muitas das carências do nosso. A verdadeira distinção está em outro lugar: por aqui, o "protocolo" não é salvar as crianças, mas seguir o comando das corporações. Os médicos peritos do INSS abandonaram os idosos pobres na rua; os professores ignoram o desastre silencioso que espreita seus alunos.

A pandemia de crianças sem aula é uma ameaça social ainda maior que a representada pelo coronavírus. Na Espanha, a retomada escolar prossegue mesmo com uma segunda onda da epidemia —assim como na França. Aulas presenciais suspensas "até a vacina"? A palavra de ordem sintetiza nossa tragédia civilizatória.

Os sindicatos de professores invocam a ciência para fazer política corporativa. Mas a OMS, junto com a Unicef e a Unesco, apela aos governos pela reabertura das escolas —e detalha protocolos sanitários para diferentes estágios da epidemia. "A maioria das evidências de países que reabriram escolas ou nunca as fecharam sugere que as escolas não foram associadas a aumentos significativos na transmissão comunitária", escreve a OMS. Mas, como crianças não votam, nossos políticos preferem ignorar o apelo, imolando os direitos delas no sagrado altar da eleição.

Bruno Covas exemplifica o intercâmbio indecente. Na sua valsa infinita do adiamento, ele "estuda" realizar um censo sorológico entre professores e funcionários, para saber quantos já tiveram a doença, estão imunes e podem voltar às escolas. O prefeito conhece de antemão o resultado: como os anticorpos decaem em pouco tempo, tornando-se indetectáveis por esse tipo de teste, a "ciência" oferecerá a conclusão de que não existe pessoal suficiente para reabrir a rede municipal. CQD.

Os professores espanhóis sanitizam salas de aula e traçam com setas amarelas os roteiros de circulação nos edifícios escolares. Estão na célebre "linha de frente", como médicos, enfermeiros, motoristas de ônibus e comerciários. A Geração Covid ficará como testemunho histórico da crise epidemiológica brasileira. As meninas e meninos abandonados pela escola entregarão comida por aplicativo na próxima emergência sanitária, quando o Brasil já terá esquecido o criminoso negacionismo de Bolsonaro.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnolio: Uma questão de fé

Só a imunidade coletiva — e, eventualmente, a tão aguardada vacinação em massa — é capaz de derrotar o vírus

A estratégia do lockdown foi exibida como arma infalível contra o coronavírus. Seus arautos rimam lockdown com ciência, escrevendo esta última em maiúsculas, o que remete, paradoxalmente, ao pensamento religioso. As experiências de três países sugerem que, na corrida de fundo da pandemia, os contágios só encontram limites na imunidade coletiva.

A Argentina praticou o lockdown em toda a sua extensão. Foram cinco meses de “quarenterna”, termo jocoso usado no país para se referir à “quarentena eterna” aplicada rigidamente pelo governo de Alberto Fernández. O país vizinho realizou o sonho de não poucos epidemiologistas (e jornalistas) brasileiros, ganhando cataratas de elogios emocionados. No fim, em agosto, flexibilizou —pois nada na vida é eterno, exceto a morte. Daí, o vírus fez a festa.

Na primeira quinzena de setembro, a média diária de óbitos por coronavírus superou a barreira de 200. Como a Argentina tem um quinto da população brasileira, a taxa de letalidade equiparou-se à do nosso longo patamar máximo. O que fazer, se um novo lockdown tornou-se social e economicamente impossível?

A África do Sul também recorreu ao lockdown, mas por tempo menor, e deflagrou a flexibilização no pico dos contágios. Há uma semana, finalmente começou a registrar queda significativa de infecções. Na hora da desaceleração da epidemia, cerca de um quinto da população já havia tido contato com o vírus. Aparentemente, o país chegou ao umbral da imunidade coletiva, uma faixa ainda um tanto misteriosa que gira em torno de 20% a 40% da população total.

A fim de minimizar os impactos indiretos da epidemia na vida social, a Suécia nunca utilizou quarentenas. Foi, por isso, errônea e perversamente acusada de permitir a difusão de contágios para alcançar a imunidade coletiva. De fato, o governo sueco adotou diversas medidas voluntárias de distanciamento social, destinadas a proteger seu sistema de saúde. Formulada para o horizonte de longo prazo, a estratégia funcionou: hoje o país exibe taxas de novos casos inferiores às da Espanha, da França e do Reino Unido, que implementaram lockdowns.

As taxas acumuladas de mortalidade na Suécia situam-se em patamar semelhante ao dos outros países europeus fortemente atingidos no estágio inicial da pandemia, quando o vírus circulava oculto. A diferença é que a população sueca foi mais extensamente exposta à doença e, agora, percorre um estágio mais avançado de imunidade coletiva. Graças a isso, o espectro de novos lockdowns, que atormenta espanhóis, franceses e britânicos, não assombra os suecos.

Não faz sentido falar num “modelo sueco”. No país escandinavo, uma elevada parcela da população reside em habitações individuais ou de casal, quase inexistem espaços urbanos superpovoados, a pobreza é residual, e há forte confiança nas orientações sanitárias oficiais. África do Sul, Argentina, Brasil ou mesmo Espanha não poderiam replicar sua estratégia. Contudo, no plano epidemiológico, as experiências sueca, argentina e sul-africana evidenciam o equívoco dos arautos de “quarenternas”.

Lockdowns tornam-se inevitáveis quando uma onda devastadora de infecções e hospitalizações ameaça provocar o colapso dos sistemas de saúde. Mas, ao contrário do que assegurava o fundamentalismo epidemiológico, não servem para estancar a epidemia. Só a imunidade coletiva — via extensão de contágios e, eventualmente, a tão aguardada vacinação em massa — é capaz de derrotar o vírus.

No caso dos lockdowns, a fé tomou o lugar da ciência, fantasiando-se com seus trajes. Atrás do fenômeno, espreita a ideologia. Num ambiente de forte polarização política, a bandeira das “quarenternas” foi a resposta dos bem pensantes ao negacionismo místico da extrema-direita, que enxerga no “vírus chinês” uma conspiração de “globalistas” e comunistas.

Há, porém, uma diferença decisiva entre uns e outros: os bem pensantes juram imorredoura lealdade à ciência. Se esse juramento tem algum valor, já passa da hora de revisarem sua fé irracional em lockdowns. A ciência, afinal, curva-se sempre às lições da experiência.


Demétrio Magnoli: Labaredas no Pantanal e na Amazônia indicam ação criminosa e coordenada

O crime compensa quando o governo simula não vê-lo

O fogo devasta as florestas do oeste dos EUA e, em outro hemisfério e outras latitudes, extensas áreas da Amazônia e do Pantanal. As mudanças climáticas aproximam os incêndios deles dos nossos. Mas são fogos diferentes. Aqui, as labaredas indicam ação criminosa, coordenada em larga escala.

Nos EUA, Trump revela uma vez mais sua aversão à ciência quando nega o papel decisivo das mudanças climáticas. Contudo, tem razão ao mencionar o diagnóstico de técnicos florestais que acusam o ambientalismo fundamentalista pelo agravamento da crise.

Florestas temperadas de clima subúmido exigem permanente manejo para evitar o adensamento excessivo da vegetação. Nas últimas décadas, porém, sob pressão de grupos preservacionistas extremados, reduziu-se tanto a exploração madeireira sustentável como a boa prática de incêndios controlados.

Na sua vastidão, os incêndios florestais nos EUA relacionam-se primariamente com o aquecimento global, mas é difícil negar a contribuição do acúmulo de matéria orgânica, viva e morta, nos estratos inferiores.

Os sistemas ecológicos tropicais da Amazônia e do Pantanal funcionam de forma diversa. O fogo é um componente deles, durante as estações secas, mas o intrincado tecido de superfícies líquidas opera como fator limitante.

Normalmente, focos amplos de incêndio acabam contidos pelos rios, furos, igarapés, corixos e lagoas de vazante. Incêndios tão extensos como os que estão em curso só podem ser explicados por ações humanas persistentes e deliberadas.

O aquecimento global está na base dos incêndios, mas há fogos e fogos. Queimadas comuns para a limpeza de pastos não se confundem com as labaredas ateadas depois da derrubada criminosa de áreas de reserva legal com a finalidade de substituí-las por pastagens. O segundo fenômeno origina inúmeros dos incêndios amazônicos e pantaneiros. É que o crime compensa, quando o governo simula não vê-lo.

Desta vez, entretanto, a escala do desastre solicita um crime maior. Nos sistemas ecológicos do trópico úmido, incêndios que saltam incontáveis barreiras líquidas só podem nascer de fogos ateados simultaneamente ao longo de arcos de centenas de quilômetros.

Imagens de satélite indicam uma origem coordenada desses incêndios. A PF dispõe de meios para chegar aos organizadores de um crime ambiental aterrador. O obstáculo não é técnico, mas político: os criminosos agem à sombra do poder.

O Ministério do Meio Ambiente é parte do problema, não da solução. Seu titular, Ricardo Salles, não é um fanfarrão ideológico, um adorador de mestres místicos, um Weintraub qualquer, mas um operador profissional que serve aos interesses da devastação ambiental. Sua missão oficiosa consiste em desmontar os aparatos de fiscalização do Ibama e do ICMBio.

Restaria a esperança na ação dos militares, sob o comando de Hamilton Mourão. O vice-presidente fala, para alguns públicos, na proteção da floresta e ensaia a formação de uma “força tática da Amazônia”. Mas vale a pena apostar na figura que, em parceria com Salles, postou o célebre vídeo negacionista do mico-leão-dourado?

“Nós temos que fazer a contrapropaganda. Isso faz parte do negócio”, justificou-se Mourão, confundindo o dever institucional de dizer a verdade com a “guerrilha da informação” típica do bolsonarismo de redes sociais.

O declínio de um vice que chegou a funcionar como contraponto civilizado de Bolsonaro mancha, inevitavelmente, a imagem das Forças Armadas.

Os militares são um símbolo perene da soberania nacional na Amazônia. A história os colocou na linha de frente da preservação do patrimônio ambiental constituído pelas florestas.

Hoje, porém, em nome de lealdades políticas circunstanciais ou de privilégios corporativos que se acumulam, eles curvam a espinha diante do crime ambiental. Isso não “faz parte do negócio” —e não será esquecido.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Bispos, dinheiro e ‘africanidade’

Igreja Universal passou a ser vista, em Angola, como potencial ameaça

Há uma guerra em curso, em Angola, entre o poder terreno e o poder espiritual. Dias atrás, o governo angolano ordenou o fechamento de diversos templos da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), sob as acusações de evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Atrás do véu das aparências, ocultam-se tensões políticas profundas, que envolvem o Brasil, além dos múltiplos usos do discurso da “africanidade”.

A Universal construiu um império com cerca de 300 templos, 500 mil fiéis e receitas anuais de US$ 80 milhões no país lusófono africano. No passado recente, a influência dos bispos de Edir Macedo não assustava o regime autoritário de José Eduardo dos Santos. A Iurd era aliada dos governos petistas — que, por sua vez, operavam como parceiros econômicos e diplomáticos do homem forte angolano, especialmente pela concessão de financiamentos do BNDES a obras da Odebrecht.

Mas tudo mudou, nos dois lados do Atlântico. Do lado de lá, João Lourenço tomou o lugar de José Eduardo dos Santos, deflagrando expurgos no MPLA, o partido dirigente, eliminando os dirigentes ligados ao antecessor. Do lado de cá, Bolsonaro substituiu o PT, rompendo a parceria com Angola. A única coisa que não mudou foi o “governismo de resultados” de Edir Macedo, que estabeleceu aliança com o presidente brasileiro de extrema-direita. Daí, a Iurd passou a ser vista, em Angola, como potencial ameaça ao sistema de poder de João Lourenço.

Regimes autoritários incomodam-se, sempre, com a presença de focos alternativos de influência. A ofensiva contra a Iurd inscreve-se nessa moldura genérica. Contudo as formas singulares que assume oferecem uma pequena aula sobre a narrativa da genuína “africanidade”.

Ano passado, sob a liderança do bispo Valente Bezerra Luiz, um vasto grupo de pastores angolanos cindiu com o comando brasileiro da Iurd, representado na África pelo bispo Honorilton Gonçalves. Os dissidentes formaram um centro dirigente local, a “comissão reformada”, e lançaram dois tipos de acusações contra a direção “universal”. De um lado, emergiu o tema do dinheiro: transferência ilegal de recursos angolanos ao Brasil. De outro, surgiu o da “africanidade”: o predomínio “racista” dos pastores brasileiros sobre os de Angola.

A igreja “universal” viu-se diante da questão nacional, uma encruzilhada que, ao longo da história, atormentou os partidos e movimentos internacionais. A guerra esquentou no fim de junho, durante a quarentena da Covid, quando os seguidores da “comissão reformada” invadiram templos vazios em quatro províncias, hasteando bandeiras angolanas nos púlpitos. Então, o grupo dissidente atacou residências de bispos brasileiros, enquanto os dirigentes oficiais organizaram uma milícia para recuperar os templos.

A cisão religiosa acompanha, como uma sombra, tanto a campanha de João Lourenço contra a facção de seu antecessor quanto o distanciamento geopolítico de Angola em relação ao Brasil. Valente e os seus ofereceram ao governo angolano os pretextos legais para deflagrar a ofensiva contra a Iurd. Repentinamente, as práticas financeiras habituais dos bispos “universais” chamaram a atenção de um regime que, antes, fingia nada saber.

O discurso da “africanidade” desempenha, mais uma vez, seu papel legitimador. Desde as independências africanas, regimes autoritários o utilizam para calar opositores, rotulados como “antiafricanos”, “imperialistas” ou “neocolonalistas”. Em nome da “africanidade”, a Aids foi ignorada por duas décadas na África do Sul e, sempre em nome dela, diversos países africanos aplicam leis de origem colonial para reprimir os LGBTs. Agora, em Angola, o argumento identitário funciona como ferramenta para uma reforma religiosa: a estatização disfarçada do neopentecostalismo.

“Todos nós fazíamos parte do sistema”, admitiu João Lourenço, referindo-se à ditadura cleptocrática de José Eduardo dos Santos, na qual ocupou o Ministério da Defesa. A Iurd fazia parte do “sistema”, que a considerava suficientemente “africana” para participar da repartição do butim. Hoje, o “sistema” mudou — e a Iurd tornou-se “estrangeira”.


Demétrio Magnoli: Avanço da doutrina racialista para a representação política golpeia a soberania popular

Benedita da Silva e Luís Roberto Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como uma carreira

"Estaremos do lado dos que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores." O ministro Luís Roberto Barroso anunciou, por essa frase capciosa, a pretensão dos altos tribunais de tutelar os partidos políticos e os eleitores, determinando uma distribuição racial dos fundos públicos eleitorais.

O inevitável avanço da doutrina racialista para a esfera da representação política golpeia o conceito de soberania popular, pilar da democracia.

A discussão jurídica nasceu de um pedido aos tribunais da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), pelo estabelecimento de cota de 30% de "candidaturas negras" em cada partido. Barroso disse "não", argumentando que só o Congresso tem a prerrogativa de legislar.

Mas, como é de seu feitio, prontificou-se a legislar de outro jeito, no mesmo rumo racialista, gerenciando o caixa dos partidos com vistas a um "equilíbrio racial".

As leis de cotas raciais para ingresso nas universidades apoiam-se na justificativa da promoção social de grupos excluídos. As cotas raciais dividem os estudantes de escolas públicas segundo a cor da pele, alavancando ressentimentos que nutrem o racismo. O consenso partidário formado em torno delas destina-se a mascarar a ruína do ensino público, raiz da desigualdade de oportunidades no umbral das universidades. Quando a raça chega ao terreno do voto, o racialismo retira sua máscara, exibindo a face que precisava ocultar.

Benedita e Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como o ingresso na universidade —ou seja, como uma carreira. A política é definida, aí, como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio.

"Escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores" significa, para eles, alçar "negros" a empregos bem remunerados. O problema do raciocínio é que, no fim, a seleção desses "profissionais" depende dos eleitores. Que tal, então, dirigir a mão que digita o voto para o lugar "certo"?

Os programas pioneiros de cotas raciais nas universidades foram introduzidos em 2003. Seus defensores alegavam, à época, que o expediente seria provisório, esgotando-se no horizonte de dez ou, no máximo 20 anos. Hoje, quase duas décadas depois, não só esqueceram-se do prazo limítrofe como engajaram-se na introdução de cotas raciais na pós-graduação e na administração pública.

A fraude da vontade popular na esfera eleitoral também caminhará por etapas. A primeira, em curso, define a distribuição de fundos de campanha. Numa segunda, cotas "raciais" dentro dos partidos. A conclusiva, pelo estabelecimento de cotas raciais nos próprios órgãos legislativos. No Líbano, a representação parlamentar é repartida segundo linhas sectárias, com a divisão de cadeiras entre cristãos, sunitas e xiitas. No Brasil, a lógica racialista aponta para uma divisão entre as "raças oficiais" —isto é, basicamente, entre "brancos" e "negros", pois os autodeclarados "pardos" já foram administrativamente suprimidos do universo legal.

A "voz dos negros" deve ser ouvida —eis a tradução conceitual da frase de Barroso. Os "negros", porém, participam de diferentes partidos, exprimindo ideologias diversas. Quem é a "voz dos negros"? Benedita, que é uma "voz de Lula", ou Sérgio Camargo, uma "voz de Bolsonaro"? A racialização dos órgãos legislativos nada tem a ver com a "voz dos negros". Expressa a voz das elites brasileiras que recobrem, com uma mão de tinta fresca, o racismo institucional praticado pelas polícias e a exclusão social de pobres de todas as cores.

A política é o campo dos valores, das visões de mundo —não das raças. A "voz dos negros" exigiria a constituição de um Partido Negro. Os arautos do racialismo não vão criá-lo, pois sabem que seriam rejeitados inclusive pelo eleitorado não branco. A estratégia deles é tutelar o voto por meio de leis restritivas da soberania popular.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: A vida de uma menina

A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes

A menina de 10 anos violada pelo tio monstruoso foi submetida a novo estupro quando uma certa Sara Giromini, acompanhada por sua malta de idiotas, começou a berrar diante do hospital em que se fazia o aborto legal. O ato dos extremistas nada tem a ver com crenças religiosas, ainda que as manipule como pretexto. No seu rastro, pegando carona nas justas expressões de indignação, emergiu o discurso dos arautos do aborto irrestrito, que só serve para congelar um debate público indispensável.

As religiões, sem exceção, celebram a vida. Sara e seus baderneiros desprezam a vida singular da menina, enquanto fingem defender a Vida genérica, com maiúscula. Transformando a vítima em símbolo de pecado, usam-na como bucha de seus canhões ideológicos. A perversidade dos extremistas deve ser comparada à do estuprador: como no caso dele, a menina desempenha a função de corpo inerte destinado à satisfação das vontades de seus captores.

Os jihadistas falam em nome do Islã, mas para negá-lo. Os desordeiros do hospital, tal qual os jihadistas, tomam o cristianismo como refém para veicular um programa político. São, uns e outros, renegados da religião à qual, hipocritamente, juram fidelidade. Os cristãos têm o dever, tanto cívico quanto religioso, de repudiar os aprendizes de terroristas que insultavam médicos e familiares da vítima.

A lei brasileira só admite o aborto em situações excepcionais, como a da menina violada. Há bons argumentos para revisá-la, mas eles são soterrados sob o clamor de certas correntes feministas embriagadas pela ideologia.

O aborto irrestrito seria, segundo tal ponto de vista, uma decorrência do direito das mulheres a seu “próprio corpo”. Não é preciso invocar princípios religiosos para apontar a falácia. O feto é um “outro corpo”, num duplo sentido. Biologicamente, tem potencial de vida autônoma. Socialmente, é assim reconhecido por leis como a licença-maternidade, que assegura à gestante tempo e remuneração para cuidar de um ser ainda não nascido, e pelo custeio público do acompanhamento pré-natal.

“Meu feto, minha decisão soberana e exclusiva.” A legalização irrestrita do aborto baseada nessa premissa radicalmente individualista implicaria, no plano lógico, a supressão da legislação de proteção à maternidade. Por extensão, abalaria os alicerces filosóficos das leis que responsabilizam solidariamente mãe e pai pela nutrição, saúde e educação dos filhos menores. O estandarte do feminismo niilista ajusta-se bem à visão ultraliberal de uma sociedade sem leis sociais — mas, paradoxalmente, costuma ser desfraldado por movimentos de esquerda.

Nada disso significa que a criminalização do aborto deva ser admitida num Estado laico. A menina conseguiu extrair legalmente o embrião, mas mulheres adultas precisam, de modo geral, recorrer a clínicas ilegais, caras ou perigosas. Definir o aborto como crime é produzir uma crise crônica de saúde pública. Uma solução encontra-se na combinação da oferta ampla de anticoncepcionais com a legalização limitada da interrupção da gravidez.

Diversos países aceitam o aborto nos meses iniciais de gravidez, apenas depois de sessões obrigatórias de aconselhamento psicológico do casal. Por essa via, o poder público passa a mensagem de que a interrupção da gravidez é um gesto extremo, um direito condicional e socialmente tutelado. Procura conciliar, assim, imperativos de saúde pública, direitos da mulher e o princípio moral da proteção de vidas potenciais.

A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes — ou seja, de preservar uma pluralidade de direitos. O conceito não cabe na mente de fanáticos, para quem um princípio único, fundamental e sagrado, fecha todas as janelas de debate.

Sara e sua malta de estupradores simbólicos são execráveis, mas não destituídos da esperteza típica dos extremistas. O ato provocativo tem a finalidade de deflagrar uma guerra ideológica com a vertente niilista do feminismo. No fragor da batalha, perderíamos a chance de discutir a sério nossa anacrônica legislação sobre aborto.


Demétrio Magnoli: O lado bom do cancelamento

Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual

Na Ilustríssima, Rosane Borges cancelou pela milésima vez Lilia Schwarcz, num artigo caudaloso, balofo, que classifica o texto da cancelada como “ruim” mas jamais consegue preencher o qualificativo com um mísero argumento.

O texto é ruim porque Borges diz que é, do alto do seu pódio autoconstruído do “lugar de fala”. Wilson Gomes, na mesma Ilustríssima (16/8), explicou o mecanismo inteiro. Assim, adiciono apenas uma proposta dirigida às plataformas virtuais: dividam as redes em dois setores, separados pela fronteira da prática do cancelamento.

A dinâmica do cancelamento, destinada a produzir uma reserva de mercado, segue as lógicas sectárias típicas das cisões e expurgos dos partidos marxistas. Borges mirou a já canceladérrima Lilia para cancelá-la “melhor”, assegurando um lugar na dianteira da fila dos arautos da Verdade Identitária. Os canceladores, explicou Gomes, só cancelam eficientemente camaradas canceladores —ou seja, aqueles que comungam a mesma religião e, como Lilia, prestam-se ao papel de beijar os pés dos seus algozes.

Mas o “lugar de fala” não perdoa: é preciso pedalar sempre, como fazem os ciclistas. A prática tem que ser reiterada até o infinito, por meio de sucessivos cancelamentos voltados para eliminar concorrentes num mercado altamente competitivo. Como a seita de canceladores não controla um aparato estatal totalitário, a mera humilhação em rede substitui, teatralmente, os campos de trabalho forçado, as torturas e os fuzilamentos.

Aí, surge minha única divergência com Gomes, que declara-se triste diante do espetáculo. Acho, pelo contrário, que a pantomima tem o potencial de divertir os que não pertencem à seita. É como assistir aos folguedos de crianças no recreio. Pode ser intrigante, com a condição de que não percamos muito tempo.

Em vista disso, sugiro às plataformas a seleção prévia dos participantes de redes sociais baseada na auto-descrição. Os aderentes à prática canceladora ficam em redes exclusivas; os demais, que a rejeitam, inscrevem-se em redes assentadas no princípio da divergência civilizada. Desse modo, os adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares.

Sofistico a sugestão: todos os participantes teriam o direito de visualizar passivamente o que acontece na rede à qual não pertencem. O recurso ofereceria aos adultos uma janela de entretenimento. Mas, sobretudo, daria às crianças canceladoras uma oportunidade de descobrir os benefícios do intercâmbio democrático de pontos de vista. Otimista, aposto na conversão de uma fração estatisticamente significativa dos canceladores.

Há que distinguir os fenômenos. A política identitária racialista, com seu cortejo de leis raciais e “racismo reverso”, é coisa séria. O rastro que ela forma envenena a luta antirracista, avoluma a onda de ressentimentos que nutre o racismo tradicional, ergue o picadeiro ocupado pelos Sérgio Camargos, alarga o eleitorado da extrema-direita. Já o cancelamento identitário em rede social não passa de uma ramificação periférica, uma disputa menor por prestígio, convites e financiamentos.

Os rituais de cancelamento só provocam prejuízos sociais quando escapam à esfera das redes, restringindo o debate plural na imprensa, no meio editorial ou nas universidades. Isso existe, extensivamente, nos EUA —e começa a se manifestar, ainda de forma embrionária, no Brasil.

A carta aberta publicada pela Harper’s, que reuniu figuras ideologicamente tão distantes quanto Salman Rushdie, Noam Chomsky, Wynton Marsalis e J. K. Rowling, alerta para esse perigo real.

Minha proposta contribui para minimizá-lo. Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual. Todos poderão cotejar os debates travados entre não-canceladores com as exibições purificadoras dos canceladores profissionais. Que tal?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: O vírus governa o Brasil

Negacionismo impediu a coordenação das iniciativas de controle da pandemia

Há consenso, fora malucos incorrigíveis, de que o Brasil fracassou diante do desafio da Covid-19. Mas deve-se qualificar o fracasso: a régua para medi-lo não é o número de óbitos.

A taxa de óbitos no país (48 por 100 mil) é, no momento, menor que as registradas na Bélgica (86), Reino Unido (70), Peru (64), Espanha (61), Itália (58) ou Suécia (57). Na faixa brasileira estão o Chile (53), os EUA (49) e o México (40). Na Europa, teme-se uma retomada de contágios no outono e inverno. Não há prova de que ficaremos fora da curva das nações mais atingidas.

Fracasso de todas elas? Difícil afirmar, pois são fortes os indícios de que o resultado, em óbitos, é largamente determinado pelo ponto de partida.

Hoje sabemos que o vírus espalhou-se, silenciosamente, nos primeiros dois meses do ano. Por razões aleatórias, algumas áreas de elevada urbanização, na Espanha, na Itália, na França, na Bélgica, na Suécia e nos EUA, sofreram extensivos contágios na etapa oculta da pandemia. No Brasil, isso parece ter ocorrido com São Paulo, Rio, Fortaleza, Recife e Manaus. Depois desse impacto, com lockdown (Itália, Espanha, França) ou sem ele (Suécia), o gráfico de óbitos já estava traçado, ao menos em linhas gerais.

O Brasil, ao contrário da Itália ou do Equador, não fracassou no atendimento aos doentes. À exceção de alguns lugares (Manaus, por exemplo), os hospitais regulares e os de campanha deram conta da pressão. O SUS, com todas as suas conhecidas carências, salvou-nos da tragédia de contar mortes evitáveis. É uma lição prática sobre saúde pública que não temos o direito de esquecer.

Fracassamos por não fazer um lockdown geral? O diagnóstico, tão comum entre acadêmicos e na esquerda, ignora os limites impostos pela falta de um mínimo consenso político nacional e pelas profundas desigualdades sociais do país.

O Brasil elegeu um presidente negacionista —e isso tem consequências. Um lockdown no estilo italiano exigiria a ocupação das periferias e favelas por forças policiais sem compromissos com direitos (e vidas) dos cidadãos. O acadêmico que clama pelo lockdown evidencia desconhecer o país. O líder político de esquerda que faz o mesmo está investindo no impossível para colher o possível, na forma de votos.

O fracasso deve ser creditado, quase exclusivamente, ao governo federal. O negacionismo persistente, inabalável, impediu a coordenação das iniciativas de controle. A Constituição define a saúde como competência conjunta da União, dos estados e municípios.

Diante da criminosa negligência de Bolsonaro, o STF produziu interpretação criativa do texto constitucional, vetando a interferência federal nas decisões sanitárias estaduais. Daí, decorreram os planos incongruentes das quarentenas e flexibilizações em curso.

Os EUA de Trump, outro negacionista, vivem cenário similar. Contudo, a culpa não é do sistema federativo. Na Alemanha federal, um consenso político propiciou a cooperação entre o governo central e os estados que, mesmo pontilhada por atritos, conduziu a um planejamento eficaz. Pagamos o preço de uma opção eleitoral, com juros e multa.

No pacote do fracasso está o atraso na testagem em massa. Bombardeado pelas falanges bolsonaristas, o Ministério da Saúde ficou acéfalo no auge da crise, com a demissão de Mandetta, e converteu-se em acampamento de militares que, de costas para a epidemiologia, batem continência a um presidente inepto, irresponsável e amoral. Cinco meses depois do início das quarentenas, não temos um mapa dos caminhos de contágio. O governo federal escolheu, tacitamente, dirigir a nação para a longa tempestade da imunidade coletiva forçada.

Quando desceremos a curva? A resposta não depende de nós, mas dos anticorpos e células T. O vírus governa o Brasil.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.