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Demétrio Magnoli: Vírus ainda mais contagioso controla os portões escolares, a política eleitoral

Um ano sem aula cobrará preço devastador em vidas intelectuais e profissionais amputadas

Vejo, melancólico, as fotos de Adriano Vizoni, das escolas públicas fechadas (Folha, 27.jul). Lembro das primeiras escolas em que dei aulas, em Carapicuíba e Caucaia do Alto, nos idos de 1978. A placidez com que o Brasil encara a interrupção eterna do ano escolar é um retrato em preto e branco do desprezo nacional pelos pobres —e pela educação.

Cito os estudos científicos sobre as escolas básicas suecas, que nunca fecharam, e alemãs, reabertas em maio? Eles mostram o risco irrisório do retorno parcial às aulas, sob os conhecidos protocolos sanitários, durante o declínio das infecções. Menciono a orientação do Centro de Controle de Doenças dos EUA —são médicos, não agentes de Trump— de próximo retorno às aulas (bit.ly/30ac7AZ)? Melhor não.

"Você quer matar as crianças, os professores, os pais e os avôs!"; "arauto da necropolítica!"; "genocida!". As réplicas rituais surgem, aos gritos, de quem jamais lerá estudo algum —mas não cansa de empregar a palavra "ciência".

Falar em escolas já produziu até uma nova especialidade acadêmica. Um matemático da FGV criou um modelo profético que garantia a morte de milhares de crianças em poucas semanas de aulas. Depois, voltou atrás, alegando "empolgação", reconhecendo equívocos de comunicação e estratosféricas incertezas estatísticas. Com o vírus, ao lado da Matemática Pura e da Aplicada, nasceu a Matemática Empolgada.

"Uma única vida perdida", porém, seria suficiente para manter as escolas fechadas, concluiu o matemático, jogando no lixo seu monumento estatístico em ruínas. De acordo com o modelo mental hegemônico entre governantes e especialistas fechados na bolha da alta classe média, crianças sem aula foram isoladas em tubos de vácuo: não brincam nas ruas, não retornam às suas casas e, portanto, não transmitem o vírus.

Sindicatos de professores concorrem, em corporativismo, com associações de policiais. A simples menção à hipótese longínqua de reabertura escolar deflagra ameaças de greves. Dirigentes das entidades querem evitar a volta às aulas até o advento da vacina. O fenômeno é mundial: um manifesto do sindicato de professores de Los Angeles lista dezenas de pressupostos para a reabertura, inclusive a implantação de um sistema universal de saúde nos EUA. Esqueceram de exigir a prévia abolição do papado.

O Plano São Paulo prevê a retomada de aulas apenas um mês depois de todas as regiões atingirem em uníssono a etapa amarela. Por que uma escola paulistana não pode reabrir enquanto ainda pesam restrições sanitárias em Araçatuba? João Gabbardo, do centro de contingência, explicou que o obstáculo não decorre de critérios epidemiológicos, mas de uma norma de uniformidade da Secretaria de Educação.

De fato, um outro vírus, ainda mais contagioso, controla os portões escolares. O nome dele é política eleitoral.

Os pais têm medo, um sentimento compreensível, em parte derivado da "empolgação" jornalística. Nos dias em curso, a notícia lateral de que a França foi obrigada a fechar novamente algumas dezenas de escolas soterra a informação sobre a reabertura em segurança de 40 mil escolas. Nesses tempos, apesar do elogio editorial à ciência, um matemático empolgado ganha as manchetes que ignoram pesquisas epidemiológicas baseadas em evidências.

Na escola, as crianças aprendem a aprender. Um ano sem aula cobrará preço devastador em vidas intelectuais e profissionais amputadas. Bons professores sabem disso —e não precisam curvar-se às ordens dos chefões sindicais.

Como os médicos e enfermeiros, eles têm o dever cívico de levantar as mãos, declarando-se prontos a enfrentar riscos muito menores. De minha parte, vai aqui uma mensagem de voluntariado ao governo estadual: estou pronto a voltar a meus 19 anos, substituindo professores recalcitrantes em qualquer escola pública —até a vacina.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Um novo ‘cordão sanitário’

Globalização ingressa em nova etapa, crivada pelo antagonismo sino-americano

A cada vez mais provável vitória de Joe Biden sobre Donald Trump mudará tudo nos EUA — menos a atitude diante da China. Consolida-se, nos EUA, um consenso bipartidário sobre o imperativo de estabelecer limites à expansão da influência chinesa. Não é uma “segunda Guerra Fria”, pois a nova potência, ao contrário da URSS, é ator de magnitude maior na economia mundial. Mas, como na Guerra Fria, desenha-se uma estratégia de contenção de longo prazo.

Com Xi Jinping, a “diplomacia do sorriso” ficou no passado. “A China já não teme ninguém. Acabaram-se, para não voltar mais, os tempos em que o povo chinês subordinava-se a outros e vivia dependente de caprichos externos.” As palavras de um alto responsável do governo chinês para Hong Kong, que se referiam à nova Lei de Segurança Nacional, podem ser estendidas à projeção militar no Mar da China Meridional, ao ambicioso programa de modernização bélica e à agressiva diplomacia econômica sintetizada no projeto da chamada Nova Rota da Seda.

A China que já não sorri coloca em evidência o tema da emergência de uma grande potência numa ordem internacional construída pela principal potência anterior. O exemplo da ascensão de uma “potência satisfeita”, que vê a ordem existente como moldura adequada para alcançar seus objetivos nacionais, como o Japão do Pós-Guerra, já não se aplica ao caso chinês. A China tornou-se uma “potência insatisfeita”, como a Alemanha do entre-guerras, que enxerga a Pax Americana como obstáculo a seus interesses nacionais.

Multiplicam-se as superfícies de atrito. Os EUA deslocam grupos navais para os mares do entorno chinês e promovem o boicote internacional das empresas chinesas de equipamentos de rede. O Quarteto, uma associação informal de segurança constituída por EUA, Japão, Austrália e Índia, inicia programas de estreita cooperação de inteligência. Aproximam-se do grupo o Reino Unido e a França, que decidiram banir a Huawei de suas redes 5G. Já a Índia, cuja rivalidade com a China renovou-se após o sangrento choque fronteiriço no Himalaia, anunciou uma megacompra de material bélico russo de mais de US$ 5,3 bilhões.

A Alemanha ressente-se da erosão da Aliança Atlântica provocada pelo isolacionismo de Trump, temendo converter-se em presa fácil dos tentáculos econômicos chineses. A saída encontrada por Angela Merkel é a repetição da aposta no projeto da unidade europeia, como nas encruzilhadas de 1950 (Comunidade do Carvão e do Aço) e de 1990 (Tratado de Maastricht). No Conselho Europeu, abandonando sua proverbial ortodoxia fiscal, aprovou algo como um “Plano Marshall da Europa”: o fundo de recuperação econômica de 750 bilhões de euros, dos quais 390 bilhões distribuídos na forma de doações. Os alemães sabem que o relógio da história não gira ao contrário, mas aguardam esperançosamente um triunfo de Biden para reativar a parceria entre Europa e EUA.

Biden não será Trump, mas tampouco reeditará a política de deliberada ambiguidade formulada por Barack Obama diante da China. O provável futuro presidente tende a reduzir a ênfase na guerra comercial para concentrar esforços na contenção militar e no cerceamento das empresas chinesas de 5G. O “divórcio” tecnológico entre EUA e China seguirá, em ritmo acelerado, tanto no campo dos equipamentos quanto no dos softwares. Contudo, ao contrário de Trump, Biden rejeitará o nacionalismo do “America First” e buscará a cooperação diplomática da União Europeia.

Durante a Guerra Fria, os EUA ergueram ao redor da URSS um “cordão sanitário” de alianças político-militares que se estendiam da Europa ao Extremo Oriente. O “cordão sanitário” que se esboça em torno da China é diferente, pois seus componentes são militares e tecnológicos e, ainda, porque o parque industrial chinês não será desligado da economia mundial.

A globalização não sai de cena, mas ingressa em nova etapa, crivada pelo antagonismo sino-americano. Quando, livre de Ernestos e Olavos, o Brasil recuperar a capacidade de pensar racionalmente sua política externa, terá de encarar os complexos dilemas de uma ordem em complexa mutação.


Hélio Schwartsman: Mandem a conta para o Jair

Presidente deve ser responsabilizado pelos estoques de cloroquina inutilmente acumulados

Não é assim tão difícil de entender. Estou seguro de que todos, presidentes e militares incluídos, se se esforçarem um pouquinho, conseguem.

Se você quer saber se a droga X é efetiva para tratar a doença Y, deve recrutar um número tão grande quanto possível (de preferência milhares) de pacientes da moléstia e dividi-lo aleatoriamente em dois grupos. O primeiro, chamado de grupo de tratamento, tomará a droga. O segundo, o grupo controle, não. Idealmente, receberá um placebo.

Aí é só esperar um tempinho e comparar os desfechos dos dois grupos. Se a proporção dos pacientes que se curaram (ou que sobreviveram, que tiveram menos complicações etc.) não for maior entre os que tomaram a droga do que entre os que não a tomaram, isso é um sinal de que ela não funciona.

Mas, se é assim tão simples, por que presidentes e generais insistem no uso da cloroquina contra a Covid-19 mesmo quando já há um bom número de estudos mostrando que ela não traz nenhum benefício dramático e pode provocar efeitos colaterais indesejados?

Há uma diferença importante entre micróbios e pessoas. Vírus e bactérias fazem o tipo “no-nonsense”, isto é, obedecem sem questionar às leis da bioquímica. Pessoas são mais complicadas. Solomon Asch mostrou que um indivíduo pode facilmente ser levado a afirmar que uma linha de um centímetro é maior do que uma de três. Basta que algumas pessoas digam isso em público antes dele. Não há muito limite para as besteiras que podemos fazer sob pressão dos pares ou de líderes.

A insistência na cloroquina indica que presidentes e generais ou não entenderam o bê-á-bá da pesquisa clínica, o que deporia contra sua inteligência, ou estão mais interessados em iludir pessoas do que em combater o vírus, o que denotaria irresponsabilidade.

Em qualquer caso, o Ministério Público deveria mandar para o Jair a conta pelos estoques de cloroquina inutilmente acumulados.


Demétrio Magnoli: PLJ precisa ser extinto para se preservar um sistema judicial apolítico

Na sua jornada, operação encarnou e traiu as esperanças populares de desprivatização da política e do Estado

O mundo dá voltas. No auge da Lava Jato, entre o impeachment de Dilma e a prisão de Lula, os porta-vozes informais da operação exigiam a cassação do registro do PT.

Hoje, o cerco que se fecha em torno de Deltan Dallagnol sinaliza a cassação do registro inexistente do Partido da Lava Jato (PLJ). Nem a ascensão de Luiz (In) Fux (we trust) à presidência do STF parece capaz de evitar o desenlace.

O primeiro ato significaria uma violação dos direitos políticos de milhões de eleitores. O segundo é um imperativo democrático e, ainda, um pressuposto indispensável para o combate à corrupção.

O PLJ tem candidato presidencial —Sergio Moro— e conserva uma sombra de sua antiga aura em setores políticos como o PSL, o Podemos e o Novo. Mas sua estrutura orgânica é o “Partido dos Procuradores” —isto é, a corrente liderada por Dallagnol que organiza uma parcela do Ministério Público e exerce influência difusa entre juízes e policiais federais.

Moro tem direito, como qualquer brasileiro adulto, de disputar as eleições presidenciais. Mas o PLJ precisa ser extinto, em nome da preservação de um sistema judicial apolítico.

O “espírito da Lava Jato” veio à luz em 2017, quando o então procurador-geral Rodrigo Janot justificou o acordo ilegal do Ministério Público com Joesley Batista pelo objetivo de combater “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”.

O programa do PLJ é a criação de uma “nova democracia” protegida por um Poder Moderador que seria exercido pela casta de altos funcionários públicos não eleitos do MP.

O PLJ tentou criar um “fundo partidário” bilionário por meio da apropriação de recursos recuperados pela Petrobras. Para formar patrimônios pessoais, seus dirigentes ensaiaram montar uma empresa de palestras lastreada nas prerrogativas de investigação do Ministério Público.

A Vaza Jato evidenciou tanto os preconceitos ideológicos quanto as práticas processuais abusivas da força-tarefa, que violou sistematicamente o princípio da separação entre Estado-acusador e Estado-julgador. Depois de tudo, só o corporativismo extremado ainda impede a punição da brigada de jacobinos que desmoralizou a maior operação anticorrupção de nossa história.

A confluência do PLJ com o bolsonarismo foi um epílogo apropriado. Arautos notórios do “espírito da Lava Jato” engajaram-se na campanha de Bolsonaro, alguns deles manipulando o pretexto do antipetismo.

O juiz-candidato deu o passo decisivo, transmutando-se em ministro de um presidente que, avesso à democracia, sonha com a restauração do AI-5. No cargo, expôs o cerne de sua plataforma eleitoral pela proposição do “excludente de ilicitude”, um passaporte para matar oferecido às polícias e uma das sementes da onda de violência policial em curso.

Moro personifica um bolsonarismo envernizado, superficialmente sanitizado pelo expurgo do misticismo de extrema direita. Sua candidatura recupera o programa original do PLJ, que esvazia a democracia de suas salvaguardas institucionais prescindindo do recurso ao AI-5.

Que ele seja candidato por uma das siglas disponíveis no balcão de negócios eleitorais. O voto dirá se a maioria quer embarcar numa segunda aventura autoritária. Antes disso, o Congresso e o STF têm o dever de cassar o registro do PLJ. Nessa tarefa, ao contrário do “Partido dos Procuradores”, precisam amarrar-se ao mastro da lei, evitando o atalho do arbítrio.

Na sua jornada, a Lava Jato encarnou —e traiu— as esperanças populares de desprivatização da política e do Estado. A justiça politizada seleciona os corruptos que quer expor, segundo as conveniências de momento.

Há muito a ser resgatado da operação, que envolveu ações modelares de investigação, tanto do Ministério Público como da PF e da Receita Federal. O resgate depende da limpeza das estrebarias dos procuradores-militantes que, entre a justiça e o poder, escolheram o segundo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Palavras ao vento

A metáfora banaliza as tragédias do passado

Comunista! Ditador! Genocídio! Fascismo!

À direita e à esquerda, atiradas ao vento, saraivadas de palavras esvaziam os conceitos. A linguagem importa — e sua deterioração assinala um declínio.

Ninguém, entre pessoas sãs, dá atenção ao vício olavo-bolsonarista de classificar como “comunista” qualquer voz crítica, de nacionalistas de esquerda, social-democratas, centristas, conservadores ou aliados de ontem. Nas redes de insultos de um governo que sustenta um “gabinete do ódio” com recursos públicos, até Moro já figura entre os devotos de Lenin. Mas a paisagem é outra, quando a palavra emana de quem não pertence à seita de malcriados instalada no Planalto.

“Ditador” é o rótulo que Eduardo Moreira, líder do movimento “Somos 70%”, aplicou sobre a imagem de Jair Bolsonaro. Moreira era uma criança no outono da ditadura militar. Contudo, engenheiro, investidor, ex-sócio do Pactual, não tem álibi para proferir bobagens. O presidente, eleito democraticamente, sonha com a restauração do AI-5 mas não consegue nomear um diretor da PF ou ocultar as estatísticas da pandemia. Se fosse ditador, o manifesto do “Somos 70%” não seria publicado e seu articulador estaria preso.

Moreira pertence à era das redes sociais, um tempo de destruição em massa do sentido das palavras. Escreva poucos caracteres, simplifique o raciocínio, não use adversativas, provoque impacto. A receita do Face ou do Twitter tem efeito anestésico: mobiliza as redes, enquanto entorpece a sociedade. Se ditadura é isso, por que trocar o teclado pela rua?

A denúncia de um “genocídio negro” veio à luz quatro décadas atrás, no título de um livro de Abdias do Nascimento. Genocídio é a eliminação física deliberada de uma população inteira. Raphael Lemkin, judeu polonês, criou o conceito em 1944, inscrevendo-o no direito internacional (https://bit.ly/3dUqQEG). Casos clássicos são o genocídio armênio (1915), o Holocausto (1941-45), e os do Camboja (1975-79) e de Ruanda (1994). No Brasil, os negros são vítimas de racismo e violências policiais cotidianas, não de genocídio. Prova? A população negra não foi exterminada, antes ou depois de Abdias, mas cresce em termos absolutos e relativos.

O “genocídio negro” entorpece, desviando o foco de crimes intoleráveis para um fantasma retórico. O mesmo se passa com a acusação ritualizada de que o governo pratica uma política genocida diante da pandemia. A negligência com a saúde pública deve ser qualificada como crime de responsabilidade, mas inexiste um plano exterminista. Se a palavra terrível colide com a realidade, por que acreditar na parte verdadeira do discurso dos que a manipulam?

A metáfora banaliza as tragédias do passado e converte as disputas do presente num teatro de sombras: a substituição do que ocorre de fato por espectros de uma outra história. “Fascismo”, acusação da moda, é uma ideia fora de lugar.

Na história, o fascismo é um movimento popular antiliberal. O líder fascista assalta o poder à frente de um movimento de massas, servindo-se de milícias armadas que, depois, serão dissolvidas. O regime fascista reorganiza a sociedade e a economia em bases corporativas, sob rígido comando estatal. O olavo-bolsonarismo, com seus punhados de ignorantes vestidos em camisas amarelas e as miragens ultraliberais de seu ministro da Economia, está tão distante do fascismo quanto o PT está do comunismo.

A esquerda que grita “fascismo!” é uma vítima intelectual da queda do Muro de Berlim. O evento rompeu sua tão invocada aliança com o Futuro, condenando-a a interpretar a história como eterna repetição. A armadilha faz sua linguagem coincidir com a dos Antifas, herdeiros dos grupos europeus de “ação direta” dos anos 1970, que identificam a democracia ao fascismo para combater a primeira.

A era das redes sociais instala uma ditadura da metáfora. Batizamos fenômenos novos com nomes antigos, não para decifrá-los, mas para produzir o efeito desejado na audiência. Na prática, a intenção não se realiza: cedo ou tarde, as pessoas descobrem que a palavra degradou-se em mero ruído.


Demétrio Magnoli: Substitua-se na bandeira o lema 'Ordem e Progresso' por 'Não repara a bagunça'

Nossa epidemia seguirá crepitando, enquanto o mundo vira uma página

Na bandeira, substitua-se o lema positivista “Ordem e Progresso” por “Não repara a bagunça”, a inevitável saudação brasileira às visitas, escrita assim mesmo, do jeito bagunçado que as pessoas falam. A sugestão irônica, triste e afetuosa, circulava entre nós, nos tempos de faculdade. Hoje, 40 anos depois, a crise do coronavírus revela sua atualidade.

Um presidente negacionista decidiu que a Covid é “uma gripezinha”, recusou-se a organizar o respaldo econômico à emergência sanitária, fechou o Ministério da Saúde, engajou-se em atos de sabotagem das regras de distanciamento social.

O STF reagiu transformando o país numa confederação de 27 entidades territoriais mais ou menos independentes. Na ausência de coordenação nacional, governadores, prefeitos e até juízes intrometidos costuraram uma colcha de retalhos de medidas sanitárias incongruentes.

A bagunça esvaziou menos as ruas que o sentido das palavras. Do Maranhão ao Ceará, quarentenas parciais ganharam o nome de “lockdown”.

O governo paulista anunciou uma “quarentena inteligente”, confessando involuntariamente que experimentamos dez semanas de quarentena burra. Na etapa da burrice, fechou-se às pressas a economia de centenas de cidades do interior quase livres da epidemia. Na da inteligência, essas áreas serão desconfinadas, justamente na hora da chegada do vírus.

A bagunça é, às vezes, cálculo eleitoral. O prefeito paulistano, um administrador que executa antes para depois planejar, o gênio de bloqueios viários e megarrodízios, clamou por um “lockdown” imposto pelo governador, sobre quem recairia o peso do fracasso, antes de girar 180 graus, temendo a paralisação de obras de apelo eleitoral.

Na capital paulista, ninguém pode andar em parques, atividade saudável e segura, mas todos já podem visitar os shoppings. No Rio, cidade que declina sem elegância, as praias continuam proibidas, mas o prefeito puro e santo excetuou as igrejas, permitindo aglomerações nos templos. Há jornalistas que culpam o povo pela dissolução das quarentenas.

Às vezes, a bagunça é método. No estado do Rio, sob um governador-juiz que prega a eliminação extrajudicial de suspeitos, a corrupção adaptou-se celeremente ao cenário epidemiológico. Seguindo a clássica receita de autoajuda dos investidores, de converter crises em oportunidades, firmaram-se contratos fraudulentos para a construção de hospitais de campanha.

Saúde antes de tudo. O extinto Ministério da Saúde, reduzido à condição de acampamento militar, foi colonizado por curandeiros charlatães. Curvado às ordens presidenciais, ele recomenda o uso indiscriminado da cloroquina em pacientes de Covid, contrariando as conclusões de investigações científicas abrangentes. Às vezes, a bagunça é crime.

Não damos sopa para o azar. Os países europeus, bagunceiros, só exigem o uso de máscara em lugares fechados. No Brasil, somos ordeiros, rígidos, implacáveis: a Câmara estendeu a obrigação aos espaços abertos. Obedientes, as pessoas percorrem as calçadas com o apetrecho na testa ou no pescoço, manuseando-o irrestritamente, enquanto as máscaras dos motoqueiros se cobrem de películas de fuligem. Fazemos leis para chinês ver.

Nunca relaxamos. O fechamento geral de escolas é medida de eficácia improvável no combate ao coronavírus, concluiu um estudo publicado pela Lancet, revista médica de referência.

Na Europa, a reabertura escolar figura entre as medidas pioneiras da flexibilização, pois a longa interrupção atinge devastadoramente famílias e alunos pobres. Mas, por aqui, isso foi relegado ao epílogo do cronograma das autoridades. “Vire-se, povinho!” —eis a mensagem de governantes tementes a Deus ou à “Ciência”.

Nossa epidemia seguirá crepitando, enquanto o mundo vira uma página. Temos tempo para substituir o lema que atravessa a esfera azul celeste da bandeira tão amada.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: O paradoxo de Bolsonaro

O cenário é sombrio para o presidente da ‘gripezinha’

Meio a meio, duas vezes. A pesquisa Datafolha realizada na esteira da demissão de Sergio Moro indicou 45% favoráveis à deflagração de processo de impeachment e 48% contrários. O instituto também registrou queda de apoio ao isolamento social, agora em 52%, contra 46% que querem a “volta ao trabalho”. Paradoxalmente, a mesma emergência sanitária que precipitou a crise do governo mantém Bolsonaro à tona — e não apenas porque impede manifestações públicas.

O cenário é sombrio para o presidente da “gripezinha”. O “estado de guerra”, como regra universal, dá coesão às sociedades em combate ao “inimigo comum”. Pelo mundo afora, os governos ganham popularidade na emergência do coronavírus. O Brasil, onde metade dos eleitores pede a adição de uma crise institucional à crise da pandemia, é a única saliente exceção.

Moro entrou em confrontação letal com Bolsonaro, cindindo a coalizão política e social de sustentação do governo. O ex-juiz, ex-ministro e sempre candidato leva ao campo de batalha o “Partido dos Procuradores”, duas legendas parlamentares (PSL e Podemos) e uma camada de eleitores incensados pela narrativa da luta contra a corrupção. Segundo o Datafolha, 52% avaliam que, no intercâmbio de acusações, a verdade está com Moro, contra escassos 20% de crentes na palavra presidencial.

Mas os números são caprichosos, solicitando leitura mais sofisticada. O governo mantém apoio de 33% dos eleitores, e o desempenho de Bolsonaro na crise sanitária tem o aplauso de 27% e uma resignada aceitação de outros 25%. Vitória na derrota: o presidente resiste, ainda sem ventilação mecânica. A solução do mistério encontra-se na dependência e nos sofrimentos impostos pela emergência sanitária, subestimados entre analistas que fazem quarentena com vista para o mar.

Dezenas de milhões começam a receber os esquálidos, mas vitais, R$ 600, que levam a assinatura oculta do presidente. Cinco milhões de trabalhadores formais já perderam seu empregos ou experimentam cortes salariais. Multidões de comerciantes assistem, impotentes, à destruição de negócios que garantem a renda familiar. Cumpre não confundir essa vasta parcela da população com o núcleo militante bolsonarista, que reage a estímulos ideológicos extremistas.

O apelo da “volta ao trabalho” cala fundo no Brasil que não pratica o nobre esporte do home office. Uma sondagem conduzida pelo cientista político Carlos Pereira e publicada no “Estado de S. Paulo (20/4) mostra nítida correlação positiva entre apoio às ações de Bolsonaro na pandemia e a vivência de prejuízo econômico pessoal. O medo de um vírus de consequências incertas atenua-se diante da certeza da perda de meios dignos de subsistência.

A cláusula de exceção, detectada pela sondagem, é o conhecimento direto de pessoa que faleceu sob a Covid. Dois terços dos óbitos no Brasil concentram-se em cinco regiões metropolitanas. Num país de 217 milhões de habitantes, quase ninguém conhece algum dos mais de 7 mil mortos, especialmente em milhares de cidades do interior.

Bolsonaro não perde eleitores, mas os substitui. Saem os admiradores incondicionais do xerife da Lava-Jato. Entram os órfãos da quarentena, espalhados social e geograficamente. Qualificá-los como ignorantes ou incultos nada revela sobre eles. Diz muito, porém, sobre a bolha de classe que delimita o olhar dos analistas.

“Não vão botar no meu colo uma conta que não é minha”, reclamou Bolsonaro, referindo-se à sinistra contabilidade das mortes. O presidente, que não se descolou de Trump tanto assim, cobra de outros a dívida do emprego mas recusa a fatura dos óbitos. Ele nem simula governar, operando como agitador de rua. De um lado, clama contra os governadores e provoca aglomerações. De outro, abstém-se de usar suas prerrogativas para reabrir escolas federais ou liberar acesso às praias e parques nacionais — e seu novo ministro da Saúde jura respeito às determinações estaduais de isolamento social.

A curva da Covid no Brasil tem a forma de um morro em meia-laranja. Já a curva de nossa epidemia política vai adquirindo as feições dramáticas de um Everest.