Demétrio Magnoli: Lockdown, só usa quem pode

Bolsonaro afirmou que lockdowns “não funcionaram em lugar nenhum do mundo”. É cascata, como tudo que escorre da boca do presidente. Doria retrocedeu São Paulo para a “fase vermelha”.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

Bolsonaro afirmou que lockdowns “não funcionaram em lugar nenhum do mundo”. É cascata, como tudo que escorre da boca do presidente. Doria retrocedeu São Paulo para a “fase vermelha”. Atenção: não é, nem de longe, lockdown. Brasil afora, em meio à escalada da pandemia, governadores e prefeitos tornaram-se alvo de um bombardeio de críticas por não declararem lockdowns. No caso, os gestores têm razão: lockdown, só usa quem pode.

Lockdown é um extensivo congelamento da economia e da sociedade. Só os setores mais essenciais são autorizados a funcionar. A circulação de pessoas é restringida ao máximo. Funciona, pois a drástica redução de interações sociais ao longo de dois a três meses diminui radicalmente a taxa de transmissão do vírus. Não é, porém, uma varinha mágica. Como persiste alguma mobilidade social, e o vírus atravessa, impávido, a porta das residências, continuam a ocorrer contágios. Lockdowns não substituem a imunização coletiva.

A Nova Zelândia eliminou o vírus combinando lockdowns com fechamento de fronteiras. O sucesso, replicado por raros países, deve-se à circunstância de que, na etapa inicial (e oculta) da pandemia, as ilhas neozelandesas não experimentaram elevadas taxas de contágio. Hoje, porém, a reabertura de fronteiras depende da vacinação em massa da população. Na Europa, os lockdowns só conseguiram achatar temporariamente as curvas pandêmicas, impondo repetições do traumático processo.

O lockdown tem impactos políticos, econômicos, sociais e psicossociais devastadores. A restrição de direitos e liberdades, as perdas de negócios e renda, a insegurança e a solidão que provocam não devem ser menosprezados. Como a amputação, lockdown é um recurso extremo destinado a salvar o bem mais precioso — no caso, a funcionalidade do sistema hospitalar. Bolsonaro é incapaz de entender isso, mas as sociedades modernas proíbem-se, moralmente, de assistir à morte de pacientes sem atendimento.

Estados totalitários, como a China, podem deflagrar lockdowns à vontade. Basta girar a chave do maquinário estabelecido de controle social. Nas nações democráticas, há pré-condições indispensáveis para implantar o lockdown: um consenso político mínimo, um nível razoável de coesão social e o monopólio estatal do uso da força. Os EUA jamais aplicaram um lockdown nacional pela ausência da primeira dessas condições. No Brasil, faltam as três.

O voto tem consequências, acima e abaixo do Equador. Bolsonaro ainda comanda cerca de um terço dos eleitores e conta com um apoio amorfo de uma maioria parlamentar, como ficou evidenciado na eleição das mesas do Congresso. Nas esferas estadual e municipal, o bolsonarismo representa uma força política significativa. Não se fará lockdown sob o atual governo. O Brasil vive — e morre — com suas escolhas democráticas.

Nas nações europeias, formadas por extensas classes médias, os lockdowns sustentaram-se sobre o pilar do Estado de Bem-Estar. As duras restrições foram compensadas por políticas de preservação das empresas e dos empregos. Nada disso evitou a eclosão de manifestações de massa contrárias às medidas sanitárias emergenciais. No Brasil, porém, a extensão da pobreza e da informalidade exigiria, para a imposição de lockdown nas nossas derramadas periferias urbanas, a mobilização generalizada dos aparatos de repressão. Os gestores, felizmente, não se engajarão em desvarios desse tipo. Nota importante: a esquerda que clama por lockdown seria a primeira voz a condenar as violências policiais decorrentes.

O Brasil não é Araraquara. Há tempos, o Estado brasileiro perdeu o controle sobre a totalidade do território nacional. No Rio de Janeiro, um lockdown exigiria negociações das autoridades com chefes de milícias e do narcotráfico, algo que também seria necessário em favelas fincadas noutras metrópoles. Quando Eduardo Paes descarta a alternativa, não opta pela morte, mas meramente pelo realismo.

Compreendo o desespero dos epidemiologistas que exigem lockdown. Desconfio do discernimento dos comentaristas políticos que ecoam o mantra desses dias sombrios.

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