covid-19
Miguel Calmon du Pin e Almeida: Sobre novas escolhas
Pelo que tenho lido, o maior responsável pelo número de mortes na pandemia que estamos atravessando é o tempo. Adoecemos todos ao mesmo tempo, e assim não dá tempo de cuidar de todos os que adoecem. Morremos aos milhares por falta de assistência médico-hospitalar. Não dá tempo.
O isolamento social horizontal, corretíssima estratégia adotada nos países que têm conseguido melhores resultados no enfrentamento da pandemia, é uma determinação para ganharmos tempo. Ganhar tempo, me repito, significa que não adoeçamos todos simultaneamente, que aconteça a rotatividade na ocupação dos leitos hospitalares, que os recursos necessários aos cuidados possam ser produzidos para todos.... Ganhar tempo, eis o que estamos lutando por alcançar.
Não é curioso que isso aconteça no momento histórico onde a maior parte das reflexões e observações sobre a vida cotidiana fale sobre a aceleração do tempo? Tudo on-line, em tempo real, a capacidade orgulhosamente exibida de estarmos em vários lugares ao mesmo tempo, nos ocuparmos de várias atividades ao mesmo tempo. Na hierarquia que avalia moralmente os indivíduos e as sociedades, quanto mais em menor tempo, mais valioso se é.
A pandemia revirou esta lógica consumista de cabeça pra baixo. No confinamento de cada um de nós, temos sido desafiados a (re)aprender a desacelerar o tempo.
Olhando de longe, para aqueles que tem condições de algum conforto, ficar em casa não parece ser um grande desafio. Olhando de longe. Porque, de perto, vermo-nos privados de pequenas próteses, cuja finalidade é manter nosso equilíbrio mental, nos expõe ao risco de desorganizações as mais variadas, em seus modos e intensidades. Refiro-me a pequenas atividades que servem como barreiras de contenção, barreiras de paraexcitacão, ao desenvolvimento da angústia. Quando tais barreiras nos faltam, ficamos expostos ao risco de não termos como frear o ritmo avassalador com que a angústia nos invade, e de que ela nos prive da maior parte de nossos recursos intelectuais e afetivos.
Tenho pensado que o que justifica o enorme esforço que todos temos feito para “ficar em casa” se dá no encontro e reconhecimento destas pequenas atividades que nos servem como barreiras de contato contra a invasão da destrutividade.
Entender e aceitar que a determinação da OMS para o isolamento social é físico e não afetivo. Com certeza, este entendimento tem favorecido o uso dos mais variados aplicativos, por meio dos quais temos mantido contato com nossos filhos, netos, amigos e colegas. É fundamental não se deixar isolar pelo isolamento social.
Do mesmo modo, os afazeres domésticos: amigos e amigas empenhados em aprender a passar roupa, a cozinhar, faxinar a casa. Outro dia, engraxei os meus sapatos. Isso que dito deste jeito parece uma brincadeira, e em certo sentido o é. No entanto esta brincadeira tem uma função extraordinária ao estabelecer as tais barreiras de contato. Não esperemos que sejam a solução de tudo. Seu reconhecimento se faz na percepção de que, depois de nos ocuparmos mecanicamente destes afazeres, algo em nosso humor mudou. Por um certo tempo, o automatismo exigido nestas tarefas barra, ou, na melhor das hipóteses, desacelera o desenvolvimento da angústia. Tenho observado que aqueles que visam como finalidade de suas ações o se livrar definitivamente da angústia, estes são os que se desesperam. Ao fracassar, se desesperam. Nada mais há por fazer. Liberado o caminho para pulsão de morte, o meio mais rápido para se livrar de tudo é... se livrar de tudo.
Tempos muito difíceis, duros, quando estamos sendo desafiados a desacelerar o tempo a fim de dar tempo para sobrevivermos à pandemia.
Muitas perdas, muitas dores, muito medo.
Ao mesmo tempo, temos tido oportunidade de descobertas as mais surpreendentes, e algumas até mesmo sublimes, que espero que possam se manter para além da pandemia.
O novo coronavírus mudou a face da Terra. Serei apenas mais um a repetir que a vida não será mais a mesma e a maneira com que enfrentarmos a Covid-19 determinará que caminhos se abrirão à nossa frente: se o caminho da necessária e urgente cooperação e solidariedade entre todos (cuidar de mim implica cuidar dos outros e vice-versa); ou se se acirrará o caminho do “América first”, como se a vida no planeta fosse possível em desconexão com os demais indivíduos, esquecendo ensinamentos fundamentais de Freud, principalmente aquele que nos mostra que nos constituímos na relação com os semelhantes.
Ana Carla Abrão: Crédito e contaminação
A renda que se perdeu neste período de isolamento social dificilmente será recuperada
No mundo todo a crise do covid-19 está impondo desafios que vão além dos impactos na saúde e dos efeitos das medidas de isolamento sobre a economia real. O mercado de crédito e o setor financeiro têm também enfrentado uma enorme mudança, e não será diferente pelos próximos anos, dadas as alterações no comportamento do consumidor bancário e as perspectivas econômicas à frente. Crédito e PIB andam juntos. Mais do que isso, mercados de crédito ativos e profundos geram crescimento econômico. Por outro lado, seu enfraquecimento significa um fator negativo adicional, podendo agir como um reforço à recessão econômica que começa a se desenhar.
A economia brasileira já está fortemente impactada pela pandemia. Parte desse impacto, mais severo do que em outros países, se explica pela situação de fragilidade que já nos encontrávamos antes mesmo do primeiro caso oficial ser reportado na China. Afinal, não é de hoje que os problemas fiscais, a dificuldade de retomada consistente do crescimento e as crises políticas deflagradas pelo presidente da República e seu entorno nos assombram. Não é de se surpreender que tenhamos caído nesse abismo. Mas é certamente de se lamentar.
As ações das empresas brasileiras sofreram com quedas médias na B3 superiores às observadas em nossos pares e a desvalorização do real superou a das moedas de países similares. A economia real sente o impacto da interrupção da atividade e marcha a passos largos a caminho da recessão que, sabemos, se traduz em quebra de empresas, mais desemprego, em destruição de riqueza e renda e em aumento da desigualdade. Há que se agir para evitar, ou ao menos minimizar essas perdas.
Pelo lado do mercado de crédito o impacto já está sendo sentido. Inicialmente, a busca por liquidez pressionou as concessões. Na sequência, os programas de recomposição de renda e de linhas de crédito para o pagamento dos salários de pequenas empresas visaram à provisão de liquidez emergencial. Há ainda os programas de recompra de títulos privados de crédito e de liberação de compulsórios, também mirando liquidez e alívio neste momento agudo da crise.
Mas há um futuro pela frente. E ele não parece nada róseo pois não há como ignorar que a renda que se perdeu nestes quase dois meses de isolamento social dificilmente será recuperada. Além disso, a manutenção do controle da pandemia só virá com uma volta gradual da atividade, respeitando protocolos que também imporão a recomposição da renda e das receitas de forma igualmente gradual e em patamares inferiores aos números observados pré-crise. Ou seja, o ano de 2020 (e possivelmente o de 2021) será marcado pela frustração de receita e, consequentemente, pelo aumento do risco e da inadimplência. Se crédito anda junto com PIB, inadimplência responde a desemprego e custo de crédito ao nível de risco. Na nossa última crise, em 2015, a elevação do risco veio acompanhada, como esperado, pela contração do crédito. Não deverá ser diferente nesta crise e precisamos de ações estruturadas, coordenadas e corretas para tentar atenuar esses efeitos sobre a economia.
O ponto de partida é lembrar que ações populistas e midiáticas, como as interferências diretas no funcionamento do mercado de crédito, não trazem solução. Ao contrário, o mercado de crédito no Brasil voltou a crescer e ganhou eficiência graças à reversão das ações atrapalhadas dos finados anos do governo Dilma Rousseff, quando bancos públicos atuaram artificialmente para forçar queda de juros e o BNDES financiou largamente quem não precisava a juros subsidiados. A consequência foi a atrofia do mercado e a transferência de uma enorme conta para o Tesouro Nacional. Ambos extremamente danosos para a economia. Por isso, há que se focar em ações estruturadas, como as que o Banco Central vem anunciando até aqui. Mas é necessário, acima de tudo, fugir das ações fáceis – e invariavelmente danosas – que rompem contratos e criam cunhas. Projetos de lei oportunistas ou as decisões judiciais desprovidas de fundamento encabeçam essa lista.
Não é assim que se mitigam os efeitos da crise sobre o mercado de crédito, mas sim com coordenação, com ações que permitam responder às emergências de curto prazo e construir soluções de médio e longo prazo que preservem os contratos, as regras vigentes e, portanto, a solvência de longo prazo. Do contrário ficará muito mais difícil a volta do crédito e a reconstrução das bases para a retomada do crescimento.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA
Leonardo Padura: O mundo de ontem
Há outras doenças, além da causada pelo vírus, como nacionalismos e fundamentalismos, para as quais não haverá vacina e que despertam temor sobre como as coisas se organizarão
Stefan Zweig foi um romântico europeu que, pouco antes de se suicidar, longe de uma Europa que se desintegrava pela mais desoladora de suas muitas guerras, escreveu um maravilhoso e esmigalhado testamento, intitulado O Mundo de Ontem (1942), no qual falava não de seu próprio devir, “mas do de toda uma geração, a nossa, a única que carregou o peso do destino, como, certamente, nenhuma outra na história”.
A geração do judeu austríaco Zweig é a que nasce na Europa do final do século XIX, vive em sua juventude a Primeira Guerra Mundial e o triunfo da Revolução de Outubro e, em sua maturidade, a perversão utópica executada pelo stalinismo, a ascensão paralela do nacional-socialismo e conflitos fratricidas como a guerra civil espanhola. A fornada europeia que, já em sua velhice, assiste ao início da Segunda Guerra Mundial, com Holocausto incluído.
Stefan Zweig se suicidou em seu exílio brasileiro em 1942 e não soube que cairiam bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Muito mais recentemente, o muito reconhecido e lido Noah Yuval Harari (também judeu, aliás, também heterodoxo, claro) nos recorda em suas 21 Lições para o Século 21 que o homem de hoje, nossa afortunada geração, foi, ao longo de toda a história do Homo sapiens, a que menos riscos teve de morrer de fome, de guerra ou de epidemia, os três grandes flagelos que sempre perseguiram a humanidade. E oferece cifras que sustentam sua afirmação.
Harari, entretanto, nem por isso deixa de expressar seus temores sobre as características e qualidades deste tempo presente no qual se perdeu boa parte da fé de que desfrutavam o pensamento e o modelo liberal, incluindo a globalização, enquanto os países se blindam com muralhas de nacionalismo e fundamentalismos religiosos excludentes, quando a humanidade se encontra mais perto de um horripilante descalabro ecológico. E o historiador israelense anota, além disso, as incertezas geradas por um futuro presumivelmente desenhado por inteligências artificiais alimentadas por algoritmos ou criações do estilo.
Acredito, como Harari e como muitos outros, que pertenço à geração que sofreu menos a violência bélica, que nasceu com mais anos de expectativa de vida, teve mais altura para se debruçar sobre o futuro, inclusive para vivê-lo e se congratular com ele. E também de se horrorizar com as variantes possíveis desse futuro que parece cada vez mais próximo.
Nas décadas que vão da nossa adolescência à idade adulta, fomos testemunhas presenciais de uma mudança de era histórica: o trânsito arrasador dos tempos dos recursos mecânicos e analógicos para o período do império da digitalização, com todas as múltiplas consequências positivas e negativas que tais processos revulsivos costumam entranhar.
Hoje somos beneficiários de ferramentas de comunicação, conhecimento, de avanços médicos, de mobilidade que meio século atrás pareciam argumentos exclusivos de filmes de ficção científica. As revoluções da tecnologia da informação e da biotecnologia mudaram quase tudo, e é certo que mudarão até mais dentro de alguns anos. Somos melhores por isso? Viveremos melhor no futuro? Fará mais sentido a falta de sentido existencialista da vida? Devo admitir que tenho sérias dúvidas a respeito. E não só porque esteja ficando velho e, talvez, me tornando um lamentável conservador, e o meu recipiente de pessimismo transborde. A conjuntura universal que hoje vivemos, calcada em fantasias como as de H. G. Wells em A Guerra dos Mundos, é uma confirmação dolorosa.
Minha afortunada geração, junto a seus tremendos feitos científicos, sofreu também profundos traumas capazes de alterar muitas de nossas percepções da vida e a forma de encará-la. Quando desfrutávamos da juventude apareceu e nos traumatizou a aparição do HIV/Aids, uma doença então mortal, que afetou de maneira bastante radical o exercício da sexualidade. Uns vinte anos depois, fomos vítimas, e todos, ao mesmo tempo, telespectadores, do ataque de 11 de setembro de 2001 que transformou os cânones da segurança, introduziu o medo do terrorismo na política de Estado e o transformou em um trauma individual que conseguiu degradar o desfrute da viagem, da aventura, do descobrimento (entre outros gozos), para fazer dele uma tarefa cheia de entraves e traumas (você não pode viajar de avião com um potinho de iogurte na sua bagagem de mão). E se achávamos que já tínhamos o bastante, justo quando chegamos aos tempos de maior desencanto político das últimas décadas (ou de desencanto com os políticos e suas atuações que estivemos sofrendo nas últimas décadas), pois nos apareceu o coronavírus, ou covid-19, que nos impede de viajar e nos recomenda não nos aproximarmos de outras pessoas – e nem sonhar em fazer sexo com um desconhecido. Que nos falemos com um metro e meio de distância entre nós, que nos autoconfinemos…
O mundo que parecia se ampliar e se tornar menos alheio (mais globalizado) é hoje um lugar hostil, de onde devemos nos afastar se quisermos chegar a viver os oitenta anos de média que nos deram de presente os avanços médicos, uma melhor alimentação e a superação de grandes guerras. Devemos nos trancar e nos comunicar com cuidado, melhor se for através do Facebook ou do Instagram, sem saber até quando não poderemos assistir a um evento esportivo ou a um show musical, porque devemos tomar cuidado com as grandes aglomerações de pessoas. Fugir dos beijos e abraços.
O mundo que parecia se ampliar e se tornar menos alheio é hoje um lugar hostil, de qual devemos nos afastar
A justificadíssima histeria gerada por este novo vírus tem e terá proporções e consequências realmente apocalípticas, independentemente de sua justificação real, avalizada pelas cifras de contagiados e mortos. O fato é que as economias cambaleiam, as sociedades se fecham, a maravilhosa ciência da era digital patina e não avança. A mesma ciência que decodificou e sintetizou o genoma humano, mas ainda não conseguiu um antídoto contra o câncer, a epidemia mais incontrolável destes tempos, que cada dia mata tantas pessoas como o coronavírus…
Até onde chegaremos nesta corrida de dor e medo? Ninguém sabe. É o fim dos tempos, da sociedade? Não, não é o fim dos tempos nem da sociedade, mas pode ser o fim de uma maneira de viver no tempo e em sociedade. Pressinto que, mesmo com uma (relativamente) rápida solução da crise sanitária que hoje vivemos e tanto nos aterroriza, nosso mundo não voltará a ser o mesmo, e não para melhor. E não sou dos que acreditam que o mundo de ontem tenha sido o mais feliz e que devemos recuperá-lo, como pede Trump quando clama por devolver à América a grandeza perdida. A grandeza dos tempos de uma feroz discriminação racial legalizada (proibida a entrada de cães, judeus e negros), por exemplo? Ou uma grandeza como a que sonha um Putin, que se reelegerá presidente ad infinitum: a recuperação do orgulho russo graças ao qual os cidadãos talvez pudessem escolher entre czarismo e stalinismo, se é que algo podem escolher.
O mundo de ontem, o ontem de nossa privilegiada geração, não era melhor, embora cada vez mais nos pareça assim. “Acontece que estávamos melhor quando acreditávamos que estávamos pior”, disse-me alguém. Porque, até com as amostras de solidariedade e de altruísmo que aplaudimos, o mundo de hoje está doente, não só de coronavírus, mas sim de outros males para os quais não haverá vacinas (nacionalismos, fundamentalismos) e me faz temer por como se organizará o mundo de amanhã, talvez quando os poderes políticos nos digam que outra vez podemos nos beijar e nos abraçar, nos falar e nos tocar… e já tenhamos medo de fazê-lo ou, inclusive, não saibamos mais como fazê-lo.
*Leonardo Padura é escritor.
Mario Sergio Conti: O inferno são os outros, e os outros fazem carreatas em defesa da peste
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, 'Entre Quatro Paredes'
A peste pegou em cheio a linguagem pública e a particular. A pública porque ela é manipulada pelo poder para perverter a realidade. A particular porque, apinhados e à míngua entre quatro paredes, os pobres foram silenciados. A verborreia dos dominantes mantém a mudez dos dominados.
Ilustração de carros verdes enfileirados dando a volta em um quadrado amarelo. O quadrado parece um cômodo vazio com uma pessoa deitada no chão. Há um círculo azul na imagem e algumas bandeiras do Brasil em alguns carros.
A perturbação linguística desmoraliza clichês da idade clássica. Caso do Rubicão, o rio que generais eram proibidos de cruzar para não se acercarem com tropas do coração do império, Roma. Júlio César o cruzou e disse: “A sorte está lançada”. Deu-se bem e virou ditador.
Bolsolígula disse que a peste era gripezinha e o confinamento, asneira. Propagou perdigotos. Pregou a ditadura nas barbas do Supremo e do Congresso, exortando a tropa a atropelá-los. Enxotou o ministro da Saúde e depois o da Justiça, cortesãos sebosos que tantos serviços lhe prestaram.
Toda vez que Bolsonero atravessou o Rubicão, ouviu-se a algaravia da indignação oficialesca, acompanhada por semblantes graves. Mas sobressaiu na cacofonia o vagido ameno, o bacharelês castiço, o dó de peito impotente dos potentados: “Lamentável sob todos os aspectos etc.”.
Já não há Rubicões: eis a novidade além-linguagem. Ele foi cruzado tantas vezes que quase dispensa uma boa quartelada. Na republiqueta do Messias, milicos mandam e paisanos obedecem. Antes, contudo, as vestais de toga encaram os fardados e, altivas, questionam: “Quer um café, general?”.
A última azeitona verde-oliva na empada do Planalto é o interventor na Saúde. Ele logo avisou: “Vou como instituição, não como Eduardo Pazuello”. Ao funéreo ministro nominal, o chofer do rabecão, cabe olhar o chefe nos olhos e indagar: “Que tal uma fatia de bolo, general?”.
Militares na política têm uma vantagem crucial sobre políticos civis. Como não querem votos, e sim cargos e salários, não posam de Miss Simpatia. Dirigem suas piscadelas coquetes apenas ao capitãozinho que tem a caneta.
Mas a má fé dos de quepe é idêntica à dos sem-quepe.
Mal chegados ao Planalto, os generais já prometeram um Plano Marshall. Há 81 anos, o plano original respondeu à pressão dos povos europeus que venceram o nazismo.
Em 1945, houve guerras civis na Grécia e nos Balcãs; insurreições na França e na Itália; expropriações no Leste.
O Plano Marshall respondeu também ao interesse americano em reconstruir a Europa. Os Estados Unidos investiram ali o equivalente a US$ 100 bilhões. Pois bem. Existe pressão popular hoje? Há interesse em pôr capital produtivo no Brasil? Alguém vê US$ 100 bilhões à disposição?
A quimera militar, pois, é como a mitológica: tem cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. É uma figura especiosa da retórica, uma mentira troncha para enganar os trouxas. Como diz o vulgo, é uma fake news —um meticuloso amálgama do simbólico com o real.
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, “Entre Quatro Paredes”. Ela se passa dentro de um quarto, onde se digladiam um escritor heroico que se acovarda, uma patroa infanticida e uma funcionária ressentida.
Sem referências rombudas, por meio de uma linguagem estupenda, se percebe que, fora do quarto, rondam os lobos acinzentados, os nazistas, os colaboracionistas da ocupação. No fim, se revela que, sem demônios de tridente, enxofre e labaredas dramáticas, o quarto é na verdade o inferno.
As três personagens estão condenadas a se atormentarem por toda a eternidade. A última fala da peça marcou época: “O inferno são os outros”. Ao contrário do clichê que se tornou, ela mostra o primado da vida social, a interdependência entre o ser e os outros, e não sua solidão infinita.
Ela pode ser completada por duas outras frases de Sartre: “a existência precede a essência” e “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo”. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes, a liberdade será motivo de engajamento, um devir. O inferno são os outros.
Alguns outros. Os lobos promovem carreatas pela peste na avenida Paulista e Brasil afora. Seguem ordens do presidente e de seu clã, dos seus generais, empresários e milicianos. A linguagem deles não é a da lei nem a da urbanidade. É a da mentira, da força, da agressão. São fascistas.
Eles devem ser enfrentados como tais. Com firmeza, união e audácia, e não com nhenhenhém. A existência da peste, vivida entre quatro paredes, ensina o que está na essência de Bolsonaro e sua gangue: a vontade de destruir e dominar.
*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
Demétrio Magnoli: Ciência serve para políticos fugirem à responsabilidade por suas decisões
Na guerra, o poder deve ser transferido aos generais? Na emergência sanitária, devemos recorrer ao 'governo dos epidemiologistas'? A resposta democrática é duas vezes 'não'
O físico Neils Bohr, um dos fundadores da teoria quântica, sabia o que não sabia. “A predição é muito difícil, especialmente sobre o futuro”, afirmou ironicamente, para explicar que a ciência cuida, essencialmente, da descrição. É útil recordar sua frase, nesses tempos em que líderes políticos —com o apoio de não poucos cientistas presunçosos— enchem a boca para dizer que suas decisões sobre a emergência sanitária fundamentam-se “na ciência”.
João Doria decidiu, “com base em ciência”, conservar regras lineares de isolamento social no estado de São Paulo, até 10 de maio. Já Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, resolveu flexibilizar as restrições no interior de seu estado —claro, “com base em ciência”. Os cenários são similares, embora não idênticos. A ciência também poderia ser invocada por cada um deles para adotar as iniciativas do outro.
O finado Mandetta justificou o isolamento social com o argumento de evitar o colapso hospitalar, um raciocínio que propicia flexibilizações em áreas de baixa pressão sobre leitos e UTIs.
O neurocientista Miguel Nicolelis, que assessora os governadores do Nordeste no mapeamento da epidemia, discorda veementemente. Segundo ele, em entrevista à TV, o isolamento social tem a finalidade muito mais ambiciosa de “evitar contágios”, o que exigiria rígidas quarentenas em todos os lugares, por período indefinido. Os dois falam —adivinhe!— em nome “da ciência”.
A ciência está na moda —o que é sempre bom, e melhor ainda nessa era de Bolsoneros, rezas coletivas para assustar o vírus, presidentes que receitam remédios, teorias conspiratórias veiculadas por ignorantes com cargo público. Contudo, o fetiche da ciência não ajuda a ciência e, sobretudo, serve como vereda para os políticos fugirem à responsabilidade por suas decisões, que são sempre políticas.
A ciência faz descrições e, no limite, formula hipóteses probabilísticas sobre o futuro. Um modelo sobre a pandemia da Universidade de Washington recomenda que nenhum estado dos EUA reabra a economia antes de maio —e que alguns deles só o façam no longínquo julho. Mas, rejeitando o fetichismo, o responsável pelo estudo disse que “se fosse um governador, certamente não tomaria decisões baseadas apenas no nosso modelo”.
O modelo da Universidade de Washington reflete, exclusivamente, uma especialidade científica: a epidemiologia. Não desapareceram, contudo, na tempestade viral, outros campos do conhecimento, como a sociologia e a economia (a “ciência sombria”, na definição de Thomas Carlyle). Essas ciências têm algo a dizer sobre os efeitos não epidemiológicos do congelamento prolongado de amplos setores da produção e do consumo.
A maior depressão mundial desde a Grande Depressão terá fortes implicações sobre a saúde pública. A ONU alerta para o risco de uma “fome de proporções bíblicas” em países pobres, como resultado da ruptura do sistema econômico. Investigações (científicas!) realizadas nos EUA indicam que o desemprego de longa duração corta a expectativa de vida em algo entre cinco e dez anos. Há mais coisas sob o sol do que o vírus.
O fundamentalismo epidemiológico (“evitar contágios”) pode ser tão desastroso quanto a negligência criminosa (“uma gripezinha”). A saída encontra-se na ciência desfetichizada —ou seja, numa visão holística da emergência sanitária.
A Alemanha, com folga no sistema de saúde, reduz paulatinamente as restrições na hora em que ainda se registram milhares de novos contágios diários. É uma decisão política, certa ou errada, tomada pelos representantes eleitos, não por epidemiologistas.
Na guerra, o poder deve ser transferido aos generais? Na emergência sanitária, devemos recorrer ao “governo dos epidemiologistas”? A resposta democrática é duas vezes “não”. No segundo caso, inclusive, para não converter a ciência em superstição.
*Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
William Waack: A sofisticação de Bolsonaro
Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados
Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados.
Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente ampla e coordenada na Câmara dos Deputados.
Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.
Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai.
A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas) encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em grandes obras e ver no que dá.
A possibilidade surgiu com a tal ajuda de emergência a governadores e prefeitos que o próprio ministro da Economia chamou de “farra fiscal aproveitando-se de uma crise de saúde pública”. As modalidades desse socorro estão em negociação, mas já abriram uma avenida que permitiria ao Executivo utilizar um “orçamento de guerra” praticamente sem limites e sem restrições do tipo Lei de Responsabilidade Fiscal.
Claro, enquanto for tudo “temporário”, isto é, enquanto durar o estado de calamidade. Sabe-se que, no Brasil, “temporário” em questões fiscais é termo elástico – desonerações “temporárias” de folhas de pagamento, por exemplo, já duram uns 10 anos. E a julgar pelo que se ouve falar no Planalto, o “temporário” entraria pelo próximo ano (para provável desespero do secretário do Tesouro) e abriria a janela para execução de um plano de recuperação baseado em investimentos públicos com foco central em infraestrutura.
É um tipo de intervenção estatal que requer centralização e coordenação e a tarefa foi atribuída a um oficial de Estado-Maior, general Braga Netto, ministro da Casa Civil. Talvez uma pitada de oportunismo político (quem não tem?) tenha levado o ministro Paulo Guedes, um dedicado aluno de Milton Friedman, a cooperar estreitamente nessa empreitada e abraçar-se a John Maynard Keynes. Famoso pela frase, entre outras, de que “se mudam os fatos, eu mudo de opinião” (Guedes, tal como os clássicos Friedman e Keynes, gostaria que os políticos o ouvissem mais).
Os fatos que mudaram são de enorme magnitude. A crise do coronavírus tornou imprevisível o tamanho da tragédia de saúde pública e econômica no mundo e no Brasil. Ela escancarou a falta de liderança no topo do Executivo, a profunda disfuncionalidade do sistema de governo brasileiro e agravou a situação de um país já prisioneiro da armadilha da renda média, com produtividade estagnada – e sem ter conseguido levar adiante o essencial das reformas estruturantes.
Sim, não há manuais prontos para lidar com uma crise dessas. Que já é uma lição prática do esqueçam o que eu disse antes.
RPD || Lilia Lustosa: Ficção sem tela
A ficção invadiu a realidade com Covid-19 e as plataformas de streaming ganharam destaque por sua utilidade para a humanidade em crise, dando uma trégua à guerra entre a telinha e a telona, avalia Lilia Lustosa
Sempre fui grande fã de ficção científica e de distopias. Os livros que mais me marcaram na adolescência foram Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Adulta, descobri Saramago e me encantei por seu Ensaio sobre a Cegueira, depois transformado em filme por Fernando Meirelles. Adaptação, aliás, que levou o escritor português às lágrimas quando de seu lançamento. No cinema, me marcaram Metrópolis (1927), de Fritz Lang, e Blade Runner (1982), de Ridley Scott. A verdade é que cenários distópicos sempre me fascinaram, não sei muito bem por que… Acho que imaginar como nós, seres humanos, agiríamos em situações extremas sempre desafiou minha mente. Ficava pensando em que soluções encontraríamos para superar obstáculos e restrições impostas, quão criativos seríamos para encontrar novas formas de viver. Mas eis que, de repente, a ficção invadiu a realidade e, agora, somos nós, os personagens daquelas ficções que tanto me encantavam. Hoje, a tela que nos separava daqueles universos fantasiosos já não existe mais. E, como meros personagens desta narrativa catastrófica, não temos quase nenhum poder de edição, a não ser seguir o script, trancafiados em nossas casas até a curva da pandemia “achatar”.
Diante deste cenário orwelliano, nunca as plataformas de streaming puderam ser tão úteis a nossa humanidade em crise, dando uma trégua à guerra entre a telinha e a telona. Estamos todos impedidos de ir ao cinema. Bem como ao teatro, ao estádio de futebol, ao churrasco com os amigos e por aí vai. Nesta hora, a sobrevivência da sétima arte parece ter como grandes aliadas as Netflix, Amazon Prime e Google Play da vida. O mundo para, mas a sétima arte continua viva! E mais: pode ser um grande remédio, ajudando a passar o tempo, divertindo, ensinando, distraindo, fazendo refletir, rir e chorar, mas podendo, também, ampliar nossos medos e angústias.
Talvez por essa razão, boa parte dos espectadores tem dado preferência atualmente a comédias leves ou aos chamados feel good movies. Algo capaz de fazê-los esquecer o que se está passando ao redor de suas quatro paredes, de sua bolha de proteção. Outros, como eu, vêem-se tentados a mergulhar de vez no universo das pandemias, revendo filmes como Contágio (2011), do premiadíssimo Steven Soderbergh, ou a assistir pela primeira vez a Epidemia (1995), de Wolfgang Petersen, a A Gripe (2013), do coreano Sung-Su Kim, a 93 dias (2016), do nigeriano Steve Gukas ou, ainda, à série documental Pandemia, produzida recentemente pela Netflix. A ideia sendo comparar aquelas ficções à nossa real-ficção. Algo que fascina e traz medo ao mesmo tempo. Medo de ficar ainda mais neurótica. Medo de achar que toda tosse é coronavírus. Medo de perder um ente querido. Medo de enxergar todo o sofrimento do mundo, já sem nenhuma tela de proteção.
Além das gotículas criminosas filmadas em close e em slow motion, todas essas ficções apontam para o isolamento – ou quarentena – como um dos primeiros passos a serem tomados no combate à contaminação. O despreparo dos sistemas sanitários para a contenção de um vírus desconhecido e a falta de investimentos necessários em pesquisas científicas são temas igualmente recorrentes. Fator ressaltado também na série Pandemia, composta por seis episódios que narram as lutas diárias de alguns profissionais da área de saúde – médicos, pesquisadores ou atores da OMS, USAID – para salvar vidas em diversos lugares do mundo (EUA, India, Congo, Vietnam). O que se apreende dali é que, apesar dos vários alertas dados pelo mundo científico nos últimos anos, os países não se prepararam devidamente para enfrentar a chegada de uma pandemia. Fato, aliás, constatado e confirmado cada vez que ligamos a televisão ou abrimos um jornal hoje em dia.
A produção, que é de 2019, deixa bem claro que estava muito próximo o momento em que uma nova pandemia iria emergir no planeta, sendo, portanto, da maior urgência preparar hospitais, profissionais de saúde, acelerar o andamento das pesquisas etc. E o que fizeram nossos líderes? Investiram em armas e em campanhas eleitorais para se manterem no poder. Negligenciaram as pesquisas tão necessárias para desenvolver novas vacinas e os estudos capazes de detectar os vírus ainda nos animais, antes que passassem para os humanos. Temas que, de alguma forma, também são discutidos, mesmo que de forma maniqueísta – por vezes, caricata –, nos filmes de ficção aqui mencionados, que colocam, de um lado, a classe científica correndo atrás de respostas, e de outro, os mandatários do poder escolhendo em que momento agir e divulgar tais respostas.
Com relação à estética, o coreano A Gripe destoa um pouco de 93 Dias, Epidemia e Contágio pelo paroxismo de sua mise-en-scène, que mostra, por meio de uma câmera nervosa e de uma iluminação sombria, imagens grotescas de sangue jorrando, cadáveres sendo empilhados e corpos infectados, incinerados ainda vivos como medida de contenção do vírus. Uma narrativa um tanto quanto inverossímil (assim esperamos!), que leva ao extremo o dilema trabalhado também em Epidemia: exterminar a população de uma única cidade versus deixar contagiar a população de todo um país. Produção americana com elenco de peso (Dustin Hoffman, Morgan Freeman, Kevin Spacey, Rene Russo e Cuba Gooding Jr.) que sugere, ainda, a possibilidade de uma eventual guerra biológica, revelando a descoberta de um vírus letal por parte dos militares dos EUA, informação guardada a sete chaves pelo governo daquele país.
Contágio, outro filme americano com grande elenco (Matt Demon, Kate Winslet, Gwyneth Paltrow, Jude Law e Marion Cotillard) opta por destacar o papel das redes sociais como divulgadoras de informações sonegadas à população pelos meios oficiais. Ao mesmo tempo, mostra-as também como difusoras de informações ainda não confirmadas, as famosas fake news. Na nossa real-ficção de hoje, o canal brasileiro de Youtube Spotniks, entre outros, faz o papel do teórico da conspiração interpretado por Jude Law, tendo disponibilizado recentemente o impactante Timeline Covid-19, reportagem sobre a evolução da pandemia no mundo, desde seu provável início até 31 de março.
O conteúdo ali apresentado deixa a OMS e o Estado chinês em maus lençóis, em função da lentidão em divulgar as verdadeiras informações sobre a real gravidade do novo coronavírus. Já no prólogo, a fórmula “Do futuro desta saga pouco sabemos. Do passado, aprendemos que os homens públicos podem ser tão inescrupulosos quanto um vírus” sintetiza bem o conteúdo da reportagem. É interessante notar, porém, que o Brasil ficou praticamente de fora da análise, até mesmo no momento em que o texto cita “líderes caricatos” que se recusam a acreditar no efeito desastroso da Covid-19, como os presidentes da Bielorússia, Alexander Lukashenko, e do Turcomenistão, Gurbanguly Berdymukhamedov.
Das ficções aqui mencionadas, 93 Dias é a única que se baseia em fatos reais, narrando a chegada do ebola à Nigéria, trazido por um diplomata liberiano. A história é contada sob a perspectiva da equipe médica que tratou do paciente e que, comandada pelo braço forte da Dra. Ameyo Adadevoh, conseguiu identificar rapidamente o vírus e isolar imediatamente o paciente, contrariando ordens das autoridades locais. No espaço de 93 dias, com 20 casos confirmados e 8 mortes, a OMS decretou a Nigéria um país livre de ebola e a Dra. Adadevoh foi transformada em heroína nacional. Apesar da produção modesta, bem diferente das produções hollywoodianas a que estamos acostumados, este case de sucesso nigeriano pode ser um bálsamo de esperança para tempos tão bizarros.
Por outro lado, Pandemia parece-me a produção mais aterrorizante de todas, já que, no caso das ficções – sobretudo em função de suas narrativas clássicas –, depois de duas horas de tensão, chega-se a uma solução, a um estado de alívio. Ao passo que, na real-ficção que estamos vivendo, tão bem retratada pela série, ainda não se pode antever esse momento de respiro.
A verdade é que, hoje, nenhuma ficção supera a angústia propiciada por nossa realidade. Ao contrastar ficção e mundo real, porém, podemos acreditar (talvez como o Cândido, de Voltaire) que os líderes mundiais – ao menos, quase todos – estão tomando atitudes importantes e sensatas para resolver a maior crise que nossa geração já viu. E mesmo que algumas informações nos estejam sendo omitidas, bem ou mal, ações estão sendo tomadas a fim de frear a pandemia. E isso já é um alento, permitindo-nos, quiçá, vislumbrar os créditos no final do filme.
RPD || Gloria Alvarez: Compartilhar. Um ato de cidadania
O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que o mundo inteiro está vivendo com a pandemia de Covid-19, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem, avalia Gloria Alvarez em artigo
Da noite para o dia, milhões de brasileiros que diariamente trabalhavam para, naquele dia, ter o que comer em casa ficaram desamparados, sem alternativa para substituir o desemprego ou o subemprego. A chegada da pandemia provocada pelo Novo Coronavírus fora determinante e desesperante, especialmente para aqueles milhões que não pertencem ao Cadastro Único do Ministério da Cidadania, não têm Bolsa Família, muito menos FGTS, RG, título de eleitor e um simples CPF regularizado. Um desses brasileiros, respondendo a um repórter, definiu-se como “uma pessoa que não existe”. Foi quebrada a rotina diária de passar a montar a barraquinha de biscoitos, balas e chocolate, e ficar sob sol e chuva à espera do resultado de suas vendas. No final do dia, depois das contas com o “empresário” (o dono da barraquinha e dos produtos), mal ou bem, restava algum para gastar na vendinha comprando a refeição das crianças e da mulher. Agora, nem pensar. A barraca não podia mais ser montada. O negócio terceirizado dessa “pessoa que não existe” fora fulminado pelas ações preventivas para conter o vírus.
Na comunidade onde esse típico nordestino acariocado mora, instalou-se o medo. As entidades que distribuíam cestas básicas cerraram as portas. As faxinas que sua mulher fazia foram desmarcadas e a hora de pagar o aluguel do quartinho se aproximava, ao passo que os sacos de arroz e de feijão murchavam. E a recomendação geral era “não sair de casa”. Como? Ficar sem comida? Aumentar a dívida na vendinha? Como pagar depois? Esse cidadão brasileiro, invisível, não viu outra saída.
A primeira fagulha de luz no fim do túnel chegou com uma cesta básica entregue por quem menos esperava: o “empresário” que fornecia as balas e os biscoitos para ele vender. Claro que na cesta havia muita bala e biscoito. Mas também açúcar, feijão e arroz. Emocionado, agradeceu,
Logo depois, uma das clientes da mulher ligou pedindo sua conta bancária (como se ela tivesse...). Queria depositar a diária, apesar de a faxina não ter sido feita. Benza Deus!
A escola das crianças, fechada, sem aulas, mandou aviso: distribuiria para os pais o estoque de alimentos destinados à merenda dos alunos antes que o prazo de validade vencesse.
O líder comunitário comunicou que o movimento Ação da Cidadania (fundado pelo sociólogo Herbert de Souza) estava recolhendo nos restaurantes estoque de alimentos in natura, que em breve também venceriam, e entregando para as associações distribuírem nas comunidades do Rio de Janeiro.
Nosso personagem começou a sentir alguma mudança. Será? Pensou esperançoso.
Os especialistas não parecem ver, ainda, essa tão esperada mudança na cultura de doação do brasileiro. E como seria bem-vinda para ajudar esses cidadãos invisíveis a tomarem rumo e acertarem o passo no caminho de um reconhecimento social... Ora justificam que a crise econômica e a política deixaram o brasileiro desconfiado ao escolher uma causa para contribuir. Ora argumentam que é uma questão de educação, que deve vir de casa e da escola. “O brasileiro não considera a doação como um ato de cidadania”. Alegam também que não há estímulo governamental para aumentar as doações. Esses espasmos de solidariedade nos momentos de crises são previstos por esses técnicos que dirigem associações e organizações sem fins lucrativos (ONGs). A prática que têm no dia a dia, tentando reverter a vida de inúmeros cidadãos invisíveis, embasa tais opiniões.
Apontam, no entanto, que estimular a cultura de doação seria um dos grandes passos para fortalecer a sociedade civil. Algumas iniciativas criativas germinam e trabalham para promover essa mudança no conceito de solidariedade. O Arredondar (arredondar.org.br), por exemplo, desde 2011 adota as microdoações, geradas a partir do troco no varejo. De centavo em centavo, já arrecadaram quase R$ 5 milhões através de 23 milhões de doações. No portfólio da entidade estão catalogadas mais de 80 ONGs certificadas, que são beneficiadas.
O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que estamos vivendo com o coronavírus, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem. Elas atuam fiscalizando o comportamento do Estado, dão voz às populações e complementam a ação das políticas públicas. Nesses momentos a credibilidade, a capacidade e a organização para receber e distribuir doações mobilizam a solidariedade. Um exemplo foi o sucesso que a Comunitas (www.comunitas.org) alcançou ao levantar R$ 4,2 milhões para doar 60 respiradores para hospitais públicos de São Paulo e ainda mais R$ 23,5 milhões e mais 345 respiradores. O link https://emergenciacovid19.gife.org.br registrava R$ 1.037.862.747,00, no dia 08/04. Era o total parcial do levantamento feito pela campanha Emergência Covid-19, através de institutos, fundações e empresas.
Ações solidárias espontâneas brotaram também de março para cá. Dois restaurantes do Recife se revezam no fornecimento gratuito de almoço para os profissionais de saúde. Na marmita, um bilhete intitulado “Um sincero obrigado”. Inúmeros professores promovem aulas gratuitas de ginástica, de inglês, artesanato, gastronomia, administração de finanças e palestras. Médicos se oferecem nos prédios onde moram e na vizinhança para “avaliar situações de gastroenterites, hipertensão e outras doenças, para renovar receitas de remédios de uso contínuo e orientar sobre sintomas de urgências”. Jovens colocam avisos nos elevadores e os distribuem pelas mídias sociais (www.vizinhodobem.com.br) oferecendo-se para atender a idosos que precisem de compras de mercado ou farmácia.
Na situação em que vivemos, com uma pandemia que está matando dezenas de milhares de habitantes do planeta e esfacelando todas as economias mundiais, só há uma esperança para quem, hoje, se sente como “pessoa que não existe”: uma radical mudança no comportamento do ser humano, adotando o ato de compartilhar tempo ou dinheiro como uma ação civil transformadora e construtiva. Como? Deixando de querer só para si e conseguindo enxergar quem está ao seu lado, implorando para deixar de ser invisível.
RPD || Ricardo Tavares: Democracia estressada
Política norte-americana segue intensa e no centro da epidemia do coronavírus Covid-19 que assola os Estados Unidos. Enquanto Trump demostra grande dificuldade em se adaptar ao novo cenário para concorrer à reeleição, os democratas definiram Biden como o candidato à Presidência
O novo corona vírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa. Nos EUA, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano.
O Presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade.
No Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o Vice-Presidente Joe Biden e o Senador Bernie Sanders; Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato Democrata à Presidência.
O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado Democrata em eleições recentes. No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho.
Trump
Trump não esconde sua decepção com a pandemia. Esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico. Em fevereiro, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.
O presidente dos EUA está mostrando grande dificuldade de se adaptar ao novo cenário. Sua administração está povoada de pessoas leais, independente de sua competência. Mesmo com os pacotes de apoio a pessoas e empresas já aprovados pelo Congresso, a implementação administrativa das políticas tem sido lenta e ineficaz.
Se os eleitores decidirem se preocupar com o desempenho do Presidente na área de saúde, a situação de Trump pode ser ainda pior, dependendo do status da pandemia próximo à data das eleições, 3 de novembro. De momento, ainda falta tudo nos hospitais americanos. Médicos compram suas próprias máscaras em muitos Estados. O governo federal não coordena as iniciativas dos estaduais, é cada um por si. Alguns Estados estão-se coordenando entre si. Os EUA ainda são o único país capaz de liderar uma ampla coordenação internacional de resposta à crise da pandemia, mas a diplomacia americana parece estar falida.
Biden
As eleições de novembro serão Trump X Biden. Joe, como o candidato é popularmente conhecido, fez uma campanha bastante errática nas primárias do Partido Democrata. Perdeu as três primeiras primárias. O crescimento de Bernie Sanders assustou os centristas do Partido, que se uniram em torno de Biden para impedir uma vitória do candidato visto como socialista. O golpe de misericórdia em Sanders, no entanto, foi dado pelos eleitores negros nas primárias do sul dos EUA. Foram vitórias avassaladoras em Estados onde os membros do Partido são predominantemente negros que criaram momento para a candidatura de Biden, até o ponto em que sua vitória se tornou certa. O conceito de “classe trabalhadora” de Sanders não atraiu o eleitorado negro.
Biden é admirado por seu grande trabalho como Vice-Presidente de Barrack Obama, o primeiro presidente negro da história do país. Mais: os eleitores negros são o grupo mais fiel ao Partido Democrata. As condições sociais desta população melhoram em administrações democratas. Sem uma maciça presença de eleitores negros nas urnas – o voto nos EUA é facultativo – é quase impossível uma vitória Democrata para a presidência.
Quatro anos atrás, Bernie Sanders continuou em campanha contra Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, mesmo depois de não ter mais chances de vitória. Isto contribuiu para o desgaste da candidatura de Clinton, e foi aproveitado pela campanha de Trump. Muitos eleitores que votaram em Sanders nas primárias do Partido Democrata vieram a votar em Trump, principalmente em Estados do meio-oeste. A saída de Sanders das primárias, diante da crise da pandemia e do risco de um prolongamento até o verão americano deste processo, tenta evitar uma repetição deste fenômeno.
No entanto, é impossível prever o resultado das eleições de novembro. Biden cresceu na adversidade durante as primárias. Venceu apesar de ter menos dinheiro de campanha do que Sanders. Mas mostrou deficiências como debatedor e ator de campanhas. Biden enfrentará em novembro a campanha extremamente bem financiada de Donald Trump, que joga pesado e não hesita em usar táticas de baixo nível.
Estresse
Nenhuma democracia ocidental em um país desenvolvido possui um partido político dedicado a desencorajar estrategicamente eleitores de irem às urnas. O Partido Republicano de hoje é um partido de base rural num país totalmente urbanizado. Reúne quatro forças essenciais para seu sucesso: uma aliança de grupos “pro-business”, religiosos evangélicos, defensores do acesso fácil a armas (organizados nacionalmente pela NRA – National Rifle Association), e o importante apoio do grupo de media Fox News, do empresário australiano-americano Robert Murdoch.
Em 2016, Trump perdeu no voto popular agregado nacionalmente, mas ganhou no Colégio Eleitoral, através do qual o presidente é escolhido por delegados eleitos Estado por Estado. Este Colégio é uma influência do federalismo do sistema político americano e neutraliza a influência dos Estados e das cidades mais populosas. Como o voto é facultativo, a lógica eleitoral tem dois elementos – motivar seus eleitores a ir votar e, ao mesmo tempo, desencorajar os eleitores de seu opositor a se apresentar nos locais de votação. A eleição ocorre num dia comum de trabalho. Nas últimas eleições presidenciais, o índice de votação variou entre 49%, em 1996, ao máximo de 58.2%, em 2008, quando Obama venceu pela primeira vez. Em 2016, somente 55.7% dos eleitores inscritos compareceram às urnas.
Um episódio preocupante ocorreu na semana passada em Wisconsin. O governador do Partido Democrata, Tony Evers, determinou o adiamento das primárias no Estado para junho deste ano, a fim de evitar a aglomeração de pessoas, por conta da pandemia. O legislativo estadual, controlado por Republicanos, apesar de os Democratas obterem a maioria dos votos no Estado, recusou a mudança. O caso foi parar na Suprema Corte do EUA, que deu ganho de causa aos legisladores. O voto ocorreu sob grande risco para os eleitores.
Esta batalha pelas condições de votação durante a pandemia pode chegar até o dia 3 de novembro de 2020, data das eleições presidenciais. O Partido Democrata apoia o voto pelo correio e outras medidas para maximizar a participação popular, ao passo que o Partido Republicano resiste à adoção maciça destas medidas. Este quadro levou o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que se tornou comentarista político, a proclamar recentemente: “A democracia americana pode estar morrendo.” Não está, mas certamente está bastante estressada, ainda mais em tempos de corona vírus.
*Ricardo Tavares é consultor internacional de empresas de tecnologia. É mestre em ciência política pelo Iuperj e membro do Council on Foreign Relations (CFR).
RPD || Reportagem especial: Na guerra contra coronavírus, ciência pode salvar vidas
Pesquisadores do mundo todo se mobilizam em busca de imunização eficaz; pesquisador de Harvard ressalta “método científico hiperacelerado”
Cleomar Almeida
A corrida pela produção de vacina contra o coronavírus faz cientistas do mundo todo aumentarem os esforços em pesquisas para salvar a vida de milhares de pessoas. Mais de 100 testes de diferentes imunizações foram divulgados desde o início da pandemia. Ao menos sete estão sendo analisados em pacientes humanos em diferentes países. No Brasil, onde também há testes em andamento, a ameaça é ainda maior para 50 milhões de pessoas adultas, o equivalente a um terço dessa população. Elas sofrem doenças crônicas ou passaram dos 60 anos.
Apesar de todos os esforços de pesquisa envidados em muitos laboratórios pelo mundo, inclusive no Brasil, a perspectiva mais otimista de contar com alguma vacina ou tratamento eficaz contra o coronavírus deverá tardar, mas não há saída à certificação da ciência. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizaram levantamento sobre a quantidade de pessoas no grupo de risco no Brasil, onde a ciência também tem de enfrentar obstáculos ainda maiores devido à politização do combate ao coronavírus, como no caso da exoneração do médico Luiz Henrique Mandetta do cargo de ministro da Saúde. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro ganha cada vez mais destaque como líder que estimula parte da população a agir como ele próprio e não cumprir orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), como isolamento social e uso de máscaras.
O infectologista e pesquisador da Fiocruz Júlio Croda afirmou que o Brasil teve tempo para se preparar contra a pandemia, mas, conforme disse, a politização prejudicou o combate ao coronavírus. Assim como ele, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, reforçou que o uso da cloroquina, defendida por Bolsonaro, não tem comprovação de eficácia no tratamento de pacientes infectados.
Diante da emergência global de saúde pública provocada pela Covid-19, cientistas estão flexibilizando protocolos mais estritos de desenvolvimento de vacinas. Normalmente, é um processo demorado e bastante trabalhoso, pois envolve várias etapas de testes em animais e avaliações sobre a toxicidade antes das três fases obrigatórias de testes clínicos em pessoas. Diretora brasileira da OMS, a médica Mariângela Simão é otimista: “Teremos uma vacina, se tudo correr bem. O desafio será distribuí-la”.
No Brasil, pesquisadores da Fiocruz de Minas Gerais estão modificando o vírus influenza, causador da gripe, para que ele carregue trechos do material genético do Sars-CoV-2 associados à proteína S – da superfície do coronavírus, o gancho molecular usado pelo Sars-CoV-2 para se conectar às células humanas. O objetivo é produzir um vírus defectivo, que invade as células inicialmente, sem se propagar para outras, depois. O desenvolvimento pré-clínico, com testes em animais, deve levar de 12 a 18 meses, seguido dos testes clínicos.
Já os pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) estão desenvolvendo outra vacina contra o coronavírus. A expectativa é de que, nos próximos meses, a fórmula seja testada em animais.
“Acreditamos que a estratégia que estamos empregando para participar desse esforço mundial para desenvolver uma candidata a vacina contra a Covid-19 é muito promissora e poderá induzir uma resposta imunológica melhor do que a de outras propostas que têm surgido, baseadas fundamentalmente em vacinas de mRNA”, disse o diretor do Laboratório de Imunologia do Incor e coordenador do projeto, Jorge Kalil, conforme divulgou a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Utilizada no desenvolvimento da primeira vacina experimental contra o Sars-CoV-2, anunciada no fim de fevereiro nos Estados Unidos, a plataforma tecnológica de mRNA se baseia na inserção na vacina de moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA) ― que contêm as instruções para produção de alguma proteína reconhecível pelo sistema imunológico.
De acordo com a pesquisa, o objetivo é que o sistema imunológico reconheça essas proteínas artificiais para posteriormente identificar e combater o coronavírus real. A plataforma que será utilizada pelos pesquisadores do Incor é fundamentada no uso de partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês de virus-like particles).
As VLPs são estruturas multiproteicas com características semelhantes às de um vírus e facilmente reconhecidas pelas células do sistema imune. No entanto, elas não têm material genético do vírus, o que impossibilita a replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.
Em artigo publicado no The New York Times, o médico Marc Lipsitch, professor do Departamento de Epidemiologia, Imunologia e Doenças Infecciosas da Universidade Harvard, afirma que o ponto de equilíbrio entre todas essas incertezas ficará mais claro quando mais pesquisas sorológicas, ou exames de sangue para detectar anticorpos, forem conduzidos com grande número de pessoas. “Estudos desse tipo estão começando e devem mostrar resultados em breve. É claro que muito dependerá da sensibilidade e especificidade dos diversos testes: quão bem eles conseguem identificar anticorpos ao Sars-CoV-2 quando estão presentes e se conseguem evitar sinais espúrios de anticorpos a vírus aparentados”, escreveu.
Lipsitch também defende a realização de mais estudos. “São necessárias mais pesquisas científicas sobre quase todos os aspectos deste novo vírus, mas, nesta pandemia, assim como em pandemias anteriores, decisões que terão consequências enormes precisam ser tomadas antes de dispormos de dados definitivos”, disse, para enfatizar: “Em vista dessa urgência, o método científico – formular hipóteses informadas e testá-las com experimentos e epidemiologia cuidadosa – é hiperacelerado”.
Pesquisas exploram diferentes testes de vacinas
Os Estados Unidos desenvolveram a primeira vacina contra a Covid-19 a ser testada em humanos. A imunização se baseia em trechos de RNA que integram o material genético do vírus. O RNA viral da vacina contém a receita para a produção da chamada proteína S. A expectativa é que, dentro das células, o pedaço de RNA seja usado para iniciar a produção da proteína S, a qual, por sua vez, desencadeará uma reação de defesa do organismo. Quando o organismo entrar em contato com o vírus real, espera-se que já esteja com anticorpos prontos para combatê-lo.
A técnica é considerada relativamente segura, mas ainda falta comprovação de sua eficácia. Nenhuma vacina de RNA já foi liberada para uso comercial no mundo. Os testes começaram em 16 de março, na fase 1 (que mede apenas a segurança). A fase 2, que investiga a eficácia mais diretamente, pode começar em poucos meses. A pesquisa é uma parceria entre o governo americano, o Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, em Seattle (EUA), e a empresa de biotecnologia Moderna. A empresa farmacêutica Pfizer anunciou que também quer testar sua própria vacina de RNA contra o coronavírus em seres humanos a partir de agosto de 2020.
Na China, uma vacina começou a ser testada um pouco depois da americana, mas foi a primeira a alcançar a fase 2 dos testes clínicos. Pesquisadores da empresa farmacêutica chinesa CanSino recrutaram 500 voluntários neste mês. A técnica é similar à que havia sido usada no desenvolvimento de uma vacina contra o ebola. A CanSino aposta em patógeno modificado, do grupo dos adenovírus, como vetor.
De acordo com cientistas, o adenovírus geneticamente modificado carregará material genético com código para produção da proteína S, semelhante ao caso da vacina americana de RNA. A diferença é que os vírus conseguem repassar a informação genética da imunização, o que, em tese, pode ser mais eficiente do que o material genético solto. No entanto, pode haver mais riscos de efeitos colaterais. A expectativa é de que resultados mais exatos da abordagem sejam divulgados em um ano.
Uma abordagem muito parecida à da China está sendo usada por pesquisadores da Universidade de Oxford (Reino Unido). Os testes começaram em março e devem durar cerca de um ano.
Neste mês, a empresa de biotecnologia americana Inovio Pharmaceuticals começou a testar outra vacina na fase 1. O método tem muitas semelhanças com a vacina de RNA. A diferença é que o genoma do vírus, na parte correspondente ao código da proteína S, foi adaptado para uma molécula de DNA. Para injetar a vacina na pele ou nos músculos dos voluntários, os pesquisadores usam tecnologia que emite breve pulso elétrico, facilitando a entrada do material genético nas células por meio da abertura de pequenos poros. Até 40 voluntários, recrutados em duas cidades americanas, vão receber o fármaco na fase 1. O objetivo é ter a vacina para uso comercial em prazo de 12 meses a 18 meses.
A China também produz outras duas vacinas baseadas em células. As abordagens estão sendo desenvolvidas pelo Instituto Médico Genoimune de Shenzhen. Os cientistas acreditam que seria possível usar células geneticamente modificadas como vacinas. Essas células dendríticas, como são conhecidas, ajudam o sistema imunológico a reconhecer invasores.
Os pesquisadores querem incluir, no material genético das células, uma espécie de biblioteca de vários fragmentos de genes do Sars-CoV-2, assim como outros genes com a receita de moléculas que ativam o sistema imune. Ao produzir arquivo de substâncias estranhas quando entrarem em contato com o organismo, elas desencadeariam uma reação similar a uma infecção real, sem os riscos do contato com o vírus. A fase 1 do projeto já está em andamento. O grupo de Shenzhen planeja concluir o desenvolvimento da vacina até julho de 2023.
BCG pode ser grande aliada contra Covid-19
Aplicada em bebês recém-nascidos em países acometidos pela tuberculose, a vacina BCG, ou Bacillus Calmette-Guérin, está sendo pesquisada em pelo menos quatro países para ser aplicada na prevenção ao coronavírus. Estudo de pesquisadores dos Estados Unidos sugere que países que incluem a BCG no programa universal de imunização, como Japão, China e Brasil, podem ter 10 vezes menos casos de infecção de Covid-19 em relação aos demais.
Os pesquisadores americanos fizeram estudo com 178 países, durante a pandemia, e compararam aqueles em que a BCG é obrigatória com outros onde não há programa universal de imunização que inclua essa vacina. Os resultados preliminares mostram que, nos países onde a BCG não é obrigatória, o número de contaminados e mortos pela Covid-19 é 10 vezes maior.
Na Austrália, 4 mil profissionais de saúde participarão de uma pesquisa prática. Metade vai receber um produto sem efeito terapêutico. Na outra metade, será aplicada a dose da BCG. Os pesquisadores querem analisar se, em caso de possível infecção pelo coronavírus, os efeitos serão, ou não, mais leves.
A BCG é a vacina aplicada no braço em bebês recém-nascidos. No Brasil, é obrigatória desde a década de 1970, o que, segundo especialistas, ajuda a garantir alta cobertura vacinal. De acordo com os estudiosos, se for comprovada a eficácia da BCG contra o coronavírus, o Brasil sairá em vantagem.
RPD || Entrevista especial: 'Vamos viver de forma dramática com a Covid-19 até o final do ano', diz Hélio Bacha
Entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online, o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, avalia que é impensável encerrar o isolamento social neste momento no Brasil
"Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com H1N1. É como me perguntam sempre: ‘o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa? ’, eu digo: 'essa, porque a pior é sempre a atual'. E essa tem características muito especiais", alerta o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online.
De acordo com Bacha, "a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço, dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço", alerta. "Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim, é muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. E é uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que lembre essa. Nenhuma", informa o médico infectologista.
Ele próprio uma vítima da Covid-19, Bacha avalia que foi contaminado após cerca de três semanas de atendimento a pacientes com a doença. Recuperado, ele conclui que a sua experiência tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. E considera impensável a suspensão do isolamento social, como quer o presidente Jair Bolsonaro. "A única arma que temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar", avalia.
Bacha estima que a Covid-19 é uma doença que pode ser atenuada em número de casos, mas que veio para ficar. Na entrevista que concedeu à Revista Política Democrática Online, o médico infectologista também trata do papel do Sistema Único de Saúde (SUS) e do presidente Bolsonaro, que, para ele, "aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil”. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Helio Bacha:
Revista Política Democrática Online (RPD): A Revista agradece sua gentileza de nos conceder esta entrevista por Zoom, em seu último dia no hospital, desta vez como paciente. A primeira pergunta é: como o senhor se contaminou com o Covid-19?
Helio Bacha (HB): Desde janeiro, venho trabalhando em função da epidemia. Passei o mês de janeiro na Itália, onde ouvi as primeiras notícias a respeito de Wuhan. Por coincidência, a Itália viria a ser o foco mais importante da Europa no mês seguinte. Àquela época, não se tinha ideia da dimensão, tamanho, importância e do inusitado dessa doença. Nem os próprios chineses tinham. Quando, em Wuhan, se observaram os cinco primeiros casos graves da doença, a província já estava tomada pelo vírus. Não se podia fazer muita coisa, além do bloqueio que os chineses conseguiram fazer bem.
O aprendizado de como se comportava o vírus veio fundamentalmente da Itália. Foi um aprendizado para os italianos e para o mundo. E quem pensou que pudesse ser diferente, como os Estados Unidos, está pagando um preço alto. O comportamento padrão da doença é o padrão italiano, a não ser em alguns países onde se conseguiu um controle social muito grande, diagnósticos precoces e pronto isolamento, como na Coréia do Sul. Mas o padrão para o mundo é o italiano.
Na Itália, inicialmente pensou-se em fazer um bloqueio de fronteiras, mas não funcionou. Não há barreira – nem de distância nem de eficácia – que impeça o vírus de chegar aonde quer que seja. Do Alasca à América do Sul, da Europa à Ásia, hoje é uma pandemia. O vírus logrou alcançar a todos os lugares do planeta.
RPD: O senhor, quando chegou ao Brasil, já estava contaminado? Ou a doença demorou para aparecer?
HB: Não. Cheguei ao Brasil em 23 de janeiro, antes de um primeiro caso. O casal de chineses que chegou à Itália não tinha sido identificado. Posteriormente, concluiu-se que a infecção provavelmente já se havia instalado no país, pouco antes de 15 de janeiro. Codogno, que é uma cidade pequena, não tinha mais o paciente zero. Toda a região da Lombardia já estava contaminada de maneira intensa. Só se pôde verificar a dimensão da contaminação pelo número de paciente graves.
Houve, de início, forte enfrentamento ideológico. O prefeito de Milão, Sala, que é de centro-esquerda, se apresentava com o lema “Milão não pode parar”, aconselhado por virologistas de confiança, que, com a experiência das outras infecções por corona vírus – como o Covid 2002, pelo SARS, pelo MERS, de 2009 –, acreditavam que a Covid19 teria velocidade possível de ser controlada. E o governador da Lombardia, Attilio Fontana, que é da Lega, partido de direita, defendia a política do bloqueio. Acabou prevalecendo a posição do prefeito.
Uma coisa foi a Lombardia; outra, foi o conjunto da Itália, onde o bloqueio funcionou. O bloqueio funcionou com graduação regional clara; o que não funcionou foi a estrutura de saúde, de atenção médica, de cuidados intensivos. Essa foi uma situação lamentável, porque os italianos não imaginavam a velocidade de apresentação de casos graves, descaso que se repetiu em outros lugares do mundo, como nos Estados Unidos, em particular, em Nova Iorque.
RPD: Quando o senhor percebeu que estava contaminado?
HB: Trabalho em um hospital onde os preparativos de combate à epidemia começaram em janeiro. Ao surgirem os primeiros casos, cuidei de vários, claro que com proteção pessoal. Mas o início da epidemia sempre tem um elemento de surpresa e eu devo ter-me infectado em alguma situação que não sei identificar exatamente. Só sei que, depois de duas, três semanas de atendimento a pacientes, já estava contaminado com o Covid-19.
Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com o H1N1. É como me perguntam sempre: "o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa?", eu digo: "essa, porque a pior é sempre a atual". E essa tem características muito especiais. Algumas vezes, a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço e dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço. Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim. É muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. É uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que me lembre essa. Nenhuma.
A infecção foi um exercício, nos doze primeiros dias, de piora, piora, piora, piora. Amanhã eu vou estar melhor, me dizia, e voltava a piorar. Por sorte, mantive a serenidade, com um sentimento de resignação, uma sensação de calvário, mas não perdi a serenidade em momento algum.
RPD: Nessas últimas semanas, o presidente Bolsonaro tem insistentemente se manifestado em favor da suspensão do isolamento, ao arrepio da visão majoritária de médicos e pesquisadores. Qual seria, de seu ponto de vista, o critério técnico para que este isolamento venha a ser suspenso? Há um índice de contaminação da sociedade como um todo, da população, que possa garantir que a suspensão desse isolamento não implique o retorno da doença, em um pico mais alto?
HB: A suspensão, a meu ver, é impensável, porque a única arma que nós temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando eu escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar. Foi eficiente na Coréia do Sul, porque se fizeram exames individuais, desde o início. Como se faz isso? Você sai fazendo diagnóstico a partir de testes na população de sintomáticos e assintomáticos. Identificado um positivo, ele é isolado. Se tiver condições, na sua residência; se não, no hospital ou em hotel. O isolamento é imediato. Isso é feito antes do início da elevação da curva.
Essa opção, aqui no Brasil, não existe. Vejo as pessoas que colocam isso como uma desculpa para abandonar as pessoas à sua sorte. Quem for morrer morre e pronto. Isso tem um custo econômico, um custo de vidas e um custo ético que é inviável. Do ponto de vista político, inteiramente inviável. O discurso de ‘vamos suspender o isolamento’ é um discurso de pura irresponsabilidade ética, social e médica. Eu não vejo como a própria pessoa que faz esse discurso pode se levar a sério. Essa possibilidade não existe. E não existe por que nós não teríamos, em curto prazo, condições de atendimento do número de casos que há – pelo tamanho da curva – entre a população.
De início, a doença contagiou os estratos socioeconômicos mais privilegiados do país. Apareceu nos hospitais de maiores recursos, em pessoas com maior poder aquisitivo. O grande dilema será quando se massificar o atendimento, com a contaminação de pessoas menos favorecidas no plano econômico. Nossa rede hospitalar está ocupada, sempre faltando leitos de UTI. Não é com essa epidemia que aparece a notícia de falta de leitos de medicina intensiva. Temos já uma carência no cuidado dos pacientes com quadros de acidente vascular cerebral, de infarto agudo de miocárdio, de doenças pulmonares crônicas... A carência de leitos de medicina intensiva já é crônica. Para se evitar a carga de uma demanda repentina em ascensão, impõe-se um eficiente isolamento social.
RPD: O senhor acha que a Covid-19 vai determinar o fim do isolamento, e não o isolamento é que vai determinar o fim da Covid-19?
HB: Não existe nada que seja de eficácia 100%, é sempre uma questão de redução de danos. Essa redução de danos vai ser mais eficiente na medida em que nós consigamos atender à demanda de leitos de medicina intensiva. A situação de pessoas morrendo sem assistência ventilatória em um quadro de insuficiência respiratória é muito dramática. Dramático para o paciente, para o médico que assiste, para uma sociedade. Uma sociedade minimamente saudável não convive com isso em paz.
RPD: A Revista gostaria de fazer um registro, para conhecimento de nossos leitores. Trata-se de militantes de todas as lutas democráticas desses últimos trinta anos e, também, do movimento sanitário do Brasil, a quem o SUS muito deve. Menciono, em particular, Sérgio Arouca, Eleutério Rodriguez Neto e Eric Jenner Rosas. Todos eles moraram muitos anos aqui em Brasília.
O presidente Bolsonaro aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil. Essa aposta centra-se no fim do isolamento e em um tratamento que não tem garantia científica alguma. É uma aposta de muito risco, que as pessoas com um pouco de conhecimento diriam que é uma aposta no caos. Qual é sua opinião a respeito? Qual será o ganho possível, em termos políticos, do presidente, com uma aposta no caos? E quais seriam as perspectivas do SUS após a doença?
HB: O SUS é uma obra coletiva, tanto de tanto médicos, como de profissionais de saúde, em geral, e do povo brasileiro, em particular. Três pessoas foram citadas, mas é uma obra coletiva e um orgulho, uma referência para o mundo. Acho que é o maior sistema único de saúde com atenção universal do mundo. E essa crise recoloca a importância de se ter uma estrutura estatal de atenção à saúde, permanente. A ideia de planos de saúde que pudessem dar conta dessa condição não tem desenho precedente do mundo. Isso ficou muito claro na Itália, na China e, especialmente, nos Estados Unidos, onde a medicina, a atenção médica, o modelo para o mundo são o maior desastre. Hoje, o número de mortes nos Estados Unidos, em um dia, bate o recorde do mundo. Ou seja, a capacidade da assistência médica americana, de atender os casos de insuficiência respiratória, está em colapso.
Então, qual é o cálculo político que o presidente da República faz ao assumir uma conduta com expectativas de drogas que a gente sabe o quanto não funcionam? Essa não é uma droga que não foi utilizada, ela já foi utilizada na China, ela está sendo utilizada aqui entre nós. Conhecemos as limitações da droga. Não é nenhuma maravilha, não dá conforto em termos de assistência ventilatória. Não modifica a condição de segurança do paciente. Nós sabemos o quão limitada ela é. Continuamos sem ter tratamento eficaz, medicamentoso, para o Covid-19. O cálculo político que é feito, o que eu vejo de fora – já que não sou político – me provoca muito medo, porque a impressão que me dá é de negação da doença; que não se planeja nenhuma atenção para o tamanho da catástrofe. Isso preocupa. É claro que o preço a pagar é grande, inclusive do ponto de vista de quem implementa essa política. Espero que o governo faça ainda, a tempo, um esforço de reconstrução do que nós temos de SUS, para que dê tempo, ainda, de fazer a atenção médica necessária, a atenção à saúde necessária aos cuidados desses pacientes.
RPD: Quanto à possível debelação do vírus. Estudos recentes mencionam que a ação do Covid-19 seguiria danosa até contaminar um determinado percentual da população. Os números propostos variam entre 50% e 80%. Para o senhor, haveria a possibilidade de eliminação da doença de maneira radical?
HB: Não. Ela pode ser atenuada em termos de número de casos, mas essa é uma doença que veio para ficar. Ainda vamos ter de conviver com ela por algum tempo. Desde Hipócrates, a quatro mil anos de nós, melhoramos muito o diagnóstico e melhoramos muito a terapêutica, mas não o prognóstico. O número de variáveis é tão grande.... Há cerca de um mês, tive casos graves do H1N1, que chegou ao Brasil em 2009. Boa parte dos brasileiros já está imunizada contra essa doença. Deixa, portanto, de ser uma doença endêmica entre nós. Ela é tratável, mas não dá para falar em cura. Não registra mais aquele volume de casos que poderia pôr em colapso os atendimentos, mas é uma doença que veio para ficar. É tratável, só que não dá para falar em cura. Já o Covid-19 é uma situação aguda para agora e para os próximos meses. Provavelmente, vamos viver de forma dramática com essa doença até, pelo menos, o final do ano.
RPD: Quando e se Covid-19 for contido, que mundo teremos? Mais solidário? Mais xenófobo? Mais socialmente consciente? Ou com maior enfrentamento entre ricos e pobres?
HB: Eu torço para um lado. Torço para que a humanidade ganhe em termos de solidariedade, mas a possibilidade da barbárie existe. Essa é uma preocupação nos momentos de muita escassez de recursos e em que as pessoas tentam se salvar sozinhas. Essa é uma doença diante da qual nós podemos lavar as mãos, manter o distanciamento de um metro e meio um do outro e pronto, o resto são ações coletivas. Ninguém se salva sozinho dessa epidemia. Para se salvar, vai ser necessário alta dose de solidariedade. A gente vê prevalecer, em vários estratos sociais, essa coisa de “quem morrer, morreu, quem se salvar se salvou, esse é o curso natural da vida”. Mas a experiência coletiva de falta de solidariedade pode ser um fator de agravamento das possibilidades de barbárie no futuro. E aí os ressentimentos, a falta de compromisso dentro da sociedade podem levar a uma condição de mundo em que eu não gostaria de viver.
Que a experiência trágica dessa epidemia, no mundo, nos conduza à construção de um mundo mais solidário, mais fraterno, onde o sofrimento das pessoas não seja a distância. Que nós tenhamos um compromisso social e político de atender a todos. Espero que façamos disso um mundo melhor.