Mario Sergio Conti: O inferno são os outros, e os outros fazem carreatas em defesa da peste

Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, 'Entre Quatro Paredes'.
Foto: Allan White/Fotos Públicas
Foto: Allan White/Fotos Públicas

Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, ‘Entre Quatro Paredes’

A peste pegou em cheio a linguagem pública e a particular. A pública porque ela é manipulada pelo poder para perverter a realidade. A particular porque, apinhados e à míngua entre quatro paredes, os pobres foram silenciados. A verborreia dos dominantes mantém a mudez dos dominados.

Ilustração de carros verdes enfileirados dando a volta em um quadrado amarelo. O quadrado parece um cômodo vazio com uma pessoa deitada no chão. Há um círculo azul na imagem e algumas bandeiras do Brasil em alguns carros.

A perturbação linguística desmoraliza clichês da idade clássica. Caso do Rubicão, o rio que generais eram proibidos de cruzar para não se acercarem com tropas do coração do império, Roma. Júlio César o cruzou e disse: “A sorte está lançada”. Deu-se bem e virou ditador.

Bolsolígula disse que a peste era gripezinha e o confinamento, asneira. Propagou perdigotos. Pregou a ditadura nas barbas do Supremo e do Congresso, exortando a tropa a atropelá-los. Enxotou o ministro da Saúde e depois o da Justiça, cortesãos sebosos que tantos serviços lhe prestaram.

Toda vez que Bolsonero atravessou o Rubicão, ouviu-se a algaravia da indignação oficialesca, acompanhada por semblantes graves. Mas sobressaiu na cacofonia o vagido ameno, o bacharelês castiço, o dó de peito impotente dos potentados: “Lamentável sob todos os aspectos etc.”.

Já não há Rubicões: eis a novidade além-linguagem. Ele foi cruzado tantas vezes que quase dispensa uma boa quartelada. Na republiqueta do Messias, milicos mandam e paisanos obedecem. Antes, contudo, as vestais de toga encaram os fardados e, altivas, questionam: “Quer um café, general?”.

A última azeitona verde-oliva na empada do Planalto é o interventor na Saúde. Ele logo avisou: “Vou como instituição, não como Eduardo Pazuello”. Ao funéreo ministro nominal, o chofer do rabecão, cabe olhar o chefe nos olhos e indagar: “Que tal uma fatia de bolo, general?”.

Militares na política têm uma vantagem crucial sobre políticos civis. Como não querem votos, e sim cargos e salários, não posam de Miss Simpatia. Dirigem suas piscadelas coquetes apenas ao capitãozinho que tem a caneta.

Mas a má fé dos de quepe é idêntica à dos sem-quepe.

Mal chegados ao Planalto, os generais já prometeram um Plano Marshall. Há 81 anos, o plano original respondeu à pressão dos povos europeus que venceram o nazismo.

Em 1945, houve guerras civis na Grécia e nos Balcãs; insurreições na França e na Itália; expropriações no Leste.

O Plano Marshall respondeu também ao interesse americano em reconstruir a Europa. Os Estados Unidos investiram ali o equivalente a US$ 100 bilhões. Pois bem. Existe pressão popular hoje? Há interesse em pôr capital produtivo no Brasil? Alguém vê US$ 100 bilhões à disposição?

A quimera militar, pois, é como a mitológica: tem cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. É uma figura especiosa da retórica, uma mentira troncha para enganar os trouxas. Como diz o vulgo, é uma fake news —um meticuloso amálgama do simbólico com o real.

Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, “Entre Quatro Paredes”. Ela se passa dentro de um quarto, onde se digladiam um escritor heroico que se acovarda, uma patroa infanticida e uma funcionária ressentida.

Sem referências rombudas, por meio de uma linguagem estupenda, se percebe que, fora do quarto, rondam os lobos acinzentados, os nazistas, os colaboracionistas da ocupação. No fim, se revela que, sem demônios de tridente, enxofre e labaredas dramáticas, o quarto é na verdade o inferno.

As três personagens estão condenadas a se atormentarem por toda a eternidade. A última fala da peça marcou época: “O inferno são os outros”. Ao contrário do clichê que se tornou, ela mostra o primado da vida social, a interdependência entre o ser e os outros, e não sua solidão infinita.

Ela pode ser completada por duas outras frases de Sartre: “a existência precede a essência” e “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo”. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes, a liberdade será motivo de engajamento, um devir. O inferno são os outros.

Alguns outros. Os lobos promovem carreatas pela peste na avenida Paulista e Brasil afora. Seguem ordens do presidente e de seu clã, dos seus generais, empresários e milicianos. A linguagem deles não é a da lei nem a da urbanidade. É a da mentira, da força, da agressão. São fascistas.

Eles devem ser enfrentados como tais. Com firmeza, união e audácia, e não com nhenhenhém. A existência da peste, vivida entre quatro paredes, ensina o que está na essência de Bolsonaro e sua gangue: a vontade de destruir e dominar.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de “Notícias do Planalto”.

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