RPD || Gloria Alvarez: Compartilhar. Um ato de cidadania

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que o mundo inteiro está vivendo com a pandemia de Covid-19, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem, avalia Gloria Alvarez em artigo.
Foto: Alex Pazuello/Semcom
Foto: Alex Pazuello/Semcom

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que o mundo inteiro está vivendo com a pandemia de Covid-19, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem, avalia Gloria Alvarez em artigo

Da noite para o dia, milhões de brasileiros que diariamente trabalhavam para, naquele dia, ter o que comer em casa ficaram desamparados, sem alternativa para substituir o desemprego ou o subemprego. A chegada da pandemia provocada pelo Novo Coronavírus fora determinante e desesperante, especialmente para aqueles milhões que não pertencem ao Cadastro Único do Ministério da Cidadania, não têm Bolsa Família, muito menos FGTS, RG, título de eleitor e um simples CPF regularizado. Um desses brasileiros, respondendo a um repórter, definiu-se como “uma pessoa que não existe”. Foi quebrada a rotina diária de passar a montar a barraquinha de biscoitos, balas e chocolate, e ficar sob sol e chuva à espera do resultado de suas vendas. No final do dia, depois das contas com o “empresário” (o dono da barraquinha e dos produtos), mal ou bem, restava algum para gastar na vendinha comprando a refeição das crianças e da mulher. Agora, nem pensar. A barraca não podia mais ser montada. O negócio terceirizado dessa “pessoa que não existe” fora fulminado pelas ações preventivas para conter o vírus.

Na comunidade onde esse típico nordestino acariocado mora, instalou-se o medo. As entidades que distribuíam cestas básicas cerraram as portas. As faxinas que sua mulher fazia foram desmarcadas e a hora de pagar o aluguel do quartinho se aproximava, ao passo que os sacos de arroz e de feijão murchavam. E a recomendação geral era “não sair de casa”. Como? Ficar sem comida? Aumentar a dívida na vendinha? Como pagar depois? Esse cidadão brasileiro, invisível, não viu outra saída.

A primeira fagulha de luz no fim do túnel chegou com uma cesta básica entregue por quem menos esperava: o “empresário” que fornecia as balas e os biscoitos para ele vender. Claro que na cesta havia muita bala e biscoito. Mas também açúcar, feijão e arroz. Emocionado, agradeceu,

Logo depois, uma das clientes da mulher ligou pedindo sua conta bancária (como se ela tivesse…). Queria depositar a diária, apesar de a faxina não ter sido feita. Benza Deus!

A escola das crianças, fechada, sem aulas, mandou aviso: distribuiria para os pais o estoque de alimentos destinados à merenda dos alunos antes que o prazo de validade vencesse.
O líder comunitário comunicou que o movimento Ação da Cidadania (fundado pelo sociólogo Herbert de Souza) estava recolhendo nos restaurantes estoque de alimentos in natura, que em breve também venceriam, e entregando para as associações distribuírem nas comunidades do Rio de Janeiro.

Nosso personagem começou a sentir alguma mudança. Será? Pensou esperançoso.

Os especialistas não parecem ver, ainda, essa tão esperada mudança na cultura de doação do brasileiro. E como seria bem-vinda para ajudar esses cidadãos invisíveis a tomarem rumo e acertarem o passo no caminho de um reconhecimento social… Ora justificam que a crise econômica e a política deixaram o brasileiro desconfiado ao escolher uma causa para contribuir. Ora argumentam que é uma questão de educação, que deve vir de casa e da escola. “O brasileiro não considera a doação como um ato de cidadania”. Alegam também que não há estímulo governamental para aumentar as doações. Esses espasmos de solidariedade nos momentos de crises são previstos por esses técnicos que dirigem associações e organizações sem fins lucrativos (ONGs). A prática que têm no dia a dia, tentando reverter a vida de inúmeros cidadãos invisíveis, embasa tais opiniões.

Apontam, no entanto, que estimular a cultura de doação seria um dos grandes passos para fortalecer a sociedade civil. Algumas iniciativas criativas germinam e trabalham para promover essa mudança no conceito de solidariedade. O Arredondar (arredondar.org.br), por exemplo, desde 2011 adota as microdoações, geradas a partir do troco no varejo. De centavo em centavo, já arrecadaram quase R$ 5 milhões através de 23 milhões de doações. No portfólio da entidade estão catalogadas mais de 80 ONGs certificadas, que são beneficiadas.

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que estamos vivendo com o coronavírus, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem. Elas atuam fiscalizando o comportamento do Estado, dão voz às populações e complementam a ação das políticas públicas. Nesses momentos a credibilidade, a capacidade e a organização para receber e distribuir doações mobilizam a solidariedade. Um exemplo foi o sucesso que a Comunitas (www.comunitas.org) alcançou ao levantar R$ 4,2 milhões para doar 60 respiradores para hospitais públicos de São Paulo e ainda mais R$ 23,5 milhões e mais 345 respiradores. O link https://emergenciacovid19.gife.org.br registrava R$ 1.037.862.747,00, no dia 08/04. Era o total parcial do levantamento feito pela campanha Emergência Covid-19, através de institutos, fundações e empresas.

Ações solidárias espontâneas brotaram também de março para cá. Dois restaurantes do Recife se revezam no fornecimento gratuito de almoço para os profissionais de saúde. Na marmita, um bilhete intitulado “Um sincero obrigado”. Inúmeros professores promovem aulas gratuitas de ginástica, de inglês, artesanato, gastronomia, administração de finanças e palestras. Médicos se oferecem nos prédios onde moram e na vizinhança para “avaliar situações de gastroenterites, hipertensão e outras doenças, para renovar receitas de remédios de uso contínuo e orientar sobre sintomas de urgências”. Jovens colocam avisos nos elevadores e os distribuem pelas mídias sociais (www.vizinhodobem.com.br) oferecendo-se para atender a idosos que precisem de compras de mercado ou farmácia.

Na situação em que vivemos, com uma pandemia que está matando dezenas de milhares de habitantes do planeta e esfacelando todas as economias mundiais, só há uma esperança para quem, hoje, se sente como “pessoa que não existe”: uma radical mudança no comportamento do ser humano, adotando o ato de compartilhar tempo ou dinheiro como uma ação civil transformadora e construtiva. Como? Deixando de querer só para si e conseguindo enxergar quem está ao seu lado, implorando para deixar de ser invisível.

Privacy Preference Center