Day: abril 22, 2020

RPD || Gloria Alvarez: Compartilhar. Um ato de cidadania

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que o mundo inteiro está vivendo com a pandemia de Covid-19, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem, avalia Gloria Alvarez em artigo

Da noite para o dia, milhões de brasileiros que diariamente trabalhavam para, naquele dia, ter o que comer em casa ficaram desamparados, sem alternativa para substituir o desemprego ou o subemprego. A chegada da pandemia provocada pelo Novo Coronavírus fora determinante e desesperante, especialmente para aqueles milhões que não pertencem ao Cadastro Único do Ministério da Cidadania, não têm Bolsa Família, muito menos FGTS, RG, título de eleitor e um simples CPF regularizado. Um desses brasileiros, respondendo a um repórter, definiu-se como “uma pessoa que não existe”. Foi quebrada a rotina diária de passar a montar a barraquinha de biscoitos, balas e chocolate, e ficar sob sol e chuva à espera do resultado de suas vendas. No final do dia, depois das contas com o “empresário” (o dono da barraquinha e dos produtos), mal ou bem, restava algum para gastar na vendinha comprando a refeição das crianças e da mulher. Agora, nem pensar. A barraca não podia mais ser montada. O negócio terceirizado dessa “pessoa que não existe” fora fulminado pelas ações preventivas para conter o vírus.

Na comunidade onde esse típico nordestino acariocado mora, instalou-se o medo. As entidades que distribuíam cestas básicas cerraram as portas. As faxinas que sua mulher fazia foram desmarcadas e a hora de pagar o aluguel do quartinho se aproximava, ao passo que os sacos de arroz e de feijão murchavam. E a recomendação geral era “não sair de casa”. Como? Ficar sem comida? Aumentar a dívida na vendinha? Como pagar depois? Esse cidadão brasileiro, invisível, não viu outra saída.

A primeira fagulha de luz no fim do túnel chegou com uma cesta básica entregue por quem menos esperava: o “empresário” que fornecia as balas e os biscoitos para ele vender. Claro que na cesta havia muita bala e biscoito. Mas também açúcar, feijão e arroz. Emocionado, agradeceu,

Logo depois, uma das clientes da mulher ligou pedindo sua conta bancária (como se ela tivesse...). Queria depositar a diária, apesar de a faxina não ter sido feita. Benza Deus!

A escola das crianças, fechada, sem aulas, mandou aviso: distribuiria para os pais o estoque de alimentos destinados à merenda dos alunos antes que o prazo de validade vencesse.
O líder comunitário comunicou que o movimento Ação da Cidadania (fundado pelo sociólogo Herbert de Souza) estava recolhendo nos restaurantes estoque de alimentos in natura, que em breve também venceriam, e entregando para as associações distribuírem nas comunidades do Rio de Janeiro.

Nosso personagem começou a sentir alguma mudança. Será? Pensou esperançoso.

Os especialistas não parecem ver, ainda, essa tão esperada mudança na cultura de doação do brasileiro. E como seria bem-vinda para ajudar esses cidadãos invisíveis a tomarem rumo e acertarem o passo no caminho de um reconhecimento social... Ora justificam que a crise econômica e a política deixaram o brasileiro desconfiado ao escolher uma causa para contribuir. Ora argumentam que é uma questão de educação, que deve vir de casa e da escola. “O brasileiro não considera a doação como um ato de cidadania”. Alegam também que não há estímulo governamental para aumentar as doações. Esses espasmos de solidariedade nos momentos de crises são previstos por esses técnicos que dirigem associações e organizações sem fins lucrativos (ONGs). A prática que têm no dia a dia, tentando reverter a vida de inúmeros cidadãos invisíveis, embasa tais opiniões.

Apontam, no entanto, que estimular a cultura de doação seria um dos grandes passos para fortalecer a sociedade civil. Algumas iniciativas criativas germinam e trabalham para promover essa mudança no conceito de solidariedade. O Arredondar (arredondar.org.br), por exemplo, desde 2011 adota as microdoações, geradas a partir do troco no varejo. De centavo em centavo, já arrecadaram quase R$ 5 milhões através de 23 milhões de doações. No portfólio da entidade estão catalogadas mais de 80 ONGs certificadas, que são beneficiadas.

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que estamos vivendo com o coronavírus, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem. Elas atuam fiscalizando o comportamento do Estado, dão voz às populações e complementam a ação das políticas públicas. Nesses momentos a credibilidade, a capacidade e a organização para receber e distribuir doações mobilizam a solidariedade. Um exemplo foi o sucesso que a Comunitas (www.comunitas.org) alcançou ao levantar R$ 4,2 milhões para doar 60 respiradores para hospitais públicos de São Paulo e ainda mais R$ 23,5 milhões e mais 345 respiradores. O link https://emergenciacovid19.gife.org.br registrava R$ 1.037.862.747,00, no dia 08/04. Era o total parcial do levantamento feito pela campanha Emergência Covid-19, através de institutos, fundações e empresas.

Ações solidárias espontâneas brotaram também de março para cá. Dois restaurantes do Recife se revezam no fornecimento gratuito de almoço para os profissionais de saúde. Na marmita, um bilhete intitulado “Um sincero obrigado”. Inúmeros professores promovem aulas gratuitas de ginástica, de inglês, artesanato, gastronomia, administração de finanças e palestras. Médicos se oferecem nos prédios onde moram e na vizinhança para “avaliar situações de gastroenterites, hipertensão e outras doenças, para renovar receitas de remédios de uso contínuo e orientar sobre sintomas de urgências”. Jovens colocam avisos nos elevadores e os distribuem pelas mídias sociais (www.vizinhodobem.com.br) oferecendo-se para atender a idosos que precisem de compras de mercado ou farmácia.

Na situação em que vivemos, com uma pandemia que está matando dezenas de milhares de habitantes do planeta e esfacelando todas as economias mundiais, só há uma esperança para quem, hoje, se sente como “pessoa que não existe”: uma radical mudança no comportamento do ser humano, adotando o ato de compartilhar tempo ou dinheiro como uma ação civil transformadora e construtiva. Como? Deixando de querer só para si e conseguindo enxergar quem está ao seu lado, implorando para deixar de ser invisível.


RPD || Editorial: Escalada autoritária

Mais uma vez, o Presidente da República consegue surpreender os cidadãos brasileiros. Comparece a uma manifestação convocada nas sombras de seu governo, endossa com sua presença as consignas autoritárias das faixas e cartazes ali levantados, promete a mudança radical no rumo de um novo e puro país, tudo para desmentir, no dia seguinte, qualquer intenção golpista. Se o roteiro é sempre o mesmo, pois se trata, afinal, de fazer retroceder as fronteiras do inaceitável, a ousadia dos atores é crescente.

Curiosa cruzada essa que investe simultaneamente contra a democracia e a ciência. Parece ter como premissa a incapacidade de os brasileiros estabelecerem relações de causa e consequência, tanto para prever o futuro, quanto para avaliar o passado. É certo que há concidadãos, letrados inclusive, que relutam em perceber que nossa situação hoje é em tudo similar à de outros países, semanas antes de mergulharem no abismo.

No entanto, são poucos. E, como mostram as notícias do mundo, quando a questão é perda de vidas, não há como ignorar para sempre a escalada dos números. Ou seja, em algum momento, as responsabilidades políticas pelo caos que está por vir serão estabelecidas e cobradas.
Cumpre reconhecer, contudo, que a crise sanitária provocada pela pandemia é um ingrediente exterior, que se soma, entre nós, a um processo político anteriormente iniciado e com ele se combina.

Está em curso, desde a apuração dos votos no segundo turno das eleições de 2018, uma escalada golpista no país. As manifestações visíveis dessa escalada são o comportamento do Presidente da República; os fluxos poderosos de falsa informação disseminada nas redes sociais contra seus presumidos desafetos ou em favor de suas bandeiras; e a insistência de um pequeno número de seguidores em sair às ruas, manifestando-se contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, em favor de uma intervenção militar.

É urgente enfrentar e derrotar essa escalada. Essa tarefa exige a ação firme das instituições e o diálogo e a cooperação entre todas as forças democráticas, na União, nos Estados e nos Municípios. Câmara dos Deputados, Senado Federal e Supremo Tribunal Federal devem acordar uma reação articulada aos desatinos do Presidente. Regras relativas à identificação e responsabilização de produtores e divulgadores de falsidades nas redes devem se aprovadas e aplicadas. Lidar com as ruas, por sua vez, é tarefa dos governadores, dos legislativos estaduais, do Judiciário e do Ministério Público nos Estados.


RPD || Ricardo Tavares: Democracia estressada

Política norte-americana segue intensa e no centro da epidemia do coronavírus Covid-19 que assola os Estados Unidos. Enquanto Trump demostra grande dificuldade em se adaptar ao novo cenário para concorrer à reeleição, os democratas definiram Biden como o candidato à Presidência

O novo corona vírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa. Nos EUA, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano.

O Presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade.
No Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o Vice-Presidente Joe Biden e o Senador Bernie Sanders; Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato Democrata à Presidência.

O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado Democrata em eleições recentes. No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho.

Trump
Trump não esconde sua decepção com a pandemia. Esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico. Em fevereiro, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

O presidente dos EUA está mostrando grande dificuldade de se adaptar ao novo cenário. Sua administração está povoada de pessoas leais, independente de sua competência. Mesmo com os pacotes de apoio a pessoas e empresas já aprovados pelo Congresso, a implementação administrativa das políticas tem sido lenta e ineficaz.

Se os eleitores decidirem se preocupar com o desempenho do Presidente na área de saúde, a situação de Trump pode ser ainda pior, dependendo do status da pandemia próximo à data das eleições, 3 de novembro. De momento, ainda falta tudo nos hospitais americanos. Médicos compram suas próprias máscaras em muitos Estados. O governo federal não coordena as iniciativas dos estaduais, é cada um por si. Alguns Estados estão-se coordenando entre si. Os EUA ainda são o único país capaz de liderar uma ampla coordenação internacional de resposta à crise da pandemia, mas a diplomacia americana parece estar falida.

Biden
As eleições de novembro serão Trump X Biden. Joe, como o candidato é popularmente conhecido, fez uma campanha bastante errática nas primárias do Partido Democrata. Perdeu as três primeiras primárias. O crescimento de Bernie Sanders assustou os centristas do Partido, que se uniram em torno de Biden para impedir uma vitória do candidato visto como socialista. O golpe de misericórdia em Sanders, no entanto, foi dado pelos eleitores negros nas primárias do sul dos EUA. Foram vitórias avassaladoras em Estados onde os membros do Partido são predominantemente negros que criaram momento para a candidatura de Biden, até o ponto em que sua vitória se tornou certa. O conceito de “classe trabalhadora” de Sanders não atraiu o eleitorado negro.

Biden é admirado por seu grande trabalho como Vice-Presidente de Barrack Obama, o primeiro presidente negro da história do país. Mais: os eleitores negros são o grupo mais fiel ao Partido Democrata. As condições sociais desta população melhoram em administrações democratas. Sem uma maciça presença de eleitores negros nas urnas – o voto nos EUA é facultativo – é quase impossível uma vitória Democrata para a presidência.

Quatro anos atrás, Bernie Sanders continuou em campanha contra Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, mesmo depois de não ter mais chances de vitória. Isto contribuiu para o desgaste da candidatura de Clinton, e foi aproveitado pela campanha de Trump. Muitos eleitores que votaram em Sanders nas primárias do Partido Democrata vieram a votar em Trump, principalmente em Estados do meio-oeste. A saída de Sanders das primárias, diante da crise da pandemia e do risco de um prolongamento até o verão americano deste processo, tenta evitar uma repetição deste fenômeno.

No entanto, é impossível prever o resultado das eleições de novembro. Biden cresceu na adversidade durante as primárias. Venceu apesar de ter menos dinheiro de campanha do que Sanders. Mas mostrou deficiências como debatedor e ator de campanhas. Biden enfrentará em novembro a campanha extremamente bem financiada de Donald Trump, que joga pesado e não hesita em usar táticas de baixo nível.

Estresse
Nenhuma democracia ocidental em um país desenvolvido possui um partido político dedicado a desencorajar estrategicamente eleitores de irem às urnas. O Partido Republicano de hoje é um partido de base rural num país totalmente urbanizado. Reúne quatro forças essenciais para seu sucesso: uma aliança de grupos “pro-business”, religiosos evangélicos, defensores do acesso fácil a armas (organizados nacionalmente pela NRA – National Rifle Association), e o importante apoio do grupo de media Fox News, do empresário australiano-americano Robert Murdoch.

Em 2016, Trump perdeu no voto popular agregado nacionalmente, mas ganhou no Colégio Eleitoral, através do qual o presidente é escolhido por delegados eleitos Estado por Estado. Este Colégio é uma influência do federalismo do sistema político americano e neutraliza a influência dos Estados e das cidades mais populosas. Como o voto é facultativo, a lógica eleitoral tem dois elementos – motivar seus eleitores a ir votar e, ao mesmo tempo, desencorajar os eleitores de seu opositor a se apresentar nos locais de votação. A eleição ocorre num dia comum de trabalho. Nas últimas eleições presidenciais, o índice de votação variou entre 49%, em 1996, ao máximo de 58.2%, em 2008, quando Obama venceu pela primeira vez. Em 2016, somente 55.7% dos eleitores inscritos compareceram às urnas.

Um episódio preocupante ocorreu na semana passada em Wisconsin. O governador do Partido Democrata, Tony Evers, determinou o adiamento das primárias no Estado para junho deste ano, a fim de evitar a aglomeração de pessoas, por conta da pandemia. O legislativo estadual, controlado por Republicanos, apesar de os Democratas obterem a maioria dos votos no Estado, recusou a mudança. O caso foi parar na Suprema Corte do EUA, que deu ganho de causa aos legisladores. O voto ocorreu sob grande risco para os eleitores.

Esta batalha pelas condições de votação durante a pandemia pode chegar até o dia 3 de novembro de 2020, data das eleições presidenciais. O Partido Democrata apoia o voto pelo correio e outras medidas para maximizar a participação popular, ao passo que o Partido Republicano resiste à adoção maciça destas medidas. Este quadro levou o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que se tornou comentarista político, a proclamar recentemente: “A democracia americana pode estar morrendo.” Não está, mas certamente está bastante estressada, ainda mais em tempos de corona vírus.

*Ricardo Tavares é consultor internacional de empresas de tecnologia. É mestre em ciência política pelo Iuperj e membro do Council on Foreign Relations (CFR).


RPD || Reportagem especial: Na guerra contra coronavírus, ciência pode salvar vidas

Pesquisadores do mundo todo se mobilizam em busca de imunização eficaz; pesquisador de Harvard ressalta “método científico hiperacelerado”

Cleomar Almeida

A corrida pela produção de vacina contra o coronavírus faz cientistas do mundo todo aumentarem os esforços em pesquisas para salvar a vida de milhares de pessoas. Mais de 100 testes de diferentes imunizações foram divulgados desde o início da pandemia. Ao menos sete estão sendo analisados em pacientes humanos em diferentes países. No Brasil, onde também há testes em andamento, a ameaça é ainda maior para 50 milhões de pessoas adultas, o equivalente a um terço dessa população. Elas sofrem doenças crônicas ou passaram dos 60 anos.
Apesar de todos os esforços de pesquisa envidados em muitos laboratórios pelo mundo, inclusive no Brasil, a perspectiva mais otimista de contar com alguma vacina ou tratamento eficaz contra o coronavírus deverá tardar, mas não há saída à certificação da ciência. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizaram levantamento sobre a quantidade de pessoas no grupo de risco no Brasil, onde a ciência também tem de enfrentar obstáculos ainda maiores devido à politização do combate ao coronavírus, como no caso da exoneração do médico Luiz Henrique Mandetta do cargo de ministro da Saúde. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro ganha cada vez mais destaque como líder que estimula parte da população a agir como ele próprio e não cumprir orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), como isolamento social e uso de máscaras.

O infectologista e pesquisador da Fiocruz Júlio Croda afirmou que o Brasil teve tempo para se preparar contra a pandemia, mas, conforme disse, a politização prejudicou o combate ao coronavírus. Assim como ele, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, reforçou que o uso da cloroquina, defendida por Bolsonaro, não tem comprovação de eficácia no tratamento de pacientes infectados.
Diante da emergência global de saúde pública provocada pela Covid-19, cientistas estão flexibilizando protocolos mais estritos de desenvolvimento de vacinas. Normalmente, é um processo demorado e bastante trabalhoso, pois envolve várias etapas de testes em animais e avaliações sobre a toxicidade antes das três fases obrigatórias de testes clínicos em pessoas. Diretora brasileira da OMS, a médica Mariângela Simão é otimista: “Teremos uma vacina, se tudo correr bem. O desafio será distribuí-la”.

No Brasil, pesquisadores da Fiocruz de Minas Gerais estão modificando o vírus influenza, causador da gripe, para que ele carregue trechos do material genético do Sars-CoV-2 associados à proteína S – da superfície do coronavírus, o gancho molecular usado pelo Sars-CoV-2 para se conectar às células humanas. O objetivo é produzir um vírus defectivo, que invade as células inicialmente, sem se propagar para outras, depois. O desenvolvimento pré-clínico, com testes em animais, deve levar de 12 a 18 meses, seguido dos testes clínicos.
Já os pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) estão desenvolvendo outra vacina contra o coronavírus. A expectativa é de que, nos próximos meses, a fórmula seja testada em animais.
“Acreditamos que a estratégia que estamos empregando para participar desse esforço mundial para desenvolver uma candidata a vacina contra a Covid-19 é muito promissora e poderá induzir uma resposta imunológica melhor do que a de outras propostas que têm surgido, baseadas fundamentalmente em vacinas de mRNA”, disse o diretor do Laboratório de Imunologia do Incor e coordenador do projeto, Jorge Kalil, conforme divulgou a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Utilizada no desenvolvimento da primeira vacina experimental contra o Sars-CoV-2, anunciada no fim de fevereiro nos Estados Unidos, a plataforma tecnológica de mRNA se baseia na inserção na vacina de moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA) ― que contêm as instruções para produção de alguma proteína reconhecível pelo sistema imunológico.
De acordo com a pesquisa, o objetivo é que o sistema imunológico reconheça essas proteínas artificiais para posteriormente identificar e combater o coronavírus real. A plataforma que será utilizada pelos pesquisadores do Incor é fundamentada no uso de partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês de virus-like particles).

As VLPs são estruturas multiproteicas com características semelhantes às de um vírus e facilmente reconhecidas pelas células do sistema imune. No entanto, elas não têm material genético do vírus, o que impossibilita a replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.

Em artigo publicado no The New York Times, o médico Marc Lipsitch, professor do Departamento de Epidemiologia, Imunologia e Doenças Infecciosas da Universidade Harvard, afirma que o ponto de equilíbrio entre todas essas incertezas ficará mais claro quando mais pesquisas sorológicas, ou exames de sangue para detectar anticorpos, forem conduzidos com grande número de pessoas. “Estudos desse tipo estão começando e devem mostrar resultados em breve. É claro que muito dependerá da sensibilidade e especificidade dos diversos testes: quão bem eles conseguem identificar anticorpos ao Sars-CoV-2 quando estão presentes e se conseguem evitar sinais espúrios de anticorpos a vírus aparentados”, escreveu.

Lipsitch também defende a realização de mais estudos. “São necessárias mais pesquisas científicas sobre quase todos os aspectos deste novo vírus, mas, nesta pandemia, assim como em pandemias anteriores, decisões que terão consequências enormes precisam ser tomadas antes de dispormos de dados definitivos”, disse, para enfatizar: “Em vista dessa urgência, o método científico – formular hipóteses informadas e testá-las com experimentos e epidemiologia cuidadosa – é hiperacelerado”.


 

Pesquisas exploram diferentes testes de vacinas
Os Estados Unidos desenvolveram a primeira vacina contra a Covid-19 a ser testada em humanos. A imunização se baseia em trechos de RNA que integram o material genético do vírus. O RNA viral da vacina contém a receita para a produção da chamada proteína S. A expectativa é que, dentro das células, o pedaço de RNA seja usado para iniciar a produção da proteína S, a qual, por sua vez, desencadeará uma reação de defesa do organismo. Quando o organismo entrar em contato com o vírus real, espera-se que já esteja com anticorpos prontos para combatê-lo.

A técnica é considerada relativamente segura, mas ainda falta comprovação de sua eficácia. Nenhuma vacina de RNA já foi liberada para uso comercial no mundo. Os testes começaram em 16 de março, na fase 1 (que mede apenas a segurança). A fase 2, que investiga a eficácia mais diretamente, pode começar em poucos meses. A pesquisa é uma parceria entre o governo americano, o Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, em Seattle (EUA), e a empresa de biotecnologia Moderna. A empresa farmacêutica Pfizer anunciou que também quer testar sua própria vacina de RNA contra o coronavírus em seres humanos a partir de agosto de 2020.

Na China, uma vacina começou a ser testada um pouco depois da americana, mas foi a primeira a alcançar a fase 2 dos testes clínicos. Pesquisadores da empresa farmacêutica chinesa CanSino recrutaram 500 voluntários neste mês. A técnica é similar à que havia sido usada no desenvolvimento de uma vacina contra o ebola. A CanSino aposta em patógeno modificado, do grupo dos adenovírus, como vetor.
De acordo com cientistas, o adenovírus geneticamente modificado carregará material genético com código para produção da proteína S, semelhante ao caso da vacina americana de RNA. A diferença é que os vírus conseguem repassar a informação genética da imunização, o que, em tese, pode ser mais eficiente do que o material genético solto. No entanto, pode haver mais riscos de efeitos colaterais. A expectativa é de que resultados mais exatos da abordagem sejam divulgados em um ano.

Uma abordagem muito parecida à da China está sendo usada por pesquisadores da Universidade de Oxford (Reino Unido). Os testes começaram em março e devem durar cerca de um ano.

Neste mês, a empresa de biotecnologia americana Inovio Pharmaceuticals começou a testar outra vacina na fase 1. O método tem muitas semelhanças com a vacina de RNA. A diferença é que o genoma do vírus, na parte correspondente ao código da proteína S, foi adaptado para uma molécula de DNA. Para injetar a vacina na pele ou nos músculos dos voluntários, os pesquisadores usam tecnologia que emite breve pulso elétrico, facilitando a entrada do material genético nas células por meio da abertura de pequenos poros. Até 40 voluntários, recrutados em duas cidades americanas, vão receber o fármaco na fase 1. O objetivo é ter a vacina para uso comercial em prazo de 12 meses a 18 meses.
A China também produz outras duas vacinas baseadas em células. As abordagens estão sendo desenvolvidas pelo Instituto Médico Genoimune de Shenzhen. Os cientistas acreditam que seria possível usar células geneticamente modificadas como vacinas. Essas células dendríticas, como são conhecidas, ajudam o sistema imunológico a reconhecer invasores.

Os pesquisadores querem incluir, no material genético das células, uma espécie de biblioteca de vários fragmentos de genes do Sars-CoV-2, assim como outros genes com a receita de moléculas que ativam o sistema imune. Ao produzir arquivo de substâncias estranhas quando entrarem em contato com o organismo, elas desencadeariam uma reação similar a uma infecção real, sem os riscos do contato com o vírus. A fase 1 do projeto já está em andamento. O grupo de Shenzhen planeja concluir o desenvolvimento da vacina até julho de 2023.


BCG pode ser grande aliada contra Covid-19
Aplicada em bebês recém-nascidos em países acometidos pela tuberculose, a vacina BCG, ou Bacillus Calmette-Guérin, está sendo pesquisada em pelo menos quatro países para ser aplicada na prevenção ao coronavírus. Estudo de pesquisadores dos Estados Unidos sugere que países que incluem a BCG no programa universal de imunização, como Japão, China e Brasil, podem ter 10 vezes menos casos de infecção de Covid-19 em relação aos demais.

Os pesquisadores americanos fizeram estudo com 178 países, durante a pandemia, e compararam aqueles em que a BCG é obrigatória com outros onde não há programa universal de imunização que inclua essa vacina. Os resultados preliminares mostram que, nos países onde a BCG não é obrigatória, o número de contaminados e mortos pela Covid-19 é 10 vezes maior.

Na Austrália, 4 mil profissionais de saúde participarão de uma pesquisa prática. Metade vai receber um produto sem efeito terapêutico. Na outra metade, será aplicada a dose da BCG. Os pesquisadores querem analisar se, em caso de possível infecção pelo coronavírus, os efeitos serão, ou não, mais leves.

A BCG é a vacina aplicada no braço em bebês recém-nascidos. No Brasil, é obrigatória desde a década de 1970, o que, segundo especialistas, ajuda a garantir alta cobertura vacinal. De acordo com os estudiosos, se for comprovada a eficácia da BCG contra o coronavírus, o Brasil sairá em vantagem.


RPD || Marco Aurélio Nogueira: Serenidade, moderação, realismo

Bolsonaro torna ainda pior o grave momento que todos enfrentam por conta da pandemia do coronavírus - Covid-19, avalia Marco Aurélio Nogueira em seu artigo. Para ele, o presidente "não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais"

Discursos e narrativas à parte, é preciso ir ao centro da crise sanitária desencadeada pelo corona vírus. Dentre muitas coisas e tragédias humanas, ela expôs e agravou outras crises, que já vinham em curso. A econômica e a política, evidentemente, mas também a crise de ideias.

Do presidente, não parte qualquer mensagem de apaziguamento e serenidade, fatores estratégicos para que se possa ter sucesso no enfrentamento da epidemia. O governo não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais. Em vez disso, sobre os esforços do Ministério da Saúde e dos profissionais do sistema sanitário, o que há é disposição para o conflito, a arruaça, a briga de rua. Bombeiros movimentam-se o tempo todo, mas pouco fazem para conter a fúria e o ódio que se alojaram no Palácio do Planalto. A suspeita é que os que dizem querer diminuir danos não sabem bem o que desejam. Faltam-lhes coragem, clareza de propósitos, aquilo que os antigos chamavam de hombridade: honradez e determinação.

Está dada uma articulação maléfica, que se reproduz ainda que em condições menos favoráveis do que no ano passado. O presidente fala e a malta enlouquecida que o segue reverbera imediatamente, em alto som. É uma mensagem de guerra, não contra o vírus, mas contra os que são considerados adversários do bolsonarismo. Não se pede paz, mas atrito, conflito, ajustes de contas. Junto vem um cálculo eleitoral rasteiro, balizado por aquele medo pânico de que o vírus estrague os planos e congestione a estrada do poder. Os olhos esbugalhados apontam para 2022 e tudo é feito para que os fatos duros da vida se enquadrem naquilo que se deseja reproduzir politicamente. É o império de uma fantasia mesquinha. Azar da realidade.

Outra articulação, benéfica mas mais complexa, envolve prefeitos e governadores, que lidam diretamente com comunidades, bairros, pessoas de carne e osso, vida concreta. Pregam o confinamento porque sabem que, sem ele, os sistemas estaduais e locais entrarão em colapso. Tornaram-se agentes decisivos do combate à crise sanitária. Demarcam novo espaço na política nacional.

O isolamento está sendo compreendido pela população e a grande maioria, segundo pesquisas recentes, concorda que ele é vital no momento. Mas os sinais contraditórios são muitos, a dubiedade do discurso governamental confunde, a cultura presidencialista do País faz com que as pessoas valorizem o mau exemplo dado pelo presidente e desconfiem das outras orientações. É uma luta surda, diária, um embate incessante entre diretrizes que buscam preservar vidas e diretrizes tresloucadas que alegam privilegiar o trabalho.

Basta que 20% dos brasileiros desobedeçam para que 50 milhões de pessoas passem a fazer a festa do Covid-19. Só em São Paulo seriam cerca de 8 milhões. Sabe-se bem que não há como manter todos confinados por longos períodos. Não é só porque a economia não pode parar. É porque as pessoas não conseguem ficar em casa passivamente, olhando a vida pelas janelas. Há inquietação e insegurança nelas. A população é um conjunto complexo. Está composta por gente que não se controla, gente que não tem para onde ir, gente que não tem onde ficar, gente que não tem imaginação, gente que gosta de agitar. Bolsonaristas fanáticos fazem parte dela. Estão nas ruas, em carreatas e abraçando o “mito”, como se não houvesse amanhã.

São pessoas desprovidas de inteligência cívica, que não se orientam pelo bom senso. Quantos seriam bolsonaristas, quantos são simplesmente tontos ou irresponsáveis, quantos são ingênuos, desinformados ou burros? Quantos irão se arrepender ou assumir a culpa pela contribuição dada à infecção generalizada e rápida da população, com o correspondente colapso do sistema de saúde?

São perguntas que apontam para o dilema que está atravessado na garganta da democracia brasileira: como sair da crise em que nos encontramos, não somente a sanitária, mas a política, aquela que tem a ver com a reorganização do Estado e do próprio sistema representativo? Aquela que tem a ver com a organização de um governo que governe, que articule os interesses da maioria da população, promova um crescimento econômico inteligente, não produtivista, distribua renda e combata as desigualdades abissais que dilaceram a sociedade, que “pacifique” a população?

A perspectiva política precisa olhar para além do futuro imediato, por mais que tenha também de operar com os olhos nas circunstâncias do presente, na crise sanitária e nas eleições municipais. 2022 passa por 2020 e será definido pelo que vier a ser feito depois da pandemia. Há uma tarefa imediata: articular os democratas para que seja possível fazer frente ao bolsonarismo. O realismo político precisa ser cultivado com dedicação.

O bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial. Ele é sobretudo um estado de espírito. Não é “antipetista”, mas antidemocrático, segue um patriotismo tosco e cego, liberando pelos poros aquilo que tem sido chamado de “olavismo”, uma gosma venenosa hostil à comunidade política, à vida democrática. Não é religioso, pois lhes faltam a humildade, a compaixão, a solidariedade. Sua natureza é o fanatismo, a disposição de fazer tudo aquilo que o mestre mandar. Para esse estado de espírito, a realidade não é algo que se deve compreender, mas mero componente da paisagem desenhada por ideologias e convicções.

Diferentemente das anteriores, a pandemia atual eclode em uma estrutura mundial tão interconectada e tão “móvel”, com pessoas e mercadorias atravessando sem cessar os continentes, com variações climáticas intensas, que permitem a todo e qualquer patógeno se espalhar com extrema facilidade. Ao menos no médio prazo, não haverá como impedir que outras epidemias se disseminem sequencialmente, mais avassaladoras ou menos.

A resposta para isso é conhecida por todas as pessoas sensatas: aposta na ciência, melhoria radical dos sistemas de saúde, produção autóctone de equipamentos hospitalares, educação, cooperação, articulação internacional, políticas econômicas inteligentes, ambientalismo ativo.

Caminhar em sentido contrário, propalando curas milagrosas e poções mágicas, banalizando o vírus e politizando o combate a ele é simplesmente ir contra a vida.

A pandemia modificou o cenário político, externo e interno. No Brasil, a polarização mudou de eixo. A questão passou a ser isolamento ou não, saúde ou economia. O presidente percebeu que a água chegou ao pescoço e se debate freneticamente, pratica uma barbaridade por segundo, compra uma briga por dia. Não governa, nem mostra interesse em fazer isso. Sua meta é convencer a população de que o inimigo por trás do vírus são seus adversários políticos, o PT, a esquerda e o “comunismo” à frente.

O petismo, por sua vez, encurralado e sem força propositiva, procura aproveitar a posição em que está sendo colocado, pois ela embala seus sonhos de revanche e retorno glorioso. Porém, como escreveu a jornalista Rosangela Bittar (Estadão, 15/04/2020, p. A8), “ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas. Mas já é possível prever que o voto antipetista não irá mais para Bolsonaro e o voto antibolsonaro não irá, necessariamente, para o PT. O mundo está se transformando e só as carolinas não veem”.

O estado de espírito bolsonarista não será enfrentado com bravatas personalistas ou lideranças carismáticas, mais populistas ou menos. Exigirá uma perseverança pedagógica, um processo de educação cívica que somente poderá ser posto em marcha se houver articulação democrática consistente. Tendo em vista a atual correlação de forças, a estrutura existencial da época e a situação social – desnivelada em termos de renda e inclusão, fragmentada ideologicamente, muito polarizada em termos políticos –, essa articulação não poderá ser “revolucionária”, quer dizer, seu ponto de inflexão não terá como se firmar a partir da esquerda. Seu campo de atuação será democrático e republicano, seu reformismo precisará ser seletivo, focado, liberal-social, não poderá ser concebida como a abertura de um ciclo de reformas estruturais profundas, “populares”. A moderação será sua condição de existência. A busca de renovação se condensará no surgimento de novas lideranças políticas e de composições políticas que estejam além dos partidos existentes. O que está estabelecido não poderá ser simplesmente reproduzido. Sob pena de se ter mais do mesmo.

De resto, é plantar no deserto, achar que a “sociedade” irá se voltar contra os políticos em nome da democracia. Se alguma revolta desse tipo ocorrer, seu Norte não será democrático, como nos revela a marcha do bolsonarismo. Se quisermos democracia, o caminho há de ser outro e terá de ser construído pelas elites políticas, pela intelectualidade, pelos partidos, pelas organizações da sociedade civil. Politicamente, com persuasão, realismo, educação cívica, serenidade e cooperação.

 


RPD || Entrevista especial: 'Vamos viver de forma dramática com a Covid-19 até o final do ano', diz Hélio Bacha

Entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online, o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, avalia que é impensável encerrar o isolamento social neste momento no Brasil

"Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com H1N1. É como me perguntam sempre: ‘o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa? ’, eu digo: 'essa, porque a pior é sempre a atual'. E essa tem características muito especiais", alerta o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online.

De acordo com Bacha, "a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço, dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço", alerta. "Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim, é muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. E é uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que lembre essa. Nenhuma", informa o médico infectologista.

Ele próprio uma vítima da Covid-19, Bacha avalia que foi contaminado após cerca de três semanas de atendimento a pacientes com a doença. Recuperado, ele conclui que a sua experiência tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. E considera impensável a suspensão do isolamento social, como quer o presidente Jair Bolsonaro. "A única arma que temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar", avalia.

Bacha estima que a Covid-19 é uma doença que pode ser atenuada em número de casos, mas que veio para ficar. Na entrevista que concedeu à Revista Política Democrática Online, o médico infectologista também trata do papel do Sistema Único de Saúde (SUS) e do presidente Bolsonaro, que, para ele, "aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil”. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Helio Bacha:

Revista Política Democrática Online (RPD): A Revista agradece sua gentileza de nos conceder esta entrevista por Zoom, em seu último dia no hospital, desta vez como paciente. A primeira pergunta é: como o senhor se contaminou com o Covid-19?

Helio Bacha (HB): Desde janeiro, venho trabalhando em função da epidemia. Passei o mês de janeiro na Itália, onde ouvi as primeiras notícias a respeito de Wuhan. Por coincidência, a Itália viria a ser o foco mais importante da Europa no mês seguinte. Àquela época, não se tinha ideia da dimensão, tamanho, importância e do inusitado dessa doença. Nem os próprios chineses tinham. Quando, em Wuhan, se observaram os cinco primeiros casos graves da doença, a província já estava tomada pelo vírus. Não se podia fazer muita coisa, além do bloqueio que os chineses conseguiram fazer bem.

O aprendizado de como se comportava o vírus veio fundamentalmente da Itália. Foi um aprendizado para os italianos e para o mundo. E quem pensou que pudesse ser diferente, como os Estados Unidos, está pagando um preço alto. O comportamento padrão da doença é o padrão italiano, a não ser em alguns países onde se conseguiu um controle social muito grande, diagnósticos precoces e pronto isolamento, como na Coréia do Sul. Mas o padrão para o mundo é o italiano.

Na Itália, inicialmente pensou-se em fazer um bloqueio de fronteiras, mas não funcionou. Não há barreira – nem de distância nem de eficácia – que impeça o vírus de chegar aonde quer que seja. Do Alasca à América do Sul, da Europa à Ásia, hoje é uma pandemia. O vírus logrou alcançar a todos os lugares do planeta.

 

RPD: O senhor, quando chegou ao Brasil, já estava contaminado? Ou a doença demorou para aparecer? 

HB: Não. Cheguei ao Brasil em 23 de janeiro, antes de um primeiro caso. O casal de chineses que chegou à Itália não tinha sido identificado. Posteriormente, concluiu-se que a infecção provavelmente já se havia instalado no país, pouco antes de 15 de janeiro. Codogno, que é uma cidade pequena, não tinha mais o paciente zero. Toda a região da Lombardia já estava contaminada de maneira intensa. Só se pôde verificar a dimensão da contaminação pelo número de paciente graves.

Houve, de início, forte enfrentamento ideológico. O prefeito de Milão, Sala, que é de centro-esquerda, se apresentava com o lema “Milão não pode parar”, aconselhado por virologistas de confiança, que, com a experiência das outras infecções por corona vírus – como o Covid 2002, pelo SARS, pelo MERS, de 2009 –, acreditavam que a Covid19 teria velocidade possível de ser controlada. E o governador da Lombardia, Attilio Fontana, que é da Lega, partido de direita, defendia a política do bloqueio. Acabou prevalecendo a posição do prefeito.

Uma coisa foi a Lombardia; outra, foi o conjunto da Itália, onde o bloqueio funcionou. O bloqueio funcionou com graduação regional clara; o que não funcionou foi a estrutura de saúde, de atenção médica, de cuidados intensivos. Essa foi uma situação lamentável, porque os italianos não imaginavam a velocidade de apresentação de casos graves, descaso que se repetiu em outros lugares do mundo, como nos Estados Unidos, em particular, em Nova Iorque.

 

RPD: Quando o senhor percebeu que estava contaminado?

HB: Trabalho em um hospital onde os preparativos de combate à epidemia começaram em janeiro. Ao surgirem os primeiros casos, cuidei de vários, claro que com proteção pessoal. Mas o início da epidemia sempre tem um elemento de surpresa e eu devo ter-me infectado em alguma situação que não sei identificar exatamente. Só sei que, depois de duas, três semanas de atendimento a pacientes, já estava contaminado com o Covid-19.

Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com o H1N1. É como me perguntam sempre: "o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa?", eu digo: "essa, porque a pior é sempre a atual". E essa tem características muito especiais. Algumas vezes, a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço e dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço. Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim. É muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. É uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que me lembre essa. Nenhuma.

A infecção foi um exercício, nos doze primeiros dias, de piora, piora, piora, piora. Amanhã eu vou estar melhor, me dizia, e voltava a piorar. Por sorte, mantive a serenidade, com um sentimento de resignação, uma sensação de calvário, mas não perdi a serenidade em momento algum.

 

RPD: Nessas últimas semanas, o presidente Bolsonaro tem insistentemente se manifestado em favor da suspensão do isolamento, ao arrepio da visão majoritária de médicos e pesquisadores. Qual seria, de seu ponto de vista, o critério técnico para que este isolamento venha a ser suspenso? Há um índice de contaminação da sociedade como um todo, da população, que possa garantir que a suspensão desse isolamento não implique o retorno da doença, em um pico mais alto? 

HB: A suspensão, a meu ver, é impensável, porque a única arma que nós temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando eu escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar. Foi eficiente na Coréia do Sul, porque se fizeram exames individuais, desde o início. Como se faz isso? Você sai fazendo diagnóstico a partir de testes na população de sintomáticos e assintomáticos. Identificado um positivo, ele é isolado. Se tiver condições, na sua residência; se não, no hospital ou em hotel. O isolamento é imediato. Isso é feito antes do início da elevação da curva.

Essa opção, aqui no Brasil, não existe. Vejo as pessoas que colocam isso como uma desculpa para abandonar as pessoas à sua sorte. Quem for morrer morre e pronto. Isso tem um custo econômico, um custo de vidas e um custo ético que é inviável. Do ponto de vista político, inteiramente inviável. O discurso de ‘vamos suspender o isolamento’ é um discurso de pura irresponsabilidade ética, social e médica. Eu não vejo como a própria pessoa que faz esse discurso pode se levar a sério. Essa possibilidade não existe. E não existe por que nós não teríamos, em curto prazo, condições de atendimento do número de casos que há – pelo tamanho da curva – entre a população.

De início, a doença contagiou os estratos socioeconômicos mais privilegiados do país. Apareceu nos hospitais de maiores recursos, em pessoas com maior poder aquisitivo. O grande dilema será quando se massificar o atendimento, com a contaminação de pessoas menos favorecidas no plano econômico. Nossa rede hospitalar está ocupada, sempre faltando leitos de UTI. Não é com essa epidemia que aparece a notícia de falta de leitos de medicina intensiva. Temos já uma carência no cuidado dos pacientes com quadros de acidente vascular cerebral, de infarto agudo de miocárdio, de doenças pulmonares crônicas... A carência de leitos de medicina intensiva já é crônica. Para se evitar a carga de uma demanda repentina em ascensão, impõe-se um eficiente isolamento social.

 

RPD: O senhor acha que a Covid-19 vai determinar o fim do isolamento, e não o isolamento é que vai determinar o fim da Covid-19? 

HB: Não existe nada que seja de eficácia 100%, é sempre uma questão de redução de danos. Essa redução de danos vai ser mais eficiente na medida em que nós consigamos atender à demanda de leitos de medicina intensiva. A situação de pessoas morrendo sem assistência ventilatória em um quadro de insuficiência respiratória é muito dramática. Dramático para o paciente, para o médico que assiste, para uma sociedade. Uma sociedade minimamente saudável não convive com isso em paz.

 

RPD: A Revista gostaria de fazer um registro, para conhecimento de nossos leitores. Trata-se de militantes de todas as lutas democráticas desses últimos trinta anos e, também, do movimento sanitário do Brasil, a quem o SUS muito deve. Menciono, em particular, Sérgio Arouca, Eleutério Rodriguez Neto e Eric Jenner Rosas. Todos eles moraram muitos anos aqui em Brasília.

O presidente Bolsonaro aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil. Essa aposta centra-se no fim do isolamento e em um tratamento que não tem garantia científica alguma. É uma aposta de muito risco, que as pessoas com um pouco de conhecimento diriam que é uma aposta no caos. Qual é sua opinião a respeito? Qual será o ganho possível, em termos políticos, do presidente, com uma aposta no caos? E quais seriam as perspectivas do SUS após a doença? 

HB: O SUS é uma obra coletiva, tanto de tanto médicos, como de profissionais de saúde, em geral, e do povo brasileiro, em particular. Três pessoas foram citadas, mas é uma obra coletiva e um orgulho, uma referência para o mundo. Acho que é o maior sistema único de saúde com atenção universal do mundo. E essa crise recoloca a importância de se ter uma estrutura estatal de atenção à saúde, permanente. A ideia de planos de saúde que pudessem dar conta dessa condição não tem desenho precedente do mundo. Isso ficou muito claro na Itália, na China e, especialmente, nos Estados Unidos, onde a medicina, a atenção médica, o modelo para o mundo são o maior desastre. Hoje, o número de mortes nos Estados Unidos, em um dia, bate o recorde do mundo. Ou seja, a capacidade da assistência médica americana, de atender os casos de insuficiência respiratória, está em colapso.

Então, qual é o cálculo político que o presidente da República faz ao assumir uma conduta com expectativas de drogas que a gente sabe o quanto não funcionam? Essa não é uma droga que não foi utilizada, ela já foi utilizada na China, ela está sendo utilizada aqui entre nós. Conhecemos as limitações da droga. Não é nenhuma maravilha, não dá conforto em termos de assistência ventilatória. Não modifica a condição de segurança do paciente. Nós sabemos o quão limitada ela é. Continuamos sem ter tratamento eficaz, medicamentoso, para o Covid-19. O cálculo político que é feito, o que eu vejo de fora – já que não sou político – me provoca muito medo, porque a impressão que me dá é de negação da doença; que não se planeja nenhuma atenção para o tamanho da catástrofe. Isso preocupa. É claro que o preço a pagar é grande, inclusive do ponto de vista de quem implementa essa política. Espero que o governo faça ainda, a tempo, um esforço de reconstrução do que nós temos de SUS, para que dê tempo, ainda, de fazer a atenção médica necessária, a atenção à saúde necessária aos cuidados desses pacientes.

 

RPD: Quanto à possível debelação do vírus. Estudos recentes mencionam que a ação do Covid-19 seguiria danosa até contaminar um determinado percentual da população. Os números propostos variam entre 50% e 80%. Para o senhor, haveria a possibilidade de eliminação da doença de maneira radical?

HB: Não. Ela pode ser atenuada em termos de número de casos, mas essa é uma doença que veio para ficar. Ainda vamos ter de conviver com ela por algum tempo. Desde Hipócrates, a quatro mil anos de nós, melhoramos muito o diagnóstico e melhoramos muito a terapêutica, mas não o prognóstico. O número de variáveis é tão grande.... Há cerca de um mês, tive casos graves do H1N1, que chegou ao Brasil em 2009. Boa parte dos brasileiros já está imunizada contra essa doença. Deixa, portanto, de ser uma doença endêmica entre nós. Ela é tratável, mas não dá para falar em cura. Não registra mais aquele volume de casos que poderia pôr em colapso os atendimentos, mas é uma doença que veio para ficar. É tratável, só que não dá para falar em cura. Já o Covid-19 é uma situação aguda para agora e para os próximos meses. Provavelmente, vamos viver de forma dramática com essa doença até, pelo menos, o final do ano.

 

RPD: Quando e se Covid-19 for contido, que mundo teremos? Mais solidário? Mais xenófobo? Mais socialmente consciente? Ou com maior enfrentamento entre ricos e pobres?

HB: Eu torço para um lado. Torço para que a humanidade ganhe em termos de solidariedade, mas a possibilidade da barbárie existe. Essa é uma preocupação nos momentos de muita escassez de recursos e em que as pessoas tentam se salvar sozinhas. Essa é uma doença diante da qual nós podemos lavar as mãos, manter o distanciamento de um metro e meio um do outro e pronto, o resto são ações coletivas. Ninguém se salva sozinho dessa epidemia. Para se salvar, vai ser necessário alta dose de solidariedade. A gente vê prevalecer, em vários estratos sociais, essa coisa de “quem morrer, morreu, quem se salvar se salvou, esse é o curso natural da vida”. Mas a experiência coletiva de falta de solidariedade pode ser um fator de agravamento das possibilidades de barbárie no futuro. E aí os ressentimentos, a falta de compromisso dentro da sociedade podem levar a uma condição de mundo em que eu não gostaria de viver.

Que a experiência trágica dessa epidemia, no mundo, nos conduza à construção de um mundo mais solidário, mais fraterno, onde o sofrimento das pessoas não seja a distância. Que nós tenhamos um compromisso social e político de atender a todos. Espero que façamos disso um mundo melhor.

 

 


RPD || Eduardo Rocha: O pós-coronavírus - Por uma Conferência Mundial pela Produção e Emprego

Dar respostas rápidas para salvar vidas e manter a produção e serviços é o principal desafio enfrentado em todos os países por conta da pandemia do coronavírus Covid-19

A violência meteórica da pandemia global do coronavírus em todo o sistema de reprodução social do gênero humano irrompe nova época histórica, cujo enigma desafia a inteligência a decifrá-la de modo a dar respostas às exigências emergenciais – salvar vidas em risco e manter a produção e serviços –, e futuras da humanidade.

O infarto econômico mundial reconfirmou ontologicamente o trabalho – este eterno e necessário intercâmbio entre o gênero humano e a natureza para a reprodução da vida – como a força material fundante na gênese e no desenvolvimento do ser social, e revelou a necessidade de nova crítica de toda economia política vigente e a reinvenção das relações capital-trabalho.

No Brasil e no mundo, surgiram excelentes estudos explicativos sobre as recentes medidas governamentais para atenuar os efeitos recessivos da pandemia que mundialmente coexiste agora com a quarta revolução industrial. Dois fenômenos que intensificam uma conexão histórico-universal nunca vista, realçam velhas e novas contradições, operam e operarão transformações na totalidade do ser social e demandarão a criação inédita de uma governança global para a construção de uma nova sociabilidade humana ao longo do século XXI.

A pandemia retrai a taxa real de acumulação de capital e problematiza o funcionamento sistêmico do capitalismo global. A reativação econômica e a reinserção produtiva de trabalhadores demandam mais do que as atuais terapias intensivas. Demandam nova arquitetura socioeconômica global, voltada para o futuro da humanidade, de modo a livrá-la da força gravitacional da recessão sistêmica tenebrosa, da profunda insegurança, da pavorosa incerteza e de um futuro sinistro e sombrio.

Pode ajudar na construção dessa nova arquitetura socioeconômica global a realização, sob a responsabilidade da Organização das Nações Unidas (ONU), de uma Conferência Mundial pela Produção e pelo Emprego (CMPE), visando a harmonizar os fluxos monetários e financeiros internacionais, com vistas a canalizar a poupança pública e privada em investimentos reais com as globais necessidades sociais, produtivas, de emprego e desenvolvimento global dos povos.

Seria como uma “Conferência de Bretton Woods da Produção e do Emprego” focada na criação de políticas e ações multilaterais para fazer valer a reativação econômica – da produção, do emprego, do pleno funcionamento da rede de proteção social e pavimentar minimamente as vias macroeconômico-globais para impulsionar o desenvolvimento em vastas regiões do planeta.

Além dos chefes de Estado, desta Conferência deveriam participar os demais organismos multilaterais e da sociedade civil. Uma Conferência não para fazer futurologia social utópica, mas concentrar-se na reflexão e proposição de elementos constitutivos de uma macroeconomia global num quadro histórico no qual o amado e odiado clássico keynesianismo, circunscrito na esfera do Estado-nação, é insuficiente na produção de respostas. Tanto de economias nacionais integradas globalmente quanto de um mundo integrado que ainda não dispõe de um governo mundial. São muitas questões em aberto. Se a teoria é feita por dúvidas, a política é feita com convicção. E hoje esta convicção aponta para a necessidade desta Conferência.

Por fim, a questão da redução da jornada de trabalho, a contratação de trabalhadores adicionais dentro de um plano de redistribuição do emprego (na indústria, agropecuária, construção civil, comércio, serviços, setor público) com elevação da produtividade adquirirá importância universal, tanto no aspecto teórico, como no aspecto político prático para a reativação e sustentabilidade do desenvolvimento. A antítese disso é o aumento da superexploração do trabalho.

Em 1998, a França reduziu a jornada de trabalho para 35 horas com duas medidas complementares: a) redução de impostos sobre a folha de pagamento e b) contratação de trabalhadores adicionais aos já existentes. No Brasil, contudo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, em plena pandemia, prometeu reduzir impostos da folha de pagamento após a crise e não exigiu contrapartida alguma dos empresários.

O futuro das relações capital-trabalho dificilmente reeditará as atuais, que nada mais são do que a expressão superestrutural de relações de produção de um mundo que está ruindo aos olhos de todos. É ilusão querer que o mundo “volte à normalidade do passado”. Não há volta. Aquele mundo não existe mais. O caminho terminou, a viagem começa, diria Georg Lukács (1885-1971). O coronavírus abriu nova página da história e desafia o gênero humano a escrevê-la e apontar para onde ir: barbárie ou civilização?

Alea jacta est.

 


RPD || André Amado: Uma nova narrativa em histórias policiais

Em tempos de isolamento social por conta dos riscos do coronavírus Covid-19, André Amado nos presenteia com um pouco da obra de Keigo Higashino em seu artigo, onde analisa o livro Malice

Como muitos de minha geração, integrantes contrariados de um tal grupo de risco, cumpro isolamento impiedoso. No meu caso, vigiam-me a inflexível D. Paula e minhas cinco filhas. Aproveito, então, para ler, escrever, pensar, dormir e, torcendo para que as filhas menores não consigam escapar das atividades/incumbências orquestradas pela sempre criativa mãe, não fazer nada, absolutamente nada.

O último livro que li foi Malice (1996), de Keigo Higashino. A escolha foi influenciada pela lembrança festiva de outra obra dele, The Devotion of Suspect X (1994), que lhe valeu a referência mercadológica, para mim mais do que justificada, de “The Japanese thriller phenomenon”.

Em The Devotion of Suspect X, Higashino ambienta a história na cidade de Tóquio, mas como se estivesse em uma planície. A narrativa se desdobra em linha reta, sem trepidação nem sacolejos, a tal ponto que cheguei algumas vezes a pensar em fechá-lo. E, de repente, como se fosse uma serpente bravia, a história enrosca a trama, o Norte vira Sul, o Leste, Oeste, e o leitor é sacudido na poltrona, fascinado pela surpresa, agradecido de não ter interrompido a leitura, sorvendo o desfecho como uma taça de vinho de fina cepa.

Foi assim esperançoso que abri Malice. Nada a ver com a obra anterior, porém, embora tivesse suas qualidades. A se confiar na qualidade da tradução do japonês para o inglês, o que, de resto, é a regra com best-sellers, o livro é bem escrito, obedece à recomendação de ouro do gênero policial, de usar estilo ágil e direto, apresenta personagens críveis, com perfis psicológicos intrigantes, e se desenrola em trama que oculta mais do que revela, em sintonia com os cânones das boas histórias de detetives.

É possível que Higashino tenha lido The Chamber, de John Grisham (1994), antes de escrever Malice, porque o escritor norte-americano leva o leitor às últimas gotas da angústia à espera de uma reviravolta jurídica que corrija uma injustiça e livre Sam Cayhall da pena de morte. Quem ler o livro saberá como Grisham resolveu a situação e, mais tarde, quando for a vez de Malice, poderá embarcar em sofreguidão semelhante. É que, mesmo depois de o suspeito de assassinar seu amigo de infância confessar o crime, declinar os motivos de seu ato, o detetive japonês encarregado do caso, qual um pastor alemão, aceita a confissão de morte, mas se encrespa quanto aos motivos e passa a investigar a vida pregressa e presente do acusado.

Agora, o leitor está dividido. Deve esperar um desfecho surpreendente, à la The Devotion of Suspect X, torcendo para que as novas investigações revelem até mesmo que o acusado seja inocente, ou, ao contrário, acompanhar de coração apertado que o nó da forca se contraia ainda mais em torno do pescoço do alegado assassino?

Higashino decidiu não facilitar a vida do leitor. Recorre a um expediente ficcional não muito frequente. Alguns escritores alternam a voz narrativa entre a primeira e a terceira pessoa, em função do efeito dramático que pretendem emprestar ao relato – mais objetivo, no caso da terceira pessoa, e mais humano, senão mais confiável, com o personagem intervindo com sua própria voz, acrescentando talvez credibilidade à sua fala. Garcia-Roza, entre tantos outros, usou esse expediente desde seu primeiro romance, O silêncio da chuva (1996).

Mas Higashino vai mais longe. Ele entrega todo um capítulo aos personagens centrais, que se alternam na função de narrador do romance. A. S. A. Harrison, em The Silent Wife (Penguin Books, 2013), e Gregg Olsen, em Lying Next to Me (Thomas & Mercer, Amazon, 2019), adotam o mesmo procedimento. Confesso que eu me perco um pouco.

Na tradição das histórias de detetives, o narrador não pode saber mais do que os personagens, porque cada um deve estar no universo de sua ação. Tal conduta ajudaria a evitar que o narrador possa julgar seus personagens, atitude pouco admirada por alguns críticos literários. É verdade que, nos romances de Agatha Christie, Hercule Poirot monopoliza a cena no final das histórias assumindo a função de narrador e desvendando, para sua audiência cativa, dentro da qual estará o assassino (no plural, no caso de Expresso do Oriente), a identidade do criminoso, os motivos de seu ato e a maneira como o perpetrou.

Mas a técnica de Higashino é diferente, a ponto, por exemplo, de o último capítulo de Malice ser, na verdade, um monólogo do detetive para benefício do acusado – e, claro, do pobre leitor –, que só então se inteirarão do resultado das investigações, um volume demolidor de provas e fundamentações jurídicas terminais, organizadas precipuamente na cabeça do detetive.


Rosângela Bittar: Só Freud explica

A cada dia, uma nova insanidade do presidente. E assim se passaram 16 meses

A política brasileira está confinada pela tragédia da pandemia e já não é possível desdenhar da realidade macabra. Portanto, não é política o que pratica o presidente Jair Bolsonaro no segundo ano do seu mandato. Por mais que deboche da vida e invente movimentos para esconder sua incapacidade de liderar e enfrentar os problemas, o placar das mortes e de contaminados não permite distrações.

Espera-se sempre pela próxima atração presidencial que só não é circense porque o circo se dá ao respeito. Uma performance vai superando a outra. Já se sabe que recuará se o seu teatro do absurdo extrapolar a medida. No dia seguinte, nova insanidade. E assim se passaram 16 meses.

O presidente Jair Bolsonaro em manifestação contra o Congresso e a favor de intervenção militar em frente ao Quartel General do Exército no último domingo. Foto: Gabriela Biló/Estadão
De novo: não é política isto que se pratica, hoje, no Brasil, a partir do desempenho do presidente da República.

A negação da existência da pandemia que acha estar enxotando com seu megafone; a insistente, insolente e impune agressão aos poderes Legislativo e Judiciário; a tentativa de aliciar o Centrão na figura-símbolo de Valdemar Costa Neto, para uma pouco convincente vontade tardia de fazer base parlamentar de apoio; o recurso à velha política, condenada no palanque, se lhe serve melhor na ocasião; a escolha, a cada dia, de um inimigo forjado por temores paranoicos; o corte radical das cabeças que lhe devem o contrato, como os ministros Gustavo Bebianno, Santos Cruz, Luiz Henrique Mandetta, e a campanha permanente e irritada contra quem não pode domar, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; a retórica autoritária; o desrespeito à condição humana, mais perfeita expressão de fascismo.

Jair Bolsonaro transcendeu a política e a crônica não pode usá-la como régua para medir a extensão do atual desastre imposto ao País.

Um presidente que funciona aos espasmos. Se o espelho lhe aponta um ministro mais popular que ele, acende o alerta vermelho da traição; se a imagem refletida é de alguém em posição constitucional de interromper sua festa, muda sem pejo a rota da cruzada.

Fura o consenso do combate à pandemia, sai trôpego e de olhos vendados na contramão do mundo todo que se harmoniza para salvar a vida. Jair Bolsonaro é tão artificial que nem quando pede golpe militar dá para crer. A manifestação do último domingo, em frente ao QG do Exército, foi a mais recente provocação de um ex-capitão aos generais da ativa e da reserva que o servem. Um prazer vingativo de demonstrar poder sobre eles.

Se passar a pandemia e Bolsonaro se mantiver vivo e no poder, o Brasil que se prepare para uma página em branco. Um grande vazio, pois ele mostra, hoje, que não faz ideia do que fará, depois. O liberalismo econômico, sustentado em reformas estruturantes, vedete de suas intenções, desmanchou-se no ar em 40 dias.

Muitos intelectuais estão expondo sua perplexidade em estudos que tentam traduzir o impacto da pandemia sobre a humanidade. O ex-deputado, professor e sociólogo Paulo Delgado, em um ensaio por enquanto definido como “psicohistória presidencial”, sobre os nove presidentes que conheceu, desde Tancredo Neves, não foge à conjuntura político-sanitária ao tratar de Jair Bolsonaro.

“Vasculhar o inconsciente ajuda a entender por que ele se identifica tanto com este vírus, a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo.”

Invocando Freud, Delgado lembra que o presidente “coloca libido” nestas manifestações públicas de que participa, provocando “aglomeração, contato, contágio”. Diz, ao argumentar sobre esta hipótese: é “um comportamento psicossocial repetitivo, estimulado pelo prazer contínuo de transgredir”.

Um irônico enquadramento da ação presidencial no ambiente psicanalítico, que “só Freud explica”. Enfatiza a hiperexcitação do presidente brasileiro que poderá, conclui ele, conduzir o País a uma “derrota” de Pirro, uma espécie de fracasso altamente dispendioso. Bem além da competência da política.


Vera Magalhães: Fio da meada

O inquérito aberto no ano passado, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, pode levar a que o novo já comece adiantado

Quis o destino da distribuição do Supremo Tribunal Federal que o ministro Alexandre de Moraes ficasse incumbido de relatar o inquérito aberto nesta terça-feira para apurar se foram cometidos crimes nos atos em prol de intervenção militar e fechamento do Congresso realizados no último domingo.

O Ministério Público Federal pediu para que seja apurada a responsabilidade pela convocação dos atos, que tiveram vários pontos em comum: convocação por meio de grupos de WhatsApp e redes sociais, faixas e cartazes com confecção padronizada e dizeres coincidentes, e, em todos, os mesmos alvos, notadamente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com quem Bolsonaro trocara farpas dois dias antes.

E por que o destino? Porque é Moraes o relator de várias ações recentes questionando aspectos institucionalmente relevantes, antes e durante a pandemia do novo coronavírus.

A começar do inquérito aberto no ano passado, a pedido do presidente da Corte, José Antonio Dias Toffoli, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, mas cujo estofo foi sendo expandido e a validade é indefinida.

É nesse inquérito que está o fio da meada que pode levar a que o novo já comece adiantado. Procuradores e ministros têm informações de que empresários que financiaram os ataques de 2019 às instituições também estão à frente das manifestações realizadas domingo e incentivadas por Bolsonaro.

Ninguém arrisca dizer se o presidente será levado ao epicentro da investigação, mas deputados de sua base deixaram digitais nas convocações dos protestos, e, pelo fato de a investigação ser conduzida pelo STF, podem, sim, ser indiciados.

Eles vão tentar evocar, é claro, a imunidade parlamentar que lhes resguarda o direito a opinião, mas juristas lembram que atentar contra a democracia e a independência dos Poderes, resguardada pela Constituição, é crime tipificado e não conduta coberta pela imunidade.

É por saber que existem conexões claras que aliados de Bolsonaro estão agitados querendo encerrar a CPMI das Fake News. E não gostaram nada de ver Gilmar Mendes sorteado para relatar a ação do filho 03, Eduardo, com esse fim.

Gilmar deverá assegurar o seguimento da CPMI, e ela e os inquéritos do Supremo funcionarão como advertências bem concretas a Bolsonaro para que não ouse fazer mais nenhum arreganho autoritário como o de domingo, pois as instituições estão alertas e têm instrumentos já acionados para detê-lo.


Ricardo Lewandowski: Covid-19 e federalismo

À União compete coordenar ações, estabelecer regras e ofertar apoio material 

A pandemia desencadeada pela Covid-19, que em poucos meses infectou e matou dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo revelou, dentre outras coisas, as fraquezas e virtudes das diferentes formas de governança. Entre nós, serviu para testar os limites do federalismo adotado pela Constituição de 1988.

Do ponto de vista estrutural, existem basicamente dois tipos de Estado: “unitários” e “compostos”. Os primeiros apresentam apenas um centro de impulsão política. Seus súditos submetem-se a um único governo e ordenamento legal. As circunscrições em que se subdividem só possuem autonomia administrativa. Predominam em países com dimensões territoriais ou demográficas modestas e populações homogêneas.

Os compostos, sobretudo os federais, geralmente prevalecem em nações com tamanho maior e composição mais heterogênea. Fracionam-se em unidades territoriais dotadas de autonomia política. Por isso, seus cidadãos sujeitam-se simultaneamente às autoridades centrais, regionais e locais, cujas determinações e leis são obrigados a observar.

A federação é uma novidade histórica. Resultou da associação das 13 ex-colônias britânicas na América do Norte, tornadas independentes em 1776. Foi concebida para assegurar aos associados as vantagens da unidade, sem prejuízo de preservar as distintas particularidades. Mais tarde, constatou-se que também contribui para fortalecer a democracia, pois promove a desconcentração do poder e facilita a aproximação do povo com os governantes.

Inspirado na experiência dos EUA, o Brasil adotou o modelo em 1891, na primeira Constituição republicana. A partir de então, todas as Cartas políticas subsequentes o incorporaram, exceto a de 1937, sob a qual vicejou a ditadura getulista.

Ocorre que os estados-membros, desde quando foram instituídos, em substituição às antigas províncias imperiais, jamais foram dotados de poder e recursos compatíveis com suas necessidades, permanentemente concentrados no governo central. Já os municípios, embora também vítimas de uma crônica carência de meios, sempre dispuseram de considerável autoridade para regular assuntos de interesse local.

Para sanar esse desequilíbrio, a nova ordem constitucional adotou o denominado “federalismo cooperativo”, no qual União, estados e municípios passaram a compartilhar competências e rendas para buscar um desenvolvimento harmônico e integrado.

Tal evolução, à toda evidência, precisa ser levada em conta pelos diferentes níveis político-administrativos no combate à Covid-19. À União compete coordenar as ações, mediante o estabelecimento de regras gerais e a oferta de apoio material, porque lhe incumbe, a teor do artigo 21, inciso XVIII, da Lei Maior, “planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas”.

Os entes regionais e locais não podem ser alijados dessa batalha, porquanto têm a obrigação de tomas as medidas necessárias para enfrentar a doença. Além de outras competências comuns que compartilham com a União, cabe-lhes “cuidar da saúde e assistência publica”, bem como “organizar o abastecimento alimentar” nos respectivos âmbitos de atuação, segundo o artigo 23, incisos II e VIII, do texto constitucional.

O federalismo cooperativo, longe de ser mera peça retórica, exige que seus integrantes se apoiem mutuamente, deixando de lado as divergências ideológicas ou partidárias dos respectivos governantes. A grave crise sanitária e econômica na qual nos debatemos atualmente demanda juízo, ponderação e responsabilidade de todos.

*Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo