corrupção

Jose Roberto de Toledo: De Congresso a delegacia

Sempre que parlamentares aprontam, seja resgatando um colega da cadeia seja aprovando uma lei impopular, uma altercação emerge nas mídias sociais. Primeiro, a fúria: “Deputado isso!”, “deputado filho daquilo!”,”deputado #@$%&!”. E, imediatamente, a ponderação: “Foi o povo que colocou eles lá”, “democracia é isso”. Todo congresso, assembleia, câmara é reflexo da sociedade que o elegeu, mas prismado pelo sistema eleitoral em que vingou.

Lapidar sistemas eleitorais para favorecerem uma casta, partido, corporação ou região geográfica é prática recorrente nas maiores democracias do mundo. Nos EUA, de tão banal, cunharam a palavra que designa a manipulação dos distritos eleitorais: gerrymandering (“salamandragem”). Bem torturadas, regras admitem qualquer coisa. Até que quem tem menos votos pode eleger mais representantes e fazer o presidente. Não é mágica, é técnica.

No Brasil, o sistema poderia ter ficado ainda pior se o Congresso tivesse aprovado a reforma política. Retirados os bodes do texto, pouco mudou. Entre muitos defeitos mantidos, o sistema favorece a perpetuação de dinastias e a falsa renovação do plenário – basta dar novos prenomes a velhos sobrenomes, de tempos em tempos. Nem dinheiro aumenta mais a chance de um candidato se eleger do que ele já ser deputado ou seu herdeiro.

Há uma grande mas etérea expectativa de que em 2018 isso vai ser diferente. De que a insatisfação explosiva da população com seus representantes levará a uma “limpeza” no Congresso. Pesquisas com perguntas bem intencionadas mas indutivas mostram que uma ampla maioria quer mudança, quer novas lideranças, quer novidade. Será mesmo? Será que na hora de teclar cinco dígitos na urna eletrônica a maioria dos eleitores vai se lembrar disso?

Se houver mudanças, elas não serão por igual. Uns perderão mais do que outros. Os grupos mais coesos tendem a se expandir. Os fragilizados por disputas internas, a encolher.

Entre os que correm mais risco estão os candidatos cujos números começam por 45 ou 13. Desde 1994, eles têm se beneficiado da polarização entre seus partidos nas eleições presidenciais. Invariavelmente, os dois mais votados candidatos a presidente eram o 13 e o 45. Eles puxavam votos para o número da legenda nas eleições dos demais cargos. A polarização acabou. De juiz a desajuizado, qualquer um acha que pode se eleger presidente.

Em mais de 20 anos, a situação dos ex-polos nunca foi tão ruim. O 45 rachou: o quatro, de um lado, xinga o cinco, do outro. Seus presidenciáveis foram abatidos em voo. Quem sobrou está penando. O 13 tem o líder das pesquisas, mas não sabe se ele chegará candidato ou cassado ao dia da eleição. Puxadores de voto do partido nas proporcionais foram condenados e mudaram de número.

Se 13 e 45 perderem, quem pode ganhar?

Olhando-se as tendências de mais longo prazo, é possível que os ganhadores não sejam propriamente partidos, mas segmentos mais bem articulados e engajados da sociedade. Eles se beneficiam da perda de credibilidade das instituições, da crise da segurança pública e da epidemia de violência. São também beneficiados por pertencerem a corporações hierarquizadas e militantes.

Na atual legislatura há quatro vezes mais deputados que levam “delegado” no nome de guerra do que “professor”. Dez anos atrás, não havia nenhum. Se o prestígio eleitoral das corporações policiais cresce, as da saúde caem. Há uma década, havia dez deputados com “Dr.” ou “Dra.” no nome. Sobram três. Há notícia de que dezenas de delegados da Polícia Federal se candidatarão em 2018. Da Bahia, vem uma nova onda, síntese de duas tendências: o deputado Pastor Sargento Isidório deve sair para federal.

 


Merval Pereira: Corrupção e democracia 

“O que coloca em perigo a sociedade não é a corrupção de alguns, é o relaxamento de todos”. A frase do pensador político e historiador francês do século XIX Alexis de Tocqueville, criador da definição de social-democracia na análise das democracias ocidentais modernas, nunca esteve tão em voga quanto hoje, e não apenas na América Latina, que, pela primeira vez nos últimos 22 anos, pôs o problema da corrupção como o mais importante, segundo pesquisa do Latinobarômetro divulgada ontem.

ONG sediada no Chile que faz pesquisas regularmente sobre valores e opiniões na América Latina, o Latinobarômetro, em pesquisa que já comentei aqui na coluna, já havia detectado que a confiança na democracia está em declínio na região desde 1995. Comparados com outros nacionais consultados em países da América Latina, os brasileiros são os segundos menos dispostos a apoiar a democracia.

Há pesquisas que mostram que a democracia era um valor muito mais respeitado entre as gerações mais velhas, ao passo que na dos millenials, os que chegaram à fase adulta na virada do século XX para o XXI, apenas 30% nos Estados Unidos consideram que a democracia é um valor absoluto.

O mesmo fenômeno é constatado na Europa, em números mais moderados. Um estudo mostra que, em 2016, o apoio dos brasileiros à democracia caiu 22 pontos percentuais. Não apenas o apoio saiu de 54%, em 2015, para 32%, como 55% dos brasileiros se disseram dispostos a aceitar um governo não democrático desde que os problemas sejam resolvidos.

Agora, pela primeira vez a pesquisa Latinobarômetro mostra que a corrupção é a principal preocupação do Brasil, onde cerca de 31% dos cidadãos a consideram o principal problema nacional. Envolvendo 18 países latino-americanos, a pesquisa mostra que o Brasil não está sozinho. Há dez anos, a corrupção sequer aparecia com dados significativos e, hoje, está presente e com peso em quase dez países do continente, segundo os coordenadores da pesquisa.

A conclusão é que a democracia latino-americana está em crise, e uma das principais razões é o descrédito dos sistemas políticos, dos partidos, das lideranças. O Latinobarômetro mostra que 70% dos cidadãos da região criticaram seus governos por pensarem apenas em seus interesses individuais e não no bem comum, sendo que, no Brasil, esse percentual alcançou 97%.

Não é por acaso, portanto, que a questão da corrupção, a partir do caso brasileiro, tenha se espraiado pela América Latina, já que o esquema montado pelo PT nos governos Lula e Dilma exportou para diversos países chamados “bolivarianos” o mesmo sistema de compra de apoio político com o apoio da empreiteira Odebrecht.

Esse sistema de corrupção que agora está sendo desvelado corroeu os frágeis sistemas democráticos em diversos países da região e fez com que a descrença na democracia representativa aumentasse nos últimos anos.

O surgimento do “capitalismo de Estado” fez com que a relação direta entre democracia e capitalismo já não seja mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado. Ela está sendo deixada de lado pela emergência de países capitalistas não democráticos, como a China, e também pela desigualdade econômica exacerbada em países como o nosso.

Um novo estudo do World Wealth and Income Database, dirigido pelo economista francês Thomas Piketty, também já citado anteriormente na coluna, mostra a “extrema e persistente desigualdade” do Brasil, o que serve para desacreditar a eficácia do capitalismo em países em desenvolvimento como o nosso.

Uma comparação do Brasil em relação a outros três países — Estados Unidos, China e África do Sul — mostra pelo menos uma diferença de 8% no que se refere à renda em mãos do 1% mais rico da população. No Brasil, a renda desse grupo corresponde a 28% do total, enquanto na China é de 14%. Crise econômica, desmoralização da classe política pela prática sistemática da corrupção e violência urbana são ingredientes que se misturam para desacreditar a democracia representativa.

É nesse ambiente negativo que o Brasil entra agora no ano eleitoral.

 


Luiz Carlos Azedo: A sobrevivência da espécie

A corrupção será um dos temas centrais da campanha eleitoral: 62,3% dos entrevistados afirmaram que essa é a principal angústia em relação ao país

O gene egoísta, de Richard Dawkins (o autor de Deus, um delírio), é considerado o livro científico mais influente de todos os tempos, batendo, inclusive, sua fonte de inspiração, o seminal Origem das espécies, de Charles Darwin, segundo pesquisa da Royal Society, que comemorou 30 anos de sua premiação de livros em junho passado. Dawkins é considerado “reducionista” pelos cientistas criacionistas, mas sua tese faz sucesso entre os neodarwinistas: para ele, somos uma “máquina de sobrevivência” de um gene cujo objetivo é a autorreplicação, isto é, a perpetuação da espécie.

Analisando a reprodução sexuada dos animais, Dawkins busca uma explicação para a convivência entre o egoísmo dos genes e o altruísmo das espécies, que seriam uma espécie de “cluster” biológico que garantiria a sobrevivência e replicação de ambos. Para isso, tem papel decisivo a “meme”, conceito que ele utiliza para explicar como o gene transmite de uma geração para outra a memória ou o conhecimento nato de cada espécie, a começar pelo chamado instinto de sobrevivência.

Por exemplo, o cuco é uma das espécies mais egoístas que existem: procria, mas não educa os filhos; põe os ovos no ninho de outras aves, aproveitando sua ausência. Quando o danado do cuco nasce, joga os demais ovos fora do ninho, matando os filhotes legítimos para ser criado no lugar deles. Só mesmo a “meme” explicaria o fenômeno. O conceito é adotado por antropólogos no estudo das religiões e sociólogos no estudo de sistemas políticos, utilizando modelos matemáticos, para explicar certos comportamentos e a disseminação de ideias.

Ninguém sabe direito o que vai acontecer nas eleições de 2018, tamanho o desprestígio ou desconhecimento em relação aos partidos. Segundo as pesquisas, o eleitor “fulanizará” as eleições em todos os níveis e haverá um Deus nos acuda nos partidos. A tese de Dawkins se aplica, por analogia, aos nossos políticos e seus partidos. Na disputa eleitoral do próximo ano, os grandes partidos servirão de “arranjo institucional” para salvar seus líderes do desgaste da Operação Lava-Jato; os pequenos partidos, que estão condenados ao desaparecimento gradativo, servirão de salva-vidas para que seus lideres sobrevivam no Congresso. Os políticos se comportam naturalmente como genes egoístas. Raros são os líderes altruístas.

Descrença 

Por que o Deus nos acuda? “A taxa de rejeição é grande, e a taxa de rotatividade deve ser imensa nessa eleição. Tudo aponta para uma eleição que vai ser um momento pivotal da política brasileira, como poucos nós tivemos”, comenta o diretor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Marco Aurélio Ruediger, que coordenou a pesquisa “O dilema do brasileiro: entre a descrença no presente e a esperança no futuro”.O descolamento da sociedade em relação ao Congresso Nacional e ao Executivo ficou patente no levantamento.

Entre as 1.568 pessoas entrevistadas, 83% afirmaram não confiar no presidente da República (o levantamento não cita Michel Temer); 79% disseram desconfiar dos políticos eleitos; e 78% reforçaram que não confiam nos partidos. Além disso, 47% afirmaram que o país estaria melhor sem as legendas. Segundo Marco Aurélio, a redemocratização do país (1989), a eleição do Fernando Henrique Cardoso (1994) e de Luiz Inácio Lula da Silva (2002) foram momentos semelhantes. “Então, 2018 está se armando como um grande palco no qual uma série de ajustes e contas para fechar vai ser resolvida. Ou seja, qual rumo o país vai ter? Qual configuração política vai liderar esse rumo? E qual a expectativa eu vou ter para o Brasil no futuro?”, indaga.

Na pesquisa, 55% dos ouvidos rejeitaram a possibilidade de escolher o mesmo candidato à Presidência em quem votaram nos pleitos anteriores. Os percentuais se mantêm no mesmo patamar para governador (53%), senador (52,4%) e deputado federal (51%). Será um tsunami eleitoral. Porém, a pesquisa confirma a tese de que a população tem antipatia pelo governo, mas não se dispõe a ir para a rua defender seu impeachment, porque acredita que pode resolver o problema pelo voto: 65% concordaram com a frase “mais importante do que protestar nas ruas é votar nas eleições”.

O levantamento indica que a corrupção será um dos temas centrais da campanha eleitoral: 62,3% dos entrevistados afirmaram que essa é a principal angústia em relação ao país. A população também tem uma percepção negativa sobre a economia, ainda que os índices demonstrem a queda da inflação, da taxa de juros e do desemprego.

Para 63,9% dos ouvidos, o pior momento da crise econômica ainda está por vir, embora nada indique que o país caminhe nesta direção. O percentual aumenta nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste. Ou seja, há um descolamento total entre os indicadores da economia e a percepção da população. O estudo foi realizado pelo Ibope, contratado pela FGV, entre 19 e 24 de agosto. O nível de confiança do levantamento é de 95%, com margem de erro de dois pontos percentuais.


Fernando Gabeira: Presidente Michel Fora Temer

Como a grande maioria acha que houve corrupção e Temer já era impopular, vamos ouvir, aqui e ali, gritos de “fora”

A segunda denúncia contra Temer vai à Câmara e, como a primeira, deve ser rejeitada. É possível, portanto, prever uma situação bizarra: Temer, que só tem 3,4% de aprovação, segundo as pesquisas, ruma para um desgaste ainda maior, com a repetição de cenas da mala de Rodrigo Rocha Loures, a fortuna encontrada no apartamento usado por Geddel. Toda aquela dinheirama passará de novo pelas telas e aprovação de Temer deve encolher. Mas ele continuará na presidência e, se chance houver, vai querer ser candidato de novo.

Não é provável uma grande manifestação popular. Afinal, o impeachment derrubou uma quadrilha para colocar outra no topo do poder. São muito modestas as razões para lutar pela ascensão de uma nova quadrilha. O sistema se autoimunizou, não há salvação dentro dele.

Como a grande maioria acha que houve corrupção e Temer já era impopular, vamos ouvir, aqui e ali, gritos de “fora”. Um escritor na Bienal do Livro, ao se apresentar, disse: “Antes de tudo, fora Temer”. O grito será incorporado ao nosso universo das ruas, do vendedor de pamonha, os gritos de gol nas tardes de domingo.

O humorista José Simão antecipou, brilhantemente, essa situação bizarra ao imaginar a faixa com que o presidente foi recebido na China: Welcome Mister Fora Temer.

Mas nem todos vão rir todo tempo dessa situação. O presidente se refugiou no agonizante sistema político partidário. Essa ampla posição de resistência às investigações da Lava-Jato acaba fortalecendo posições mais radicais. De um lado, explorando a incapacidade de solução na política, cresce na rede social a posição dos que querem uma intervenção militar. Na arena institucional cresce também o potencial de votos de Jair Bolsonaro. Ele aparece para seus seguidores como alternativa eleitoral como a esse sistema apodrecido. Bolsonaro cresce também porque assim como Trump, usa a mídia a seu favor. Seu estilo é fazer uma declaração bombástica e ir relativando aos poucos, terminando por culpar a mídia pelo mal-entendido.

Estive em Minas mais ou menos na mesma época que Bolsonaro. Decidi analisar as duas polêmicas que surgiram na sua passagem. Na primeira delas, prometeu levar o mar a Minas. É algo que no passado mobilizou um célebre populista mineiro, Nelson Thibau. Ele tinha essa bandeira e chegou a transportar um barco para a Praça Sete, no centro de Belo Horizonte. Acontece que Bolsonaro usava suas frases como uma armadilha. Por exemplo, logo após prometer o mar a Minas, disse “Brincadeiras à parte...” e seguiu seu discurso.

No outro momento, Bolsonaro montou de novo sua armadilha. Declarou: os caras que fizeram a exposição lá no sul mereciam ser fuzilados. Em seguida, disse: é uma força de expressão.

Minha hipótese é a de que ele atravessa o discurso politicamente correto para provocá-lo e trazê-lo para uma boa briga, na qual reforça sua posição entres os adeptos e, simultaneamente, enfraquece o outro. Em síntese, Bolsonaro cria uma situação caricata, que tanto ele como Trump consideram mais inteligível para a maioria de seus seguidores.

As táticas de Bolsonaro e Trump são mais eficientes que as ameaças do populismo de esquerda de controlar a mídia. Eles transitam da mídia para as redes sociais e vice-versa, usam as duas de forma sincronizada, algo diferente do populismo de esquerda.

Ainda preciso avançar um pouco no tema, mas desde já acho que as falas de Bolsonaro deveriam ser avaliadas na cobertura presidencial com uma pergunta: qual é o jogo?

A inglória derrocada da esquerda e a mediocridade do PSDB acabam abrindo o caminho para que uma rebeldia juvenil seja atraída por Bolsonaro e seu discurso crítico ao sistema.

É algo que devemos também à insistência de Mister Fora Temer de se manter no poder, com tão pouca credibilidade. Os partidos políticos e Temer se enterram juntos em Brasília. Mas da maneira que o fazem não deixam nem capim nascer sobre o seu túmulo. Eles contribuem para nos lançar em campanhas de slogans e arranca-rabos, num momento em que é necessário discutir os rumos do país.

Os discursos bombásticos vão animar as eleições. Mas não devem dominá-las. Suponho que uma tendência mais equilibrada é majoritária. E também a mais adequada para pensar a saída da crise e projetar algumas linhas do futuro.

Muita gente tem esperança de que o Brasil saia desse imenso pantanal. Essa esperança, os adeptos da cura gay não podem curar. E a Justiça ainda não autorizou.

 


Míriam Leitão: MP vai combater em duas frentes 

 

A gestão de Raquel Dodge terá preocupação com direitos humanos, desmonte da Funai, minorias e meio ambiente. E manterá o combate à corrupção, ou a “depuração do país”, como a nova procuradora-geral disse. Assuntos que estavam fora do foco passarão a ter. “Mesmo que nossa ação não tenha destaque na imprensa, nós olharemos para estes temas”, promete o vice-procurador-geral, Luciano Mariz Maia.

Aposse foi marcada pelo conflito explícito entre as duas lideranças do Ministério Público, mas a transição foi tranquila, disseram fontes dos dois lados. Procuradores ligados a Janot e ligados a Raquel contam que o clima no grupo de transição, que trabalhou nos últimos dias, foi colaborativo, mas nenhuma informação sigilosa da Lava-Jato foi passada:

— Ela dizia que só seria a procuradora-geral quando fosse a procuradora-geral. E, enquanto isso, ela só poderia ter acesso a informações sigilosas por decisão judicial. Como não houve, nem ela pediu, só agora é que começaremos a tomar conhecimento dos assuntos — disse um dos seus assessores diretos.

Além do mais, havia uma preocupação entre assessores da nova procuradora: se ficassem a par de tudo antes, as confusões de uma gestão poderiam contaminar a outra. Há uma impressão entre o grupo da procuradora-geral de que haverá daqui para a frente menos eventos na Lava-Jato. Mas não é verdade, segundo dizem alguns procuradores que lidam com o tema. Ainda há muito a se revelar e muitas providências para serem tomadas. Assessores do ex-procurador-geral Rodrigo Janot negam que houve correria no fim do mandato para enviar a segunda denúcia, apenas uma decisão coerente:

— Os quatro processos — do PT, PP, PMDB do Senado e PMDB Câmara — devem ser lidos juntos, porque são, na verdade, os mesmos delitos. Por isso Janot precisava enviar a denúncia contra o PMDB da Câmara antes de sair, para fechar esse ciclo — disse um assessor do ex-procurador-geral.

Por que Janot não foi? Essa era uma pergunta frequente entre as mais de 600 pessoas presentes na posse da nova procuradora-geral. Os dois lados admitem que Janot e Raquel nunca se entenderam, que houve brigas pessoais e diferenças fortes de estilo. Mas houve também complicadores. Todo o credenciamento ficou a cargo da presidência e era um funil ao qual Janot não queria se submeter. Se ele fosse, não estaria na mesa, apenas na plateia, em algum ponto de destaque longe o suficiente do seu duplamente denunciado Michel Temer.

Raquel Dodge estava na Procuradoria-Geral dos Direitos Humanos quando houve um esforço forte no combate ao trabalho escravo. Sua atuação provocou um recuo da prática e punição aos culpados, como, por exemplo, no processo que condenou o ex-presidente da Câmara Inocêncio Oliveira. Raquel Dodge estava no comando da Operação Caixa de Pandora, primeira operação de combate à corrupção a prender um político no exercício do cargo, o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda.

O que ela quer é permanecer no esforço da Lava-Jato e ao mesmo tempo abrir o leque das outras questões que na visão do seu grupo foram deixadas de lado. É isso que ela quis dizer quando afirmou no discurso que o Ministério Público tem “a obrigação de exercer com igual ênfase a função criminal e a de defesa dos direitos humanos”. Fontes da Lava-Jato garantem que não há preocupação de que a gestão dela reduza o combate à corrupção. Mas só um integrante da Força-Tarefa de Curitiba esteve presente ontem na posse.

Seja como for, em qualquer das duas áreas, o MP terá que confrontar o presidente Temer. Na área criminal, ele é hoje um denunciado pelo Ministério Público. Nas outras questões, o governo Temer tem sido marcado por ameaças ao meio ambiente, como a desafetação da Floresta de Jamanxin, por nomeações polêmicas para a direção da Funai. “É a maior agência de proteção dos direitos dos indígenas no mundo”, define o vice-procurador-geral.

A nova procuradora-geral será mais discreta em tudo, falará menos com a imprensa, terá menos frases-flecha, tem uma equipe mais fechada. Mas é impossível fazer com discrição o trabalho de “depuração” de um país, por isso suas ações acabarão tendo repercussão. Portanto, não haverá paz entre Ministério Público e o governo Temer.

 


José Eduardo Faria: Corrupção sistêmica e Direito Penal

Quando o Brasil estará numa situação como a dos EUA, onde prevalece o rigor do FCPA?

No julgamento do mensalão, as discussões no STF giraram em torno da “teoria do domínio do fato”, doutrina criada por criminólogos alemães que dá margem às mais variadas interpretações – inclusive políticas. No julgamento das ações sobre corrupção sistêmica da Petrobrás e da Odebrecht, abertas com base numa operação que mudou os padrões de investigação criminal no País, destacam-se as acirradas discussões entre juízes de 1.º grau e de tribunais superiores sobre o alcance das leis penais mais recentes, que fundamentam as condenações de políticos e executivos acusados de atos ilícitos contra a administração pública nacional e estrangeira.

Uma dessas leis é a que trata das organizações criminosas (12.850). Sancionada em 2013, já propiciou um número expressivo de delações premiadas de dirigentes de corporações – só na Petrobrás foram mais de 60 e, na Odebrecht, 77. Outra é a Lei Anticorrupção (12.846/13), que referendou o compromisso do Brasil – um dos últimos signatários sem lei própria na matéria – com a Convenção Antissuborno da OCDE. Antes dela, uma empresa que fosse objeto de uma investigação podia alegar que o ato de corrupção foi iniciativa isolada de um funcionário, sendo trabalhoso comprovar a culpa de diretores e controladores. A lei introduziu a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, permitindo que uma empresa acusada de corromper agentes públicos e fraudar licitações seja punida por corrupção, independentemente da prova de dolo e conhecimento dos administradores envolvidos.

A fonte de inspiração da Lei Anticorrupção são leis americanas concebidas para garantir igualdade de condições entre competidores nos mercados nacionais, punindo empresas que obtêm vantagens subornando agentes de governos locais. Editado em 1977, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) proíbe que operem nos EUA, independentemente de sua nacionalidade, empresas acusadas de subornar autoridades em outros países. Também tem jurisdição extraterritorial, à medida que pune empresas envolvidas em corrupção, independentemente de o ilícito ocorrer fora ou dentro do território americano. E estende as punições aos gestores e acionistas, independentemente do local de residência. Nos últimos seis anos, o Department of Justice (DoJ) e a Securities and Exchange Commission (SEC) processaram mais de 60 empresas por violação do FCPA. Em 2008, a Total pagou US$ 398 milhões para arquivar a acusação de ter subornado dirigentes iranianos. Acusada de ter um padrão de suborno sem precedentes, a Siemens pagou US$ 800 milhões.

A concentração do poder empresarial e a integração mundial dos mercados financeiros exigiram mudanças radicais num direito positivo elaborado com base em quatro pilares: soberania, poder, território e representação. Obrigados a se ajustar a cenários complexos, operadores jurídicos passaram a ter dificuldades para enfrentar conflitos inéditos por meio de normas concebidas para realidades mais simples. No campo do Direito Penal, considerado a manifestação jurídica por excelência da soberania dos Estados, essas dificuldades foram criadas pela expansão do narcotráfico, fraudes financeiras e terrorismo. Por envolverem sofisticadas redes de transgressão, esses delitos têm caráter transnacional, o que levou a articulação entre os recursos ilícitos captados por essas redes e os circuitos bancários a pôr em xeque o Direito Penal com jurisdição territorial. Como enfrentar o crime transnacional organizado com tipificações e procedimentos penais forjados para crimes interindividuais e de alcance nacional?

Desde então, cresceu a opção por novos critérios para determinar uma jurisdição penal transterritorial, sob influência do pragmatismo inerente à cultura jurídica anglo-saxã, em detrimento do formalismo da cultura romano-germânica. A OCDE tem estimulado a assinatura de convênios para fechar paraísos fiscais. Nos EUA, para adequar o FCPA a lidar com redes transnacionais de transgressão, o Sarbanes-Oxley Act, editado em 2002, após o escândalo da Enron Corporation, e o Dodd-Frank Act, editado em 2010 com o objetivo de proteger investidores contra falências bancárias, ampliaram o número de casos passíveis de punição. Quando a corrupção na Petrobrás foi denunciada, Dilma Rousseff tentou desqualificá-la. Mas, meses depois, a PwC Brasil, que auditava as contas da empresa, negou-se a aprová-las caso o presidente de uma subsidiária, acusado de irregularidades, não fosse afastado. Em seguida, o DoJ e a SEC abriram investigações para apurar denúncias de corrupção. Esse caso contrasta com o que afirmavam os juristas ingleses do século 18. “O que não está no território está fora do território”, diziam, ao justificar a circunscrição do Direito Penal às fronteiras de cada país. Como opera nos EUA, a Petrobrás está sujeita ao FCPA, podendo ser investigada pelo DoJ e pela SEC. A particularidade está no fato de que é controlada por um governo estrangeiro.

Neste cenário, são inevitáveis as tensões entre os planos locais e supraestatais de enfrentamento do crime transnacional. No plano nacional, é natural que investigações de corrupção sofram pressões políticas. Como as inovações introduzidas pela legislação anticorrupção são recentes no País, elas contêm falhas – a Lei 12.846/13, por exemplo, não define com clareza os limites dos órgãos com competência punitiva para firmar acordos de leniência. Isso permite que algumas decisões dos juízes da Lava Jato não só possam ser criticadas juridicamente, como também sirvam de pretexto para serem agredidos moralmente por políticos. Este clima estimula o Congresso a patrocinar projetos que cerceiam procuradores e magistrados. Nos países onde as mudanças no Direito Penal foram promovidas há mais tempo, como nos EUA, o cenário é outro. Nele, prevalece o rigor do FCPA, que blinda investigações de denúncias de corrupção contra pressões políticas, garantindo que executivos e acionistas – da matriz ou de coligadas – condenados por corrupção não fiquem impunes. Quando o Brasil estará numa situação como essa?

*É PROFESSOR TITULAR FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

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Fernando Gabeira: Os medalhistas brasileiros  

A competência dos bandidos do Brasil é ouro em qualquer olimpíada da corrupção

Aqui onde estou, no interior do Amapá, as coisas me parecem confusas. Creio que parecem confusas em toda parte. Mas é sempre difícil de alcançá-las quando as conexões são pobres.

Rodrigo Janot deverá apresentar uma segunda denúncia contra Michel Temer. Teremos de ouvir tudo de novo, cada um com seu voto. Espero que seja menos dramático e que o mercado não leve tão a sério um enredo previsível. Afinal, a economia segue adiante.

Não conheço a delação de Lúcio Funaro. Sei apenas que é o réu mais violento no nível verbal: ameaça literalmente comer o fígado de adversários. Funaro já enrolou a Justiça uma vez. Deve ser uma pessoa cheia de truques, como parecem ser os irmãos Batista.

Janot afirmou que, enquanto houver bambu, vai lançar suas flechas. É uma afirmação quantitativa. Sabemos que a última flecha tem de ser mais certeira e eficaz. Isso se levarmos a sério a analogia com os índios. Não tenho conhecimentos antropológicos para afirmar, apenas suponho que os índios não gostem de errar a última flecha, porque depois dela ou o bicho pega ou o adversário ataca.

A delação da JBS é um dos pontos mais vulneráveis da Lava Jato, embora nada tenha que ver com o trabalho em Curitiba. Foi na esteira do acordo com Joesley que os adversários da operação bateram pesado.

Mesmo quem se coloca abertamente a favor do desmonte do grande esquema de corrupção no Brasil custa a entender não só a liberdade de Joesley Batista, mas também o fato de os procuradores não terem mandado periciar o gravador antes de desfechar o processo.

No front da Lava Jato no Rio de Janeiro avançou, finalmente, o tema denunciado pelo Le Monde há alguns meses: a escolha do Rio para a sede da Olimpíada foi comprada. E reaparece um personagem chamado Rei Arthur. Tive de falar dele em 2010. Suas empresas faturavam bilhões durante o governo Sérgio Cabral. Ele mandava nas escolhas do governo para contratar serviços. Daí o apelido Rei Arthur.

O que aconteceu com os Batista pode ser uma lição. Rei Arthur andou pelo Rio e escapou para Miami, onde vive. Ele certamente vai usar ao máximo sua presença nos EUA para dificultar a prisão. Quando preso, Rei Arthur já deverá saber com antecedência o que falar e o que esconder - a velha tática de oferecer os anéis para salvar os dedos.

A quadrilha montada por Sérgio Cabral, com inúmeras ramificações, tinha alcance internacional, comprou uma Olimpíada. Seu combate se deu com a ajuda decisiva de investigadores franceses.

Os donos da JBS mostraram, também, alto nível de audácia, na medida em que tinham a chave do BNDES, projetavam um crescimento internacional, enquanto no País compravam quase 2 mil políticos. Era inverossímil esta história de que decidiram colaborar porque tiveram uma espécie de epifania e descobriram que trilhavam o caminho do crime.

É importante que a Lava Jato não aceite os anéis para salvar os dedos, não por uma vocação repressiva. Os adversários são fortes. A história da repressão aos tráfico de drogas na Colômbia está cheia de cooptação dos investigadores pelo crime. Os próprios repressores transformavam-se em chefes de segurança dos esquemas do tráfico. Não eram simplesmente subornados, mas contratados pelo seu conhecimento técnico.

No campo político, no Brasil, não houve nenhuma reforma. O máximo possível é acabar com coligações proporcionais e criar a cláusula de barreira. Os passos dados não neutralizam a tendência em não votar em quem tenha mandato. E isso não é garantia nem de uma modesta renovação. Muitas pessoas novas entraram no Congresso e, ao cabo de algum tempo, estavam falando a velha linguagem. É o que acontece quando as regras do jogo não mudam.

Aqui, no interior do Amapá, observei algo comum em outros pontos do Brasil. Em quem confiar?, perguntam uns aos outros ao verem a sucessão de escândalos. A ideia de que a lei vale para todos foi fortalecida com a prisão de alguns poderosos. Não pode haver brechas nela, caso contrário, o desânimo será ainda maior.

Janot precisa avaliar o impacto da delação premiada de Joesley Batista. Afinal, valeu a pena? Quantas informações importantes ele deu? Até que ponto as investigações seriam incapazes de chegar a elas sem prêmio a Joesley?

Possivelmente, a última flecha de Janot ele vai arrancar de seu próprio corpo. Nada de excepcional numa longa batalha.

Pode ser que avance para compreender que errou ao não periciar as gravações, mas encontrar nelas o caminho da reparação.

O quadro geral é mais inquietante quando a desconfiança transborda o universo da política e se expande pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

As mais recentes pesquisas já apontam nessa direção. Certamente, foram influenciadas pela atuação de Gilmar Mendes, mas não se esgotam nele.

A iniciativa de Cármen Lúcia de pedir uma rápida e esclarecedora investigação sobre referência ao STF nas gravações de Joesley vai numa boa direção. No entanto, ela deve saber que a crise na dimensão da Justiça é corrosiva.

Quanto a Geddel Vieira Lima, ele foi solto e voltou para Salvador. As pessoas estão, agora, estupefatas com a descoberta de milhões de reais num apartamento que ele usava. O Estado não tinha dinheiro para a tornozeleira eletrônica de Geddel. Geddel tinha dinheiro para comprar todas as tornozeleiras eletrônicas do Brasil. Por isso é que vale a pena considerar que estamos diante de quadrilhas extremamente capazes e ousadas, não só prontas para assaltar, mas também dispostas a dar uma volta na repressão.

Tantos inocentes, tantos arrependidos, tantos falsos colaboradores - a competência dos bandidos brasileiros é medalha de ouro em qualquer Olimpíada em que tenha a corrupção como modalidade.

Não será fácil vencê-los, embora a Lava Jato tenha alcançado um nível superior e seja o melhor instrumento que encontramos para isso em toda a nossa história.

* Fernando Gabeira é jornalista

 


Marco Aurélio Nogueira: A reforma que não cabe em si

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo

Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.

É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administrativo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituídos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda “pura”, radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos intelectuais e ético-políticos.

Avanços políticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.


O custo da sobrevida de Temer: apagão fiscal em hospitais e perdão de dívidas a grupos de pressão

Com cirurgias suspensas e bolsistas ameaçados, ajuste fiscal prejudica população para salvação do presidente. Se Dilma e o PT quebraram a economia, Temer atrasa a recuperação

Como custo de sobrevivência do presidente Michel Temer (PMDB), o ajuste fiscal virou promessa distante e os serviços federais sucumbem às barganhas do governo para manter o apoio do Congresso a um presidente acusado de corrupção passiva, investigado por obstrução de Justiça e participação em organização criminosa. A blindagem na Câmara dos Deputados na semana passada adiou o início de uma ação penal contra Temer, mas a sobrevida do presidente custou mais de R$ 4 bilhões em emendas parlamentares antecipadas e mais de R$ 10 bilhões em dívidas refinanciadas em condições generosas para produtores rurais. A salvação estourou uma rebelião na base aliada. PP, PR, PSD e outros partidos do "centrão" cobram ministérios, cargos e verbas para apoiar Temer contra novas denúncias e votações na Câmara dos Deputados.

Em cada fatia cedida do orçamento para grandes doadores de campanha, como os ruralistas, e para interesses paroquiais de parlamentares, Temer destruiu o ajuste fiscal da equipe econômica do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, como mostrou reportagem do EL PAÍS. Essa sobrevida veio com um custo direto, com barganhas no orçamento, e também indireto, com a rodagem de juros da dívida pública em patamar mais alto do que seria esperado em condições normais de governabilidade. Por isso, embora a ex-presidente Dilma Rousseff e o PT tenham quebrado a economia do país e levado as contas públicas a essa situação de descalabro, Temer também não ajuda. O presidente atrasa a recuperação, porque sua permanência no poder custa fatia relevante do orçamento público – até agora, mais de R$ 14 bilhões – e dificulta a queda de juros, essencial para a retomada da atividade econômica.

Para compensar esse “custo Temer”, o presidente tenta manter as expectativas positivas do mercado em seu governo. Tão logo foi salvo de uma ação penal pela Câmara ele renovou promessas de aprovação de uma reforma da Previdência.

Mas a boa vontade do mercado deve ser testada na semana que vem, quando o governo federal deve anunciar uma ampliação da meta fiscal deste ano, de déficit primário de R$ 139 bilhões para R$ 159 bilhões. O acréscimo de R$ 20 bilhões à meta será necessário para evitar problemas com o Tribunal de Contas da União (TCU), que já alertou para o risco de descumprimento. O governo superestimou a previsão de arrecadação e não deve se beneficiar de concessões que ofereceriam receitas extraordinárias. Também deve ser anunciada a revisão da meta fiscal de 2018 para o mesmo patamar. A cifra significa a manutenção do rombo fiscal de 2016, que bateu R$ 159 bilhões e representou 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Se a meta fosse contabilizada em resultado nominal -descontando a inflação-, o desempenho seria pior ainda: 8,9% do PIB. Apenas para efeito de comparação, países da União Europeia ficam sujeitos a sanções se o déficit nominal fica maior a 3% do PIB.

Com um custo tão alto de sobrevivência, o governo Temer já discutiu até subir impostos. Os presidentes da Câmara e do Senado reagiram e avisaram que não aprovariam elevações de tributos. Isso tirou fôlego da discussão e Temer passou a dizer que essa hipótese, mesmo estudada, estava descartada.

Para cumprir a meta fiscal deste ano, o governo contingenciou mais de R$ 42 bilhões neste ano em despesas e impôs um apagão fiscal em várias repartições federais. Isso fez com que cirurgias fossem suspensas em hospitais federais e bolsas de pesquisa ficassem ameaçadas, além de atrasar ou encerrar outros serviços.

“A população fica no pior dos mundos, porque o governo faz concessões orçamentárias para se manter politicamente, sem benefício nenhum para as pessoas. Do ponto de vista fiscal, R$ 10 bilhões [de dívidas rurais] é uma perda tremenda. Não à toa o governo discutiu aumento de imposto de renda uma semana depois de dar perdão de dívida do setor rural”, afirma o economista Hélio Tollini, ex-secretário de Orçamento Federal no governo Fernando Henrique Cardoso e consultor de orçamento da Câmara dos Deputados.

No Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o apagão fiscal é uma realidade que mata e adoece. Como só foram liberadas 70% das verbas de custeio e 40% das despesas previstas com investimentos, desde 31 de março o hospital não agenda cirurgias eletivas – só atende urgências. Pela falta de orçamento, ficou especialmente prejudicado o serviço de Hemodinâmica do complexo hospitalar, que chegou a atender 25 pacientes por dia e hoje só ajuda cerca de quatro pessoas por semana.

Também a pesquisa universitária está ameaçada. O CNPq só possui verbas para pagar 104 mil bolsas de pesquisa até setembro. Para o resto do ano, não há mais dinheiro em caixa. E esse número de bolsas é inferior às 138 mil bolsas financiadas pelo órgão no país no ano passado. Mas o presidente do CNPq, Mario Neto Borges, nega que tenham sido cortadas bolsas ou que tenham sido vetados novos pedido de financiamento. “Pode cortar o salário do presidente do CNPq, mas não vamos cortar bolsas”, afirmou ao EL PAÍS.

O CNPq precisa de R$ 500 milhões para encerrar 2017 sem deixar de pagar nenhum bolsista. Borges fez uma reunião com o ministro de Ciência, Tecnologia e Comunicações, Gilberto Kassab (PSD), para pedir que a equipe econômica libere essa verba. “Kassab falou que vai fazer uma reunião com a área econômica para colocar esse cenário e se diz confiante de que vai convencê-los de que esse valor deve ser liberado, mesmo que seja mês a mês. Não temos plano B, mas estou confiante de que vamos conseguir”, afirmou o presidente do órgão.

Nas últimas semanas, enquanto antecipava mais de R$ 4 bilhões no empenho de emendas parlamentares e cedia a outros grupos de pressão para barrar a denúncia na Câmara dos Deputados, Temer colheu derrotas no Congresso. O governo foi avisado de que não seria aprovado o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert), uma espécie de novo Refis lançado pela Medida Provisória nº 783, sem que a medida ofereça um ajuste maior a devedores do Fisco. Com essa medida, o governo esperava arrecadar R$ 13,3 bilhões só neste ano com o refinanciamento de dívidas, mas as condições mais generosas exigidas por deputados impedem qualquer resultado perto disso. Também houve derrota do governo com o fim do prazo para votação da MP 774 de reoneração da folha de pagamento, com que o governo federal esperava retomar a cobrança de encargos previdenciários para arrecadar cerca de R$ 4,8 bilhões neste ano. Esses fracassos deixaram um buraco na meta fiscal.

Enquanto cede a barganhas e coleciona derrotas para recuperar receitas, o governo ainda espera aprovar a reforma da Previdência, algo considerado improvável por analistas. Isso porque os parlamentares estão mais preocupados em votar uma reforma política, para garantir condições mais favoráveis para reeleição em 2018. E, na véspera da campanha de 2018, parece pouco provável alcançar os votos necessários para passar medidas impopulares que prejudicam aposentadorias. No melhor cenário, especialistas cogitam que seja aprovada a elevação da idade mínima para aposentadorias. Parte do mercado financeiro só mantém a confiança no governo Temer pela esperança de que seja aprovada uma reforma da Previdência. “Fico até impressionado de ninguém da equipe econômica ter pulado fora ainda”, afirma Tollini.

O secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, monitora diariamente as despesas do governo federal e não tem dúvida. Para ele, não há nenhuma prioridade de Temer em alcançar bons resultados fiscais. “A prioridade de Temer é a salvação da própria pele. Isso torna a situação muito volátil”, afirma. “Nesse momento de fragilidade política, se avolumam pressões orçamentárias ao presidente e ele acaba cedendo a várias delas”, acrescenta. O custo da sobrevivência de Temer, como se percebe, já passou dos R$ 14 bilhões.

Por Daniel Haidar, do El País


Cezar Vasquez: A Lava-Jato e o neolítico moral

A questão moral tem comandado o debate público brasileiro. A corrupção, que envolve políticos de todos os níveis e esferas de poder, paira como a causa de todos os males nacionais. Crise na saúde, falência dos Estados, desemprego, violência, quase tudo direta ou indiretamente parece estar relacionado com a decadência moral da classe política.

Desconfiança e baixa credibilidade da “classe política” não são fenômenos nacionais e muito menos novidades. Se tomarmos como referência o Índice de Confiança Social do Ibope, desde 2009 que o Congresso Nacional e os partidos políticos aparecem como as instituições com os menores índices de confiança entre as avaliadas. Há uma mudança no patamar da avaliação em 2013, anos das manifestações que, para muitos analistas políticos, são consideradas um marco de inflexão do modelo político brasileiro.

A baixa credibilidade por si só não explica a ascensão da questão moral como um dos elementos primordiais do debate público, muito embora tenha facilitado a utilização política do tema e servido como solo fértil para esse tipo de pregação. Certo mal-estar já havia se consolidado na percepção da opinião pública sobre as relações envolvendo classe política e recursos provenientes de corrupção. Poucos anos antes ocorrera a crise do mensalão, que revelou de forma clara certos meandros das relações entre financiamento de campanhas, agências de publicidade, partidos políticos e grandes empresas. Ao longo do processo de reconstrução democrática foram inúmeras as crises políticas com fortes bases de natureza moral. Impeachment do Presidente Collor, Anões do Orçamento, Crise do Painel do Senado e várias outras.

O novo e decisivo elemento no atual contexto foi a Lava-Jato. A operação começou em 2009 numa investigação sobre o crime de lavagem de recursos envolvendo o ex-deputado José Janene e doleiros. A partir de 2013, por meio de interceptações de conversas telefônicas é identificado um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo diretores da Petrobras. Em março de 2014 é deflagrada a primeira grande operação com prisões, ações de busca e apreensão e conduções coercitivas para tomada de depoimentos. É nesse momento, em função do uso de uma rede de postos de gasolina e lava jatos para movimentar recursos ilícitos por parte dos investigados que a operação é batizada com esse nome.

A discussão aqui não tem relação com os meandros técnicos da operação, com seus erros e acertos, ou com a culpa dos investigados e condenados. A ideia é discutir e avaliar discurso e estratégia política armada pelos próprios procuradores e o juiz Sérgio Moro em defesa da operação. Desta forma, estimar consequências para o futuro das instituições políticas e a vinculação de certas afirmações com determinadas visões de reformadores morais.

É impossível determinar se, no início das investigações, tinha-se noção do impacto que as mesmas teriam sobre a atividade política do país. A narrativa oficial é de que a partir de uma pista, a venda de um automóvel feita por um doleiro para um diretor da Petrobras, se puxou um fio, que trouxe um novelo. No entanto, a inspiração na Operação Mãos Limpas, da Itália, reiterada pelo próprio juiz Sérgio Moro, bem como a própria experiência pregressa do mesmo no processo do Banestado e do Mensalão, indicam que o alvo inicial das investigações não era apenas a lavagem de dinheiro por um grupo de doleiros.

Em entrevista, em 20 de dezembro de 2016, ao jornalista Wilson Tosta, do jornal O Estado de São Paulo, o cientista político Luiz Werneck Vianna atacou a cultura das corporações do ministério público e de certos setores do judiciário, classificando-os como sendo uma espécie de “Tenentismo Togado”.

Perguntado sobre a extensão da crise política após a revelação das delações premiadas da Odebrecht, ele respondeu: “Essas coisas não estão acontecendo naturalmente. Não são processos espontâneos. A essa altura, a meu ver, não há dúvida de que há uma inteligência organizando essa balbúrdia. Essa balbúrdia é provocada e manipulada com perícia”.

Mas para além da denúncia da luta dessas corporações para aumentar seus poderes e privilégios, o que realmente interessa é o sentido autoatribuído de certos personagens nesse processo. Perguntado se faltam controles, na Constituição, sobre essas instituições, Werneck Vianna oferece a seguinte resposta: “Em princípio, não. O problema é que as instituições tem que ser “vestidas” pelos personagens. E, a partir de certo momento, os personagens começaram a ter comportamentos bizarros. E que têm essa visão iluminada que os tenentes tiveram, nos anos 20. Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”.

As perguntas seguintes do jornalista levam o cientista político para o tema que nos interessa aqui: 1) “Mas o combate a corrupção não é importante?” 2) “E a atuação dessas corporações fortalece a negação da política?” E as respostas de Werneck Vianna abrem o caminho para a segunda parte desse artigo: 1) “Sem dúvida. Agora, política é política. Esse judiciário que está aí ignora a existência de Maquiavel. Ele se comporta apenas com um ímpeto virtuoso. Com um ímpeto  de  missão.” 2) “Sim.  Elas só  existem  desse  jeito  destravado,  sem  freios,  porque as instituições republicanas recuaram. E o presidencialismo de coalizão teve responsabilidade nisso. Porque rebaixou os partidos. Fez dos partidos balcões de negócios.”

 

O Neolítico moral

A referência a Maquiavel nos remete à discussão sobre a tese do Neolítico Moral, exposta no capítulo um do livro “Vícios Privados e Benefícios Públicos”. É interessante como a referência cifrada de Werneck Vianna coincide com uma passagem do texto de Eduardo Giannetti sobre a posição de Maquiavel. “Ao contrário de Lucrécio e Platão, tanto Hobbes como Maquiavel não embarcam num projeto de realçar com tintas fortes a realidade de um suposto hiato moral entre o que é e o que deve ser. Eles não se apresentam como portadores de valores puros e superiores aos do homem comum, ou como reformadores morais da sociedade”. (1)

A tese do Neolítico Moral baseia-se no conceito de que há um hiato entre o progresso material da sociedade humana, do conhecimento e da ciência e o progresso moral da humanidade. Há a ideia de que o progresso moral não acompanha o progresso material e as visões que colocam no próprio avanço da civilização a causa da degeneração moral. No texto de Giannetti o ponto de partida é a desilusão que a Primeira Guerra Mundial trouxe na crença quanto a certa infalibilidade do progresso humano. Entre a segunda metade do século XIX e o início da guerra, a civilização europeia vivia sob certa crença na inevitabilidade e infalibilidade do progresso. Em 1919, o filósofo inglês L.P.Jacks formula a ideia de que apesar de todo o avanço material conquistado “do ponto de vista moral, nós vivemos ainda na era neolítica...”

A noção de um descompasso entre o progresso da civilização e o progresso moral está presente, segundo Giannetti, desde o próprio surgimento da filosofia moral, no Iluminismo grego, no século V a.C. “O início da reflexão crítica sobre a conduta humana marcou também o início de expectativas mais elevadas sobre as capacidades e o potencial humano”. Se em Sócrates isso é um projeto de filosofia moral, em Platão ele se transforma em um projeto social, de construção de instituições capazes de reformar a conduta humana. Em Platão surge, segundo Giannetti, pela primeira vez a noção de degeneração moral em decorrência do progresso material.

Essa ideia teve em Lucrécio, expoente da filosofia epicurista, o grande defensor no mundo latino. A diferença para Platão é que ele não propunha um programa institucional, tampouco acreditava que o progresso fosse ruim em si. Mas apostava na moderação como elemento para uma mudança no modo de vida como o melhor caminho para o homem conviver com as “tentações” advindas do progresso.

Os temas da crítica moral da antiguidade são retomados pela filosofia moderna. Hobbes e Maquiavel têm uma visão pouco otimista sobre o comportamento humano. A diferença é que, como foi ressaltado acima, não se propõem a estabelecer um padrão ideal, mas passam a admitir “o comportamento irrefletido e inconstante da maioria dos cidadãos na sua relação com as leis e o poder público ” como um dado da realidade.

Mas o relativismo de Hobbes e Maquiavel não foi a atitude representativa da filosofia moderna. A postura normativa foi a tônica predominante e, a partir de meados do século XVIII, a tese do Neolítico Moral passa a ser um lugar comum. O melhor e mais influente representante desta posição seria Rousseau.

“Mais do que qualquer outro, Rousseau defendeu de maneira intransigente a ideia de que a civilização provocou o atraso moral do homem”. “Com a mesma intensidade com que denigre a situação existente Rousseau vai enaltecer o futuro sonhado e afirmar o potencial de mudança. Parte da receita é o estabelecimento de um novo (e genuínuo) “contrato social”, que, por meio de um drástico rearranjo jurídico e institucional, transforme a ordem opressiva e injusta como ela é na ordem democrática e igualitária como ela deve ser.” “Mas o principal ingrediente da mudança viria não de fora, mas de dentro do próprio homem. É a crença na “perfectibilidade humana” que vai alimentar a visão rousseauniana da possibilidade de uma completa regeneração da ordem política e social, isto é, da criação de uma sociedade justa na qual o homem – remodelado e apaziguado – deixou de ser o vaidoso e insaciável para se tornar o cidadão virtuoso e dedicado de uma democracia igualitária.”

No texto de Giannetti é apresentada uma resenha bastante completa sobre a evolução histórica das ideias. Evolui até a utilização do Neolítico Moral na discussão ambiental o seu uso por neurocientistas. A tese é contestável. Não é possível propor uma métrica de evolução histórica. E muito menos para a moral. No entanto, o descontentamento moral é positivo em si. O problema é quando a tentação à normatização descamba para o messianismo. E aqui retornamos à Lava-Jato.

Certos aspectos complexos da estratégia e do discurso

Quando analisamos as palestras e entrevistas do juiz Sérgio Moro, é possível notar que boa parte das explicações oferecidas é ancorada na posição institucional do poder judiciário. Uma profunda convicção, ou um discurso muito elaborado, retira qualquer possibilidade de atribuir intenção ou caráter político à operação Lava-Jato. É tudo dever de ofício. Ao mesmo tempo, no desenvolvimento do discurso, alguns conceitos começam a ser apresentados. Eles surgem como resultados ocasionais, descobertas das investigações. O primeiro deles é o conceito de corrupção sistêmica.

No evento “Vamos conversar sobre ética”, da Universidade Positivo, em 18 de agosto de 2016, o juiz Sérgio Moro falou por pouco mais de uma hora. Partindo do que teria sido uma impressão colhida numa confissão, em que o réu assumia com naturalidade a prática de corrupção e alegava ser isso uma praxe de mercado, parte para a conclusão de que mais do que um delito haviam se deparado com uma realidade de “corrupção sistêmica.” Na segunda parte da palestra, o juiz enaltece os aspectos positivos da operação para o país. E, além das punições, do desbaratamento das quadrilhas e da recuperação de recursos ele aponta para um benefício futuro. Historiando importantes conquistas da democracia brasileira, ele ressalta o fim da hiperinflação e a redução das desigualdades, de certa forma fazendo uma alusão indireta aos governos FHC, Plano Real e governo do PT. Em seguida, propõe que o fim da corrupção sistêmica poderia ocupar o mesmo papel na construção da democracia brasileira. Em outro momento chega a sugerir que a agenda anticorrupção era o único elemento de unidade nas grandes manifestações de massas de 2013.

Interessante também é analisar certos aspectos da estratégia de comunicação. O jovem procurador Daltan Dallagnol é considerado uma das estrelas desse processo e assim tem se comportado. Transcrevo abaixo dois trechos de artigos seus, publicados na mídia e postados no site da própria Lava-Jato do MPF.

“Além disso, a gravidade do tráfico não supera a da corrupção. Os desvios bilionários da corrupção corroem a saúde pela ausência de saneamento básico. Matam pela ausência de hospitais, aparelhos e medicamentos para atendimento. Fortalecem organizações criminosas pela educação e segurança deficientes, propiciando o aumento da violência e da marginalização. Geram um Estado paralelo, que governa para interesses privados. Para além do tráfico, a corrupção mina perigosamente a confiança da população nas instituições e no regime democrático”. (2)

“As características da corrupção, que pode ser praticada por meio de mensagens de telefone ou internet, impedem solução diversa. Não por outra razão, as custódias foram e são mantidas por três tribunais totalmente independentes em mais de trinta decisões. Solução dura e excepcional semelhante é aplicada no caso de traficantes de drogas que praticam reiteradamente o crime, ainda que o tráfico, como a corrupção, cause violência e milhões de mortes apenas indiretamente. Não há razão para distinguir, nessas circunstâncias, corrupção e tráfico”. (3)

A insistência em comparar a corrupção com o tráfico de drogas parece mais uma estratégia de comunicação política do que uma defesa jurídica. Primeiro pelo tráfico ser uma atividade ilícita fortemente controversa do ponto de vista moral. Segundo, por tentar reforçar a desigualdade entre “delinquentes pobres” e “delinquentes ricos”. Por fim, por articular a ideia de que ambas as atividades matam indiretamente, em suas consequências. Ora, o tráfico é letal na sua operação, não no consumo. Nesse caso o problema é o vício, um problema de saúde. A corrupção não é obrigatoriamente letal na operação (embora possa ocorrer ajustes de contas) e a letalidade como consequência é uma ilação tão descabida como atribuir aos privilégios dos procuradores da República a falta de remédios nas farmácias populares.

Ainda associado a esse último aspecto existe uma tentativa de responsabilizar, perante a opinião pública, a corrupção pela crise fiscal do país e dos estados. Como se a crise fiscal não tivesse relação com a própria crise econômica e fosse resultado exclusivo de um processo moral. É interessante notar que durante muitos anos houve resistência corporativa contra a reforma do Estado e da Previdência baseada num discurso semelhante. A ideia de que, se fossem fechados os ralos da corrupção, sobrariam recursos.

O problema é que o país está convivendo com duas agendas. Uma imposta pela crise econômica, de ajustes macroeconômicos e de reformas do estado e política. E outra pautada no combate à corrupção sistêmica, que está sendo imposta pelos “tenentes de toga”. Baseada no arcabouço legal, não resta dúvidas. Com ações justificadas. Especialmente pela transformação da política nacional em um grande balcão de negócios nas últimas décadas. Mas que se move sem um projeto para o país e se baseia exclusivamente numa perspectiva de reforma moral.

A suspeita de que por trás da Lava-Jato haja de fato um projeto corporativo e moral para o país pode ter consequências funestas. Talvez nem tanto pelo “empoderamento” dos paladinos    da justiça da Lava-Jato, mas pelo imponderável que possa seguir. Nesse sentido, cabe uma última citação de Giannetti a título de encerramento.

“Para o bem ou para o mal, a rica experiência política e econômica do século XX, com suas guerras, ondas de fanatismo e o espantoso débâcle do comunismo soviético mostrou de forma contundente que a psicologia moral dos homens está longe de ser tão plástica ou maleável quanto os iluministas exaltados e seus seguidores fariam crer”.

“A mente humana é ainda pouco conhecida, mas seguramente ela não é uma “página em  branco” da qual se pode erradicar, por qualquer método conhecido, as paixões não-racionais que os filósofos morais condenam há mais de dois mil anos. O que é certo, contudo, é que, quanto mais os moralistas e reformadores sociais bem-intencionados ignoram as realidades recalcitrantes da natureza humana, mais a natureza humana, por sua vez, os ignora.”

Não faltaram candidatos para ocupar o espaço!

* Cezar Vasquez é engenheiro. 


Sérgio Pessôa: A lógica da ação coletiva

Em 19 de junho, o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Gianpaolo Smanio, argumentou que o ajuste fiscal não pode ser feito no orçamento da Justiça. Smanio considera que o gasto com Justiça é investimento, e não despesa.

O fato de nosso Judiciário custar, como proporção do PIB, de quatro a seis vezes mais do que o Judiciário de qualquer país da OCDE não sensibiliza o procurador.

Transcorrido exato um mês, em 19 de julho, no mesmo espaço da Folha, o presidente da Firjan, Eduardo Eugênio Gouveia Vieira, argumentou que a contribuição compulsória de 2,5% sobre a folha de salários que financia boa parcela da atividade das instituições do Sistema S se justifica em razão dos elevados retornos sociais das atividades empreendidas por essas instituições.

Em ambos os casos, não há preocupação com o custo e o benefício. Basta haver algum benefício. Ajuste fiscal bom é ajuste fiscal sobre os outros.

Recentemente, a Defensoria Pública da União requereu no STF a sua inclusão como colaboradora nos diversos processos de inconstitucionalidade da emenda constitucional que estabeleceu um teto para o crescimento do gasto primário da União. A justificativa é que, para melhor servir a população, a Defensoria Pública precisa de mais recursos.

Temos visto -por parte dos funcionários do BNDES e das associações empresariais- fortíssima reação contrária à criação da TLP (Taxa de Longo Prazo), iniciativa que trará transparência às operações do BNDES. A TLP retira do banco o poder de emprestar com subsídios sem que estes tenham sido avaliados e aprovados pelo Congresso Nacional.

A retórica das corporações é travestir o seu interesse particular no interesse da sociedade.

Além disso, as corporações demonstram inconsistência. Se é para manter todos esses gastos, como fazer campanha pela queda da carga tributária? Como a Fiesp pode colocar um pato na frente de seu prédio e simultaneamente ser contra o fim da contribuição compulsória de 2,5% para financiar o Sistema S e ser contra a criação da TLP?

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) foi contrária à PEC dos gastos. Agora, no dia 18, divulgou nota contrária à subida do imposto sobre a gasolina de R$ 0,41 por litro. Subtende-se que, para todas essas corporações, há despesas que podem ser cortadas e receitas que podem ser levantadas de forma muito fácil, com fortíssimo impacto positivo sobre o Orçamento.

Os candidatos óbvios são: os juros pagos aos banqueiros, a corrupção e a isenção de lucros e dividendos no Imposto de Renda da Pessoa Física.

Já escrevi diversas vezes sobre juros. Apesar de bem salgada, essa conta é bem menor do que se imagina. Se considerarmos juros reais pagos excluindo o IR que incide sobre a correção monetária da dívida, trata-se de uma conta de 2% a 3% do PIB.

O combate à corrupção é necessário, mas longe de ser a panaceia de R$ 200 bilhões por ano alardeada pela procuradora da República Thaméa Danelon no mais recente programa "Roda Viva", da TV Cultura.

Finalmente, a isenção da distribuição de lucros e dividendos do IRPF é função da elevada alíquota que praticamos no Brasil na pessoa jurídica. Há algum espaço para aumentar a tributação, mas certamente muito menos do que se imagina.

Teremos que atuar em todas as margens. Não há saída simples, ao contrário do que pensam as corporações.

* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador associado do Ibre-FGV. 


Ricardo Noblat: Retrato de um corrupto

“Não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você”. Ditado que SERGIO MORO usou em sentença para condenar Lula. Lula é corrupto. É o que ele é até sentença em contrário. Continuará a ser caso a Justiça em segunda instância confirme a decisão do juiz Sergio Moro que o condenou a nove anos e seis meses de prisão. Então ficará impedido de assumir cargos públicos por sete anos. No caso do tríplex do Guarujá, Lula incorreu em dois crimes: corrupção passiva e lavagem de dinheiro. É réu em mais quatro processos.

LULA INSISTE EM DIZER
que somente o povo tem o direito de julgá-lo. Como se o exercício do voto em uma democracia dispensasse a existência da Justiça. Prega o desrespeito às leis uma vez chancelado pelo povo. Se não reconhece que o mensalão existiu, por que admitir os crimes de que o acusam? Mente sem pejo. Na política, a verdade é tudo aquilo que os políticos querem vender como tal.

GETÚLIO VARGAS CHAMOU
de “Estado Novo” o regime autoritário que comandou entre 1937 e 1946. Jânio Quadros morreu repetindo que renunciara à presidência devido à ação de “forças terríveis”. Fê-lo para voltar com poderes ilimitados. Ao golpe militar de 1964, responsável pela morte e o desaparecimento de 434 pessoas, os militares deram o nome de “revolução” e ainda hoje o festejam assim.

PARA TENTAR SOBREVIVER,
Lula jamais abdicará do papel de vítima. Foi vítima do destino ao nascer de mãe analfabeta e de pai mulherengo que a deixou com oito filhos; da seca do Nordeste que o fez embarcar em um pau de arara com destino ao sul do país; da miséria na periferia da capital de São Paulo; do torno mecânico que lhe amputou um dedo; da ditadura que o perseguiu; e por fim do preconceito das elites.

É INOCENTE DOS SEUS ATOS.
De não ter estudado por alegada falta de tempo; de não ter se preparado para entrar na vida pública confiando na própria intuição; do seu primeiro governo ter pagado propinas a deputados; de seu segundo governo ter parido o maior escândalo de corrupção da história do país; de ter elegido um poste que acabou no chão; e de ter construído uma fortuna à base de obséquios.

VALEU-SE DA ESQUERDA
para alcançar o poder. Governou com a direita, os 300 picaretas que identificou no Congresso, e outros tantos que ajudou a criar. Emparedado pela Justiça, tirou a fantasia de Lulinha Paz e Amor, autor da Carta aos Brasileiros, para vestir a da jararaca venenosa, de volta ao regaço da esquerda. Se ele ensaiava refletir sobre seus erros, o ensaio foi adiado. É refém dele. Seguirá refém

A CONDENAÇÃO DE LULA
por Moro imobiliza o PT e seus parceiros e unifica os políticos alvejados pela Lava-Jato. Todos torcem para que Lula seja bem-sucedido porque isso lhes abriria as portas para que também escapem da punição da Justiça e dos eleitores. A próxima eleição presidencial se dará mais uma vez à sombra de Lula, como a primeira depois de 21 anos de ditadura e como as posteriores.

SE ELE NÃO PUDER DISPUTÁ-LA,
seu apoio ainda valerá ouro para políticos carentes de votos (alô, alô, Renan Calheiros!). Se ele um dia defendeu José Sarney como “um homem incomum”, a merecer reverências, o mínimo que espera é ser tratado como o mais incomum dos homens, seja pela Justiça ou pelos crentes nas urdiduras do destino. Há que reconhecermos: Lula é de fato um homem especial.

PODERIA TER ENTRADO
para a História com a maior aprovação popular conferida a um governante. Preferiu entrar como o primeiro ex-presidente da República do Brasil condenado por corrupção.