Jose Roberto de Toledo: De Congresso a delegacia

Sempre que parlamentares aprontam, seja resgatando um colega da cadeia seja aprovando uma lei impopular, uma altercação emerge nas mídias sociais. Primeiro, a fúria: “Deputado isso!”, “deputado filho daquilo!”,”deputado #@$%&!”. E, imediatamente, a ponderação: “Foi o povo que colocou eles lá”, “democracia é isso”. Todo congresso, assembleia, câmara é reflexo da sociedade que o elegeu, mas prismado pelo sistema eleitoral em que vingou.

Lapidar sistemas eleitorais para favorecerem uma casta, partido, corporação ou região geográfica é prática recorrente nas maiores democracias do mundo. Nos EUA, de tão banal, cunharam a palavra que designa a manipulação dos distritos eleitorais: gerrymandering (“salamandragem”). Bem torturadas, regras admitem qualquer coisa. Até que quem tem menos votos pode eleger mais representantes e fazer o presidente. Não é mágica, é técnica.

No Brasil, o sistema poderia ter ficado ainda pior se o Congresso tivesse aprovado a reforma política. Retirados os bodes do texto, pouco mudou. Entre muitos defeitos mantidos, o sistema favorece a perpetuação de dinastias e a falsa renovação do plenário – basta dar novos prenomes a velhos sobrenomes, de tempos em tempos. Nem dinheiro aumenta mais a chance de um candidato se eleger do que ele já ser deputado ou seu herdeiro.

Há uma grande mas etérea expectativa de que em 2018 isso vai ser diferente. De que a insatisfação explosiva da população com seus representantes levará a uma “limpeza” no Congresso. Pesquisas com perguntas bem intencionadas mas indutivas mostram que uma ampla maioria quer mudança, quer novas lideranças, quer novidade. Será mesmo? Será que na hora de teclar cinco dígitos na urna eletrônica a maioria dos eleitores vai se lembrar disso?

Se houver mudanças, elas não serão por igual. Uns perderão mais do que outros. Os grupos mais coesos tendem a se expandir. Os fragilizados por disputas internas, a encolher.

Entre os que correm mais risco estão os candidatos cujos números começam por 45 ou 13. Desde 1994, eles têm se beneficiado da polarização entre seus partidos nas eleições presidenciais. Invariavelmente, os dois mais votados candidatos a presidente eram o 13 e o 45. Eles puxavam votos para o número da legenda nas eleições dos demais cargos. A polarização acabou. De juiz a desajuizado, qualquer um acha que pode se eleger presidente.

Em mais de 20 anos, a situação dos ex-polos nunca foi tão ruim. O 45 rachou: o quatro, de um lado, xinga o cinco, do outro. Seus presidenciáveis foram abatidos em voo. Quem sobrou está penando. O 13 tem o líder das pesquisas, mas não sabe se ele chegará candidato ou cassado ao dia da eleição. Puxadores de voto do partido nas proporcionais foram condenados e mudaram de número.

Se 13 e 45 perderem, quem pode ganhar?

Olhando-se as tendências de mais longo prazo, é possível que os ganhadores não sejam propriamente partidos, mas segmentos mais bem articulados e engajados da sociedade. Eles se beneficiam da perda de credibilidade das instituições, da crise da segurança pública e da epidemia de violência. São também beneficiados por pertencerem a corporações hierarquizadas e militantes.

Na atual legislatura há quatro vezes mais deputados que levam “delegado” no nome de guerra do que “professor”. Dez anos atrás, não havia nenhum. Se o prestígio eleitoral das corporações policiais cresce, as da saúde caem. Há uma década, havia dez deputados com “Dr.” ou “Dra.” no nome. Sobram três. Há notícia de que dezenas de delegados da Polícia Federal se candidatarão em 2018. Da Bahia, vem uma nova onda, síntese de duas tendências: o deputado Pastor Sargento Isidório deve sair para federal.

 


Jose Roberto de Toledo: O tampão, o vazio e o antifrágil

O novo Ibope confirma que há muito espaço para mudanças na corrida presidencial até a eleição. Com 35% dos votos, Lula amarrou uma das pontas do eleitorado. Bolsonaro tomou a outra e avança dali para o centro – pelo menos 12% só votam nele. Pode parecer que está tudo encaminhado, mas ainda falta a outra metade dos eleitores: cerca de 10% têm algum outro candidato firme, e 17% não querem ninguém. Sobra 25% do eleitorado que pode embarcar praticamente em todas as candidaturas. Ou numa só.

Seria o bastante para levar um presidenciável de centro ao 2º turno contra Lula – ou contra Bolsonaro, se o petista for barrado pela Justiça. Os centristas apostam que seu candidato teria mais chances de vitória, seja quem for o adversário, pois pode crescer para qualquer dos lados do espectro ideológico. O problema é chegar no turno decisivo: ainda não apareceu nenhum nome que seja franco favorito para ocupar tal papel.

O vazio do centro é a fábrica de tantas especulações sobre novos candidatos. Balões já subiram e caíram, como o de Doria. Outros estão em fase de lançamento, como o de Luciano Huck. Sem contar a sombra permanente de uma candidatura com origem no Judiciário: os mais cotados são sempre Moro, Joaquim Barbosa ou ambos.

A temporada de balonismo eleitoral tem tudo para durar até a primeira semana de abril, quando se encerra o prazo para quem for ser candidato se filiar ao partido que lhe dará legenda. Se até lá Huck não estiver filiado ao PPS, ou se nenhum magistrado tiver assinado a ficha de algum partido, seus nomes sairão das pesquisas de intenção de voto e do mercado de candidaturas. Mesmo assim, não será o fim das especulações eleitorais.

Há uma chance alta de Lula ser ejetado da campanha presidencial por ordem da Justiça. Hoje, tende a zero a transferência de eleitores do ex-presidente para outro petista. Haddad tem 1%. Mas quanto mais tempo durar a candidatura-tampão de Lula, mais clamorosa será a eventual retirada do nome do ex-presidente da urna. Petistas tentarão transformar clamor em escândalo, o que for necessário para alavancar a candidatura do substituto. É um plano meio desesperado, mas não desprovido de fundamento.

Estudo do Ibope mostra que 13% só declaram voto em Lula e em mais ninguém. Não importa qual seja o cenário, não migram para Marina Silva, nem para Ciro Gomes, nem para Bolsonaro. São, potencialmente, a transfusão inicial que um candidato petista receberia de Lula – desde que esse eleitor fique sabendo da troca. Informá-lo disso não é tarefa trivial, porém: mais de 40% não acessam a internet, 60% moram no interior, principalmente no Nordeste, a maioria é pobre e tem escolaridade abaixo da média.

A candidatura-tampão de Lula pode durar até 20 dias antes do primeiro turno, que é o limite legal para troca de candidatos em uma chapa (salvo em caso de morte). Esse é o prazo máximo. O mínimo ninguém sabe, pois depende de um sem-número de recursos e apelações a tribunais regionais e superiores. Pode ser tanto abril quanto agosto ou, no limite, setembro.

A candidatura de Lula tampona as de quase todos os outros presidenciáveis. Se não impede, no mínimo dificulta seu acesso a esse eleitor mais difícil de alcançar. É ruim para Huck, é ruim para Marina e para Ciro, é ruim até para Alckmin. Quem menos perde com a candidatura-tampão de Lula é Bolsonaro.

Ele ganha alguns pontos com a saída do petista, mas não depende disso para se viabilizar. Ao contrário, Bolsonaro tem sido o mais resiliente rival de Lula. Cabe-lhe o termo que o best-seller Nassim Taleb cunhou para definir o oposto de fraco: antifrágil. É daqueles que se beneficiam com o caos.

 


José Roberto de Toledo: República magistral  

O Supremo Tribunal Federal cansou de ver juízes de primeira instância monopolizarem os holofotes. Em dois dias, autorizou ensino religioso em escola pública, desafiou o Senado e rachou em público. Só não se manifestou sobre conflito de interesse evolvendo seus integrantes. Chega de perder manchetes para juízos de primeira, como o que decidiu mandar a julgamento um adolescente que ousou levar câmera fotográfica a protesto.

Tucanaram a prisão do senador? A blague é óbvia, mas imprecisa. A decisão de três ministros da Primeira Turma do Supremo de afastar Aécio Neves (PSDB) do Senado e mandá-lo não sair de casa à noite é – pelo Código do Processo Penal (CPP) – medida cautelar diversa da prisão. Segundo juiz de carreira consultado pela coluna, é sentença “meio sem sentido para o caso em questão, mas não é invenção”. Está tudo lá no CPP.

No inciso 2º do artigo 319: “proibição de acesso ou frequência a determinados lugares (...) para evitar o risco de novas infrações”. No caso, o local de onde Aécio deve permanecer distante não é um estádio de futebol, mas aquele para o qual foi eleito, o Congresso. Afinal, também é prevista a “suspensão de função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais” (inciso 6º).

Parlamentares – e os ministros mais loquazes do próprio tribunal – veem nisso uma usurpação de prerrogativas do Legislativo. Qual seria, então, a alternativa? O Supremo decretar a prisão do tucano? Mesmo irritados, os senadores devem levar o precedente em conta, não só pensando no destino de Aécio, mas na dúzia de colegas alvo de investigações por procuradores da República. Cutucar o STF e descumprir sua decisão pode iniciar uma batalha de represálias da qual muito senador haverá de se arrepender.

Ficar proibido de falar com outros acusados ou suspeitos – para assim não atrapalhar as investigações – também está previsto no artigo 319, inciso 3º (“proibição de manter contato com pessoa determinada”). Bem como entregar o passaporte (artigo 320).

Até a medida que mais provocou piadas na internet – “o que será dos bares do Leblon?” – consta no inciso 5º: “recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos”. E se ele foi afastado do trabalho pela mesma decisão e está, portanto, de folga? Deve ficar recolhido durante o dia também?

Todo comentarista de Facebook tem seu parecer sobre direito constitucional, todo tuiteiro tem sentença a respeito – agora, com o dobro de caracteres. Na magistral república brasileira, todo cidadão foi promovido de técnico de futebol a juiz. As mídias sociais se transformaram em um tribunal permanente – do que não escapam nem os próprios magistrados.

Pode um juiz ser avalista de empresa da qual é sócio em um empréstimo bancário? A questão é pertinente porque a lei da magistratura proíbe quem julga de exercer o comércio – pelas óbvias chances de ele se meter em um conflito de interesses. Por exemplo: cometeria o banco – que, por acaso, é parte em ações na corte onde o avalista atua – a imprudência de executar o aval?

Ou ainda: deve um juiz julgar réu que patrocinou empresa da qual o togado é potencial beneficiário de lucros e dividendos?

Tais questões provocam rebuliço apenas na corte digital. É mais fácil o Supremo comprar uma briga com outro Poder da República do que se debruçar sobre o próprio umbigo. Ministros intrigam-se na imprensa, trocam pescoções verbais em plenário, mas raramente julgam-se uns aos outros. E a condenação do Judiciário pela opinião pública? É pena genérica e coletiva. Não estão nem aí.