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Carlos Andreazza: Programa de Aceleração do Radicalismo

Bolsonaro é instabilidade. Se há crise, ele será o multiplicador

A saída de Teich informa que até a inexistência individual tem limites; e que mesmo um inexistente — cujo contrato para ser ministro consistia em não ser sujeito —pode ter alguma espinha dorsal.

Teich teve, afinal. Alguém se deve ter orgulhado. Não os que percebem que seus dias na pasta se somam aos outros tantos, consumidos pela batalha que resultaria na queda de Mandetta, no curso dos quais o ministério esteve paralisado; isto em meio ao totalitarismo de um vírus cuja sanha configura a peste.

A contribuição de Teich ao país seria nenhuma se o papel que aceitou cumprir não tivesse ampliado o campo a que o chefe expusesse o autoritarismo por meio do qual exerce a atividade executiva na República: o presidente que quer e que, porque quer, terá; no caso, o protocolo para utilização da hidroxicloroquina expandido a pacientes sob infecção leve.

A lacuna Teich comunica que somente Bolsonaro pode ser ministro da Saúde de Bolsonaro. A ver apenas quem — explorando nova fronteira para flexibilização de vértebras morais — lhe será o cavalo. Não é muito diferente da vontade que se move para interferir na PF. A saída de Moro comunicou que somente Bolsonaro poderia ser a polícia política de Bolsonaro.

Repito: o presidente está trocando de pele, inaugurando um governo que se liberta da carcaça narrativa eleitoral, num processo de radicalização acelerado pela janela de oportunidades escancarada pela Covid-19. Há também, insisto, a mudança de base social: a aposta bolsonarista em compensar a perda de apoio na classe média com a conquista das camadas populares.

Dos pilares artificiais que tornaram Bolsonaro persona eleitoral consumível só resta o liberalismo econômico guedista; o que avaliou ser possível, em nome das reformas, liquefazer a coluna vertebral do liberalismo político para se associar ao populismo autocrático bolsonarista — um projeto de poder reacionário de pulsão para a ruptura, revolucionário mesmo, comandado por um elemento que é o centro gerador de conflitos e cujo palácio, um sindicato de servidores públicos, está fundamentado em variáveis daquilo em que ele mesmo, o presidente, consiste: um militante de interesses corporativos.

Já era um arranjo de sucesso improvável em tempos de paz — esse entre reformas liberais e desestabilizações bolsonaristas. O que dizer de agora, e doravante, com o vento virado?

Bolsonaro é instabilidade. Se há crise, ele será o multiplicador de imprevisibilidade. Reagirá radicalizando. É o que está em curso. O vento virou — e é vento que lhe enche a vela e o impulsiona a ser plenamente o que é. Em matéria econômica, para tornar Guedes e o que representa prescindíveis (antes do esperado).

O Bolsa Jair já se espraia, a própria âncora da mudança de base social, alcançando milhões de brasileiros pobres, muitos dos quais até então invisíveis ao Estado, inclusive no Nordeste, onde o presidente não conseguia penetrar. São milhões de outrora inexistentes incorporados por um programa de auxílio emergencial — milhões também de novos títulos de eleitor mapeados pelo surgimento de uma ajuda, a do Jair, temporária. Temporária?

A tentação é grande, e o mar puxa para o afogamento do teto de gastos.

O vento virado — para o projeto liberal guedista — é o que traz uma nova convenção social, que descarta o pacto por austeridade fiscal em prol da demanda por que o Estado injete dinheiro na economia e sustente artificialmente o setor produtivo e aqueles cuja parca renda foi aterrada. O milagre bolsonarista?

Há quem diga que Guedes fica por ser mais parecido com o chefe do que se gostaria de admitir. Não se trataria de elogio, a essa semelhança contribuindo a noção de democrata segundo o ministro, capaz de abranger até o presidente. Guedes vai ficando. Sua agenda, porém, comprometida. Talvez fatalmente. A favor de sua permanência, ainda que de norte fulminado, pesando a avaliação de que Bolsonaro não poderia se dar ao luxo de perder — hoje — esse derradeiro estribo de credibilidade narrativa. Que usa bem.

Penso na reunião virtual havida, na quinta última, com um grupo de empresários graúdos. A repercussão jornalística da conversa definiu-a como desprovida de propostas da parte do presidente; um erro de leitura grave. A proposta houve — e claríssima, doutorada pela presença de Guedes: para que aqueles cidadãos enfrentassem, em guerra, as medidas restritivas decretadas, particularmente, por João Doria. O presidente pregando a desobediência civil.

Avalizada pela ciência de Guedes, a proposta de Bolsonaro para a crise — um plano de enfrentamento do enfrentamento à pandemia — nem sequer vagamente tem a reação da economia como centro de preocupação; mas o estímulo à reação de grupos de pressão, que vão dos caminhoneiros aos donos das cargas, passando por milicianos dentro das polícias, contra os decretos dos governadores.

Está acelerado. Vai piorar. Dá-lhe lustro quem concorda.


Carlos Andreazza: O Bolsa Família do Jair

Não me surpreenderá que, tendo surgido em caráter provisório, essa ajuda torne-se permanente

Se não fosse natimorto, o liberalismo bolsonarista — este oximoro perfeito — estaria morrendo em praça pública. Natimorto porque, afora a propaganda influente, nunca foram conciliáveis o fenômeno reacionário bolsonarista, com seu ímpeto permanente para o choque, para a imprevisibilidade e, pois, para a instabilidade, e um programa de reformas liberais do Estado, como aquele vendido por Paulo Guedes, que pressupõe que o solo sobre o qual se obrará seja firme e que haja algum horizonte de constância para a empreitada.

Nada disso jamais houve — jamais haverá — sob um governo de Jair Bolsonaro, a fábrica de crises ele próprio. A usina de conflitos eleita para governar um país em depressão política profunda, onde grassa a insegurança jurídica — e onde só um gringo louco e desinformado, com muito dinheiro para queimar, investiria. Esse tipo exótico que simplesmente… inexiste. Mas que, garante-se, logo estará despejando bilhões aqui.

Houve, no entanto, quem se enganasse. (Ou se deixasse enganar.) Houve também quem enganasse.Para esses foi preciso que a peste sobre nós se abatesse; a chaga inclemente que precipita a imposição da verdade, que estabelece nova convenção social sobre o papel do Estado e que oferece a Bolsonaro, que é Dilma em matéria econômica, a chance de ser Bolsonaro antes de o imaginado — o que se livra do natimorto como se o ofertasse, tal qual vivo fosse, ao sacrifício da morte em praça pública.

Morre em praça pública o juízo daquele que, ante o baixar da praga, supôs que o presidente pudesse se aprumar para liderar algo que não a aplicação radical de seus propósitos. A pandemia é janela de oportunidades. E o homem é Brasil Grande. Ustra nos costumes; Tarcísio na economia.

Recomponho a imagem a que tenho recorrido: Bolsonaro como um girassol publicitário cujo norte se orienta pelo calor — pelo pulso — das redes. Retomo, assim, a reflexão iniciada na coluna da semana passada. Sobre o presidente estar trocando de pele, deixando pelo caminho — ainda antes da metade do mandato — a carcaça narrativa, de matriz eleitoral e existência precária, que o trouxe até aqui; o lavajatismo encarnado em Sergio Moro, por exemplo, já foi. Mais irá.

Um movimento, consciente, que resulta em perda de apoio e que não seria jogado sem a perspectiva bolsonarista de controlar o prejuízo e reequilibrar o tabuleiro por meio de conquista territorial em outro chão. É o que parece estar em curso. Um movimento que, tomando risco, identifica e mede ensejo, e que só ocorre porque fiado na troca de base social. Vai-se parte do esteio na classe média; talvez algo do alicerce na elite. Vem — para balancear — o arrimo nas classes populares.

As últimas pesquisas todas — que, de resto, apontam que a demanda da sociedade se moveu para a quase unanimidade de que o Estado deva sustentar artificialmente a economia — indicam que a aposta do presidente pode estar correta. Mesmo perdendo suporte a partir das crises que desaguariam nas quedas de Mandetta e Moro, mantém-se com popularidade estável e em patamar competitivo. Troca de pele — e o faz enquanto muda também de solo onde funda futuro. É essa a projeção que torna o guedismo descartável.

Quando a peste se lastreou entre nós, Bolsonaro fez seu jogo — um jogo de ganha-ganha. Covarde, lance de sociopata, mas eficaz. Aquele, esculpido na forja populista, que opunha saúde pública e saúde econômica — estando ele ao lado da economia popular. Eis o fundamento falacioso da narrativa bolsonarista— expresso pelo próprio presidente — quando diante do impacto assassino da Covid-19: o de que, independentemente das medidas restritivas decretadas pelos governadores, as mortes viriam, que as ações seriam, portanto, inócuas para a preservação de vidas, mas decisivas para agravar o flagelo da economia, o desemprego, a pobreza.

Aquele discurso de Bolsonaro — o do governante aflito sobretudo com a situação das famílias mais pobres — foi percebido como de genuína preocupação com a subsistência dos que não tinham gordura para permanecer em casa sem passar fome. Isso foi captado como compondo anova popularidade do presidente. E então, para fortalecer essa posição, vieram as medidas de auxílio econômico emergencial; com o que o Bolsonaro viu nascer — alicerçado na licença para abrir o cofre — o Bolsa Família do Jair.

Gostou. Tomará gosto por gastar. De modo que não me surpreenderá que, tendo surgido em caráter provisório, essa ajuda excepcional — recebida pelos beneficiados como uma ajuda de Bolsonaro — torne-se permanente, engolfando a antiga base do Bolsa Família e ampliando o corpo de assistência do Estado aos pobres.

É espantosa — um país à parte — a quantidade das milhões de pessoas que inexistiam formalmente e que de repente vão mapeadas pelo governo de turno. Desses milhões, quantos milhões poderão sernovos milhões de títulos de eleitor? Já pensou?

Nova base social é isso.


Carlos Andreazza: Trocando de pele

Bolsonarismo já se movia para a ruptura em tempos de paz

Sob regência da mentalidade autoritária e crispado pelo espírito do tempo lavajatista, também autoritário, a que Sergio Moro dá materialidade, o Brasil está em depressão política profunda desde, pelo menos, 2013; doença de que Jair Bolsonaro, a ascensão da revolução reacionária bolsonarista, é a mais grave infecção.

Infecção, um projeto de poder autocrático, que se vale da linguagem totalitária, que enfraquece as imunidades do organismo institucional, que progride disparando estímulos musculares contraditórios, desequilibrantes, atrofiantes, que se espalha induzindo choques entre órgãos, que se implanta produzindo inimigos artificiais, pequenas e frequentes convulsões, transformando o sangue — as gentes daquele sistema — em elemento hostil ao corpo que lhe dá circulação, até que a engrenagem, corrompida pela exaustão, sucumba, submetida pelo vírus, submissa à doença.

O bolsonarismo é isso. Já se movia para a ruptura em tempos de paz. A pandemia apenas faz acelerar o processo destrutivo em que se enraíza seu projeto de poder. A Covid-19 é oportunidade; assim como se Bolsonaro, o núcleo difusor das pestes dentro da peste, instrumentalizasse a responsabilidade alheia para dar vazão a seu intento autocrático. A aposta em que seus arreganhos autoritários estarão protegidos— enquanto durar a pandemia — pelo receio ponderado de que a deflagração de processos contra si resultasse no trauma da ingovernabilidade em meio aos já tantos traumas da crise atual e àqueles derivados das crises dentro da crise forjadas pelo presidente.

Bolsonaro compreendeu que o estado de exceção ora mobilizado o blinda para que radicalize mais intensa e rapidamente. Identificando essa janela, explora o tempo que ganhou para cooptar os apoios que (crê) o defenderão adiante no Parlamento, intensificar o ritmo dos conflitos que promove e avançar sobre a institucionalidade de um Brasil anestesiado.

Está trocando de pele — aprofundando incertezas — em plena pandemia. Surpreendente seria que se comportasse como agente estabilizador. A peste é oportunidade — reforço. E ele adianta suas peças. Talvez finalmente inaugure, ainda antes de concluído o 16º mês desde que empossado, o verdadeiro governo Bolsonaro — um que deixaria o governo narrativo para trás, esse, engana-trouxa, que se sustentava em mitos inconciliáveis, os do lavajatismo e do guedismo, com a mitologia bolsonarista.

Então, em pouco mais de mês, a pandemia poderosamente entre nós, vimos o presidente debulhar a persona eleitoral precária que compusera para si. Já não há mais, pós-Mandetta, a fantasia do ministério técnico. Tampouco a do combate incondicional à corrupção; depois de escancarado o ímpeto bolsonarista por incorporar a Polícia Federal e ante o fato de o critério para a escolha dos que comandarão Ministério da Justiça e PF ser — aula magna de patrimonialismo — a condição de amigo da família.

Bolsonaro faz seu jogo. Deixa pelo caminho a pele meramente narrativa que o elegeu. Não o faz sem fundamento no calor das redes. A aposta é alta. Moro não é Mandetta. Tem base social sólida, fincada na classe média, o mesmo solo em que o próprio presidente firma seus pilares, entre os quais o da anticorrupção — uma coluna bolsonarista mais recente, de ocasião mesmo, sol para o qual o girassol publicitário que é Bolsonaro se orientou ao ler para onde ia a demanda jacobinista da sociedade. É esse o pilar que o presidente abala ao abrir mão de Robespierre. Repito: não o faz sem cálculo; sem indicativos de que possa equilibrar o prejuízo com alguma conquista territorial.

É esta a equação que já torna prescindível outro pilar bolsonarista de ocasião, sem qualquer fundação orgânica, o guedista, escorado no terreno da elite: o de um governo reacionário, comandado por um populista, liberal na economia. Paulo Guedes está prestigiado — quer comunicar o desagravo de Bolsonaro ao ministro da Economia. O gato subiu no telhado —o que comunica a necessidade de fazer tal gesto.

O presidente nunca foi crente da fé liberal. Ao contrário. Se, porém, o santo lhe promete um milagre, e se essa promessa arrebanha os que podem reformar a igreja, por que não se mudar para o templo e colher o dízimo enquanto se espera — um pouco — pela graça? Vai que o santo entrega... Não entregou. E ainda veio a praga.

O presidente é Brasil Grande. Toma gosto por gastar. A empreitada de enfrentamento da Covid-19 deu o ensejo. Abriu a porteira. A política econômica desenvolvimentista vende um milagre bolsonarista e tem como principal vitrine um vigoroso auxílio à população pobre, inclusive no Nordeste, extrato dasociedade ao qual Bolsonaro nunca se voltou; mas que, segundo apontam pesquisas, em função da ajuda emergencial, o Bolsa-Família do Jair, ora segura a sua popularidade em patamar competitivo.

Bolsonaro troca de pele. E aposta em novo chão.


Carlos Andreazza: O ar do vírus e do golpismo

Bolsonaro quer o choque e investe na desordem

Bolsonarismo aula zero: técnica desviante. Apertou aqui, abre-se outro pasto para o gado mugir ali. O presidente é mestre em lançar o que se chama de cortina de fumaça. Sob forte pressão, acuado pelas consequências de suas escolhas irresponsáveis ante a peste, informado de que seu comportamento sociopata no curso de crise sem precedentes lhe esvazia a base social, Jair Bolsonaro reage cultivando modalidade de conflito que o coloque em zona de conforto e atraia a atenção da sociedade a um ponto distante daquele em que se dá seu grotesco chamamento a que o povo vá às ruas respirar o vírus.

Bolsonaro é um girassol publicitário cujo sol é o pulso das redes. Esse é o termômetro do populista do século XXI. Ele decerto se baliza em pesquisas. Não apenas as que apontam perda de apoio em decorrência de haver se referido à Covid-19 como gripezinha; mas também as que lhe indicam o remédio para minimizar o estrago: o discurso lavajatista de combate à corrupção, de criminalização da atividade política e de luta contra o sistema “patife”.

O lavajatismo é o mais eficaz agente aglutinador que atua no país. É o próprio espírito do tempo. A melhor materialização da mentalidade autoritária a que vamos submetidos sem nem sequer perceber — a mesma que concorreu decisivamente para a eleição de Bolsonaro. Ele sabe que a sociedade tem raiva da figura do político e aversão à ideia de elite política. De modo que, quando ante a mais mínima desmobilização de sua militância, logo sopra o apito lavajatista. Opera assim com maestria.

Não é, portanto, que seja o popular, o amado, centro irradiador de popularidade e atração. Não. Com rara capacidade para identificar oportunidades e com extraordinária vocação para interpretar, Bolsonaro se associa a demandas populares, aquelas que disparam o gatilho da comoção,e as incorpora. Faz isso há décadas — e, sob todos os holofotes, diariamente, há 16 meses.

Fico perplexo com a constatação de que haja alguém ainda surpreso com o comportamento revolucionário — palavra que, registro, tenho na pior conta — do presidente no último domingo. O sujeito procede dessa maneira desde que assumiu, líder escancarado de um fenômeno reacionário de ímpeto para a ruptura. Alegoricamente, está sobre um carro (poderia ser boleia de caminhão), diante de quartel, projetando discurso autocrático a uma plateia que pede intervenção militar e ostenta pregações por fechamento do Congresso e do Supremo, desde que assumiu.

A fala de domingo expõe — novamente — a noção precária e inconformada do bolsonarismo sobre o que seja a democracia liberal. Vontade popular, para Bolsonaro, é a vontade de seus apoiadores — e a isto se reduz o povo: a seus apoiadores. Essa vontade popular compreende o fato de o sujeito haver sido eleito como ordem, mandato mesmo, para que os demais Poderes se submetam aos desejos do que seria, pois, um imperador.

O bolsonarismo é campanha permanente — campanha no sentido de guerra. Campanha para submissão.

Sob essa lógica totalitária, num mecanismo de espantosa inversão de valores, o exercício garantidor dos freios e dos contrapesos — símbolo da ponderação republicana que controla a força excessiva — torna-se uma espécie de traição, de conspiração do sistema contra o presidente; o presidente, que se confunde com a vontade popular até se converter mesmo na vontade popular. O presidente: o povo no poder. O presidente: eu sou a Constituição.

Por isso Bolsonaro (diz que) não negocia. Não negocia (é mentira) porque se impõe. Essa é a fantasia do populista autoritário.

O bolsonarismo aposta pesadamente no estabelecimento de uma cultura plebiscitária entre nós. Puro chavismo. O objetivo é minar o edifício da democracia representativa para tornar descartável a ideia de Parlamento. Qual seria a necessidade desse tipo de intermediação, se o líder pode falar diretamente a seu povo?

Bolsonaro é forja de inimigos, usina de conflitos — o gerador de instabilidades. Era assim antes da peste, em tempos de paz. Se o tempo vira e é de crise, será a crise dentro da crise. Nunca houve dúvida de que radicalizaria. Quer o choque e investe na desordem.

Não me surpreenderei se, instalada a depressão econômica, afundado o Brasil enfim na ingovernabilidade que ele próprio forja, de resto propagando teorias conspiratórias e acusando até a Corte Máxima de tramar golpe contra si, Bolsonaro decretar medida extrema, como estado de sítio. Uma provocação para que o Congresso reaja, derrube o decreto, promova o que seria choque institucional violento — daí irrompendo o caos social, a desobediência civil, a anomia em meio à pandemia. O golpismo está no ar tanto quanto o vírus.

Aliás, tendo falado sobre chavismo, alerto para a possibilidade de o apoio armado com que conta o bolsonarismo não ser o militar; mas o de milícias como aquelas que se amotinaram, contra o Estado, no Ceará. Atenção a isso.


Carlos Andreazza: O ganha-ganha de Bolsonaro

Bolsonaro é parte — grande — do problema; um agente para o agravamento do drama

Vi muita gente boa, não faz tanto tempo, dizer que o perfil de louco rompedor, de irresponsável trombador, era o necessário — finalmente o gatilho — para dar um tranco no Brasil e fazer o país avançar para as reformas liberais de que o Estado precisaria. Nunca acreditei nisso. Reformas estruturais dependem de estabilidade, de um chão de previsibilidade. Condições impossíveis se é — se sempre foi — o próprio presidente da República, de resto um líder sindical da ativa, com histórico golpista, a principal usina de traumas, de cismas.

Jair Bolsonaro é Jair Bolsonaro. Sempre foi. Por três décadas expôs sua natureza no Parlamento, não raro se comportando como um sociopata. Ai está. Ninguém se pode dizer surpreso.

De toda maneira, o tempo — a chance — de reformar o Estado passou. O perfil do presidente, no entanto, continua o mesmo. E não é o de um mero maluco beleza que abriria caminhos ao liberalismo econômico; mas o de um populista autoritário, centralizador, cujo reacionarismo tem por ar a forja artificial de conflitos, e cuja a natureza rompedora, inegável, só abre picadas para desguarnecer progressivamente a democracia liberal. Repito: um golpista em busca da (de fazer a) ocasião. Uma real ameaça em tempos excepcionais.

Aqueles românticos que acreditaram que esse sujeito — alguém que reage, tanto mais se acuado, cindindo e radicalizando — poderia liderar o país num amplo e profundo programa reformista agora decerto são os que creem que esse elemento poderá dirigir os esforços brasileiros de enfrentamento de uma crise mundial sem precedentes. Este sujeito: o que há três semanas — atacando a Justiça Eleitoral —afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que a eleição de 2018 fora fraudada.

Chega de ilusão. Bolsonaro é parte — grande — do problema; um agente para o agravamento do drama. Jamais será solução. Dá mostras disso diariamente, como quando ameaça a ordem pública — investindo num choque de desobediências civis — ao aventar um decreto que desmobilizaria trabalhadores da quarentena determinada por governadores e recomendada pelo seu Ministério da Saúde. Choque de desobediências civis — resultando em caos social: uma possível ocasião para o golpista.

Atenção ao jogo de Bolsonaro. O que temos hoje mais proximamente do que se esperaria de um estadista no comando da empreitada contra a Covid-19 senão o ministro Mandetta? E o que faz o presidente ante a gestão técnica segura — referencial — do auxiliar senão desqualificá-lo e desautorizá-lo pública e seguidamente? É investimento na confusão absoluta, em estímulos de comunicação contraditórios — que geram insegurança.

Coisa alguma exemplifica melhor a mentalidade bolsonarista do que, num momento de crise, o presidente fabricar uma oposição dentro do próprio gabinete de crise. Ou alguém tem dúvida de que é isso que Bolsonaro faz? É um jogo, assim ele crê, de ganha-ganha: faz de seu ministro — que prega o distanciamento social — um oponente, uma escada para que possa apontar histerias e mostrar sua preocupação com a economia popular; mas o mantém no governo de modo a capitalizar-lhe os feitos caso a atuação do Ministério da Saúde, em parceria com os governadores, resulte no controle da epidemia.

O presidente da República é um — a palavra é esta — covarde: enquanto desdenha da gravidade da doença e dinamita todos os indicativos de responsabilidade sanitária, empurrando os desprovidos de plano de saúde às ruas justamente para respirarem o pico de contágio, aposta em que as ações restritivas dos governadores deem certo para que então possa bradar que estava correto e que a Covid-19 fora mesmo superdimensionada. Isso é Jair Bolsonaro; e esse, o seu ganha-ganha caso a epidemia seja domada.

Para dar vazão à guerra cultural absoluta que lhe dá discurso, conseguiu plantar entre nós — num triunfo da linguagem populista — a existência da oposição saúde pública (que seria valor elitista) versus saúde econômica (valor popular).É a armadilha à qual nos atraiu. A vida das pessoas contra, ora, a vida das pessoas. Um novo confronto artificial, nova arapuca para colisão institucional, que estabelece como antagônicas demandas complementares. De um lado, os alarmistas da prevenção que evitaria o colapso dos SUS, representados pelos governadores. De outro, ele, Bolsonaro, preocupado com o sustentodo pobre. Tudo somente narrativa — para o fim autocrático.

O presidente se move mesmo, se espalha, em todas as direções — e assim se move a favor do estado de anomia. O jogo de ganha-ganha na versão em que a tragédia se impõe. Muitos mortos. Muitos desempregados. Corpos empilhados. Falta de alimentos. Saques. Ingovernabilidade. Radicalização. O acirramento de uma crise — para cujo agravamento concorreu —como justificativa para medidas de exceção.

Bolsonaro foi para o all-in. As fichas somos nós. O vírus não joga.


Carlos Andreazza: Bolsonaro corre atrás

Presidente negligenciou emergência que será tragédia para a saúde pública

A pergunta é objetiva: alguém (ainda) acredita que Jair Bolsonaro esteja à altura de liderar o Brasil na empreitada de combate à Covid-19? Não será necessário responder. O próprio presidente o faz; todo o seu esforço atrasado — no qual empenha (e mascara) o governo — consistindo agora em mostrar, como numa peça de propaganda, que dá importância à pandemia. Isto depois de haver se juntado, exprimindo o leviano que é, a seus apoiadores — a doença já entre nós — em manifestação de rua.

Está correndo atrás; lançando-se numa cruzada de reversão da imagem negativa. Não será simples, contudo. Pela primeira vez em quase 15 meses, vai mal posicionado narrativamente, percebido como alguém que desdenhou do coronavírus e cujos atos —esses por meio dos quais tateia em busca do protagonismo perdido — atrapalham.

O do sujeito que não é apenas roda-presa, mas cujo parco giro propõe retrocessos. Péssimo personagem para um governante encarnar numa adversidade desta monta, tanto mais quando sua atuação é comparada à de alguns governadores. Avalie, leitor: João Doria logo posará em hospitais de campanha.

Enquanto isso, um Ministério da Economia concebido para tocar uma agenda de austeridade fiscal engatinha para ser o que talvez não possa, abrir o teto solar, botar o bolso para fora e gastar os fundos para sustentar artificialmente empregos e empregadores. O modo como se divulgou a MP 927, a que propunha a possibilidade de se suspender contratos de trabalho por quatro meses, sem apresentar — com clareza — a devida contrapartida ao trabalhador, é eloquente. O governo o fez para logo recuar — quem sabe se para reformular o texto. Não importa. O recado estava dado. Bateção de cabeça. Fragilidade.

É dinâmica curiosa, inédita desde que o bolsonarismo ascendeu como pauteiro do debate público; posição da qual nunca saíra. Até esta crise. Por exemplo: o presidente acusa — com fundamento — Wilson Witzel de decretar medidas inconstitucionais, com o que jogaria para a galera; mas é o governador do Rio, com suas canetadas extremas (muitas a darem em nada), quem ora pauta a discussão, sendo Bolsonaro o impopular desafiado pela ousadia alheia. Quem diria? Ante o ritmo das lideranças estaduais, o presidente submerge como um prostrado, a reboque dos fatos, ultrapassado (atropelado) por políticos que farejam o sangue na água.

Bolsonaro perde base social — e sabe que perde, segundo já informava a mais sofisticada modalidade de aferição tribalista: o panelaço. O vídeo em que anuncia a produção militar de cloroquina para enfrentar o vírus compõe a batalha — com muitos elementos de desinformação — por meio da qual tenta reverter a imagem letárgica. Vai piorar.

Jair Bolsonaro é uma peça de propaganda — um girassol publicitário cujo sol seria a reação positiva a seus estímulos. Um populista do século XXI, forjado no pulso das redes — animal sensível a um só termômetro: likes. As pessoas morrendo, o SUS por colapsar, o impacto na economia a projetar depressão, mas o presidente ora desesperado — numa agonia meramente marqueteira — por convencer o eleitor de que dá gravidade àquilo que chama de gripezinha.

Não será fácil — insisto. Não depois de haver se comportado como um sociopata ante a doença mortal. Bolsonaro cometeu grave erro político. Negligenciou uma emergência que será uma tragédia para a saúde pública. Fez aposta equivocada. Botou todas as fichas no que seria uma epidemia superdimensionada, repercutida por uma imprensa interessada em plantar histeria — e ainda trucou. Até que começaram a morrer brasileiros. Tomou um susto. Desde então, é o reacionário movendo-se reativamente.

Ocorre que Bolsonaro não é apenas um populista, mas um populista autoritário: um ressentido gerador de conflitos — alguém que necessita de inimigos.Vai radicalizar. Há perigo golpista aí. Ele precisa, é da natureza, dar respostas firmes que o recoloquem à frente no jogo — e resposta firme de autoritário é testar avanços da casa autocrática.

À cata de reaver o papel principal na trama, o bolsonarismo já forjou um confronto — uma irresponsabilidade — com a China. Não colou. Antes, já sob o alastrar da Covid-19, atentara contra a Justiça Eleitoral, acusando fraude na eleição de 2018. Teria provas. Nunca as apresentou. À luz do que arma Órban na Hungria, e considerando que os governadores têm empregado medidas de exceção em seus estados, não se pode descartar a hipótese de que o presidente decrete, para mostrar força, algo como um estado de sítio — uma forma de entrar em choque com o Congresso, dado que o Parlamento jamais avalizaria um ato com tal musculatura discricionária.

Estado de calamidade. E de atenção. Bolsonaro não é líder à altura do desafio — respondo. Que as dúvidas a respeito não sejam dissipadas da pior maneira.


Carlos Andreazza: A epidemia do golpismo

Bolsonaro vai — foi —para a briga de rua

O presidente foi ou não infectado pelo novo coronavírus? Ninguém saberá. Há um estímulo oficial à descrença constante. Diz-se que não. Mas quem acredita?

O procedimento bolsonarista já está mapeado: plantar — neste caso, lá fora (numa TV americana) — a notícia (de que Jair Bolsonaro estaria contaminado) que se negará em seguida. O que interessa é desmentir; subsidiar a trombada de versões, a desconfiança generalizada.

Estamos na mais baixa cavidade da depressão política que nos consome desde 2013 — da qual o bolsonarismo é a mais intensa convulsão. A degradação é veloz. Mas o fundo do poço é fundo. O presidente comete sucessivos crimes de responsabilidade. Estica progressivamente — todos os dias — a corda dos arreganhos autoritários. Sem qualquer resposta institucional de corpo, ousa — ousará — cada vez mais. Escrevi, na semana passada, que não tardaria até que tomasse parte numa das manifestações contra os Poderes da República. Aí está.

A ação é coerente se considerarmos a série de imposturas e irresponsabilidades por meio da qual, nos últimos 30 dias, Bolsonaro liderou uma implacável blitz autoritária contra o equilíbrio democrático no Brasil. Não é dinâmica de quem pretenda se submeter aos filtros republicanos por muito tempo. Há um quê de desespero. O prometido crescimento econômico não veio. O presidente sabe que frustrará e perderá apoio. Sua única gramática — tanto mais se acuado— é a da guerra. Ele vai — foi —para a briga de rua. O clima de crise é a temperatura ideal para medidas de exceção.

Onde estão as provas de que a eleição presidencial de 2018 foi fraudada? Não se pode esquecer desse esboço para golpe. Tampouco se pode esquecer da reação covarde do Judiciário.

Faz já mais de semana desde que o presidente atentou, com gravidade sem precedente, contra o sistema eleitoral — auge de um arco dramático totalitário encenado enquanto a linha evolutiva da Covid-19 já se traçava como alarmante realidade mundial. Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional optaram pela omissão. Bolsonaro captou o recado: o próprio convite a que comparecesse a uma manifestação que, ora, alvejaria Congresso e STF.

Nada exprimirá melhor a mentalidade bolsonarista — o projeto autocrático de poder — do que a fala do presidente à nação, na quinta-feira passada. O eixo do pronunciamento jamais foi a gravidade da situação decorrente do avanço da Covid-19, mas uma mensagem sectária, destinada exclusivamente a seu povo, acerca dos últimos atos de rua.

O país desafiado por uma pandemia, mas a preocupação de Bolsonaro era — é — com o fomento aos grupos organizados em que investe como instrumento de força para emparedar as instituições. Para que não haja dúvida: o presidente se valeu de cadeia de rádio e TV para difundir uma falsa desconvocação para os protestos. No domingo, comportando-se como um sociopata, foi prestigiá-los in loco.

É estratégia arriscada — mas que, por isso mesmo, impõe que se reflita sobre seus propósitos. A possibilidade de que tenha ido para o all-in não é remota.

A linguagem reacionária bolsonarista é inconsistente com o trânsito da normalidade — com os parâmetros da estabilidade democrática — e não tem recursos para se sustentar em longo prazo senão sob a aposta no golpismo. Atenção: golpismo. Donde se explicaria o elevado aporte na radicalização chantagista que caracteriza a tentativa de implantar uma cultura plebiscitária entre nós.

O Palácio do Planalto é uma célula difusora de mentiras — uma estrutura inconfiável, incapaz de semear o terreno de previsibilidade necessário a pactos e contratos. O governo não tem palavra. Trai. Dinamita pontes. Confunde. Age como situação e oposição simultaneamente. Só o firme propósito autocrático de fomentar a anomia — numa circunstância propícia à ruptura institucional — justifica que, em meio a tamanha crise, com todos os elementos de uma tempestade perfeita, o centro do governo se coloque, deliberadamente, como centro gerador de desinformação e conflito.

É uma atitude para o choque que cansa, que estressa — e que é avessa a qualquer ambiente de negócios, que fere as mais básicas necessidades de um chão em crise. Quem investirá aqui? Há um horizonte projetado. A economia, mal saída da recessão, regredirá. Os tais mercados — que aderiram ao bolsonarismo sem considerar que reforma liberal é inconsistente com projeto revolucionário — não tardarão a pular fora. Não tardará a pular fora também o trabalhador cujo saco cheio financiou o ressentimento bolsonarista, mas que agora percebe que instabilidade não gera emprego. Um cenário a que Bolsonaro, com menor base social, responderá com ainda maior tribalismo golpista.

As chances de o Brasil singrar celeremente para a ingovernabilidade são grandes. Até o impasse absoluto, entretanto, o novo coronavírus servirá de desculpa para muita incompetência, muito embuste — e alguns crimes.


Carlos Andreazza: Governo mentiroso

Presidente forja inimigos de fantasia. Manipula auxiliares

O governo Bolsonaro mente como método. É um governo mentiroso — de um presidente mentiroso. Que faz desse procedimento a principal engrenagem da fábrica de crises artificiais de que se alimenta o bolsonarismo, fenômeno reacionário que investe em falar para algo como 20% do eleitorado; base que — alargada pelo influente peso da caneta presidencial — garantiria a Jair Bolsonaro um lugar firme no segundo turno de 2022. Esse é o cálculo.

A comunicação direcionada a um grupo da sociedade, mas como se tal fosse o povo brasileiro ele mesmo, fundamenta-se na própria fé totalitária que o bolsonarismo prega: a do poder popular, soberano, que se confunde com o líder populista até não ser mais possível distinguir um de outro — o que validaria o aterramento da democracia representativa. É o projeto.

Bolsonaro mente. Forja inimigos de fantasia. Manipula auxiliares. Com frequência, anui que um grupo de colaboradores negocie e, acordo fechado, deixa um outro bloco de subordinados bombardear o pacto e desautorizar o próprio governo. Assim, consegue ser ao mesmo tempo situação e oposição — com o que escolhe as adversidades com as quais lidará, dirige o debate público e tira do primeiro plano tanto a incapacidade (ou desinteresse) em fazer avançar as reformas quanto as dúvidas sobre a morte do miliciano Adriano da Nóbrega e o exame acerca da relação de agentes do bolsonarismo com o motim havido no Ceará.

Vejamos o caso do Orçamento impositivo —o novo combustível para a indústria de conflitos destinados a enfraquecer o Parlamento. No curso de 2019, a matéria teve adesão quase absoluta dos bolsonaristas; isto a ponto de merecer — ainda em março — palavras de exaltação de Eduardo Bolsonaro. Era, segundo o deputado, vitória do Legislativo e da independência entre poderes. Tratava-se, então, das emendas de bancada — rubrica que transferia parte do orçamento às mãos do Congresso. O governo avalizara.

Nada mudaria em dezembro, quando da votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, ocasião em que se aprovou o hoje controverso controle parlamentar sobre a execução das emendas de relator — os R$ 30 bilhões cujo domínio está em xeque. De minha parte, penso ser mesmo — esse ponto específico — avanço excessivo, gerador de desequilíbrio, do Parlamento sobre o Orçamento.

Mas o que posso fazer senão falar?

A hoje indignada bancada bolsonarista, no entanto, votou, caladinha, a favor da lei — com parcas exceções, entre as quais não Eduardo Bolsonaro. Ele, líder do PSL, poderia ter proposto um destaque e enfrentado a porção ora nociva — de súbito tornada mecanismo para chantagem contra o governo — da LDO; mas não o fez. E não o fez, só pode ser isto, por incompetência — por não saber o que se votava.

Fato consumado, lei aprovada, Executivo estrangulado, veto do presidente anunciado, o governo correu, por meio da dupla general Ramos e Paulo Guedes, para montar um plano B, um acordo que minimizasse os prejuízos e partilhasse aquele montante entre Congresso e ministérios — acordo que elementos do mesmo governo não hesitariam em dinamitar.

O governo funciona assim: na planície, sem publicidade, costura e negocia, lançando mão do que se poderia, segundo critérios bolsonaristas, chamar de toma lá dá cá; no Planalto, contando com a multiplicação desinformante de seus milicianos digitais, nega o que pactuou, trai a palavra empenhada, joga pra galera e ataca aquele com quem (legitimamente) se acertara. No caso, o Parlamento. Tem sido assim desde o começo.

É o que permite ao governo — o que mais liberou emendas parlamentares em primeiro ano de gestão da história — propagandear-se como vítima da conspiração de um Congresso chantagista. Para essa distorção dos fatos servem figuras como general Heleno, aquele que disparou o gatilho da nova rodada de intimidação do Legislativo; aquele, chefe do GSI, que teve — sem querer — declarações de afronta ao Congresso captadas por uma transmissão ao vivo gerada pelo próprio governo. Ok. Acredito.

Ato contínuo, decerto sem qualquer coordenação, lá estavam os movimentos de rua bolsonaristas convocando para protesto contra o Parlamento. Não demorou até que montagens com fotos de generais — vendendo a ideia de intervenção militar — circulassem como peças de divulgação das manifestações. E não tardaria para que o presidente compartilhasse vídeos chamando para os atos — seguramente (né?) sem qualquer intenção de que sua mensagem fosse vazada à imprensa. Foi.

Teve início, então, um novo ciclo de imposturas sobrepostas, de ataque a jornalistas — e de exposição da misoginia que caracteriza o bolsonarismo. Sob o estado de guerra em que se move um Bolsonaro em campanha permanente, tudo vale. É o que explica — mesmo com seus embustes descortinados pela exibição da verdade — haver dobrado a aposta na mentira. Ele sabe o que quer — nada a ver com as reformas estruturais de que o país precisa — e para quem fala.


Carlos Andreazza: Retroescavadeira e bala

É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política

Retroescavadeira e bala. Essa — a do aterramento, do excludente de ilicitude moral — é a linguagem brasileira corrente. O próprio espírito do tempo. Retroescavadeira e bala. Remover entulho — para a nova ocupação de espaços de poder outrora políticos — e atirar, a imposição de um modo de comunicar instigador de violências e que não se acanha ante a possibilidade de matar.

É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política; que despertou — que anima — a alma ressentida dos que dão corpo à febre reacionária; que faz sentido, vende transgressão, a uma juventude desesperançada em busca de formas para existir.

Retroescavadeira e bala. As forças de destruição que materializam a percepção da democracia como empecilho. O próprio espírito do tempo. O Zeitgeist que autoriza — não pense que sem encadeamento, leitor — jornalista a dar na cara de entrevistado; que legitima parlamentar a se valer de calúnia para disseminar a misoginia característica do reacionarismo que capturou o imaginário nacional; que endossa o investimento do presidente da República contra a imprensa, difamando uma mulher, como se o ofício fosse prostituição; que impulsiona o chefe do Executivo federal a desafiar governadores; que estimula um general do Exército — chefe da inteligência institucional do governo — a apostar na instrumentalização do povo nas ruas para emparedar o Poder Legislativo; que fundamenta o sentimento da elite financeira que visita a China e volta encantada com aquele tipo de sistema em que tudo se ergue com rapidez, no que vai contida, embora não declarada, a ideia de que a vida seria mais fácil sem essas chatices de democracia representativa e de estado de direito.

Retroescavadeira existe — Cid Gomes sabe — para limpar terreno; esvaziá-lo do indesejado. Avaliemos, pois, a mensagem difundida por seu uso contra pessoas. Avaliemos a mensagem disseminada por seu uso — nas mãos de uma autoridade, contra cidadãos — como ferramenta de ação política. Ou alguém duvidará de que o recurso empregado pelo senador — ex-governador — contra os policiais cearenses fora pensado como um gesto político para efeito midiático? Decerto calculou que sairia do teatro como um corajoso herói em nome do povo. Esse é o lugar autoritário em que a razão se acoelhou: o do trator como expressão do discurso político.

Veja, leitor, a gramática da negociação que prepondera: um senador da República que trata policiais grevistas tentando lhes passar o trator por cima; uma polícia amotinada que tapa o rosto e reage metendo bala num senador da República.

Não é pouca a ousadia desses agentes da segurança pública, os primeiros a violar a fronteira — a da prudência — que separa Estado e bandidagem. A Constituição veda qualquer tipo de movimento grevista por policiais — o Supremo foi expresso a esse respeito em decisão de 2017. Aqueles policiais, no entanto, não apenas se amotinaram em greve; mas foram às ruas para promover o terror — determinar toque de recolher, mandar fechar o comércio, como fazem os traficantes — e ameaçar a população que juraram proteger. Mais precisamente: usaram a vida da população para chantagear governante.

Para que não reste dúvida: um sujeito, armado pelo Estado como prerrogativa de sua função profissional, que atira — que usa sua condição de vantagem — não em defesa da sociedade, sob o que regra a lei, mas em benefício de interesses corporativos, não é policial. É miliciano.

Não tardaria, entretanto, para que os teóricos da revolução reacionária começassem a ensaiar — aliás, assim como quando da greve criminosa dos caminhoneiros — o texto de que o terrorismo dessa milícia seria manifestação popular de liberdade... A quem interessa incentivar — dar lastro intelectual — a levantes policiais Brasil adentro? A quem interessaria — senão a um projeto autocrata — o enfraquecimento dos governos estaduais?

Atos como os havidos no Ceará — conjunto de erros alarmante — ilustram o conceito de que, testada com rara frequência, esticada sob intensidade sem precedentes em tempo democrático, a corda da democracia, quando brevemente afrouxada, nunca volta ao lugar anterior. As imagens de um senador que pretendeu tratorar indivíduos, os quais poderia matar, e que recebe como resposta tiros disparados a esmo, em meio à multidão, por policiais em atitude de milícia, corroboram isso; são a expressão de que os envolvidos — todos os enredados na barbárie de Sobral — já se moviam num terreno avançando da regência autoritária, e sem necessariamente perceber.

A ideia de que se deva tomar partido no que é — de qualquer possível lado — barbárie absoluta representa a falência do equilíbrio político entre nós. A brutalidade tribalista é a régua identitária mais atraente que há.


Carlos Andreazza: A irritação de Guedes

O ministro, porém, não é vítima. É agente

Fato: Paulo Guedes está irritado. Constatação: irrita-se com frequência crescente. Sugestão: que se atente à periodicidade dessas erupções. Tese: a irritação, que o ministro expressa em falas desastrosas, corresponde a picos de descontentamento com o governo que integra; suas declarações como transbordamentos de quando o fervo não se pode conter intramuros.

Algo não flui naquele rio; talvez em decorrência do encontro das águas do liberalismo econômico com as do reacionarismo. Numa mistura em que o liberal — porque convicto de prestar um serviço maior ao país — aceita relativizar valores democráticos e supõe ser possível prescindir, ainda que momentaneamente, do liberalismo político, o esgoto sempre se impõe, escraviza e descarta. As declarações de Guedes seriam o alarme de quando a geosmina rompe — vence — o tratamento.

O ministro, porém, não é vítima. É agente. Ninguém pode aceitar que um homem experiente desconhecesse o Guandu em que aceitou nadar. Todo mundo, pois, deve se perguntar: como explicar o descarrilamento entre a propaganda de crescimento otimista para 2020 e doravante, a afirmação constante de que a economia vai bem, e os piques de mau humor de Guedes?

Há um padrão para seus arroubos de franqueza: as piores manifestações do ministro ocorrem sempre que a sua agenda de reformas é travada — deliberadamente prejudicada — pelo presidente da República. É possível também identificar o tema que mais dá concretude a esse desalinho. As três últimas vezes em que explodiu derivaram de Jair Bolsonaro boicotar a reforma administrativa.

A primeira da série remonta à virada de novembro para dezembro de 2019. Aquela fala autoritária sobre AI-5 coincidiu com o presidente trair compromisso firmado. O texto estava pronto. Avalizado pelo ministro. Havia um acordo com o Parlamento para seu encaminhamento. Tudo costurado, fiado na palavra de Guedes. Mas Bolsonaro mandou parar; falou em ajustes. Armou uma crise, instrumentalizou auxiliares, sempre Onyx Lorenzoni, para desautorizar o Posto Ipiranga e brecar o avanço do projeto — e o fez com aquela desculpa de o seu tramitar ser gatilho para a deflagração de revolta popular como a havida no Chile.

Guedes sabia se tratar de balela, não desconhecia a natureza do chefe, líder sindical cuja carreira se constituíra por meio da defesa dos interesses corporativos de servidores públicos; mas não deixou de estourar se valendo da linguagem bolsonarista, a de um pretenso clima de desordem que pudesse desaguar em atos de exceção como resposta. O andamento da reforma, portanto, ficaria para 2020. Aquela desculpa lhe servia.

Há mesmo quem creia que a radicalização do discurso de Guedes — a surfada na onda do AI-5, por exemplo — tenha método; que o ministro, assim, buscaria se aproximar da ala ideológica do governo para ganhar algum fôlego. Talvez. Mas isso somente se intuísse — ao menos intuísse — o destino que os reacionários reservam aos liberais. Intuirá? Há, por outro lado, quem veja o ministro mais à vontade entre os primeiros.

O ano novo chegou. Bolsonaro deixou que circulasse a notícia de que o texto seria remetido ao Congresso na segunda semana de fevereiro, Guedes teve de se engajar nessa promessa; mas logo se soube que era falsa, conforme exprimia a mensagem presidencial ao Legislativo, na qual a reforma administrativa, que fora — para o Ministério da Economia — a mais importante depois de aprovada a da Previdência, nem sequer constava entre as prioridades.

O ministro ficara novamente exposto. Veio, então, a disparada de irritação materializada na fala sobre “parasitas”, com a qual, de resto, atacando o funcionalismo público, subsidiaria a campanha dos que militavam contra seus planos, os que entraram na cabeça de Bolsonaro para lhe fornecer nova desculpa: como mexer agora com aquela categoria?

Com a reforma administrativa adiada e esvaziada, a ser enviada ao Parlamento (se for) decerto muito enfraquecida, não tardaria até que o ministro — ademais tendo de lidar com a perda de Rogério Marinho, sua Casa Civil informal — explodisse de novo, pouquíssimo depois, dessa vez para propor a reflexão sobre real desvalorizado e o fim da festa de empregadas domésticas na Disney.

Outra tese: a irritação de Guedes também como mostra de uma noção particular de tempo; de tempo curto. De quem tem pressa, tanto mais em ciclo eleitoral. De alguém que sabe, conhecendo a pouca convicção do presidente, que precisa entregar logo; que tem consciência de que é a projeção — a esperança —de crescimento, de geração de empregos, o que o mantém protegido. Até quando?

O estrilar de Guedes, afinal, é o apito — o instinto de sobrevivência — que nos informa sobre a impossibilidade de se reformar estruturalmente o Estado sobre um solo de instabilidade, tanto mais se a imprevisibilidade é forjada por aquele que lhe garante o emprego.

Bolsonaro é o limite. O ministro não se poderá dizer surpreendido.


Carlos Andreazza: A morte e a morte de Onyx Lorenzoni

Bolsonaro empilha corpos de auxiliares para erguer a trincheira com que se blinda

Já escrevi, neste jornal, sobre a “lógica do fusível” de Jair Bolsonaro: a forma utilitária, fritadora mesmo, autoritária e patrimonialista sempre, como dispõe de colaboradores, com frequência tornados defuntos de conveniência, a depender dos interesses circunstanciais da nova corte.

O presidente não delega responsabilidades. Distribui culpas. Não dispensa ineficientes — se fiéis. Demite insubmissos — ainda que competentes. Como cobra adesão incondicional para não amaldiçoar um novo traidor (um novo Santos Cruz), coleciona colaboradores com vocação para o servilismo — o que equivaleria a um suicídio moral houvesse princípios nesta beira de precipício. Eles pulam. São os cadáveres da sabujice; geralmente desqualificados gratos pela migalha de cargo recebida, gente oportunista cujo ressentimento, condição fundamental do caráter bolsonarista, é instrumentalizado pelo projeto de poder.

(Há também os que sempre foram o que são, como o general Augusto Heleno, sobre quem se depositou expectativa de moderação — de equilíbrio — inconsistente com a natureza daquele que fora, certamente não obrigado, ajudante de ordens de Sylvio Frota.)

Em campanha, em batalha, constante, Bolsonaro empilha corpos de auxiliares para erguer a trincheira com que se blinda; mantém mortos-vivos como para-raios das sequelas de seus atos e como atrativos ao entretenimento dos que considera inimigos. A imprensa, por exemplo — cuja função, segundo o presidente, entre outras atividades para não deixar o Brasil renascer, é tombar ministros. “Se não conseguem derrubar esses zumbis, longe de me tocarem estarão” — pensará um governante especialmente suscetível a teorias da conspiração.

A estratégia walking dead explica por que ficam no governo finados como Marcelo Álvaro Antônio e Abraham Weintraub. O primeiro, fulminado por denúncias de corrupção. O segundo, por rara incompetência. São a banha — a espessa camada de gordura — que protege Bolsonaro.

O caso de Weintraub, um provocador de picadeiro, ressentido modelar, é paradigmático das escolhas do presidente — que prefere sacrificar sua administração mantendo incapazes, que põem em risco o governo, a dispensá-los se podendo passar a mensagem de que cederia a pressões dos que supõe inimigos. Isto mesmo: é a exposição das barbeiragens de Weintraub pelo jornalismo o que o sustenta; sua insuficiência sendo, pelo filtro da guerra cultural (um fim em si), uma armação dos sabotadores que querem se livrar daquele que empreende um “exorcismo na educação brasileira contra a praga comunista”. O ministro é um combatente da causa; entrega bem o que lhe foi pedido — nada a ver com um Enem seguro.

Agora circulam os obituários de Onyx Lorenzoni, chefe de uma Casa Civil que, embora sem teto, sem nada, não é engraçada. O sujeito está morto — simbolicamente, por favor — desde junho de 2019, quando o presidente o chamou de fusível. Fusível: aquilo de que só nos lembramos quando queima. Pois é.

Não tenho dó. O queimado-vivo nunca esteve à altura da cadeira (elétrica) — que ganhou como consequência da fidelidade a um infiel. Outros fatos: a incompetência não faz do inepto um capacho; nem todo capacho é vítima; e nem todo inepto é desprovido de agenda. Há os que, sendo ineptos e capachos, querem ser governador.

Lorenzoni morreu, convertido em penico do palácio, como depositário manso da culpa por não articular politicamente para um governo que se orgulha de poder prescindir da articulação política. Belo epitáfio. Desde então, vaga pelo Planalto como um zumbi para fins de mordomo, à disposição para pagar os patos, nas horas vagas conspirando contra a agenda de Paulo Guedes — foi quem dinamitou o envio da reforma administrativa em 2019. Isto no caso de não haver servido de mera ferramenta para vontade superior.

Santo nunca terá sido. E, se vai ficando, a permanência dirá mais sobre o chefe do que sobre a alma penada: é útil ter à mão quem confunde lealdade com desonra.

Ex-ministro em atividade, foi em férias, não sem um toque de perversidade, que Lorenzoni perdeu o que lhe restara no ministério sem chão, o PPI, não à toa para o colega que tentava minar — contra quem agora decerto sobrará ainda mais tempo para investir. O mordomo zumbi, assim se esclarece, mantido para boicotar, desde dentro, reformas impopulares e assumir como suas responsabilidades, doravante sem maiores distrações burocráticas, o uso imoral do jatinho da FAB por um apaniguado amigo da família Bolsonaro e o espetáculo grotesco da exoneração-recontratação-exoneração do elemento.

Esses e os futuros produtos do patrimonialismo bolsonarista e do melindre do presidente ante a voz reativa das redes: tudo obra de Onyx Lorenzoni; que é capaz de esculpir mesmo durante as férias. Uau! Periga ser promovido e virar ministro.


Carlos Andreazza: Autoritarismos

Moro, valor absoluto, é o combate à corrupção

A ideia — de recriar o Ministério da Segurança Pública — existe, e há muito. Quando vazou, em 2019, o presidente reagiu como de costume: atacando a imprensa. A imprensa, porém, estava certa. A notícia procedia. Não pode ser considerada novidade agora. A novidade é ter sido transmitida — agora — pelo próprio Jair Bolsonaro. Esse é o fato relevante, do qual deriva a questão: por que pôs o assunto em pauta?

Ao ponto: a improvável recriação do ministério não importa; importante é a divulgação da ideia, ato que compõe um método de exercício de poder para mostrar quem tem o poder.

A ideia é um “estudo”. Né? A pressão pela volta do ministério, porém, é real e tem fundamento na disputa pelo controle da Polícia Federal. O cargo é cobiçado por Anderson Torres, secretário de Segurança do DF e articulador do encontro de secretários da área com o presidente — reunião para a qual Bolsonaro não convidou Sergio Moro, na qual sabia que se reivindicaria o restabelecimento da pasta e cuja transmissão ao vivo autorizou.

Torres é muito próximo do ex-deputado Alberto Fraga, que é amigo íntimo do presidente e abertamente candidato a chefe do ministério reclamado, alguém que se sentiu à vontade em dar entrevistas desqualificando a competência de Moro para cuidar de segurança pública. Que tal?

O jogo é feio. E o modus operandi bolsonarista, instrumentalizando a ambição de oportunistas, é conhecido: disparar uma ideia, distribuir recados, jogar iscas, testar reações —e depois retroceder. Esticar a corda ventilando uma possibilidade, alcançar o pretendido — e depois afrouxá-la. Num só lance, mede-se a reação da sociedade, especialmente da base do bolsonarismo robustecida pelos fiéis do lavajatismo; colhe-se o alimento decorrente do atrito com a imprensa, o presidente mobilizando seus bate-paus para desqualificar o jornalismo que lhe reproduzira as palavras; e se difunde, no caso, a mensagem de autoridade destinada ao ministro: “Quem manda sou eu”.

O alto grau de traição a Moro contido em Bolsonaro simplesmente cogitar — publicamente — a recriação do ministério só pode surpreender quem não estuda o comportamento do presidente. Moro — com projeto de poder próprio — não teria saído do Judiciário se para comandar um Ministério da Justiça esvaziado, sem a PF. Saiu porque Bolsonaro lhe prometera a Segurança Pública. Considerar tirar-lhe isso é pernada per se. É também, entretanto, produto de cálculo político; que antecipa os cenários eleitorais que passam pela cabeça do presidente — e ele só pensa em reeleição.

Bolsonaro viu a entrevista de seu ministro ao “Roda Viva”. Moro se comportou como político e defendeu (assim plantaram em sua cabeça) pouco o chefe; postura autônoma a que se soma o modo independente — inegável afronta à hierarquia — como reagiu à sanção de Bolsonaro ao juiz de garantias. Moro se expôs nas duas ocasiões, movendo-se para se desvincular, e colheu ótima repercussão para si. O presidente reagiu: “Você depende de mim”.

Interessante, no entanto, é refletir sobre o que pensará Moro a propósito dessa dependência: “Eu ainda dependo de você”. O ministro sabe que seu horizonte se expandiu para além de uma cadeira no Supremo. Ademais, já tem — entre outros — um “In Fux we trust” naquele tribunal.

Tendemos a nos ater somente ao que perderia Moro deixando o governo. Mas quem pode imaginar as consequências para o governo de perdê-lo?

Bolsonaro foi eleito; aquele que soube captar eleitoralmente o espírito do tempo lavajatista e se posicionar como a exceção numa classe política criminalizada. O espírito do tempo, contudo, é Moro. Bolsonaro é expressão retórica do combate à corrupção.

Moro, valor absoluto, é o combate à corrupção; o indivíduo, aquele que prendeu Lula, que encarna o sentimento de vingança do brasileiro contra um sistema que considera bandido e opressor.

Moro, o justiceiro, é a face do combate à corrupção como a salvação do país; e a corrupção, segundo exprime o povo, é o maior problema do Brasil. Moro tudo pode. Bolsonaro é aquele que pode trair — alô, Flávio! — o conjunto de desejos que o elegeu.

Há uma dinâmica espiritual autoritária — a mesma de 2018 — condicionando esse tabuleiro. Essa dinâmica ora trabalha por Moro. Por Bolsonaro, registre-se, trabalha Paulo Guedes. O símbolo Moro, ícone jacobinista, é uma ameaça ao presidente. A rigor, e as pesquisas de popularidade assim indicam, a cada vez que Bolsonaro faz gesto percebido como hostil a seu compromisso com o combate à corrupção, tal gesto é também percebido como uma traição a Moro, que cresce.

Se essa corda arrebentar um dia, para enfrentar Moro, Bolsonaro precisará entregar muito emprego. Briga pesada. A única certeza: não seria contenda de democratas.