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Carlos Andreazza: O integralismo no poder

Movimento nunca deixou de estar entre nós

Culto à personalidade. Estímulo à compreensão messiânica da liderança. Forja de inimigos artificiais. Discurso autocrático, antiliberal e anticomunista, de fé nacionalista, embocadura cristã e musculatura miliciana para o confronto. Fetiche com a projeção fálica de uma intervenção militar. Constituição de uma máquina panfletária para difundir teorias conspiratórias. Críticas doutrinárias à democracia, propositalmente confundida com o (criminalizado) establishment e entendida mesmo como empecilho; sendo necessário — em nome de uma nova política — destruir os padrões viciados da atividade político-partidária.

A que me refiro? Estarei incorrendo em repetição, mais uma vez esmiuçando o caráter da revolução reacionária bolsonarista? Sim e não.

Sim; porque esses elementos compõem o sistema de crenças do bolsonarismo, com sua pulsão de morte e a incapacidade de lidar com a liberdade senão como condição para impor os próprios modos. E não; porque me dediquei a listar somente estandartes do “Estado integral” segundo a doutrina do integralismo — o maior movimento de extrema-direita da História do Brasil até hoje, cuja influência tem assento no governo Bolsonaro e integra o pensamento do dito grupo ideológico, que prefiro chamar de sectário, aquele, poderoso, olavista, que toca a tal guerra contra o tal marxismo cultural.

Integralismo em 1932: algo novo — atraente para a juventude — numa sociedade intolerante (pautada pelo autoritarismo de Vargas) e amedrontada; o clima de medo (o perigo vermelho) impulsionando a adesão e o financiamento ao movimento. O ideal “Deus, pátria e família” encarnado no chefe nacional Plínio Salgado; o líder para o exercício do que seria uma democracia orgânica — que prescindiria das intermediações da democracia representativa.

Bolsonarismo em 2018: algo novo — sedutor para os jovens — numa sociedade intolerante (condicionada pelo espírito do tempo lavajatista) e amedrontada; o clima de medo (o Foro de São Paulo à espreita) impulsionando a adesão e o financiamento ao fenômeno. O slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” encarnado no mito Bolsonaro; aquele que fala diretamente ao povo, líder para o exercício do que seria uma democracia plebiscitária — que tornaria desnecessária qualquer mediação político-institucional.

Em 1969, o integralismo — obcecado pelo controle das formações individuais — seria o agente político que implementaria a disciplina de Educação Moral e Cívica no país. Em 2020, o integralismo domina — não à toa, como base estratégica para a reconstituição de uma fantasiosa civilização brasileira —o Ministério da Educação; e também a pasta dos Direitos Humanos.

O mais antigo alerta — ao menos para este escriba — sobre as semelhanças entre o bolsonarismo e a tradição integralista foi do publicitário Alexandre Borges, notável conhecedor da dinâmica política dos anos 1930, cuja natureza autoritária desaguaria na ditadura do Estado Novo. Ele me chamava a atenção para o caráter militarista do integralismo — aliás, muito aderente entre militares — e para a importância, no esquema do movimento, da milícia integralista, que conjugava serviço de informações e planejamento para operações policiais; que, na prática, resultaram em ações armadas tanto quanto nos fundamentos do que seria a Lei de Segurança Nacional.

Ainda no final de 2017, diante do fosso de oportunidades aberto pela depressão política que nutria discursos que costuravam elogio à autoridade e desprezo à atividade político-partidária, Borges informava que estudar apenas a emergência do nacional-populismo nos EUA e na Europa, embora necessário, não bastaria; e que seria mesmo preciso olhar para dentro, para a história do integralismo, a experiência fascista brasileira, com seu ímpeto para o golpismo, se quiséssemos compreender o conjunto de valores reacionários — cultura enraizada em quase século — que anima e lastreia o bolsonarismo. (E que não nos enganemos sobre a guinada circunstancial — com objetivo em 2022 —que leva Bolsonaro a uma quadra mais populista que autoritária.)

Há dois livros novos a respeito na praça. “O fascismo em camisas verdes”, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, publicado pela FGV Editora. E, pela Planeta, “Fascismo à brasileira”, de Pedro Doria. São trabalhos fundamentais, muito bem pesquisados (o de Doria, ademais, um thriller), que tiram da estante do exotismo, como se passagem irrelevante de nossa história, um movimento que — desde a década de 1930 — nunca deixou de estar entre nós; muito articulado, por exemplo, tanto à TFP quanto aos skinheads brasileiros, cujo tripé misoginia, racismo e homofobia é facilmente identificado no DNA do que se convencionou chamar de nova direita no Brasil.

Duas obras que retratam o integralista como uma espécie de soldado de Deus e da pátria, responsável pela construção de uma grande nação; o que seria destino indesviável deste país. Não é uma fotografia de época.


Carlos Andreazza: Breve retrospectiva da infâmia

Não há dúvida de que Bolsonaro tenha responsabilidade sobre as mortes

O bolsonarismo é uma máquina para a ruptura. Um fenômeno reacionário que fareja oportunidades por meio das quais se enraizar e corroer. Uma pandemia, por exemplo. O que ofereceria melhores condições para a aceleração do rompimento de nosso tecido social do que o estado de calamidade decorrente da mobilização por enfrentar uma peste agressiva e desconhecida?

A história do bolsonarismo nesses meses, desde março, é a história da guerra cultural batalhada sobre corpos; em que, afinal, o fato foi desacreditado, desinformação em desinformação, até a inexistência, ali desde onde tudo será versão.

Nesse período até que chegássemos aos 100 mil mortos, a indústria bolsonarista avançou sua forja de teorias da conspiração. Ou teremos esquecido, vírus já entre nós, de o presidente acusando fraudes — teria até provas — no processo eleitoral de 2018?

Foi nesses cerca de cinco meses que Bolsonaro conseguiu implantar o estado da arte para a desconfiança entre nós; quando, contaminada a fé pública, não acreditamos que ele estivesse infectado pela Covid-19; quando supusemos que o sujeito mentisse — manipulando a própria saúde — para colher benefícios políticos ainda ocultos.

Um presidente que aproveitou o clima de exceção para não apenas aviar sua troca de pele, deixando as carcaças eleitorais lavajatista e guedista no caminho, mas também para afiar seu cerco autocrático às instituições. Ou não estará aí — implantado enquanto discutíamos uma possível polícia política a partir do aparelhamento bolsonarista da PF — um Ministério da Justiça que produz dossiês contra críticos do governo?

Ou já teremos apagado da memória que foi nesse intervalo que o golpismo bolsonarista encontrou picada para testar as instituições sobre uma perversão do artigo 142 da Constituição, de súbito apregoado para estabelecer as Forças Armadas como poder moderador a serviço do Executivo?

Quem se lembra de o presidente discursando diante do QG do Exército para aglomerados em cujas manifestações se lia “Intervenção militar com Bolsonaro no Planalto”? Quem não se recordou dessa passagem ao ser informado, segundo a revista “Piauí”, de que houve, em maio de 2020, o dia em que o presidente declarou que interviria no Supremo?

A ação de Bolsonaro nesse período foi consciente. Não há dúvida de que tenha responsabilidade sobre as mortes. Um vírus traiçoeiro, de letalidade antecipada noutros continentes — e o sujeito não apenas buscando o corpo a corpo como também estimulando, em palavras, que desprotegidos o fizessem. Haviam morrido 5 mil brasileiros. E assim ele — como um sociopata — reagiu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Leitor, atenção: o presidente, em abril, questionou por que as escolas estavam fechadas. Repito: em abril; não agora quando, ainda paralisadas as aulas, discute-se alguma retomada. No mesmo abril, Bolsonaro afirmou que, segundo parecia, o vírus começava a ir embora. Nessa época, vendendo a ilusão da imunidade para a juventude, recorreu a seu passado de atleta para desdenhar da gripezinha. E, comerciando ignorância no mercado da miséria brasileira, multiplicou heróis da resistência entre os muitos entre nós que, mergulhados no esgoto por obra de um país do século XIX, teriam anticorpos contra a peste porque habituados ao cocô. Tudo seria resolvido se enfrentássemos o problema como homens — declarou o mito.

O presidente: um agente para o conflito que conseguiu levar o seu nós contra eles total para o terreno imoral de uma oposição entre saúde pública (afetada preocupação elitista) e saúde econômica. Do que derivou haver Bolsonaro difundido um vídeo falso sobre desabastecimento de comida. Ele era a voz em defesa da economia popular, mas foi com os barões do capitalismo de estado que armou aquela blitz, dentro no STF, em nome da tese de que “o remédio não pode ser pior que a doença”.

Um curandeiro, o presidente, que oferece placebo ideológico — o remédio da direita — como se fosse o corpo de Cristo contra o vírus chinês. Ele é o ministro da Saúde. Fazendo o Exército de mula. Baixando num general da ativa, como se seu cavalo fosse, para o exercício de suas crendices populistas; para ver se colava um pacote de sonegação e maquiagem de dados oficiais sobre vítimas da doença.

Bolsonaro não faz milagre. Tampouco é coveiro. Investiu, porém, em seu futuro apostando em cavar o buraco em que nosso cansaço descansaria — apostando mesmo, diante do mantra das mil mortes diárias, em nossa anestesia. Apostou em que nos resignaríamos como as emas do Alvorada ante a “vida que segue”.

Para efeito de curto prazo, com vistas a 2022, não é improvável que esteja certo. Vê nova base social a explorar, e já botou o pé na estrada para cortejá-la. Vai gastar. Guedes que se vire. É bem possível que chegue à eleição com força. Certo é que seu verbete já está inscrito na história universal da infâmia.


Carlos Andreazza: Supremo editor e a Constituição lavajatista

Uma bomba se arma, a da mentalidade autoritária

Quero alertar — sobretudo aos que ora celebram atalhos ao estado de direito — que os precedentes arbitrários estabelecidos pelo STF poderão ser, e serão, usados pelos dois (ao menos) ministros do Supremo indicados por Jair Bolsonaro, ambos decerto terrivelmente bolsonaristas; e que um inquérito sem objeto investigado definido, como o chamado das Fake News, amplo a ponto de impor censura, e que ora se move contra aqueles cujo comportamento desprezamos, tende a ser gatilho para que a perigosa combinação de autoritarismo, ressentimento e revanchismo resulte em descontrole e na multiplicação de canetadas, como a que retirou do ar uma reportagem da revista “Crusoé”.

Uma bomba se arma; a da mentalidade autoritária, que nos dirige desde há muito, aplicada — na prática — a uma estrutura em que o togado seja vítima, investigador, acusador e juiz. Que tal? Se não por amor ao estado de direito, que se projete — por medo, por zelo ao próprio escalpo — o futuro desarranjado desses processos excêntricos. Não fica bonito.

Quero alertar — sobretudo aos que cobram provas do autoritarismo do presidente da República — que Bolsonaro, aquele que tem, segundo confessou, um esquema particular de informações e que trabalha, talvez já com êxito, para que a Polícia Federal lhe sirva como polícia política, comanda um Poder em cujo Ministério da Justiça está montado um sistema de investigação e monitoramento contra policiais, professores e intelectuais críticos do governo; e que o titular dessa pasta, André Mendonça, cotadíssimo para uma cadeira no Supremo, é, antes de tudo, terrivelmente bolsonarista.

Daí por que se pergunte: e quando estiver ao alcance de um André Mendonça — cuja atuação já depredara a advocacia pública, pervertendo a AGU em banca de defesa personalista para Bolsonaro, família e amigos — ser um Alexandre de Moraes? E quando estiver a uma canetada de distância de um Mendonça — talvez também de um Augusto Aras, o procurador-geral do bolsonarismo — ser editor de um país inteiro, conforme Dias Toffoli definiu o papel de ministro do STF?

Toffoli conhece a função do editor. Talvez saiba também qual é a de um ministro do Supremo. Ocorre que escolheu ocupar aquela cadeira para exercitar seus vícios de agente político, não sendo surpreendente que deturpasse o ofício da edição para justificar as exorbitâncias — inclusive as engenharias sociais — promovidas pela corte que preside. Ele tem linha editorial — e essa não é aquela, a única, que deveria regê-lo e limitá-lo: a Constituição Federal.

Ministro de corte constitucional que se enxerga como editor, cedo ou tarde, avança sobre prerrogativas de outros poderes e reescreve a Constituição. E não nos faltam editores nem linhas editoriais disputando terreno no Brasil.

O lavajatismo — o próprio espírito do tempo — está em todos os espaços em que se exerça poder. É a força dominante entre nós. Em resumo: aquela que, modelando as leis e os ritos para além das margens do estado de direito, justifica-se porque, afinal, para deter os que consideramos bandidos — o objetivo virtuoso legitimando o caminho. Então, claro: para combater as ameaças de um projeto de poder autoritário, respostas autoritárias. E, de puxadinho em puxadinho jurídico, vemos se erguer o edifício da insegurança; ali onde bandido — a depender do editor — logo pode virar sinônimo de inimigo… O fetiche do combate à corrupção pode sair de moda, mas os meios empregados para tocar o combate ficam.

Se um ministro do STF, editor do povo inteiro, avalia que indivíduos ou grupos que atacam a instituição cometem crimes não tipificados nos códigos, por que não tipificá-los no ato? Obra em construção. Por que não lhes bloquear as contas em redes sociais — por que não a censura prévia — para se precaver contra as calúnias, injúrias e difamações que poderão praticar?

Sergio Moro, aquele que simboliza o lavajatismo (mas que não lhe é a única encarnação), também foi — como juiz — um editor. (Alguns maldosos dirão — lembrando a Vaza-Jato — que editor de ficção.) O editor Alexandre de Moraes — é provável — desaprova os métodos da República de Curitiba e decerto tem ressalvas a expedientes exóticos daquela força-tarefa e à linha editorial do doutor Moro; mas é um lavajatista, impregnado pela cultura justiceira que normalizou entre nós que se driblem procedimentos (que protegem garantias individuais) e se saltem as leis ordinárias para forjar, no caso, um inquérito obscuro destinado a caçar milicianos digitais. Alguém dirá que vale.

Toffoli, presidente do poderoso conglomerado editorial em que se transformou o STF, também é um lavajatista; um de tipo curioso, que odeia a Lava-Jato, operação que quer aterrar (pacote em que inclui o projeto para tornar Moro inelegível), mas lhe absorve a natureza jacobinista.
O cala a boca tinha morrido; mas nem tanto. Alguém dirá que por boa causa.


Carlos Andreazza: No gogó da ema

Hidroxicloroquina é a salvação para bolsonaristas

Temos um remédio santificado entre nós. Não importarão quantos estudos lhe indicarem a ineficiência, temos — teremos, ecoando no zap profundo — um medicamento santificado, glorificado, comungado no altar do Alvorada. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. O próprio retrato de um Brasil — mui influente — que é teórico da conspiração e negacionista.

Não interessa a ciência — essa senhora formal — que testa, pondera e contraindica. A ciência que prudentemente informa, com base na experiência, assim: são muitos os indicativos de que não sirva — podendo até fazer mal se aplicado — para combater a Covid-19. Não importam os estudos. A fotografia do estado espiritual de nossa sociedade vai toda nesta inabalável afirmação de fé: a hidroxicloroquina é a salvação negada pelos que torcem pela doença e contra Bolsonaro.

Então, de repente, tínhamos — temos — um remédio patriota que seria agente político da direita na luta contra o vírus chinês, o agente político inimigo conspirador comunista. A hidroxicloroquina como a própria infantaria conservadora no campo de batalha da guerra cultural, de cuja fantasia depende a existência do bolsonarismo.

Esse esquema propagandístico prosperou e prospera ainda. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. Jair salva. E que não subestimemos a percepção popular a partir da campanha de desinformação bolsonarista: um medicamento — a solução contra a peste — que se queria ministrar para a população, que se poderia ministrar para a população, mas que foi desqualificado por uma concertação do establishment, disposto mesmo a matar brasileiros em troca de não deixar que o remédio de Bolsonaro mostrasse seu efeito curador. Tudo para que ele, Jair, não triunfasse.

O culto à desconfiança venceu.

“Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Não adianta evidenciar que não trabalha; que não funciona. A mensagem — plantação do nós contra eles total — enraíza-se: “Não escutem os especialistas. Não deem ouvidos à imprensa. Estão politizando a questão”. Sim. Numa inversão tão bárbara quanto eficaz, a politização do vírus e de seu enfrentamento é atribuída aos que mostram como o projeto de poder bolsonarista avança para desacreditar os fatos de modo a que somente haja versões.

O culto à desconfiança venceu.

Bolsonaro faz aquilo que se espera de líderes populistas de sua extração: criação e difusão de mitos. Propagação do que seria, ante a pandemia, o elemento salvador; e elemento salvador — o medicamento — com caráter: acessível ao povo diretamente. Como ele, Bolsonaro: acessível ao povo diretamente. Bolsonaro, segundo a crença bolsonarista: também um remédio. Não é?

Jair salva.

Atenção ao processo discursivo personalista por meio do qual, de súbito, na eucaristia bolsonarista, o presidente e a hidroxicloroquina seriam um só, o mesmo corpo curandeiro sacrificado — aquela panaceia que prescindiria de intermediários para cuidar das pessoas.

Dirão as massas só existentes na narrativa, lá onde Bolsonaro pegaria no batente: “Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Dirá o pastor: “Nós temos a cloroquina. A salvação que nos é interditada. Nós produzimos a cloroquina. A independência salvadora que nos é proibida. Nós podemos — queremos — tomar a cloroquina. Tomemos. Ela está no meio de nós”.

Jair salva. Mas não salvará aqueles que, com responsabilidade pública, legitimaram, ainda que pela omissão, o uso de um remédio como crendice para armar reacionários em cruzada. Muitos médicos. Muitas associações médicas. Muitos hospitais. Muita gente que viu vantagem. Muita gente que fez negócio. Que especulou e faturou.

E há também, triste e gravíssimo, o papel do Exército brasileiro nessa farsa. Uma instituição de Estado, de natureza impessoal, que aceitou se associar — em casamento já indissolúvel — a governo de turno; que aceitou ofertar um seu general da ativa à função de cavalo de Bolsonaro no milagre da multiplicação por meio do qual o presidente se converteu igualmente em ministro da Saúde, púlpito desde onde celebrou, com batina verde-oliva, a missa de canonização da cloroquina.

O Exército chancelou a irresponsabilidade anticientífica e anti-intelectual daquele que ora propagandeia o remédio, a comunhão, para emas.

Não houve Mandetta, um político, nem sequer Teich — aquele que viera para inexistir — que aceitassem tamanha submissão; que aceitassem que seus gogós fossem o da ema. Mas um general — da ativa — topou. O Exército topou. E não foi só. Porque o Brasil, por meio do laboratório do Exército, fabricou, gastando milhões, para satisfazer fetiche de milagreiro, milhões de comprimidos de hidroxicloroquina — resultando em que o país esteja abastecido para a eternidade. Para quê? Para a eternidade de quem? Para investigação conduzida por quem na Terra? Ou caberá somente ao Senhor?

Jair — aqui, entre os mortais — talvez se salve. Salvará o Exército?


Carlos Andreazza: A eucaristia bolsonarista

‘Tomai, todos, e comei. Isto é o vosso corpo’. O corpo de milhares de mortos

A cena: Bolsonaro ergue a caixa de um medicamento; assim como se, capitão que é, igualmente ovacionado pelos espectadores, fosse Carlos Alberto levantando a Copa do Mundo. A embalagem de cloroquina então transformada na Jules Rimet — cujo destino de derretimento não deve ser possibilidade excluída ao porvir de um remédio apregoado como panaceia pelo presidente-milagreiro.

Derretem as vidas. No presente. Um fato.

Houve também quem comparasse o episódio a uma passagem do filme “Rei Leão”, em que o primata Rafiki ergue o recém-nascido Simba, filho do rei Mufasa. Um gesto para noticiar à comunidade que o reino tinha herdeiro — um ritual, pois, para informar sobre o futuro. Um movimento de segurança e esperança. De vida; para a vida.

A comparação com a liturgia de Bolsonaro é, portanto, descabida. Sim, o ato do presidente teve linguagem religiosa. Não me surpreenderia se alguém ali, diante daquela missa campal, esperasse o Messias andar sobre o espelho d’água. Bolsonaro emulava a comunhão. Na prática, porém, anticomunhão; porque aquela congregação esmagava, atraídos pelo egoísmo do pregador, vítimas potenciais do vírus traiçoeiro. Um gesto-ritual para noticiar à comunidade de crentes que o pastor, pura versão, negava-se aos fatos — um gesto, pois, para informar sobre o passado permanente. Um movimento de negação e temeridade. De doente; para a doença.

O presidente celebrava a eucaristia bolsonarista — a própria ação de graças, essencialmente personalista, do autocrata. Uma distorção do sacrifício. A terceirização do sacrifício por meio do culto ao negacionismo e à desinformação; um ritual de pretensão sagrada em cuja irresponsabilidade publicitária só havia morte — e nenhuma ressurreição.

A caixa do remédio glorificada pelo sacerdote Bolsonaro não era o corpo do mito Bolsonaro; corpo este que ali estava protegido, isolado, seguro. A embalagem de medicamento elevada pela crendice bolsonarista não era a carne daquele salvador eleito que se imolava por seus fiéis; povo este que ali estava espremido, exposto, vulnerável.

Não era o “Tomai, todos, e comei. Isto é o meu corpo”. Não. Mas o “Tomai, todos, e comei. Isto é o vosso corpo”. O corpo de milhares de mortos pela peste.

A esta antimissa se associaram as Forças Armadas. Gilmar Mendes tocou num nervo. Pode-se discutir o emprego de genocida para definir a responsabilidade de Bolsonaro sobre a morte de brasileiros. A responsabilidade, entretanto, existe. A negligência resulta. A crendice resulta. Influenciam — condicionam — e resultam.

Deve-se mesmo questionar que a pancada, ainda que correta, venha da boca de um ministro do Supremo, a quem não caberia se comportar como comentarista político porque, objetivamente, talvez venha a julgar algo relativo à omissão de Bolsonaro ante a pandemia.

Não é adequado. Não foi a isto, contudo, que reagiram os militares. Tampouco à afirmação de que teriam se associado a um genocídio. Mas à constatação — factual — de serem agentes já inseparáveis de um governo de cujo conjunto curandeiro decorrem mortes. O problema é a verdade.

As Forças Armadas não precisavam pontificar neste altar. Pouco tinham a ver com Bolsonaro, tipo condenado à baixa patente, um sindicalista agitador, conspirador de quartel, que propunha a quebra da hierarquia a bombas — do qual o Exército se livrara desde havia muito, mas de quem se reaproximaria deliberadamente, por cima, sobretudo a partir de gestões políticas do general Villas-Boas.

Para muito além dos limites impostos a instituições de Estado, as Forças trabalharam para estrelar o projeto de poder bolsonarista; e isto a ponto de um general da ativa — submetendo consigo o Exército — aceitar o papel de cavalo para que o presidente pudesse ser o ministro da Saúde. Aí está. Como aí está o ministro Ramos, general da ativa quando afirmou — atribuindo poder moderador à sua casta — a tese de que se poderia desrespeitar decisão de tribunal superior se considerada “não justa”.

As Forças podem agora desfiar o rosário. É falso que lhes cairia no colo — de qualquer maneira — um fracasso de Bolsonaro; que, por ser militar, levaria consigo a imagem das Armas. É falso. O sujeito deixara o Exército em 1987, defenestrado, reinventando-se em político defensor dos interesses corporativos de cabos e soldados, mais próximo das polícias que das Armas — às quais bastaria guardar a distância que a impessoalidade republicana demarca.

As Forças Armadas, no entanto, desejaram integrar o governo. E agora temem que suas fardas sejam manchadas — investigadas no Tribunal Penal Internacional — pela maneira como o governo a que dão (flexível) espinha lidou com a peste.

Bolsonaro jogou nos braços do Exército — na figura do vice Mourão — a Amazônia em chamas e a dizimação (o genocídio?) dos povos indígenas. E jogou na conta do Laboratório do Exército a fabricação milionária de cloroquina — o Exército, produtor do comprimido por meio do qual a morte é comungada, também pode erguer a taça. Amém.


Carlos Andreazza: A devastação da confiança

Aí está. A fé pública se liquefazendo em teorias da conspiração

Já não é notícia. Bolsonaro foi infectado (foi?) pelo vírus traiçoeiro. Aproveitou para vender remédio, cujos efeitos curadores — esperados quando sobre um físico com memória de atleta —se teriam verificado em algo como meio dia de consumo. Um episódio comercial só possível, sem o mais mínimo filtro ético, por ser Jair Bolsonaro o ministro da Saúde do governo Bolsonaro — o que já se sabe desde Nelson Teich, o que viera para inexistir, mas que nos ensinaria que até para a inexistência haverá limite.

Novidade tampouco é que, doente (doente?) Bolsonaro, haja os que torçam pela doença, os que — mui práticos —desejam a morte do presidente como solução; como forma, oportunidade, de derrotar o indivíduo eleito nas urnas. Ou os que, filósofos, admitem a morte do sujeito, agente para a barbárie, no bojo de sua responsabilidade — direta, objetiva — sobre a de milhares. É onde estamos.

A depressão política que nos afunda há tempos busca um veio radicalizador para impor um vale-tudo em que a extinção do outro — a pena capital, divina ou não — seja consentida como parte do jogo; em que o desejo de ver liquidado o outro, fisicamente mesmo, vá expresso como se politicamente próprio ao debate público. Todos morrerão, afinal — já disse Bolsonaro. Que morra ele, ora — diz-se em reação. Trata-se do triunfo de uma moral que se arma; da glória da linguagem bolsonarista — aquela para a guerra. Consequencialista, sem dúvida. O bolsonarismo — vivíssimo, como se continuará a ver no MEC — agradece.

Não foi esta, porém, a porção de nossa desgraça que — a partir de Bolsonaro contaminado (contaminado?) — mais me impressionou. Normalizou-se entre nós a desconfiança. Internalizou-se — como componente de nosso ferramental para a sobrevivência — a desconfiança. Então, o presidente da República (e nós já tivemos outros mentirosos naquela cadeira) vem aos microfones comunicar o diagnóstico — e as pessoas não lhe acreditam. Essa prevenção, no grau como se vê, é nova.

De súbito, acostumamo-nos a considerar — como hipótese robusta, não raro a primeira — que Bolsonaro infectado seria texto para diluir a pauta do dia em que o filho Flávio depusera. De repente, temos todos, todos arapongas, todos suspeitos, o nosso sistema pessoal de informações, condicionados para não nos fiar no que diz aquele que, por exemplo, afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que a eleição de 2018 fora fraudada. Sim, o presidente — um mentiroso — provoca a nossa precaução. É ele — mentindo — quem nos educa sobre ser mesmo a cautela, para com ele, uma necessidade.

Eis o circuito e o vício: aquele que desconfia das urnas que o elegeram e que instila teoria da conspiração contra a Justiça Eleitoral, aquele contra o qual nos treinamos para desconfiar, é quem nos treina, inclusive contra si — também ele cria da desconfiança, alguém só competitivo porque desconfiamos.

Qual o custo democrático de não se crer na palavra do presidente? Qual o preço que a ideia — o valor — de representação política paga quando parte significativa da sociedade duvida do que diz um chefe de Estado? E o que isso — a descrença — quererá informar sobre a prática desinformante e conspirativa do bolsonarismo senão que terá vencido?

Não confiar — como princípio — é tornar fluidos os nossos contratos sociais. Não confiar no presidente — supondo haver intenções ocultas em seu verbo — é a face personalizada de não confiar nas instituições de Estado.

Tratamos de um fenômeno — encarnado em Jair Bolsonaro, aquele que mente como método — que tem como um dos fundamentos o investimento perene em transformar tudo quanto seja fato em versão. Aí está. A fé pública se liquefazendo em teorias da conspiração; cidadãos atentos primeiro a sinais — esquemas discursivos — do que seria manipulação para esconder incômodos, e desqualificando, como possibilidade menor, a chance de o sujeito estar dizendo a verdade.

É o bolsonarismo que entra nas mentes; que rapta pensamentos; que escraviza o modo de olhar para que esgarçado seja o tecido social. Se a desconfiança se estabelece — se o negacionismo que o presidente preconiza se implanta — como ponto de partida para nossas recepções e percepções, Bolsonaro, a mais alta febre de nossa infecção antipolítica, avança e cresce.

A descrença na atividade política — em sua capacidade de gerar soluções que não para privilegiados — está na origem da ascensão do nacional-populismo de extração autoritária. Bolsonaro é produto disso, da descrença; da desconfiança que gera ressentimentos. É também produtor de desconfiança. Um dos alimentos para sua existência — para a existência do movimento reacionário, amálgama de ressentidos com ímpeto para a ruptura, a que dá corpo.

Que essa desconfiança se volte contra a palavra dele não significará que perde, que o feitiço se vire contra o feiticeiro; mas que ele, líder sectário, joga em casa — e arrebanha.


Carlos Andreazza: Guedes reformado

Pressão por governo que produza algum tipo de milagre econômico não é pequena

É imensa a minha curiosidade sobre como terão sido as reuniões ministeriais anteriores — àquela de 22 de abril — no governo Bolsonaro. Quereria saber se em alguma outra o superministro da Economia terá sido desafiado — ainda que em menor grau — como então.

Note-se que o encontro fora convocado pelo general Braga Netto, da Casa Civil, para tratar do Pró-Brasil — um PAC com chancela militar. Ali, chamado de dogmático, com a agenda posta em xeque sem qualquer defesa do chefe, viu-se um Paulo Guedes exposto, sob pressão, diria mesmo acuado, daí por que reativo; emparedado pelo discurso de alguns colegas, o principal desafiante sendo logo aquele, Rogério Marinho, oriundo da equipe econômica guedista, mas que não se constrangeu para falar em reconstrução da economia com o Estado como indutor e defender o endividamento público como efeito circunstancial de uma quadra em que governos precisariam rever suas austeridades.

Marinho, sujeito correto, hábil articulador político e com boa capacidade de realização, não falava só por si ou por Braga Netto e Tarcísio de Freitas. Sua ascensão à condição de ministro — e dos mais influentes — coincide com a associação do centrão ao Planalto, movimento do qual foi o maior operador, e representa agenda dita positiva, de obras públicas populares, que incluirá um Minha Casa Minha Vida para chamar de seu.

Rogério Marinho, não à toa do Desenvolvimento Regional, compreendeu rapidamente o espírito do tempo. Entendeu que a peste estabelecia nova convenção social para a função econômica do Estado, e que tal vento favorecia a que Bolsonaro se livrasse finalmente da carcaça eleitoral de 2018 e acelerasse a troca de pele para exibir, com vistas a 2022, o que sempre foi: Ustra nos costumes; Tarcísio na economia.

Lembre-se que, mais tarde naquele 22 de abril, o Pró-Brasil seria apresentado —e sem qualquer representante do Ministério da Economia.

Ainda no encontro ministerial, a primeira reação de Guedes à virada de maré foi tentar cativar Bolsonaro por meio da adesão ao louvor ideológico. O Posto Ipiranga era alguém que compreendia Weintraub. A partir dali, no entanto, o superministro avançaria — transformando-se — para se ajustar à realidade que se impunha; sobretudo ante um presidente que se encantaria, nas semanas seguintes, pelo que lhe oferecia o advento do auxílio emergencial à população pobre.

De início resistente ao valor afinal definido, e intransigente sobre a possibilidade de a ajuda ser prorrogada, Guedes de súbito passaria a falar em emprego e renda como prioridade, e se tornaria líder das articulações em prol de um programa de renda mínima, já denominado Renda Brasil, colosso que pretende incorporar o antigo Bolsa Família e expandir — a partir do cadastro de beneficiados pelo auxílio — a base de favorecidos em muitos milhões.

Incapaz (antes da pandemia) e afinal impossibilitado de reformar o Estado, Guedes — para sobreviver —reformou a si; talvez crente em que a concessão desenvolvimentista de agora, financiando Bolsonaro à reeleição, seria investimento em poder tocar as reformas no segundo mandato. Um risco monumental; porque não se pode controlar um poderoso eleito quando entorpecido pelas recompensas personalistas de um Estado provedor. Um risco também se considerarmos que o atual rigor fiscal em defesa do teto de gastos pode se esgarçar a depender de quem sejam os próximos presidentes do Senado e da Câmara.

A pressão por um governo que produza algum tipo de milagre econômico não é pequena. O Brasil Grande está no DNA de Bolsonaro e viria lastreado por demanda popular para que o Estado seja a mão que embale a economia. De sua parte, enquanto apregoa a fantasia de que o país decolava quando achatado pela praga, Guedes também troca de pele para não ser a pele deixada no caminho.

A flexibilização do Posto Ipiranga — primeiro aderindo à palestra ideológica, depois ao que seria assistencialismo populista — não deveria surpreender. Falamos daquele que encarna um plano liberal exclusivamente econômico, uma jabuticaba, que prescindiu — na origem — da porção política do liberalismo para servir a um projeto autocrático, reacionário e com ímpeto para a revolução, acreditando que esse arranjo impossível pudesse ser justificado por um conjunto de reformas (sempre empurrado ao futuro) cuja premissa seria a estabilidade, a previsibilidade, de que o bolsonarismo é perfeito avesso.

E não se pode descartar a hipótese de que não haja flexibilização alguma; de que Guedes seja mesmo isto, mais Bolsonaro do que se queira admitir, trocando de pele para mostrar o que é. Pastor suicida de uma fé que promoveria reformas liberais sob governo antiliberal; fiador consciente — vendendo sonhos que os fatos já confrontaram — de um projeto de poder populista e autoritário a ser a própria corda que lhe tomará o pescoço e levará também para a forca a ideia de liberalismo neste país.


Carlos Andreazza: O silêncio de Jair

Bolsonaro teria, momentaneamente, perdido o condão de dar as cartas e pautar o debate

Fato novo de verdade será se o recato atual de Jair Bolsonaro, ainda breve, tiver vindo para ficar. À luz da história de ascensão do bolsonarismo como fenômeno reacionário com ímpeto para a ruptura e ante a forma beligerante como esse projeto autocrático se expressou uma vez no poder: duvido. Porque a permanência do “Jairzinho Paz & Amor” equivaleria à inanição da base social — a sectária — que o sustentou até aqui, e que depende de conflitos constantes e da forja de inimigos artificiais para existir. A rigor: falo de um modo de existência por meio do qual a persona pública Bolsonaro existe.

Tomaria ele o risco de prescindir da parcela da sociedade — cerca de 15% — que lhe garante um piso de partida competitivo e que o tem apoiado de maneira irrestrita? E tomaria pelo quê?

Mais prudente seria supor que se trate de silêncio circunstancial condicionado por ocorrências recentes — um presidente de súbito, e brevemente, convertido à República sob a pressão das apurações policiais.

Refiro-me, antes de qualquer outro, ao caso Queiroz; que caso Queiroz não é — ao menos não prioritariamente. O caso Flávio Bolsonaro, pois; em cujo gabinete, sempre extensão do escritório do pai, operava-se o esquema de rachadinha em função do qual o ex-assessor foi preso — e que tem investigado se o dinheiro levantado pelo caixa paralelo haveria financiado empreendimentos imobiliários da milícia.

Esta me parece ser a principal razão para o silêncio. Bolsonaro sabe que perderia o apoio dos militares se ficasse comprovado um grau de conexão de sua família com milicianos para além das relações já conhecidas nas modalidades de homenagens legislativas e empregos a parentes. Não me parece que um general como Braga Netto, que comandou a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, topasse tocar — ainda que apaixonado pelo espírito milagreiro de um Pró-Brasil — o programa desenvolvimentista pós-pandemia com o filho do chefe denunciado por associação econômica a uma organização criminosa.

Milícia seria o limite para os fardados, mesmo que esses flexíveis ora no Planalto.

Outra explicação para o silêncio transitório seria a dupla de inquéritos que correm no Supremo sob relatoria de Alexandre de Moraes; notadamente aquele dito das Fake News. Proponho ao leitor considerar que essa investigação seja o agente, o marca-passo, que dita o ritmo das reações do presidente — o que, sim, coloca-o em posição passiva. Até quando? Por quanto mais?

Trabalho com esta tese: a de que Bolsonaro teria, momentaneamente, perdido o condão de dar as cartas e pautar o debate; daí por que o silêncio. Não creio ser arranjo duradouro tanto quanto acredito que o rompimento dessa autocontenção venha com barulho. Questão de tempo até que arrebente.

Não é quadra simples. À espera do próximo movimento de Moraes, Bolsonaro estaria acuado, condição explosiva para alguém de sua natureza, e ao mesmo tempo aliviado — talvez iludido — pela sessão do STF que declarou a constitucionalidade do inquérito ter-lhe também limitado o objeto, em seguida ao quê se poderia esperar diligências menos agressivas. Será?

Ele aguarda. É espera precária. Difícil apostar na duração do Bolsonaro passivo; sobretudo porque — retomo — a continuidade de seu silêncio, tanto mais se ligado à ideia de que se deixara tutelar, significaria fazer minguar o grupo militante que lhe dá chão qualquer que seja a crise, mas cuja fidelidade depende das guerras fabricadas contra o establishment.

Note-se que influentes vozes do bolsonarismo — como Filipe Martins, depois de meses de pouca exposição — têm se manifestado, desde dentro do Planalto e não sem alguma insatisfação, para cobrar senso prático da militância diante do que seriam os limites de ação do presidente. Há algum temor aí, materializado na chegada do outrora criminalizado centrão e na debacle de Weintraub; temor lastreado em hipótese formulada assim: ainda que improvável, dado que arriscadíssima, não se poderia descartar a possibilidade de que Bolsonaro — radicalizando a troca de pele — testasse o campo para abandonar sua base social mais antiga.

Ele talvez considere ter exemplos de sucesso para encorajá-lo. Perdeu Mandetta e Moro, com prejuízos na classe média; danos, no entanto, que conseguiria compensar — mantendo estável o patamar de aprovação — com os efeitos do auxílio emergencial aos mais pobres. Este progresso continua. Bolsonaro avança, inclusive no Nordeste, e talvez o cálculo projete que a implementação do Renda Brasil, perenizando a ajuda, e englobando e ampliando em muitos milhões a população coberta pelo Bolsa Família, dar-lhe-ia a gordura para precisar progressivamente menos da porção autoritária de seu populismo.

Duvido — repito. Mas: quem tem cargo tem medo antes; e por motivos outros.


Carlos Andreazza: Anjo do anjo

Será Wassef o Queiroz do futuro?

Quem ouvir o senador Flávio Bolsonaro terá de repente a impressão de que nunca foi deputado estadual e de que o gabinete na Alerj era de Fabrício Queiroz. Não era; isto embora — justiça seja feita — fosse mesmo o ex-policial quem trabalhasse à vera ali. Nada a ver com a atividade parlamentar.

Quem ouvir, nos próximos dias, a família Bolsonaro terá de repente a impressão de que o destituído Frederik Wassef nunca foi advogado de Flávio e Jair Bolsonaro, e de que sua presença nos palácios onde mora e trabalha o presidente da República jamais houve. Houve; isto embora — justiça seja feita — nada de errado haja em cliente se reunir com defensor, tanto mais sendo este um amigo daquele.

Junta-se o útil ao agradável; assim se ergueu o patrimonialismo neste país.

O destino já uniu Queiroz e Wassef, o novo ex. Tudo a ver com o fato de este ter escondido aquele. Será Wassef o Queiroz do futuro? E quem seria, no caso, o Wassef de Wassef? Wassef deseja saber. Como Queiroz no passado, o advogado manda recados. Não quer ser abandonado. Teria até celular exclusivo para contatos com a família. Verbaliza mesmo a fé — pura mensagem — de que armariam contra ele para atingir o presidente. A acusação de armadilha é gentileza para com Bolsonaro; mas não turva a clareza da missiva: “eu sou você”.

Funcionou com Queiroz — logo lhe apareceu o anjo. Quem será o anjo de um anjo falador que — debatendo-se contra o fado — não parece ter vocação para Queiroz?

Seria mesmo Wassef o anjo de Queiroz?

Queiroz não foi descoberta de Flávio; uma aquisição sua para a gestão, em dinheiro vivo, do gabinete. Não. Queiroz, amigo de Jair desde que 01 era guri, foi designado pelo pai — que sempre dispôs dos mandatos dos filhos como extensões do seu. Queiroz é tanto Jair Bolsonaro quanto Flávio é Jair Bolsonaro.

Wassef tampouco foi descoberta de Flávio; uma revelação sua para a defesa judicial da família. Não. Wassef foi designado pelo pai para a defesa do clã — e ora reivindica ser Jair tanto quanto Queiroz é Jair. Intui que será investigado. A fotografia captura flagrante comprometedor: o então advogado de Flávio guardando em casa, homiziado, um outro investigado no inquérito, cuja detenção preventiva impôs-se por estar ele, desde o covil, movendo-se para obstruir a Justiça.

Isto mesmo: Wassef, defensor de Flávio até ontem, abrigava Queiroz — operador num esquema de corrupção no gabinete de seu cliente — enquanto o abrigado cuidava de interferir para dirigir testemunhas; nenhuma delas maior do que a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega.

A senhora Raimunda Veras Magalhães esteve — longamente, assim como a nora — na folha de pagamento do gabinete; e sua movimentação em espécie é capítulo à parte. É quando entra na equação a mulher de Queiroz, Márcia Oliveira de Aguiar, ora foragida, talvez a principal agente no esforço para lesar as investigações, possivelmente incumbida de comandar o silêncio dos que compunham a vertente miliciana em que também se investiria o dinheiro amealhado por aquele modelo de rachadinha.

Lembremos. No único depoimento que deu ao MP, em fevereiro de 2019, Queiroz admitiu que o sistema de rachadinha era regra no escritório de Flávio. Apresentou, porém, ressalva que supunha atenuante: os recursos colhidos ali não iriam para o bolso do chefe, mas para um caixa paralelo destinado a ampliar, informalmente, o número de colaboradores do mandato. Ao serem contratados, os assessores eram informados de que teriam de dar parte da remuneração para sustentar aquela expansão. Tudo pago por fora — num exercício que chamou de “desconcentração de remuneração” e que seria desconhecida pelo deputado.

Com Queiroz preso, será natural que os investigadores lhe cobrem a lista desses auxiliares informais — e quanto ganhavam. Isto porque, em face do volume girado no esquema, ainda que gabinete estendido houvesse, seria algo marginal; e o MP tem como norte que esse programa de rachadinha alimentaria — aí, sim — uma indústria de lavagem de dinheiro por meio sobretudo de operações imobiliárias, entre as quais estariam contidos investimentos no ramo empreiteiro das milícias.

Exatamente: o dinheiro daquele caixa paralelo seria destinado também a financiar construções ilegais de prédios em localidades como a Muzema — ali onde dois edifícios irregulares caíram em 2019.

Rachadinha é recurso delinquente comum em legislativos Brasil adentro — já dizem os passapanistas para relativizar o crime. A prática, no entanto, agrava-se quando se questiona com que frequência terá servido para financiar a atividade econômica de milícias. Essa é, aliás, a razão por que sou cético acerca da possibilidade de Queiroz delatar. Para quê? Qual vantagem teria? Ou não será o delator aquele que entrega outrem em busca de se safar? E que alívio teria em liberdade aquele que delata uma organização criminosa conhecida por ter mui eficiente esquadrão da morte?

Haja anjo.


Carlos Andreazza: Nada dúbio

O texto situa as Forças não como instituições impessoais do Estado, mas órgãos do governo de turno

A interpretação bolsonarista para o artigo 142 da Constituição merece detido exame, pois sintetiza a mentalidade autocrática que fundamenta o projeto de poder golpista encarnado em Jair Bolsonaro — que tem lastro, como lembra a ameaça de intervenção, ainda em abril de 2018, do então comandante do Exército, general Villas Bôas, à véspera de o Supremo julgar habeas corpus de Lula, e que se expressa tanto em nota formal ou entrevista de militar quanto em ato de grupo extremista atacando o STF (por ora) com rojões.

Projeto de poder impulsionado por um inconformismo essencial: o de o presidente da República, mesmo eleito por 57 milhões de votos, não ter mais poder que os outros Poderes.

As Forças Armadas seriam, pois, o canal por meio do qual resolver, concretamente e para além dos fogos de artifício, essa inaceitação do equilíbrio republicano: a eloquência dos tanques para que a suposta vontade popular fosse respeitada, Congresso e Supremo subjugados por aquele — Bolsonaro — que falaria diretamente ao povo.

O texto constitucional trata da “autoridade suprema” do presidente sobre as Forças — o que passou a ser compreendido como atribuição ilimitada e difundido como explicação de por que haveria hierarquia entre Poderes: o Executivo, sendo o senhor das armas, acima dos demais.

Foi contra essa leitura doente que reagiu Luiz Fux ao explicitar qual seria a delimitação do papel das Forças Armadas. Que não são o quarto Poder. Que não são poder moderador. Que não podem intervir em outro Poder; a prerrogativa do presidente — que o autoriza a empregá-las — não podendo ser usada contra Legislativo e Judiciário.

O conteúdo da decisão é impecável. A forma, porém, monta uma armadilha para o STF. Por que a pressa, se o discurso golpista não tem gatilhos para se materializar agora? Por que correr a uma solução liminar, se o ímpeto golpista busca apontar ativismo para alegar golpismo alheio e se vitimizar-legitimar? Por que não proteger a Corte e robustecer uma exposição magistral dirigindo-se ao colegiado, no colegiado, para ratificação do colegiado?

Se estão os ministros preocupados em preservar a ordem democrática, a melhor maneira será com um choque de plenário. É como o tribunal pode se blindar — movendo-se em conjunto, controlando e baixando o grau da febre monocrática. A armadilha a que me referi, a arapuca da fulanização: as decisões individuais — sobretudo se relativas a outros Poderes — como convite a que um populista autoritário reaja, sob a lógica personalista, chamando aquele de quem precisa como inimigo para a briga de rua.

Fux foi mais um a se lançar ao corpo a corpo. Como resposta, Bolsonaro divulgou nota também subscrita, gravemente, por Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, aquele que dirige as Forças Armadas.

Eis o trecho que importa — o governo incorporando a distorção autocrática do artigo 142 a suas manifestações oficiais, Exército, Marinha e Aeronáutica apregoados como braços do golpismo bolsonarista: “As Forças Armadas não cumprem ordens absurdas, como, por exemplo, a tomada de poder. Também não aceitam tentativas de tomada de poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”.

Não há qualquer dubiedade na mensagem. O texto situa as Forças não como instituições impessoais do Estado, mas órgãos do governo de turno. O recado é claro. O impeachment, por exemplo, é julgamento político. Tem lugar no Parlamento, em ação sob controle do Supremo.

O ministro da Defesa —tragando as Forças Armadas — diz que não aceitará impeachment contra Bolsonaro, recurso previsto na Constituição, e que o consideraria tentativa de tomada de poder? Sim.

Quando do impedimento de Dilma Rousseff, grupos políticos acusaram golpe contra a presidente — e as Forças Armadas, corretamente, não se envolveram. Por que se pronunciam agora, ademais se nem processo há, senão para informar à sociedade que têm partido?

O ministro da Defesa — arrastando as Forças — diz que um julgamento do TSE poderia ocorrer “ao arrepio das leis” para a tomada de poder? Sim.

Quando julgou-se, por exemplo, a chapa Dilma/Temer, grupos políticos acusaram golpes de todos os lados — e as Forças Armadas, corretamente, não se meteram. Por que se pronunciam agora, ademais em litígio que toca num general, senão para informar à sociedade que têm partido?

Em entrevista à “Veja”, o general Ramos, da Secretaria de Governo, falou sobre a implausibilidade de um “julgamento casuístico” tirar do poder um presidente eleito com 57 milhões de votos. Deu exemplo: “Um julgamento do TSE que não seja justo.”

E o que determinaria o que será justo? A aplicação do artigo 142 conforme pregado pelo bolsonarismo. Que não é só Sara Geromini. Que também vai fardado. Que avisa — né, general Ramos? Para que o “outro lado” não estique a corda. Qual é o outro lado? Quem é a oposição segundo esse inconformismo? A República.


Carlos Andreazza: Pedaladas funerárias

Temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste, prática fascistoide que compõe a gramática golpista

Não deveria haver gente protestando nas ruas. Há uma pandemia; a sanha de um vírus traiçoeiro. Há também, no entanto, o vírus do bolsonarismo; a forma agressiva como, explorando a janela de oportunidades escancarada pelo enfrentamento à Covid-19, Jair Bolsonaro e seu projeto autocrático de poder aceleram o programa de radicalização para infeccionar a democracia liberal. Crise é chance. Crise é pretexto.

Agora, por exemplo, temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste — prática fascistoide que compõe a gramática golpista. A ideia: que não haja fatos; que tudo seja controvérsia e sirva a formulações conspirativas. É a peste dentro da peste. As pestes dentro da peste. Uma delas: um militar, general, à frente do Ministério da Saúde, prestando-se ao papel de ser cavalo da vontade do presidente — que sobre toda a superfície do Estado tenta expandir a natureza meramente narrativa do fenômeno reacionário que encarna.

O que interessa: em campanha contínua, fabricar constantemente inimigos. A lógica é simples e influente. Como o establishment, sinônimo de “forças nada ocultas”, trabalharia para derrubar Bolsonaro, tudo quanto originário do sistema — da própria estrutura republicana — teria o fim de destruí-lo. Por exemplo, a consolidação e a exposição dos números de vítimas da Covid-19: ação para desestabilizá-lo.

Bolsonarismo é jogo de versões; investimento em dissonâncias, guerra cultural permanente — para isto, com a cumplicidade de militares, foi capturado o Ministério da Saúde. A multiplicação de helenos no governo — tragando o Exército — é muito mais perniciosa que os três ou quatro weintraubs que há.

Para defender este projeto de poder, com a adesão frequente do próprio Augusto Heleno, temos — há semanas — centenas de pessoas nas ruas; todas mui à vontade, sem a vigília policial, como merecem os patriotas ordeiros da ucranização. Manifestações governistas — não raro com a presença do mito — que pedem, a cada vez com maior desinibição, intervenção militar; mas com a ressalva de que para manter Bolsonaro no comando. O presidente presente convida aos atos e lhes chancela pauta e tom. Tão pacíficos — à parte um ou outro taco — quanto serão sempre encontros de democratas que demandam, pregações criminosas, os fechamentos de Congresso e Supremo.

O presidente presente chama às ruas e avaliza o tom também de seus opositores. Aí está. Outro grupo disposto a tomar riscos — e colocar em risco — por motivo político. Questionados sobre a irresponsabilidade de protestarem sob o bafo da praga, esses manifestantes dirão que têm pressa, que o bolsonarismo avança em seus propósitos golpistas — e que um vírus, o coronavírus, não pode servir de blindagem para que outro vírus, o bolsonarista, prospere. São argumentos poderosos, que abastecem um ciclo perigoso, cujo impulso original tem músculo num cálculo pessoal sobre a morte. Vale? A resposta é individual. Mas pergunto: quanto desse ímpeto — desse desejo por se medir contra o designado mal — terá matriz no ressentimento? O ressentimento, o veneno: a própria essência do bolsonarismo — daquilo que se quer vencer.

A mentalidade que nos dirige é a autoritária. Há um clima de revanchismo. É difícil falar em protesto pacífico. Seria simplificador. Estamos na mais baixa cavidade de uma depressão política aguda — e a linguagem que se normalizou é a da violência. De modo que, sim, a manifestação contra Bolsonaro foi pacífica na maior parte do tempo — e pacífico foi o comportamento da maioria de seus participantes, com o necessário destaque à centralidade da bandeira antirracismo.

Pacífica, majoritariamente pacífica, quase sempre em defesa da atividade política como forma de mediação — mas não só pacífica e nem sempre dentro das regras do trânsito político. Há nuances. Manifestações dentro da manifestação. Não examiná-las — ou tratá-las como irrelevantes — será fazer militância. Havia muitos sentimentos reunidos ali; entre os quais o ódio, ódio à burguesia, ódio à polícia, ódio bradado, costela da qual se desgarrou, como produto marginal do protesto, a falange para o choque, para o confronto, para a depredação. Talvez seja derivação inevitável. Mas não indomável; sendo possivelmente controlada, diluída essa franja, pela evolução madura do movimento — a ver — para pautas que, ao estabelecerem vínculos institucionais, sejam capazes de seduzir a sociedade. A do impeachment, por exemplo.

Ninguém se junta a uma manifestação, em meio a uma pandemia, para brincar. São sujeitos no limite. O caráter difuso dos atos atrai agendas várias. Circunstância também propícia à operação de oportunistas e infiltrados. Eu sei. De todo modo: a engrenagem perfeita para um circuito temerário; que — acercando-se da desobediência civil — arma gatilho para as intenções golpistas.

Não dou conselho a corajosos. Mas — importando imagem recente — não se vencerá Bolsonaro depredando Churchill.


Carlos Andreazza: A democracia infantil

O Brasil, sob o norte da mentalidade autoritária, é refém do tribalismo

Receio que nos tenhamos acostumado, cada um com seus ressentimentos, a que democracia seja medir-se nas praças com o adversário; com o inimigo — porque a gramática é de guerra. Nesses termos, quem poderá mais? Ou melhor: quem se beneficiará, afinal, de um embate cujo produto só pode ser a conturbação?

Receio que nos tenhamos tornado adictos da adrenalina própria à instabilidade, parasitas da depressão política que se aprofunda e traga o país. Jair Bolsonaro é a intensificação da instabilidade — o vício na instabilidade também sendo vício nele.

O Brasil é país doente; doença da qual Bolsonaro, presidente eleito, é a mais alta febre. Vamos para a briga de rua de modo a vencer uma convulsão? É essa a ideia? Valer-se do vocabulário da rinha para enfrentar quem monopoliza o dicionário da guerra?

Partir ao confronto, físico, contra quem se alimenta da radicalização?

Desde há muito denuncio o investimento bolsonarista na forja de movimentos plebiscitários para pressão — para intimidação. As facções têm agenda clara — que costura intervenção militar e os fechamentos do Congresso e do Supremo. Desafiá-los no mesmo tom, no mesmo chão, será legitimar a linguagem beligerante e admitir como terreno o dos tacos, que é o mesmo das bombas, que é o mesmo da desobediência civil — que é o mesmo do estado de sítio. Há quem só espere uma oportunidade.

Fora dos marcos republicanos só prosperam aqueles cujo projeto de poder dependa do esvaziamento — da corrosão do caráter — das instituições.

O espírito do tempo é lavajatista, jacobinista — e que não pensem os que desprezam a figura do justiceiro Moro e o papel dos dallagnols de Curitiba estarem imunes à doença. A doença: a da justiça com as próprias mãos. O zeitgeist é o do justiçamento — produto de uma sociedade que não acredita em sua institucionalidade, a qual aceita atalhar, esgarçar, se para que triunfem os propósitos nobres que, ora, todos temos.

Somos todos democratas, todos bem-intencionados. Certo? Aqueles patriotas, vestidos de intervenção militar, que bradam pelo fechamento do STF — declaram-se democratas e de bem — e os valentes que os combatem, aquelas falanges de torcidas uniformizadas de clubes futebol que marcharam contra o fascismo, com as tantas mortes que já causaram e com as tantas ligações com organizações criminosas que têm; também se dizem democratas e gente boa.

Quem poderá mais, entre esses virtuosos?

O Brasil — sob o norte da mentalidade autoritária — é refém do tribalismo; o próprio paraíso de um autocrata. O paraíso do autocrata — nesta altura, depois de cavalgar pela esplanada como um Newton Cruz, feliz da vida: a descrença nos meios institucionais, descrença que o elegeu, compartilhada com os que, pelas próprias mãos, desejam derrubá-lo. Bolsonaro agradece.

O sonho do autocrata: que grupos em defesa da democracia saiam às ruas para arrostar o fascismo. Não é belo, corajoso? O mundo real, contudo, pergunta: qual é a agenda? É só a sectária, da força pela força, para dar vazão ao revanchismo e ir à forra na pancada, ou se pleiteia, por exemplo, o impeachment do presidente? Qual a agenda?

Recordemos que, expressando-se a rojões, gente sob o mesmo impulso democrático — certamente antifascista — matou o cinegrafista Santiago Andrade em 2013. Qual o projeto? Porque, sem demanda institucional, será só anarquia.

Lembremos que os que ora chamam Bolsonaro de fascista são os mesmos que de fascista chamavam Fernando Henrique Cardoso. Não têm credibilidade. Tampouco a musculatura policial. E não se franqueia a pista de um baile autoritário se não se quer que o autoritário que comanda o guarda da esquina dance.

Nota importante: o apoio fardado ao bolsonarismo — já escrevi nesta coluna antes — não estará nas Forças Armadas, mas em influentes setores das polícias estaduais, como aqueles que se amotinaram no Ceará. Houve amostras — no domingo, em São Paulo — de como podem se manifestar seletivamente entre democratas.

Que não se pense que o que se viu no último fim de semana, especialmente na Avenida Paulista, enfraqueça Bolsonaro. Bem ao contrário: fortalece-o. Uma blitz de homens de preto — vestidos de revolução — para reação e choque. Ele agradece, o reacionário, também ele revolucionário — também ele democrata, segundo Paulo Guedes. A quem aquilo atrai? Aquilo atrai ou repele? Aquilo atrai o cidadão — o cidadão de saco cheio das crises geradas pelo presidente — ou o faz lembrar de por que votou no sujeito? Ou a ideia não seria atrair o cidadão que não é militante do PCB? Qual a agenda?

Ah, sim. Não interessa quem atacou primeiro. Interessa que houve confusão; filme já tanto visto e que ativa — revitaliza — o discurso da ordem. Bolsonaro agradece. Os que — em nome da democracia — vão para o conflito, para a porrada, para a quebradeira, entregam o que busca o bolsonarismo. O caos.