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Carlos Andreazza: O recado dessas pessoas

É aposta na derrota desqualificar a legitimidade daqueles que votam em Trump — e Bolsonaro

O que ora vemos nos EUA é um dos futuros do Brasil. Este expediente golpista, de acusar fraude no sistema eleitoral, será usado por Jair Bolsonaro daqui a dois anos, qualquer que seja sua condição competitiva. Ninguém se poderá proclamar surpreendido. O presidente brasileiro não esconde as cartas; ou não terá sido ele, poucos meses atrás, a afirmar ter provas — jamais apresentadas — de que a eleição de que saiu vencedor fora fraudada? Não falava de 2018, mas para 2022.

Donald Trump ataca, em 2020, a mais poderosa expressão da democracia na América: o voto combinado à independência federativa. Mobiliza suspeição sobre a integridade da exata mesma estrutura descentralizada por meio da qual se elegeu em 2016. Empreendimento especialmente grave porque mina — com mentiras vestidas de teorias da conspiração — uma instituição, a tradição eleitoral americana, fundada na confiança entre cidadãos.

Não se trata de um mau perdedor, com o que se confundiria com uma criança. Mas de um sabotador. Um populista autoritário que manipula, como fazem os personalistas, a fantasia influente sobre a própria potência. Ou seja: alguém como ele não perde senão roubado — eis a mensagem, destinada a fomentar o choque e manter ativa a militância.

Trump fala para 2024 e age amparado por um precedente lamentável, embora de natureza diversa. Judicialização de processo eleitoral é sempre trauma. Refiro-me à eleição de 2000; aquela em que o democrata Al Gore levou a apertada derrota para o republicano George W. Bush à Suprema Corte. Dirão ambas as partes, os democratas de então e os republicanos de hoje, que recorrer à Justiça é do jogo. Certo. Vendo agravar-se fissura nunca curada, digo eu que, do jogo, certamente não é, ancorar as demandas judiciais plantando dúvida, sem provas, contra um pacto social, o eleitoral, dependente de boa-fé. Democratas afirmam que assim procedem agora os republicanos. Republicanos, que assim procederam os democratas há 20 anos. Aí está. Não é belo; sendo óbvio o tipo de oportunista que se beneficia do império da suspeição.

Trump opera a desconfiança com maestria. Mas só o faz porque produto de uma grande parcela da sociedade americana que descrê. E que, porque descrê, endossa que seu presidente dilapide pilares civilizacionais e aposte na cultura da suspeita. Ele é a manifestação de uma doença no pulmão da democracia liberal. Um sintoma que teve mais de 70 milhões de votos, muitíssimos dos quais ou não acreditam ou não se importam que um aparato eleitoral vigente há mais de dois séculos seja esculachado.

Esperava-se — nas bolhas elitistas — que das urnas emergisse dura resposta a Trump. A realidade que se impõe é outra, porém. Ele perde, mas fica. Vasta porção da comunidade está de saco cheio do sistema e sustenta as condições permanentes para que discurso e prática trump-bolsonaristas, de desconstrução institucional, prosperem. Boa parte da sociedade americana — idem a brasileira — não acredita que o establishment, aí incluído o aparelho eleitoral, represente-a, que cuide de seus interesses. Há uma erosão agressiva do valor da representação. É daí que se eleva o populismo autoritário.

É erro grave enfrentar o que Trump e Bolsonaro são criminalizando aqueles que representam. Eles representam gente. Milhões de pessoas. É erro estúpido, obra de arrogância, aposta na derrota, desqualificar a legitimidade daqueles que votam em Trump — e Bolsonaro — como se fossem monstros fascistas ou imbecis alienados. Trump, como Bolsonaro, é fruto do esgarçamento do tecido social; esgarçamento que decorre de as pessoas sentirem, na pele, que o fosso se alarga e aprofunda entre elas e aqueles que as deveriam defender. Descrença. As pessoas estão convencidas de que o establishment se voltou para si, que existe apenas para cuidar dos próprios interesses, o que vai agravado — no caso brasileiro — pelo processo de condenação da atividade política.

O fosso aumenta. A antiga classe média, outrora liga, perde — perdeu — a musculatura. Amplia-se o volume de excluídos. Amplia-se a sensação de desamparo dos que se sentem traídos, abandonados, pelas elites político-econômicas. A ideia de voto se deteriora. Amplia-se a base de ressentimentos e de ressentidos. É o circuito que alimenta a desconfiança.

O trump-bolsonarismo é um orgânico complexo enriquecedor e explorador de ressentimentos. Chamar de gado quem dá vazão a suas insatisfações-desilusões votando em Bolsonaro é empurrar ainda mais esses indivíduos aos braços do populismo; equivale a tratar como bovina uma rara escolha — talvez a forra — de quem muitas vezes nunca tem escolha. Trump e Bolsonaro ascendem dessa captação de sentimentos, desse arrebanhar de impotentes. Eles atacam as instituições republicanas autorizados por uma engrenagem de descrenças que processa República como coisa de poucos.

Vá falar a um desempregado, cuja esperança é não ter o filho cooptado pelo tráfico, sobre a importância da democracia… Trump ora se insurge — será Bolsonaro amanhã — contra o mesmo sistema que o cidadão do país profundo sente que o exclui. Eles têm mandato para isso. É preciso entender o recado dessas pessoas.


Carlos Andreazza: Água dura em pedra mole

Jair Bolsonaro é um autocrata em busca de brechas

Não dará em coisa alguma (agora). Mas importa examinar o padrão; sobretudo se o leitor estiver entre os que acreditam que água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Não sendo irrelevante considerar que a pedra talvez não seja tão dura; e que a água tenda a endurecer depois, por exemplo, de uma reeleição.

O padrão: todo governo de natureza autoritária, tanto mais se com dificuldades (por razão de incompetência) em tocar agenda, solta balões de ensaio para testar campo a uma nova Constituição. Tem sido assim no Brasil. Um país de cultura constitucional inexistente, vazio propício a que governantes populistas, com compreensão utilitária da República, especulem frequentemente sobre um processo constituinte que resultasse em conjunto de leis a lhes facilitar a vida.

O faro oportunista-personalista de que a ocasião possa fazer Constituição deriva da deturpação antiliberal segundo a qual Constituição seria estorvo. O espírito do tempo é autoritário, empecilho também sendo a democracia representativa. A mentalidade, patrimonialista, donde a busca por legislação desamarrada da impessoalidade republicana.

Jair Bolsonaro é um autocrata em busca de brechas. O populismo de oportunidades aí só está, em fase influente, porque houve Fabrício Queiroz e Alexandre de Moraes (com seu inquérito inconstitucional) para desacelerar o motor golpista. (Que voltará a girar.) Só por isso Ricardo Barros, o proponente de turno da Constituinte, é líder do governo na Câmara. Ele é a busca por brechas ora possível ao presidente — e, diante da baixa adesão à sua ideia de nova Constituição, sempre poderá recorrer ao “falava por mim quando a apresentei”.

Não faltam governistas, da cepa dos sectários, que tenham manifestado apetite por uma Constituição para chamar de sua. Alguns mesmo se oferecendo, desde o alto de seu patriotismo, para escrevê-la. Convém avaliar o que significará um governo que reúna tantos desses, obra certamente não do acaso. Barros não está entre eles. Não é um golpista, parece-me. Sua campanha, no entanto, serve ao golpismo. Os práticos não raro servem ao golpismo.

O deputado tem um trabalho a cumprir e motivos para estar frustrado. As coisas não andam. A culpa, porém, não é da Constituição. Não é a Carta o problema, embora problemas, muitos, tenha; problema maior sendo o desrespeito ao que em suas páginas vai escrito — exemplo degenerado e degenerador oferecido, antes de tudo, pelo próprio Supremo, agora sob a gestão criativa de Luiz Fux, e que se expressa, para ficarmos apenas no presente, na forma sem vergonha como o presidente do Senado urde um golpe constitucional que lhe permitiria concorrer à reeleição.

Escrevi que a Constituição tem problemas. Inúmeros. Não faltam, entretanto, mecanismos para que seja reformada. O valor que se dá ao texto constitucional assentado pelo tempo, assentando também um imaginário constitucional entre nós, não decorre de sua intocabilidade, mas da atividade do legislador que o aprimora. Não quero dizer a Barros que vá trabalhar; mas, afinal, é isso. Sua gastura é produto de falso problema. Um problema real: o governo para o qual articula é ruim de serviço. Ele sonha com uma Constituição em que o senso de dever tenha peso; e é evidente que esse desejo se opõe ao que imagina ser excesso de direitos da Carta atual. É um clichê frequente e preguiçoso. A recente reforma da Previdência mexeu em direitos. Nada impede que se toque em direitos constitucionalmente previstos. Para tanto, será necessário fazer política, debater, negociar — convencer. Ponto a ponto.

Não são poucos, contudo, os que, no ímpeto por (escrever) Constituição que os vista como reis para o poder, dão também vazão ao desprezo pelo exercício político. Não é o caso de Barros, homem da costura. Mas é preciso ser politicamente obtuso, insensível mesmo socialmente, para supor que um tal processo constituinte, disparado em meio a uma pandemia ou sob o duradouro eco dela, pudesse vir e prosperar com o norte da supressão de direitos à baciada. O que vai formalmente deflagrado no Chile, e que serviu de gás para o balão de ensaio do deputado, avança no sentido oposto.

A população chilena quer se livrar do entulho pinochetista para ter uma Constituição que lhe assegure mais direitos — uma Constituição, pois, parecida com a brasileira. Pode não dar certo; é até provável que não dê, considerados os calores do ressentimento que animam o pleito. Mas a reivindicação é legítima. Por uma Constituição, de partida, erguida para e pela democracia; como a nossa, produto da redemocratização — incontornavelmente com respostas (algumas talvez já anacrônicas) aos traumas dos anos de ditadura.

Melhor deixá-la imperfeita, com as marcas de suas circunstâncias — como está. Constituição não dá em árvore. Tampouco é obra do Espírito Santo. São as pessoas que a fazem. Gente de Ricardo Barros para baixo. Se a Carta que temos tem defeitos, e tem, imagine uma de ocasião feita por essa galera. Hein? Melhor deixar quieto.


Carlos Andreazza: Vacina - O Queiroz do futuro

É um debate falso, fora de lugar e tempo

Não existe vacina. Nunca foi tão necessário afirmar obviedades. Não há, infelizmente. Mas já se discute — até com o entusiasmo do presidente de nossa corte constitucional — sobre se a vacinação será obrigatória. Um debate falso, fora de lugar e tempo, que só mesmo a mentalidade autoritária poderia forjar.

Advirta-se — nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que “ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas ruas, mas no zap-profundo. Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.

Diga-se que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?

A combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se vacinar.

O conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida. Seria só chamá-la.

Mas não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão; como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.

Já posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos, depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá: “Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como enfrentar a pandemia.

Voltemos ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista! —vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto, veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é sempre detalhe.

Quem falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema, o algoz imaginário. Prospera assim.

A falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele —a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.

Não existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.

Não comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime. Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.

Não me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.

Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.


Carlos Andreazza: Colegialidade de ocasião

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares

A lei é boa. E era necessária. Refiro-me ao artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal: aquele — expressão do estado de direito — que estabelece a necessidade de a prisão preventiva ser revista a cada noventa dias. Lembremo-nos: prisão preventiva é medida cautelar de natureza provisória. Há requisitos para que alguém seja mantido em cárcere por essa razão. Por exemplo: representar risco à ordem pública. São dezenas de milhares os brasileiros — sobretudo pretos e pobres — esquecidos, presos provisoriamente, em cadeias do Brasil profundo; a grande maioria sem oferecer os riscos que justificam a preventiva.

Exigir que essa condição seja reexaminada a cada três meses é movimento da civilização. Aqui, uma obviedade: tivesse a lei sido aplicada corretamente, André do Rap estaria preso. Ele, ameaça à sociedade, encarna as razões para a privação cautelar de liberdade. Aqui, portanto, outra obviedade — para desmontar a falácia dos oportunistas que querem fazer do episódio escada para reabilitar a prisão após condenação em segundo grau: o criminoso não está foragido porque a jurisprudência corrente no Supremo impõe trânsito em julgado para o cumprimento de pena.

Debatamos a questão. Mas sem embustes.

Diga-se que o erro original de Marco Aurélio Mello não derivou de sua leitura do artigo 316 do CPP. Tivesse o ministro respeitado, antes, a súmula 691 do STF, sua análise do habeas corpus — que resultou na liberação do traficante — nem sequer existiria. Marco Aurélio não foi ingênuo, tampouco literalista. Foi negligente com o regramento da corte constitucional. Simples. O STJ já havia indeferido a liminar. Não cabia acolhimento pelo STF. Ponto final. O ministro, no entanto, atropelou a súmula; para então se lançar ao fetiche, com o qual sempre se defende, de que processo não tem capa — como se isso, o enfrentamento impessoal de um caso, eximisse-o de estudar o conteúdo e pedir informações a respeito.

Não é todo dia que o tribunal se depara com a demanda por liberdade de um traficante que comercia toneladas de cocaína. O Supremo não precisaria deliberar sobre a não automaticidade da lei se Marco Aurélio tivesse trabalhado. Sua consulta — ao juízo de primeiro grau — sobre o processo teria bastado para que o juiz responsável pela prisão se visse provocado a renová-la. Chama-se bom senso. Algo que poderia ajudar a corte constitucional a não legislar tanto. Porque, afinal, a disciplina — talvez o menor dos males — que o STF assentou sobre como se comportar (blindar, na verdade) diante do artigo em xeque não deixou de ser mais uma invasão no terreno da atividade legislativa. Menos mal também porque, ainda que legislando, o Supremo acabou por avalizar a constitucionalidade da (boa) lei.

Não pode passar despercebida a proposição esperta que, a propósito da leitura do artigo 316 do CPP, tentou encaixar Alexandre de Moraes; segundo quem, havendo, contra o indivíduo preso preventivamente, condenação em segundo grau, não seria necessária a revisão da cautelar a cada noventa dias. Isto mesmo: o ministro, sem corar, tentava erguer um puxadinho para fazer valer de novo a prisão após condenação em segunda instância. Não prosperou. Ainda.

Prosperou, porém, a derrota, dura, de Marco Aurélio — exposto, sem dó, pelos pares. Um decano jogado ao mar. Não se pode dizer, entretanto, que Luiz Fux tenha vencido. O placar engana sobre o que foi o jogo. O tribunal fez a escolha pelo improviso menos danoso à sua imagem. Só por isso endossou, cheio de ressalvas, a intervenção — ilegal e autoritária — de seu presidente. Fux a chamou de excepcionalíssima. Mentiu.

O recurso autofágico — ministro suspendendo liminar de ministro — tem sido usado com frequência. Dias Toffoli usou. Idem o próprio Fux, agora tão dedicado a valorizar a colegialidade. Ou não terá sido ele o — censor, e censor prévio — que sustou decisão, perfeitamente legal, de Ricardo Lewandowski, que autorizara uma entrevista de Lula desde a prisão? Este Fux que ora vem, cheio de mídia, para combater a febre monocrática, outrora censor monocrático, sendo o mesmo que por quatro anos se sentou sobre liminar — monocracia corporativista de próprio punho — que garantiu auxílio-moradia para juízes e procuradores. Conta bilionária.

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares, como se os ministros fossem birutas, embasadas pelo vento influente, oportunista, de ocasião, não raro com a intenção de jogar para a galera, não raro fora da lei.

A suspensão discricionária de Fux da liminar bizarra de Marco Aurélio — Supremo comendo Supremo — se baseou em lei, a 8.437, que absolutamente não lhe autoriza o ato; como sem qualquer lastro legal foi a decisão de Barroso pelo afastamento do senador Chico Rodrigues. Assim vamos. Ademais sob o risco de, como forma de controlar a convulsão das canetadas monocráticas, impor-se uma tirania da colegialidade que, na prática, resulte em restrição ao habeas corpus.

Cuidado. De nada adiantará um choque de plenário se houver escassez de juízes.


Carlos Andreazza: O padrinho faz o currículo

Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar

Sabe-se — informaram-nos os senadores Ciro Nogueira, Flávio Bolsonaro e Renan Calheiros — que o presidente da República não indicou Kassio Nunes Marques ao Supremo pela qualidade de seu curriculum vitae. Informou-nos também a respeito o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, dependente do aval do STF para avançar no golpe — contra a Constituição — que lhe permitiria concorrer à reeleição, também ele um dos graúdos que, com foro e interesses naquele tribunal, apadrinham Marques; a quem, no entanto, deve-se fazer justiça. Não terá sido o primeiro escolhido assim; por virtudes outras que não derivadas do tal notório conhecimento jurídico. Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar.

Sejamos, porém, igualmente justos com Toffoli, indicado pelo currículo, o real, que tinha — ou: indicado pelo que era, apesar do currículo. Tempos românticos — dirá o cínico. Aqueles, tempos raiz, em que um agente político ganhava a toga por ser agente político, com missão dada (e logo a ser traída), sem precisar se inflar de pós-graduações cumpridas em cinco dias.

Ou, talvez, tempos em que a transparência não era uma cultura estabelecida — imposta mesmo — pelo avanço da tecnologia. Parece mais difícil enganar hoje; donde o cético se vê obrigado a questionar se não terá sido sempre desta maneira, séculos de currículos fraudados e protegidos por raros e modestos mecanismos de acesso à informação. Neste caso, estando correto o desconfiado (ele costuma estar certo no Brasil), faria água a ideia de que a liquefação da verdade — o processo, em pleno curso, de desmaterialização dos fatos — chegara até ao pobre currículo; essa velha afirmação, ato de crença na palavra, da história individual… Mas já divago.

Vamos ao fato. Um raro fato ainda não tornado versão: o currículo do ora desembargador federal Kassio Nunes Marques nem pôde ser examinado. Refiro-me a um currículo — rico ou pobre — que não seja obra de ficção. Não ao currículo farsante de uma autoridade contra cuja dissertação de mestrado — a cada enxadada, uma minhoca — há a acusação, bastante carnuda, de plágio. E é esse senhor — mesmo diante de tudo quanto se levanta — que Jair Bolsonaro empurra para quase 30 anos de STF. Esse senhor: indivíduo que tira de uma imaginação pobre para dar a um currículo paupérrimo. (Não sou eu, por favor, quem classifica o CV do doutor como miserável; mas ele próprio — o inchamento artificial da peça sendo a admissão da pindaíba.)

O episódio — a maneira indecorosa como processo se dá, minimizando, ignorando mesmo, a exposição da fraude curricular — é eloquente de como ter padrinho basta no Brasil patrimonialista; em cujo corpo, registre-se, Bolsonaro constituiu bem-sucedida empresa familiar. Consagração que faltou — quem se lembra? — a Carlos Alberto Decotelli, nomeado ministro da Educação, mas ceifado em decorrência de haver recorrido ao mesmo expediente do currículo criativo. Qual a diferença?

Leia-se o início da nota divulgada pela assessoria de Marques — obra-prima da distorção de valores: “Além da formação em Direito, não há requisitos mínimos acadêmicos para a posição de desembargador federal ou para a indicação ou nomeação de ministro do STF. A apresentação de um currículo, portanto, é um ato de boa fé, possibilitando à sociedade conhecer as áreas de interesse e especialização do servidor público”.

Ninguém ora questiona o cumprimento de requisitos formais nem qualquer indigência curricular, mas tão somente a difusão de um currículo falso. Se apresentar o documento — verdadeiro — seria, segundo Marques, ato de boa-fé, como definir o expediente de divulgar um fraudado?

Estamos, pois, num lugar anterior; numa fase decisivamente anterior àquela em que Toffoli, então advogado-geral da União apontado para o Supremo, teve sua miúda formação escrutinada pela sociedade. Quem dera — devaneará o sonhador conformado — estivéssemos discutindo, na página das exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional, sobre o saber jurídico de Marques…

Não estamos. Mas estamos, sim, na página das (poucas) exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional. Daí por que pergunto, sendo generoso no verbo: alguém — ademais um desembargador federal — que manipula o currículo tem reputação ilibada? Hein?

Essa, sonhará o delirante, deveria ser a questão fundadora — a pedra fundamental — da sabatina de Marques no Senado. Para tanto, porém, num ato de ineditismo, os senadores teriam de transformar o que conduzem, historicamente, como reunião de confrades em pleno exercício do equilíbrio impessoal entre Poderes — com o que também, implicará o cínico, fundariam um pouquinho de República entre nós.

Não fundarão.

Por fim, não sem uma nota de humor, registro a passagem curiosa em que consiste observarmos a última esperança do reacionarismo bolsonarista — por ver cair a indicação de um tipo “pouco conservador” — depender do trabalho do jornalismo profissional.


Carlos Andreazza: Já era

O governo é covarde porque, querendo flexibilizar o teto de gastos, deveria liderar o debate

O teto de gastos já era. Ao menos como o conhecemos, já era. Questão de tempo até que sua revisão se imponha. Aquele teto assentado no governo Temer, em tempos (agora sabemos) de paz: já era. O mar virou. Está dado. A flexibilização virá. Já era. E também Paulo Guedes, o flexível: já era. (Isso, claro, se tiver sido algo — que não fachada liberal-reformista para o estelionato eleitoral bolsonarista — alguma vez neste governo.) Se fica ou não, é irrelevante. Hoje: irrelevante. Para algum efeito produtivo: irrelevante. Trata-se de um ministro da Economia —de um gigantesco Ministério da Economia — publicamente esvaziado de qualquer poder político. Já era.

Para Jair Bolsonaro, contudo, é bom — ainda bom — que fique. Menos por enganar algum crente retardatário na viabilidade de um projeto de poder reacionário, que se expande abrindo as velas pragmáticas do populismo, abarcar um programa de reformas estruturais do Estado. E mais por ser Guedes — minion que é — um batalhador apaixonado, operário mesmo, testando ao máximo a elasticidade de sua cervical liberal, pela reeleição do presidente; o seu problema, este também dado, consistindo em incompetência, em incapacidade para entregar.

Daí por que perdeu o Renda Brasil — programa a cuja formulação se agarrara como maneira de sustentar algum protagonismo competitivo. Perdeu. Bolsonaro lhe tirou esse último trampolim, também talvez o chão derradeiro. Ninguém precisa ser um trabalhador — o presidente nunca foi — para identificar alguém ruim de serviço.

Ninguém precisa ser um trabalhador para reconhecer alguém esforçado, que veste a camisa. Alguém — ainda — útil. Guedes, este útil abnegado, então convertido em mero tocador de boi de piranha; o animal lançado ao sacrifício sendo algum entre seus secretários, estimulados a propor ideias colocando a cabeça não na janela do debate público, mas na linha da guilhotina, ou um parlamentar que, seduzido pelos holofotes, aceite ser balão de ensaio para propostas esdrúxulas de como financiar o ex-Renda Brasil.

Guedes, tocador de boi de piranha — se com sorte. Se não for ele mesmo o próprio bicho. Questão de tempo.

Fato é que o teto de gastos já era. Fato é que o Renda Cidadã virá. E que é o governo o principal agente — embora oculto —para que assim seja. Para que um amontoado de impasses se arraste até o final do ano, o país pressionado pelo fim do auxílio emergencial, até que do Congresso venha o consenso de que só se poderá custear o segundo reformando o primeiro. Sobre o Parlamento recaindo, mais uma vez, todo o ônus político do que, para o ente mercado, será movimento de irresponsabilidade fiscal.

O desgaste de conceber e viabilizar políticas públicas pesando no lombo do Congresso. A colheita dos dividendos eleitorais a ser novamente de Bolsonaro. Padrão.

O Planalto investe na projeção de um fato consumado. Estabelece a demanda. Os milhões assistidos pelo auxílio emergencial. Define a agenda. O Renda Cidadã virá para não desassistir os pobres depauperados pela peste. Então, controla os tempos da crise, já crispados por um calendário espremido por eleições. Manipula a seu favor a convenção social — por mais gastos — decorrente das exigências econômicas de uma pandemia. Induz às sinucas. Faz circular várias formas — absurdas — de bancar a demanda. Interdita as factíveis, por impopulares — ou por mexerem com interesses corporativistas. Desincumbe-se da carga — do prejuízo —das escolhas inerentes a administrar. E empurra a responsabilidade — a solução — ao Legislativo. Padrão.

Um governo covarde. Que avançou para uma etapa em que já nem mais bota a cara. Que quer e terá um Bolsa Família para chamar de seu; mas lavando as mãos sobre como incrementá-lo. Que dá palanque a um senador como Marcio Bittar, relator do Orçamento, planta nele a ideia estúpida de financiar o programa por meio de calote a dívidas da União já transitadas em julgado, endossa — ladeando-o — o anúncio do que seria a solução, colhe a reação desejada, que interdita mais uma possibilidade, e então descarta a suposta alternativa que não apenas apoiara, como fornecera.

O governo é covarde porque, querendo flexibilizar o teto de gastos, poderia — deveria — abrir e liderar o debate sobre sua revisão. Talvez seja mesmo necessário. A discussão seria fundamental. O governo é covarde porque, querendo rever o teto de gastos, prefere — em campanha eleitoral permanente — rolar prerrogativas, jogar com a (vaidosa) independência de outro Poder e lhe parasitar as iniciativas.

É questão de tempo, pois, até que o Parlamento comande a costura por um novo teto de gastos. Questão de tempo. Improvável, no entanto, que seja sob a presidência de Rodrigo Maia. Caso irônico em que o ex-rigoroso Guedes —ora a dizer que a manutenção do teto representa sua última fronteira —deveria agradecer ao presidente da Câmara por ter ainda desculpa para dissimular seu bolsonarismo essencial.


Carlos Andreazza: O Supremo na mesa do bar

STF precisa largar o WhatsApp e os microfones

Celso de Mello se aposenta. Um novo ministro virá. Nada deveria haver de mais importante — no calendário de uma República — do que a escolha de um membro da Suprema Corte. Jair Bolsonaro, o apontador da vez, já teria definido o critério — a linhagem, o perfil para o substituto do decano: um sujeito com quem tome cerveja. Alguém, portanto, que sente à mesma mesa; ao que se poderia somar — agravando o vazamento de nossas reservas institucionais — a condição de “terrivelmente evangélico”.

A imagem — do magistrado com quem governante bebe — é tão franca quanto primorosa; porque revela, define mesmo, o compadrio como régua.

Não se trata apenas de exigência vulgar, que impõe, a um cargo impessoal, relação de afinidade/fidelidade; mas uma expressão de patrimonialismo. Sem surpresa. Afinal, é como o ora presidente compreende a República: múltiplas oportunidades para a distribuição de sinecuras aos seus — para proveito seu. Tem sido assim, como um empreendimento familiar dentro do Estado, nos últimos 30 anos; conforme indica qualquer passar de olhos na superfície em que consiste a prática de peculato no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj.

Não seria diferente — possibilidade de alargar a propriedade — quando em questão estivesse uma cadeira no Supremo, a casa das garantias; em que, no entanto, muitos investem como empresa de blindagem. Se pudesse, diga-se, o autocrata Bolsonaro seria o próprio tribunal. Não pode. Então, escolherá alguém que se venda como sua extensão. Candidatos não faltam. O desfile está em curso. Não é bonito de ver. A rapaziada se exibe — os que têm caneta, ao custo do estado de direito, carregando na tinta.

Foi Bolsonaro quem estabeleceu as regras — e o ritmo — para o cortejo; jogo de sedução em que, para sacrifício da autocontenção numa corte constitucional, pelejam desde discretos qualificados, como (o outsider) William Douglas e Ives Gandra Martins Filho, e pouco habilitados, como (o afilhado) Jorge Oliveira, até famintos ostentadores, das estirpes de André Mendonça, Augusto Aras, Marcelo Bretas e João Otávio de Noronha.

Bolsonaro não será o primeiro a pretender aparelhar o Supremo. A história, inclusive a recente, está aí para contar. Não foram poucos os tentados a escolher alguém “do seu lado”. O STF está cheio de ministros que bebiam cerveja com os presidentes que os indicaram. Esse é, precisamente, um dos maiores problemas do tribunal: o grande volume de juízes que topavam — e topam — happy hours com políticos.

Deu no que deu. Em vício; na epidemia monocrática; na febre que converteu magistrados em antenas captadoras da voz justiceira das ruas, o tal “sentimento constitucional do povo”; no que talvez seja a pior formação da história do Supremo, tomado por agentes políticos que, para ganhar a toga, comprometeram-se a matar no peito a favor de interesses do grupo circunstancialmente no poder.

Na primeira oportunidade, também a história ensina, claro, traíram. Traem. São vários os exemplos. Basta que investidos da posição inamovível — pronto: o próprio paraíso para que pregoeiros de si mesmos rapidamente se lancem ao movimento de escrever (talvez limpar) biografia, uma súbita independência, uma rápida altivez, que os afaste daqueles a quem se ofereceram e cujos interesses, em troca da eternidade, juraram defender.

Indicados não por confiança em seus notáveis saberes jurídicos, em serem fiéis à Constituição, mas por terem pactuado com a agenda de turno, nunca tarda até que mudem com a mudança na direção da agenda. Indicados por confiança de ocasião, essencialmente pervertida, tornaram o STF um centro de desconfiança; a própria matriz de insegurança jurídica no Brasil, plataforma para birutas que se orientam pelos ventos mais influentes do momento. E assim são — digamos, suscetíveis ao canto da força da vez — porque assim entraram. É vício.

Tenho baixíssima expectativa sobre Bolsonaro, produto da depressão política brasileira e investidor de sucesso em nosso déficit de institucionalidade, fazer a coisa certa. O homem tem seu espelho, sua referência e sua desculpa. Tem seus vícios. Se os petistas o fizeram, se tentaram encampar o Supremo, por que não ele? O ímpeto por proteção se impõe — e o poder concentrado faz o poderoso da hora crer que será diferente consigo.

Como poderá, por exemplo, um Jorge Oliveira, sujeito tão fiel, ser-lhe infiel apenas porque diante de poder assegurado — imenso e estável — por 30 anos? Jamais… O que saberei eu sobre relações fundadas em duas décadas de convivência naqueles gabinetes?

Sei que o STF precisa sair da mesa do bar. Precisa ser menos confidente. Precisa propor menos acordos. Precisa parar com o single malt no balcão de poderes políticos. Precisa largar o WhatsApp e os microfones. Sei também que Bolsonaro poderia contribuir para um Supremo abstêmio. Tudo indica, porém, que a bebedeira continuará — talvez mesmo aumentando. Quem dera o nosso problema fosse uma Amy Barrett.


Carlos Andreazza: O duplo Bolsonaro (e o escada)

Presidente induz a crise e se desincumbe dos prejuízos

Não haverá mais Renda Brasil. Não para Paulo Guedes. Nisto consistiu a mensagem daquele vídeo bravinho: o presidente asfixiando a existência política do Ministério da Economia. Esse foi o recado. O cartão vermelho; que, em política, não significa, não necessariamente, ser expulso de campo, mas, com frequência, não ter acesso à bola. O ministro, que queria ser o pai do novo Bolsa Família, alijado do instrumento competitivo por meio do qual — na corrida com Rogério Marinho e seus tarcísios — concorria para ser protagonista do financiamento à campanha de reeleição do chefe.

O presidente sabia o que Guedes desejava. E lhe tomou os meios. O ministro aceitou. Ele aceita. Aceita ser a carcaça reformista para mercado ver, o boi de piranha liberal — para que avance o populismo reacionário de Bolsonaro. Nesta altura, já sem qualquer margem para dúvida, quem fica, quem topa encenar o liberal-guedismo, anui.

O novo programa virá. Bolsonaro — que só pensa em reeleição —precisa tornar permanentes, também para si, os efeitos do auxílio emergencial. É questão de identidade. O auxílio lhe é associado — e traz dividendos. A incorporação do Bolsa Família ao que se chamou de Renda Brasil, como estabelecimento de nova etapa de ajuda aos sem- renda, sustenta essa identidade. Não é algo de que se abra mão.

O programa, pois, virá. Talvez com outro nome. Decerto com outro centro viabilizador. O Parlamento, provavelmente. Mas com o beneficiário de sempre: Jair Bolsonaro. Um mestre em gerar demanda e transferir ônus.

Aquele vídeo não trouxe, portanto, apenas a rarefação do ar para Guedes. Impôs, também, transferência de responsabilidade; de pressão. Consistiu em exibição de gala da duplicidade de Bolsonaro, que consegue se apresentar como observador externo, não raro crítico duro, do próprio governo. No caso: como se nada tivesse a ver com seu Ministério da Economia — um ente a que apenas reagiria.

Funciona. Há um jogo. Parece teatro — de modo que a desconfiança não será excessiva. Fato é que o minion Guedes aceita. O Ministério da Economia como vilão. O presidente, aquele que não tirará dos pobres para dar aos paupérrimos, o homem bom.

Nota-se um padrão. A equipe econômica solta balões de ensaio — tão impopulares quanto de difícil aprovação. Testa mercados. Mede os sócios. Afere insatisfações. Alguém eventualmente morre no caminho, estimulado a propor o debate — e sacrificado sem saber. Não foi assim, ainda em 2019, com a nova CPMF? Marcos Cintra tombou. Mas a carga por um novo imposto voltaria, amaciada, em 2020.

O roteiro é o mesmo. O auxílio emergencial acabará. Milhões entre os seus beneficiários não estão cobertos pelo Bolsa Família. Ficarão ao relento? Bolsonaro — o que lavou as mãos — aposta que não. Projeta-se uma conta a pagar. E há o teto. Falta dinheiro. Mas o programa é necessário. Ele não quer ser responsável pelo preço de remanejar recursos — tirando de alguém — nem por uma ostentação de irresponsabilidade fiscal (que não para beneficiar militares e forças de segurança). E aposta em que a independência do Congresso — a tão exercida autonomia política do Parlamento — agirá para que os mais frágeis, expostos pelo impacto econômico do vírus, não fiquem desamparados.

Bolsonaro define a agenda, planta a demanda, induz a crise e se desincumbe dos prejuízos derivados da implementação do programa. Que virá. Tem sido assim. Aqui, tirou a bola de Guedes e deu ao Congresso. Colherá os louros. Afinal, este é um Parlamento capaz de esquentar camuflagem de sonegação fiscal (por igrejas). Como não supor que dará um jeito de encaixar o novo Bolsa Família?

O presidente conhece a natureza do Legislativo. Conhece-lhe os vícios; que também são seus. E os explora. Sabe que a maioria dos parlamentares, como ele próprio, vai submetida a grupos de pressão — o empresarial-evangélico entre os mais poderosos. É a condição para que Bolsonaro use, ao estado da arte, sua duplicidade, sua dubiedade discursiva, disparando sinais em sentidos contrários.

O presidente Bolsonaro é o deputado Bolsonaro, conforme visto no episódio do veto à distribuição dissimulada de lucros por igrejas. O presidente que vetou é o deputado que — avisa — derrubará o veto. Vetou; para, em seguida, estimular que o Congresso lhe derrube um ato. É operação sofisticada. Que articula uma mentira influente e requentada — a de que, se não vetasse, montaria a forca para o próprio impeachment — com um hábil controle do tempo de comunicação; donde consegue costurar, como se conciliáveis, três sentenças de convivência impossível: vetar perdão de dívida, atender a Guedes, encorajar a derrubada do veto.

É evidente que algo — o atendimento ao ministro — sobra. Não, porém, para efeito de informação em rede; o zap profundo alimentado de todas as versões, ao gosto do freguês, pela gestão do timing. E Guedes aceita; mais uma vez se prestando a escada, empenhando a coluna em custear o projeto de poder de Bolsonaro — que é também, claro está, o seu.


Carlos Andreazza: De mal (Toffoli) a pior (Fux)?

STF virou espécie de tribunal de pequenas causas políticas e fulanizadas

Poderá não ser ruim a presidência de um ministro ruim? Toffoli nunca foi um bom; jamais um guardião da Constituição. Nem jurista respeitável. Tampouco um garantista, categoria na qual vai incluído. Talvez seja a própria definição individual da biruta em que se transformou o Supremo, corte constitucional que tem orientado sua posição ao ritmo e ao norte dos ventos de ocasião — a própria definição dos dois anos de Toffoli à frente do STF.

Período que poderia ser ilustrado pelo modo como — defendendo, com ardor, o sigilo de dados fiscais — o então presidente do Supremo mandou suspender casos criminais baseados em informações de órgãos de controle e, pouco depois, de repente, afrouxando a convicção, voltou atrás. Também ele, Toffoli, “editor de um país inteiro”, entre os maiores responsáveis pelo recrudescimento da febre monocrática que converteu aquela corte em matriz da insegurança jurídica no Brasil e, pois, numa espécie de tribunal de pequenas causas políticas e fulanizadas.

Poucos constrangimentos públicos serão mais vergonhosos do que a maneira como as partes se acostumaram a usar os plantões judiciários no STF, sabedores de como se manifestaria cada uma das eminências a respeito dos temas de interesse — e aproveitando a janela para obter a canetada do plantonista da vez.

Esse recurso oportunista foi explorado ao estado da arte na gestão de Toffoli. Gestão que tem como marca maior aquele inquérito viciado, dito das fake news, de cujo bojo sairia, entre outras arbitrariedades, a censura à revista “Crusoé”. Toffoli foi o formulador de um inquérito em que o tribunal é vítima, investigador e julgador. Inquérito que deriva de o ministro ser um agente político com poderes de juiz.

Um juiz que, presidindo o Supremo, tinha agenda, claro, de agente político; e que, manipulando regimentos para além do estado de direito, e tendo Alexandre de Moraes como infantaria, alcançou o objetivo: tocar o terror nos milicianos bolsonaristas e baixar o ânimo do discurso golpista de Bolsonaro. O STF agindo como polícia para enfrentar milícia. A curto prazo: com sucesso.

Sou pessimista, porém, sobre o futuro. Ou não se deve imaginar esse precedente de força autoritária nas mãos de um André Mendonça, ou de um Marcelo Bretas, qualquer dos dois terrivelmente bolsonarista? Não nos esqueçamos: somos governados pelo ressentimento.

E, então, Fux; que quer ser, como presidente do STF, o que nunca foi como membro do tribunal. Um conflito insolúvel, sua prática trombando com o prometido, e que resultaria na dubiedade de seu discurso de posse; que fala em a Constituição sair fortalecida da crise em curso, como se fosse possível fortalecê-la arquitetando puxadinhos de direito criativo como os que têm caracterizado os votos do ministro.

A legitimidade e a autoridade das respostas do Supremo às nossas incertezas estão desacreditadas porque, não raro, oferecidas sem fundamento na Constituição. Estão em xeque porque togados como Fux julgam-se ressignificadores — editores, segundo Toffoli — do que vai escrito na Carta. Um texto, de acordo com o novo presidente do tribunal, ora a ser preservado, ora ressignificado. Um balanço degenerante, que convida ao direito da opinião pública, aquele que joga pra galera; que faz justiceiros, heróis, mitos e picaretas; que desmonta o que deveria ser edifício de autocontenção.

Não dá para ser militante e guardião da Constituição. O STF tem de se afastar de palanque e de guilda. Se o lava-jatista Fux quer ser, como presidente, o que jamais foi como ministro, terá de aposentar a fluência monocrática com que tem se imposto; e, por exemplo, jamais matar no peito novamente algo como a manutenção, por anos, de auxílio-moradia a magistrados. Também ele responsável por intervenção — em 2018 — promotora de censura, aquela que impediu que o ex-presidente Lula, então preso, desse uma entrevista à “Folha”.

A combinação entre memória e lógica duvida de que Fux possa ser um combatente do “ativismo judicial” — porque isso significaria combater a si mesmo. Mas mudarei de opinião se o ministro souber explicar qual é a regência, sob a gramática da Constituição, de uma “corte eminentemente constitucional”, como define o Supremo, ante um tal “sentimento constitucional do povo”— sendo necessário, primeiro, explicar o que seria tal coisa.

De explicação não carece o óbvio: o populismo judicial foi fator decisivo para que nos afundássemos nesta depressão. Aquele direito colhido em manifestações de rua que, em vez de aperfeiçoar, dinamitou o financiamento empresarial de campanhas eleitorais; sem medir as consequências, sem considerar o que viria no lugar. Registro também que, simplificadas, afirmações como a que cito a seguir — do discurso de Fux — estão na boca daqueles marginais que pedem intervenção no STF: “A efetividade da Constituição é tanto maior quando se alia ao sentimento constitucional do povo”.

A efetividade da Constituição é tanto maior quando respeitada a Constituição.


Carlos Andreazza: Reforma pastel de vento

O governo apresentou uma carta de intenções

O governo apresentou a reforma administrativa. Apresentou? Que reforma? Li. Reli. E só achei capa. Ou melhor: só encontrei sumário. Estão lá, enunciados, os capítulos; inclusive os impopulares — que a turma do Ministério da Economia chamou de “politicamente sensíveis”. Há até boas ideias; bons princípios sobre a necessidade de redimensionar um Estado obsoleto, de existência atual não injustamente percebida como para tão somente se autossustentar. Mas é apenas isto o que se anunciou como reforma remetida ao Parlamento: um índice do que virá. Um dia. Porque carne mesmo, matéria — os capítulos do livro: não vieram.

Já sabíamos que a reforma prometida há mais de ano — travada e boicotada pelo próprio presidente corporativista da República —só atingiria os servidores do futuro. Impacto fiscal imediato: zero; e bote década até que algum efeito haja. Ok. Sabia-se. Soubemos na semana passada, porém, que a reforma administrativa prometida há mais de ano, e desde então prontíssima como parte de operosa linha de montagem de projetos — vendida como pujante e revolucionária —, não estava pronta. Ou, se um dia pronta esteve, mais não está.

O governo apresentou uma carta de intenções. O programa de uma reforma administrativa adiada. O Ministério da Economia tem se especializado nisto: em lançar fatia; a primeira sendo sempre mui modesta. Foi assim também com a tributária. Não deixa de ser estratégia politicamente esperta. Mostra-se aquele pedaço miúdo — com a promessa de que o bolo todo virá à mesa. Um dia. E o pessoal engole. Para o funcionamento intestinal do mercado: mata a fome e faz girar.

“Você está sendo muito duro com a proposta” — dirá um leitor. Não estou. (Que proposta, aliás?). “A reforma cria categorias e limita as carreiras que terão mantida a estabilidade” — argumenta-se. Jura? E onde está a lista que discrimina os que serão prejudicados e os protegidos? “Calma. Isso virá numa etapa posterior.” Entendi. “A reforma reduz salários iniciais, define formas para avaliar desempenhos e reestrutura cargos.” Uau! Que capitalista! Regras para mérito e para otimizar funções. E ainda reduz os salários de partida. Onde está isso? Quero ler. “Calma. Apenas numa fatia adiante.” Certo.

Compreendi. Temos a ousada reforma vou enfrentar os problemas e tocar em questões delicadas, mas só depois de amanhã; o sumário indicando que, quando (e se) baixar, a lâmina liberal-guedista cortará apenas dos futuros servidores, como médicos e professores, que não compõem carreiras ditas de Estado; resguardados todos os tipos graúdos, os que ganham mais. Coragem padrão.

Ante toda a propaganda sobre a robustez do que seria um projeto, o que se apresentou foi uma palestra sobre reforma administrativa, destinada a jogar para a galera. Soprou-se o apito. Evidente está que essa é a PEC de um governo que lava as mãos. “Me pressionaram para entregar. Aí está. Fiz a minha parte. Agora é com vocês.” Um movimento narrativo para alimentar a tia do zap.

Uma jogada que, na prática, cria um sistema de travas primoroso. Conforme explicaram os técnicos do ministério: se a primeira fase andar, envia-se a seguinte. Mas como se avançará na aprovação do sumário de um livro sensível, sem que se conheça a íntegra do texto? Quem passa cheque em branco assim? Como se levantam os fundamentos de uma casa sobre terreno pantanoso, se ignorados são os cálculos de engenharia para a construção que virá acima? Difícil fazer progredir o que se desconhece.

Qual é, a propósito, a lógica de não entregar de uma vez os projetos de lei complementar — que regulamentarão o edifício —, senão para ou disfarçar a incompetência (a incapacidade de formular um projeto complexo) ou, tendo dado já o recado para inglês ver e operar, garantir que a coisa avance lentamente, ou mesmo não avance? Diga-se que gente muito boa defende que não seria necessária uma PEC para tratar dessa matéria; sendo também certo que, por sua própria natureza, uma PEC exigirá mais tempo…

Mas o governo fez a sua parte, né? Não. Não fez. Sua parte seria entregar um projeto de reforma que não fosse parte acanhada. Há um ano, quando se falava em estoque de projetos e fila para execução imediata, engatando uma reforma na outra, jamais se mencionou que esse desfile seria em fatias. Trata-se de novidade. Algum vigor se perdeu. Alguma baixa hormonal na libido liberal houve. Fato. A realidade se impõe. Essa não é — nunca foi — a agenda do governo. (Mas o governo fez sua parte.)

A única concretude deste manifesto de adiamentos é aquela porção — aquele queijinho (azedo, no caso) caído lá no fundo do pastel de vento —que dá poder ao presidente para manipular, sem o aval do Congresso, autarquias e fundações federais, aí incluídos Banco Central, Cade, agências reguladoras e universidades. Ou seja: o que não é promessa concentra força na mão do Executivo e consiste numa espécie de reforma administrativa liberal a serviço da autocracia.

Menos Brasília. Mais Planalto. Parabéns.


Carlos Andreazza: O voto no lixo

A população fluminense elegeu um desconhecido

Quem se iludiu com o Wilson Witzel — a própria definição de estelionato eleitoral — iludiu-se não por falta de avisos. Era mais um gritante oportunista que usava a condição de juiz como chancela de autoridade moral superior para se alavancar; no caso, a cargo eletivo. O modelo desta suprema moralidade togada sendo, no Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, aquele que tomou e tornou público, há três dias da eleição a governador, um depoimento sem provas — de um ex-secretário de Obras de Eduardo Paes — que interferiria no processo eleitoral e fulminaria de vez a candidatura do ex-prefeito.

Poucos reclamaram. Valia tudo, né? O justiçamento compensava. Afinal, não existiam santos; de modo que se justificava recorrer a atalhos para ceifar os que julgávamos corruptos. Era preciso mudar. Witzel foi o produto da mudança. Parabéns.

Encaixotada pela grande onda bolsonarista e afogada na correnteza antiliberal que criminalizara a atividade política, a população fluminense elegeu um desconhecido cuja fantasia de outsider combinava reacionarismo e lava-jatismo. Ninguém sabia quem era; e tampouco houve maiores preocupações sobre se teria competência para gerir um estado falido. Combatendo a corrupção — que ainda hoje se crê ser o maior problema do país —, tudo se resolveria.

Witzel vestia o espírito do tempo. Um autoritário — cujas ideias (sobre qualquer coisa que não a solução “mirar na cabecinha”) não eram conhecidas — alçado a governador porque batizado naquelas mesmas águas da antipolítica apregoada como nova política, que lavariam Bolsonaro. Witzel era o ex-juiz que renunciara à estabilidade para tomar o risco de consertar o Rio; não sem antes coadjuvar no comício da morte em que se quebraria placa com o nome de Marielle. Um braço forte, sem os vícios do sistema partidário (apesar de concorrer pelo partido do pastor Everaldo), intolerante com o crime organizado (embora fizesse campanha em área de milícia) e com a corrupção (mesmo próximo do empresário Mário Peixoto).

Tudo isso era público. Mas o desarranjo de nosso equilíbrio institucional — a profundidade da depressão política entre nós — convidava à aventura. A aventura ainda está no começo. Não mais, porém, para Witzel; vítima do jacobinismo que celebrou e sem o qual jamais teria chegado ao Guanabara. Vítima, sim, de uma aberração jurídica; infecção mais fraca, o ora governador afastado, da doença que necrosa a vida pública brasileira, afinal engolido — o ex-futuro presidente — pela moléstia de que tentou se descolar. Quis virar patologia à parte: já era.

Witzel é Witzel. Não há Witzel, contudo, que legitime afastamento preventivo de governante eleito assim como se deu contra Witzel. É inconstitucional. E inconstitucional seria qualquer que fosse o Witzel afastado — porque outros virão. Que não se tenha dúvida: outros virão, arrombada desde há muito a porteira da autocontenção judicial; o lava-jatismo presente como modus operandi mesmo onde a Lava-Jato é odiada. De forma que quem comemora essa canetada do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, contra Witzel, mas reclamou dos atos personalistas de Alexandre de Moraes, bem menos graves, contra prerrogativas do presidente da República, que bote as barbas de molho. Essa lâmina, a gente só sabe a qual pescoço se destina na primeira descida. E não há estado de direito só quando é o nosso na reta.

É gravíssimo que se suspenda o exercício de mandato popular por meio de decisão monocrática, antes de o denunciado ser réu, e sem o aval do Legislativo — de resto quando em curso no Parlamento está um processo de impeachment contra o governador. Em que estado de degradação estará a separação entre Poderes quando um ministro de corte superior determina sozinho que um chefe do Executivo solte a caneta para cujo uso foi eleito?

A canetada monocrática pode revogar o voto?

Que tipo de cautelar é essa que impõe novo governante? E que grau de suspeição sobre o ato se pode levantar a propósito de tamanha interferência na dinâmica político-eleitoral de um estado? Afinal, como efeito, não será mais Witzel a indicar, por exemplo, o próximo procurador-geral de Justiça, essa figura-chave aos interesses de Flávio Bolsonaro na investigação por peculato contra si. E aí?

Essa zorra foi plantada pelo STF, convertido na própria matriz da insegurança jurídica no Brasil: uma corte constitucional cujas jurisprudências de ocasião — ditadas ao ritmo das circunstâncias — autorizaram que o Ministério Público se convertesse em polícia e que juízes país adentro criminalizassem a atividade política e, como justiceiros, avançassem sobre prerrogativas do Legislativo e do Executivo.

Aí está. Políticos — não importa quão vagabundos — escolhidos pelo eleitor, e com imunidades constitucionais previstas para protegê-los da sanha de interesses outros, de súbito trocados pela mão de um só magistrado. Aí está. Não mais sendo só do eleitor o direito de jogar o voto no lixo.


Carlos Andreazza: O minion dribla-teto

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família

Bolsonaro opera na ambiguidade. A história do veto presidencial afinal mantido sobre a possibilidade de aumentar salários de servidores públicos é exemplar da maneira propositalmente dúbia como manipula suas relações. No caso, com o que se chama de controle de gastos.

Lembremos.

Ainda em maio, ele autorizara que sua liderança apoiasse um acordo, no Senado, que abriria generosa janela de exceções à regra imposta até dezembro de 2021; arranjo por meio do qual várias categorias — inclusive as forças de segurança pública, que lhe compõem a base — poderiam ter reajustes na remuneração. Uma disposição segundo a qual — conforme já indicara a reforma da Previdência dos militares — alguns grupos seriam privilegiados; o que expunha um rigor fiscal destinado só aos outros.

O acordo foi fechado; os privilegiados, definidos. Ocorre, porém, que Paulo Guedes chiou. (Mas sem chamar o acerto apoiado pelo presidente de “criminoso”, né?) Para me valer da imagem formulada pelo ministro na famosa reunião de 22 de abril, ou era granada no bolso de todo servidor (“o inimigo”), ou nada feito. Bolsonaro recuou — e disse, traindo o pactuado, que vetaria o parágrafo cuja inclusão endossara. Vetou. Mas não sem demora. Entre o compromisso verbal com o veto e o veto em si, passaram-se 20 dias. Prazo no curso do qual aumentos para policiais pipocaram Brasil adentro; inclusive aquele que o próprio presidente deu à PM do DF.

E então, só então, passada a boiada, vetou. Difícil imaginar que tenha armado essa farra seletiva sem o aval de Guedes. Afinal, na prática, cumpriu a palavra dada ao ministro. Ficaram todos satisfeitos. Como todos satisfeitos ora estão com o efeito saneador da ação de Rodrigo Maia — a quem foram pedir arrego — para reverter, na Câmara, a rebeldia fiscalmente irresponsável (atitude “criminosa”, segundo o seletivo Guedes) do traído Senado.

Bolsonaro é ambíguo. Mas é Bolsonaro; em matéria econômica, mistura de Dilma Rousseff, Paulinho da Força e Ernesto Geisel. Um corporativista, que sentou o Planalto sobre o projeto de reforma administrativa. Um militar formado sob a fé num milagre econômico que faz Brasil Grande, de súbito —dada a circunstância pandêmica — diante da perspectiva de um Bolsa Família para chamar de seu.

Dúbio; mas um peão de bomba fiscal— a quem se deu caneta carregada — com três décadas de potencial atômico demonstrado, à parte o urânio enriquecido pela porteira de oportunidades aberta pela peste. Daí por que só mesmo a perplexidade com agentes do mercado — mui pouco patriotas — surpreendidos pelo risco de a popularidade ascendente do presidente, derivada em boa medida da fluência do auxílio emergencial, consolidar a irresponsabilidade fiscal como tendência.

Não é tendência. (Nunca foi.) Não há impasse; não mais há (se é que houve) disputa dentro do governo. Bolsonaro já fez a escolha. (Há 30 anos.) Vai gastar. É obra. A peleja agora é somente acerca de como bancar a conta. Essa é a missão dada pelo mito; todas as partes, liberal-guedistas e militar-desenvolvimentistas, movendo-se para encontrar a solução pagadora.

A peleja agora também sendo, pois, por quem terá a primazia no acesso à carteira do brasileiro. Que não se tenha dúvida — se ainda não deixei suficientemente claro: Guedes está no páreo; com CPMF, com tudo. Já topou o jogo. Pede alguma discrição, mas aceita aquele desagravo fúnebre à porta do Alvorada quando a rapaziada expuser excessivamente a corrida por custear a campanha do chefe a 2022.

A não ser na fachada, nunca houve competição entre austeridade fiscal e pulsão gastadora. Nunca, fica-teto versus derruba-teto. Não há fura-teto. O debate sobre a derrubada do teto de gastos, hoje, não tem lugar, senão na falácia discursiva por meio da qual Guedes disfarça a fabulosa flexibilidade de sua cervical liberal. “O teto sou eu” — sugere o ministro, definindo, como critério para sua permanência no governo, a improvável implosão da âncora fiscal. Isso enquanto ele próprio cuida de buscar brechas — vide o que tentou embutir no Fundeb — para driblar o teto.

Não é fura-teto. É fica-teto e dribla-teto. Guedes — antes de tudo um minion — sendo a perfeita encarnação do dribla-teto. Esta, a competição que há: entre dribla-tetos; sobre quem melhor oferecerá condições para financiar a reeleição de Bolsonaro.

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família. Tenta costurar essa marca para si —para se fortalecer ante os militar-desenvolvimentistas, que propõem sustentar a vitória do chefe com obras de infraestrutura e de desenvolvimento regional. Se o auxílio emergencial é a garantia de porção expressiva da popularidade de Bolsonaro, calcula o ministro da Economia, o programa que o substituirá, o Renda Brasil, seria a perenização dessa popularidade. É como Guedes quer bailar. Ou tentar; porque o Ministério da Economia tem sido ruim de projeto.

Para o caso de falhar, e sem muito chororô no mercado, Roberto Campos Neto já está no aquecimento. Vida que segue — dirá o presidente.