carlos andreazza

Carlos Andreazza: Inação calculada

Como cantado longamente aqui, o auxílio emergencial voltará; a dúvida sendo sob que grau de oportunismo populista. Agora parece uma obviedade, mas não foram poucos os especialistas cujos calls — em janeiro de 2021 —bancavam a improbabilidade da volta; talvez decorrendo daí, da fé nas palestras de Paulo Guedes, o estado, segundo Bolsonaro, “irritadinho” do mercado.

Muita gente bacana ficou de mau humor na semana passada — o governo de repente afobado, preocupado com os pobres, o presidente falando em fome —, porque acreditou na fantasia de que a economia virara o ano crescendo em V, e a segunda onda da peste seria mero repique. Estaria tudo sob controle — mesmo que ainda não haja orçamento para 2021. (Mas temos o direito a seis armas!) Tudo sob controle, livres de Maia, com as reformas chegando — e, claro, com o Banco Central independente, esta prioridade. Né?

Aí está, porém, o IBGE a nos situar; as vendas no varejo tombando 6,1% em dezembro. A imposição do mundo real. A premência do auxílio emergencial; o agente que induzia o consumo, sem o qual a miséria de um país miserável se expandirá — a miséria de um país miserável cujo governante boicota a vacinação em massa, a única forma de gerar empregos novamente. Voltará. Virou pra ontem.

O governo — até ontem — tinha pressa nenhuma. E agora, de súbito, o ai-jesus; porque também a popularidade de Bolsonaro geme. Guedes, aliás, precisa esclarecer se temos crescimento em V ou se é imperiosa a volta da assistência. Os dois discursos não casam.

Estava dado que o auxílio seria a principal agenda do Parlamento, uma vez escolhidos os novos presidentes de Senado e Câmara. Ato contínuo, procuraram o Planalto para impor a retomada. Virem-se. Há urgência — uma demanda social que não poderia ser condicionada por rigores fiscais. Esse foi o recado inicial; mensagem que vem do Congresso profundo. A da imposição de uma agenda que afrontaria o teto de gastos, ultimato em consequência do que ora vemos a correria do Ministério da Economia. Um barata-voa que muitos chamam de negociações com o Parlamento. Tomara. Eu desconfio.

Fala-se, desde o fim da semana passada, em acordo. Já haveria um entre Guedes e os presidentes das Casas legislativas para que o restabelecimento do auxílio contemplasse, imediatamente, ajustes fiscais compensatórios. Será preciso, contudo, combinar com as lideranças no Congresso. Recomendo prudência. A maré ali é outra, postas as condições para o atropelo. Isso seria o normal.

Tudo indica que o instrumento para a reconstituição a jato será algo como o orçamento de guerra, uma guarida excepcional já testada, que autorizaria, à margem do teto, a liberação de crédito extraordinário. Como em 2020, a âncora fiscal seria preservada de gastos que, no entanto, integrariam a fatura do déficit primário. Pronto. Desde que eleitos os novos comandos legislativos, ficara evidente que a preocupação do Congresso com a balança fiscal ia até somente a foto em que se acordaria um compromisso verbal para que, apenas em meados do ano, fosse votada uma emenda constitucional com medidas duras de verdade. Isso seria o normal. A promessa de austeridade projetada no amanhã.

O governo diz que não; que haveria mesmo um pacto de responsabilidade para já, e que se trabalha conjuntamente pela concepção do modelo. O modelo: embutir o novo orçamento de guerra na PEC do Pacto Emergencial, o que equivaleria a usar a pressão pela assistência para empurrar um projeto contra o qual há resistência no Parlamento. Essa é a estratégia. Prosperará? Se sim, afinal capaz de formar consensos, o Ministério da Economia daria uma demonstração de competência até hoje inédita. Haja empenho de fé.

Sugiro ceticismo. Maiores são — sob a vara do afogo — os riscos de triunfar uma resposta fácil. Sempre se soube que o auxílio emergencial acabaria com 2020; e que, não preenchido, o vácuo resultaria no agravamento da pobreza. O V de Guedes sendo amassado pela realidade, a que nos esfrega a forma bruta do K na lata; a perna que desce, a da saúde econômica dos ferrados.

O governo teve muitos meses para formular alternativas que abrissem espaço fiscal capaz de conciliar auxílio e teto. Houve mesmo tempo para que se estudasse, em nome da previsibilidade, uma modalidade de flexibilização da âncora fiscal ante uma situação excepcional. Mas se preferiu mentir sobre a saúde da economia. Preferiu-se a inação calculada, que alivia Bolsonaro dos prejuízos de fazer escolhas ao mesmo tempo que lhe dá a colheita das glórias.

Não é a primeira vez que o Planalto age assim. Ou seja: não age. Espera o Parlamento exigir. Forma-se o impasse. O governo, bancando o equilibrado, então solta o balão de ensaio: associar o mecanismo que viabilizaria a política pública urgente a uma PEC impopular parada no Congresso. E, dessa forma, empurra ao Legislativo o ônus de qualquer solução que não fiscalmente ponderada. Uma armadilha. Como diria Guedes, a granada no bolso do inimigo. Ganha-ganha para Bolsonaro; porque o auxílio, que nunca deveria ter cessado, voltará — um crédito extraordinário para o mito brincar de salvador.


Carlos Andreazza: Jaca não vira cereja

Arthur Lira venceria mesmo sem o patrocínio de Bolsonaro. Talvez fosse mais difícil, com segundo turno; mas venceria. Venceu porque não teve adversário. Ou melhor: tinha a vitória encaixada quando finalmente o quiseram enfrentar. E, quando Baleia Rossi tentou, foi Mario Andreazza contra Paulo Maluf na convenção do PDS em 1984: crente numa campanha terceirizada e de gabinete, dedicada a pedir votos de parlamentares a governadores, prefeitos e líderes partidários; isso enquanto o adversário mercadejava no mano a mano, pé na estrada, falando aos iguais com a linguagem que cativa os que comerciam poder.

Lira tinha já costurados pelo menos 200 votos quando Rodrigo Maia ainda contava com o golpe de Alcolumbre pela reeleição; o que significou frustrar expectativas de aliados que esperavam a vez. Não há deputado fiel a ponto de aceitar um presidente da Câmara permanente; o que equivaleria a aceitar o próprio engessamento.

Maia — um bom presidente — confundiu seu tamanho com o do cargo. Sua dimensão individual parecia maior não porque tivesse crescido muito — mas porque era muito baixa a estatura média dos pares. Desqualificados, os que compõem o pior Parlamento da história, que, no entanto, têm o mesmo peso de voto.

Maia tomava café frio desde que o Supremo derrubara o movimento golpista contra a Constituição. Errou demais e em pouco tempo. Apostou —dizendo não querer — em que o STF lhe daria o direito casuístico de se reeleger. Então estimulou ao menos cinco candidaturas inviáveis. Esperava que um impasse entre esses aguinaldos resultasse na ascensão de seu nome como solução pacificadora. Quando o golpe fracassou, aquele arranjo fantasioso — o dos vários bivares insuflados a uma sucessão sob seu controle — impôs-lhe a anarquia. Exatamente o terreno em que melhor prospera o bolsonarismo, o do caos. Maia — cuja gestão se baseara na confiança dos pares — havia perdido. E talvez seja o caso de avaliar se não seria derrotado mesmo sendo ele próprio o candidato.

Lira fez a leitura correta. Propôs nova partilha de poder — perspectiva de novas lideranças. E levou. Agora é Lira. E Lira é Lira, é Lira, é Lira. Como Bolsonaro é Bolsonaro. Se ainda não tivermos aprendido: jaca não vira cereja. Com poder, mais jaca será. Será Lira na presidência da Câmara. Jaqueira. Para Bolsonaro, um investimento na blindagem contra impeachment e nas condições para o exercício fiscal do populismo financiador daquilo em que somente pensa: a reeleição.

Atenção. Não é que Bolsonaro de súbito se tenha convertido ao Centrão — ele comeu naquelas bordas por três décadas. É produto daquela engenharia com fim em si mesmo. Nem que o Centrão de repente vá transformado em bolsonarista — a lógica de funcionamento do varejo legislativo sempre encontrou campo de expansão favorável associada ao motor autocrático. Havendo bilhões, um alimenta o outro.

Será, pois, Lira no comando da Câmara: fiando o jorro de dinheiros para enfrentar a pandemia que Bolsonaro — criador de dificuldades para colher oportunidades eleitorais — faz prolongar. Grandes reformas? Antes seria necessário o governo apresentá-las. E depois — em vez de jogar aqueles fatias requentadas de tributária e administrativa no Parlamento — trabalhar por elas. Não creio. Creio na nova CPMF, porque alguém terá de pagar a conta.

A ideia otimista de que o governo doravante não terá mais desculpas para não aprovar as reformas é ingênua. Tem como pressuposto a mentira de que Maia as impedia. A verdade é que Bolsonaro e seus sócios jamais diminuirão a fartura da teta em que se alimentam; no caso do presidente, há 30 anos, para a edificação de bem-sucedida empresa familiar. Privatizar? Isso corresponderia a diminuir o volume de leite condensado com que chupadores como Bolsonaro e Lira incham a pança.

Como escrevo aqui há meses: o auxílio emergencial voltará — e no improviso. Tem sido assim. O governo nada faz, a miséria se aguça, o Congresso reage — pressionado pela inação calculada de Bolsonaro —, e o presidente ganha um cartaz para chamar de seu. O Parlamento se mexe; o Planalto colhe os louros. Isso é perfeitamente alinhado aos interesses do Centrão; um parceiro que não se incomoda — desde que mamando — em ancorar um programa de reeleição fiscalmente irresponsável que, uma vez alcançado, tende a se desdobrar na volta dos avanços golpistas.

Para além de garantir proteção e guarida a seu populismo, Bolsonaro — o maior empenhador de emendas parlamentares da história — patrocinou a ascensão de Lira de modo a interditar, plantando desconfiança, qualquer movimento desde o centro para desafiá-lo em 2022. Por exemplo: a eleição na Câmara indica — com o abraço provinciano de ACM Neto — ser mais fácil o DEM compor com Bolsonaro do que numa chapa de oposição. O presidente engajou o que o Tesouro não tem para desarticular o pouco que havia de centro, petrificar o tabuleiro e ter como adversária — numa nova peleja entre rejeições — a esquerda figurada em Lula ou em seu cavalo da vez.

Uma eleição que reproduza “ele não” para cada lado. É o paraíso para Bolsonaro, convencido de que eleitores que lhe deram o voto em 2018 — mesmo os que ora rejeitam seu governo — repetirão a escolha se ante a possibilidade de o PT voltar ao poder.


Carlos Andreazza: Plano nacional pró-pandemia

Governo trabalha para que a peste permaneça

O fenômeno reacionário que Bolsonaro encarna precisa de imprevisibilidade para prosperar. Nada melhor do que uma pandemia artificialmente prolongada. O governo trabalha para que a peste permaneça. Isto é verificável.

Por exemplo: o caso do consórcio Covax, de abril de 2020. O Brasil tinha a opção de adquirir doses para cobrir até 50% de sua gente. Optaria, contudo, pela cota mínima — 10% de alcance. A justificativa foi que montara estratégia dedicada a acordos bilaterais, com os quais teria melhores condições para preço e transferência de tecnologia. Ok.

O mundo real, entretanto, impôs-se. E chegamos a 2021 com apenas uma parceria bilateral firmada — para a vacina de Oxford. Só em 22 de janeiro as primeiras duas milhões de doses decorrentes desse contrato pousaram no país. Volume modesto fabricado na Índia, pelo qual se pagou duas vezes mais que membros da União Europeia pelo mesmo imunizante. Um acordo bilateral que — até aqui — custou caro e entregou pouco. E que não pôde ainda honrar a parte do pacto relativa à transferência de tecnologia; impossibilidade prática derivada da inexistência de insumos para o trabalho da Fiocruz.

Estamos no fim da fila de vacinação por ação deliberada do governo; por gestão do presidente. Não temos vacinas a contento hoje, nem sequer contratos que projetem no futuro a cobertura vacinal da população, porque Bolsonaro não quis.

Pazuello, cavalo do presidente, não camufla a instrumentalização da incompetência. “Em janeiro, começo de fevereiro, vai ser uma avalanche de laboratórios apresentando propostas”, declarou no último dia 21. Que tal? Este é o cultor do atraso cujo ministério receitou cloroquina até para bebês. Aquele que, já sabedor da escassez de oxigênio em Manaus, visitou a cidade apregoando feitiçaria a título de tratamento preventivo. Um militar, general da ativa, que preferiu propagandear uma modalidade de prevenção que garantiria a propagação da peste. Este é o cultor do atraso que insiste na mentira mercadológica de que o Brasil será assediado por ofertas de vacinas; algo que não ocorreu nem sequer aos EUA.

O governo opera para que o país não apenas não tenha carga de vacinas suficiente para imunizar os brasileiros, como só tenha sua cota de mixaria o mais tarde possível. A sustentação do estado de calamidade informal — a preservação da pandemia como solo competitivo — forja dificuldades que atraem as respostas populistas. A ver o auxílio emergencial. Deixou-se que acabasse, mesmo com o vírus recrudescente e o acirramento da miséria. Sob pressão que ele próprio induz, Bolsonaro fará a derrama de dinheiros, sem planejamento, sem revisão de benefícios ineficazes, sem o mais mínimo estudo para flexibilizar o teto de gastos. Em vez de um debate para reformá-lo à luz da realidade, o improviso voluntarioso que o aterrará.

O improviso voluntarioso — semeador de demoras e gerador de urgências e oportunidades — com vista a 2022. A propósito, o caso da importação da vacina de Oxford desde a Índia merece reconstituição. Em novembro de 2020, em reunião com o chanceler indiano, Ernesto Araújo, mesmo tendo o combate à doença na agenda, e ciente de que falava com um país grande produtor de imunizantes, não tocou no assunto. Preferiu criticar o governador de São Paulo, por considerar eleitoreira a atividade daquele sem cujo empenho ainda não haveria brasileiro vacinado.

Em 13 de janeiro último, porém, o governo anunciou o envio de um avião à Índia para buscar as doses. A meta era fazer Bolsonaro vacinar antes de João Doria. Não daria certo. (Como certo não dará um programa de imunização que dependa de só dois fabricantes; tudo o que ora temos: AstraZeneca/Fiocruz e Sinovac/Butantan, incapazes de oferecer o que se demanda.) Armou-se um avião publicitário pronto a decolar para recolher um imunizante indisponível. O Brasil passaria vergonha ministrada pela Índia, então com outras prioridades. (No mundo real, antes viriam as necessidades do vizinho Butão.) E diga-se que fora o próprio governo a divulgar a fantasia de que teríamos a primazia. As doses só chegaram quase dez dias depois.

O episódio com a Pfizer não deixa dúvida sobre a existência de um plano nacional de sustentação da pandemia. Data de setembro de 2020, a carta do CEO do laboratório a Bolsonaro. A missiva, nunca respondida, pedia ao presidente que fechasse logo um acordo com a farmacêutica, conforme já haviam feito EUA, União Europeia, Reino Unido, Canadá e Japão. A demanda seria grande — e poderíamos ficar para trás. Ficamos. Escolha do Brasil. O governo criou empecilhos e tentou desacreditar a vacina. E todas as suas manifestações posteriores sobre por que assim procedera, inclusive em nota oficial, configuram provas em que se confessa um crime.

Bolsonaro não é somente um mentiroso; o maior influenciador antivacinação do mundo. É o líder de um governo que optou por não enfrentar o coronavírus. É o responsável — agente direto — pelo atraso do Brasil em vacinar a população; e nisto vai colecionando delitos. Crimes comuns; não somente os de responsabilidade. Bolsonaro tem lugar no Código Penal. Ocorre que, de novo, o mundo real se impõe — e nem sempre para prejudicá-lo. Afinal, tem também Augusto Aras e — cada vez mais forte para presidir a Câmara — Arthur Lira.

Será difícil, sobretudo para os pobres.


Carlos Andreazza: O ano da desigualdade

A pobreza aumentará. A miséria se radicalizará

O sarrafo deixado por 2020 é baixíssimo. Foi um ano contudo em que — como resposta à peste — criaram-se soluções para proteger a sociedade. Estado de calamidade. Orçamento de Guerra. Auxílio emergencial. Uma cadeia de calor. Ante exigências de exceção, respostas excepcionais rapidamente formuladas e viabilizadas por meio da atividade legislativa. Dois mil e vinte acabou. Levou consigo, formalmente, o estado de calamidade. Parece ter levado também o bom senso, já que se fala, como se o vírus não mais houvesse, em retomada da agenda de austeridade fiscal; e sobre nós baixa novamente o teto de gastos.

O vírus permanece, no entanto. O estado de calamidade na vida dos brasileiros permanece. Tudo indica que se alargará, sem o auxílio emergencial; cujo fim terá por efeito empurrar as pessoas à busca de emprego. Não há emprego. Há a segunda onda.

A fotografia perversa não nos autoriza ao otimismo: temos um estado de calamidade de súbito sem reconhecimento oficial, um encilhamento fiscal num país que precisa de indução da economia popular (ou será a fome), um vírus de circulação recrudescente, um Parlamento paralisado por disputa interna de poder e um governo calamitoso, cujo líder populista-autoritário — a só pensar em reeleição — fortalece-se no caos.

Sou a favor do teto de gastos. Considero importantes as amarras de uma âncora fiscal. Mas em condições normais. Não é o caso.

O sarrafo legado por 2020 é baixo, mas 2021 salta sem qualquer colchão — sem qualquer rede de amparo. A pobreza aumentará. A miséria se radicalizará. Tudo o mais constante, sem respostas organizadas pelo Estado, 2021 será o ano do agravamento da desigualdade num país já barbaramente desigual.

Há muito escuto sobre crescimento econômico em K num Brasil minado pela pandemia. Aí está. A perna que ascende sendo a dos mais ricos — para os quais, o palestrante Guedes tem razão, a ereção já é em V. A que desce, a do tombo dos mais pobres. Dois mil e vinte ecoará longamente na vida dos ferrados. O mundo real se imporá; ao qual se reagirá com improviso e populismo.

Sem estado de calamidade formal, prorroga-se o estado de calamidade real em que prospera um governo calamitoso; em que os pobres serão mais desprovidos e em que avançará um presidente-candidato que se alimenta de crise. Estão dados os gatilhos para respostas economicamente populistas. Em vez de discutir-se a revisão, a flexibilização, do teto de gastos, movimento necessário face à peste, investe-se nas circunstâncias inseguras para sua violação. Questão de tempo até que o governo abra o tesouro e gaste sem planejamento para enfrentar um surto de miséria que ajudou a encorpar.

Países não quebram. Mal governados, porém, pioram a vida dos seus. Mal governados, aí sim, quebram, depauperam, mesmo matam, os seus — os mais pobres. É o que produz Jair Bolsonaro por meio de rara combinação de irresponsabilidade e incompetência, conjunto potencializado pela febre reacionária do fenômeno que encarna.

O que produz Bolsonaro: sustentação, alongamento, do estado de calamidade informal — devastador de pobres — de que depende a competitividade de um governo, de um governante, calamitoso.

O Brasil não está quebrado, mas a economia não reagirá enquanto não houver vacinação. E quem é nosso principal agente antivacinação? Bolsonaro. Aquele que, se vitimizando, diz que nada consegue fazer. Consegue, sim. Deformar. Destruir. Mesmo sem trabalhar: corrompe. Nunca trabalhou, o dilapidador. E queria conseguir mais? Alguém capaz de declarar que o país está quebrado, admitindo a inação-impossibilidade do próprio governo, logo após dezessete dias fritando ao sol em férias, cujo auge consistiu naquela encenação de mergulho nos braços do povo.

Neste período de vadiagem, em que o presidente reforçou seu compromisso de boicotar o Programa Nacional de Imunização, de cuja eficiência depende a liberação da economia com que diz se preocupar, o Brasil não pagou uma dívida de US$ 292 milhões para aporte de capital no Novo Banco de Desenvolvimento, instituição financeira do Brics de que é sócio. Calote. O governo caloteiro, porém, botou a culpa no Congresso. É, de novo, expressão do tal “não consigo fazer nada”. A operação da velha forja de inimigos artificiais de que Bolsonaro precisa para cultivar suas milícias e disfarçar suas incapacidades.

Lembro que este é o presidente que, assim que assumiu, disparou que o Brasil era ingovernável. A culpa sendo sempre dos outros. Do establishment etc. Uma mentira muito influente, que circula mesmo ante os fatos. Por exemplo: a Câmara, que criminaliza (mas desde a qual construiria tremenda empresa familiar), votou com seu governo em 74% de suas matérias de interesse. Fato. A Câmara é governista. Contra o governo, joga o próprio governo.

A incompetência — tanto mais em meio a um estado de exceção — pode ser muito lucrativa. Gera oportunidades — também políticas — a um autocrata. Bolsonaro é um irresponsável. Não tem a menor ideia do que seja a Presidência da República, mas não ignora o alcance da palavra do presidente difundindo-se no zap-profundo. Países não quebram. Mas instituições são corrompidas desde dentro. Países não quebram. Quebram as gentes. Matam.


Carlos Andreazza: In Fux we don’t trust

Ele lançou sobre um servidor o peso de decisão que só o presidente do Supremo poderia tomar

Luiz Fux — para se lavar de um aval que obviamente dera — arranjou-se cuspindo ao mar um colaborador de terceiro escalão. Aquele exercício covarde de onipotência típico dos que se sabem inalcançáveis. O presidente do Supremo Tribunal Federal é um poder inteiro e, no caso do atual, um mestre em jogar para a galera. (Não tardará, aliás, até que abra enquetes em rede social para que seus seguidores determinem como deve votar.) Outra coisa, porém, será cultivar a imagem de homem justo e combatente de regalias afogando um subordinado em injustiça; um desmando autoritário reativo para não assumir o desmando patrimonialista original.

Sim. Refiro-me ao caso — um escândalo — em que Fux, pressionado pela imprensa que o adula, decidiu, fingindo-se de chocado, exonerar o secretário de saúde do STF. (Sendo também o caso de perguntar por que o tribunal precisaria de uma tal secretaria.) O doutor Marco Polo Dias Freitas levou a culpa. Pagou pelo ato por meio do qual a Corte constitucional brasileira — vergonhosamente — demandara à Fiocruz uma reserva de 7 mil doses de vacina contra a peste para seus togados e funcionários. Pego em flagrante, Fux — em gesto de rara desonra — lançou sobre um servidor o peso de decisão que só o presidente do Supremo poderia tomar. Um conjunto de arbitrariedades a não ser esquecido. (E que só será surpresa para quem admite o modo como o ministro maneja a Constituição.)

Freitas foi elegante, impessoal, ao sair, talvez com a intenção de preservar a instituição a que se dedicava havia década; mas deixou claríssimo o que se passara: “Respeito rigorosamente a hierarquia administrativa do Supremo Tribunal Federal. Nesses onze anos no STF, nunca realizei nenhum ato administrativo sem a ciência e a anuência dos meus superiores hierárquicos”.

Elegante. Eu também serei. (Quem sabe, assim, este artigo escape da censura no clipping do tribunal?) E serei igualmente claro. O ofício de requisição da reserva de doses foi assinado, em 30 de novembro, pelo diretor-geral do Supremo, Edmundo Veras dos Santos Filho; que, no entanto, manteve o cargo. Fux justificou a demissão do mais fraco afirmando que o pedido fora feito sem o seu consentimento. Não é verdade. O presidente do Supremo faltou com a verdade; o que se prova facilmente, sendo o próprio Fux a se desmentir.

Freitas foi exonerado em 27 de dezembro. No dia seguinte, o presidente do STF pôs em campo uma blitz para, em suma, apregoar que não sabia e que não admitia; versão que rui diante da entrevista veiculada cinco dias antes, em 23 de dezembro, pela TV Justiça, em que se demonstra não apenas informado sobre o pedido, mas favorável à demanda. Fala Fux:

— Nós, por exemplo, fizemos um pedido, de toda forma delicada, ética, um pedido, dentro das possibilidades, que, quando todas as prioridades forem cumpridas, de que também os tribunais superiores — que precisam trabalhar em prol da Covid — tenham meios para trabalhar. E, para isso, precisa vacinar. Não adianta vacinar os ministros e não vacinar os servidores. A difusão da doença seria exatamente a mesma.

Que tal? Que tal essa ética? Mesmo o português truncado de Fux — que decerto gostaria de trabalhar contra a Covid, e não em prol do vírus — não é capaz de deixar dúvidas. Nós é nós. Né? Nós somos. O “nós fizemos um pedido” o inclui. Nós pedimos. Certo? Nós só são os outros — quando o bicho pega, e o bafo da sociedade esquenta o cangote — na ética fuxiana do bode expiatório. E não deixa de ser requisição de tratamento prioritário, uma que se queira postar à fila logo após as prioridades já consagradas. Fim da fila de prioridades ainda prioridade será. Não há delicadeza nisso.

Fux não apenas tinha ciência do pedido como — sob visão estratégico-corporativa — avalizou-o. E diga-se que, fosse verdadeiro que a demanda tivesse sido feita sem sua chancela, teríamos apenas mais uma exibição de incompetência; e ele precisaria demitir o diretor-geral. Mas não foi incompetência. Não desta vez. Foi um movimento natural, consciente, relaxado, de quem se sabe mesmo privilegiado; de alguém cuja trajetória educou para o hábito do privilégio. Foi desde esse lugar que o presidente do STF ceifou o doutor Freitas.

Fux, contudo, ao explicar a demissão covarde do subordinado, disse: “Sempre fui contra privilégios”. De novo, não é verdade. Temos memória. Ou não terá sido ele — agora todo enérgico contra decisões monocráticas — o ministro que ficou, atenção, quatro anos sentado sobre liminar, canetada classista de próprio punho, que garantiria auxílio-moradia a juízes e procuradores, uma conta bilionária?

O privilegiado Luiz Fux é o privilégio. Pode tudo. É também um — mais um — ministro da corte constitucional brasileira em quem não se deve confiar.


Carlos Andreazza: Pós-Maia

Ele não foi mau presidente da Câmara graças, sobretudo, à escolha pela atividade política

Rodrigo Maia não foi mau presidente da Câmara. Melhor nos últimos dois anos que no biênio anterior, em que vislumbrou nas flechadas de Janot contra Temer a chance de chegar à Presidência da República. Terá amadurecido. Não que precisasse crescer muito. Mais provável sendo que tenha se beneficiado ante a pequenez média dos pares; assim como Mandetta — um Oswaldo Cruz diante do general Pazuello. O estadismo possível no Brasil pazuellizado de Bolsonaro: o por contraste.

Entre o início de 2019 e o fevereiro próximo, Maia terá gerido a pior composição da história do Parlamento, em que a renovação bolsonarista plantou volume sem precedente de desqualificados e delinquentes. Seu maior mérito consistiu mesmo em se ter investido como agente político, trabalhando por meio da política, num período em que a criminalização da política tornou-se grande eleitora. Dessa forma — com respeitável consciência institucional — conseguiu edificar o orçamento de guerra e planear o chão para o auxílio emergencial, sem o qual o país teria se convertido em caos.

Maia não foi mau presidente da Câmara graças, sobretudo, à escolha pela atividade política — que cultivou como instrumento para administrar um Parlamento infiltrado por roedores da democracia representativa. Terá, entretanto, na última hora, posto em xeque seu algum legado, ao projetar o próprio futuro num atentado contra a Constituição: o que lhe garantiria o direito de se reeleger.

Tinha um reino, acreditou que, via Supremo, continuaria a ter — e optou por dividir para imperar. Só que perdeu o reino e ficou com a divisão. Deu chance a Arthur Lira; e madeira aos cupins. Avaliou que, desde um lugar de poder, autorizado à reeleição (mas afirmando não a querer), poderia estimular vários candidatos dentro de seu grupo — apostando num impasse de que ascenderia como solução pacificadora. Negligenciou a tessitura política por meio da qual lideraria — com segurança — a escolha do sucessor. Botou todas as fichas no golpe encomendado por Alcolumbre. Viu a Corte constitucional trair o prometido. E passou a ter de pelejar para que o que era seu não derretesse em anarquia.

O café esfriou. O poder se foi. No instante em que o STF lhe disse não: foi-se. Daí que não mais exista um “grupo de Maia”. Existiria, antes, se tivesse admitido o limite imposto pela lei. Existiria, depois, se a blitz contra a Constituição tivesse prosperado. Não prosperou. Melhor assim. Porque não há Lira ou qualquer outro bolsonarista de aluguel que legitime gambiarra em nome do equilíbrio republicano. E porque não será difícil — na política, com política — derrotar Lira.

Derrotá-lo passa mesmo, necessariamente, pela dissolução da ideia de “grupo de Maia”. Derrotá-lo — o candidato do personalista Bolsonaro — passa pela impessoalidade; por comunicar que se reage, de modo suprapartidário, ao que seria explícita tentativa de o governo interferir para comandar a Câmara. O texto é bom. É preciso trabalhar, porém. Sai de cena o “grupo de Maia”. Mas não Rodrigo Maia.

Sai de cena o “grupo de Maia”, já substituído por um pela independência do Parlamento, mobilizado, diferenças à parte, contra o domínio do Legislativo pelo Planalto. Foi essa a abordagem que costurou o bloco de 11 partidos. Uma rede que abarcaria 281 deputados. Sabe-se, no entanto, que a adesão de siglas não significa que os votos de seus integrantes acompanhem o movimento. Sabe-se também que o governo desdobrou o mapa de cargos para comerciar apoios a Lira. Fala-se num mercado de 500 crachás para que Bolsonaro seja senhor da Câmara. E quem tem ministérios a ofertar nunca será carta fora do baralho — tanto mais em eleição secreta.

O Planalto age. Sua ação ostensiva, contudo, é também a alavanca para o seu revés. Um Parlamento comprado pelo governo — à luz do dia — em troca de apoio a um candidato a presidente da Câmara é prato cheio para a campanha de oposição a Lira. Na verdade, oposição a Bolsonaro.

O bloco pela independência do Legislativo agrega-se por uma bandeira. Fácil de apregoar e altamente competitiva. A ver, como ressalva, se a escolha do nome a encarnar o pacto — é Baleia Rossi, mas poderia ser qualquer outro — será capaz de sustentar a coesão do conjunto. Não se trata de preocupação supérflua. Afinal, a escolha, tendo havido postulantes, significa que houve derrotados; logo, frustrações a pacificar.

Comenta-se que o Planalto quer o Parlamento para desdobrar a tal agenda de costumes. É falso. Isso virou secundário. A base social de Bolsonaro lhe será fiel mesmo não tendo atendidas suas demandas, digamos, culturais. A eleição de Lira é decisiva para o governo porque escancararia a porta para o pleno exercício do populismo econômico que, ao mesmo tempo, amarra a sociedade protetora com o Centrão e robustece a musculatura de Bolsonaro para 2022.

A derradeira avaliação da presidência de Maia dependerá de seu erro não lhe botar esse ônus na conta.


Carlos Andreazza: A semana do presidente

Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença, difunde desconfiança, atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização

A semana passada foi especialmente rica em manchetes oferecidas — forjadas — pelo presidente da República. Acuado, Jair Bolsonaro disparou. É o que faz. Ameaçado, reage com novos graus de irresponsabilidade. Provoca. Agride. Trai. Mente. Conspira. Comete crimes. Promove conflitos. Dedica-se ao seu nós contra eles total — obra por meio da qual será capaz de atiçar policiais contra o inimigo jornalista. Obra por meio da qual transformou uma vacina — a chinesa, a comunista — em inimiga da liberdade.

Isto é Bolsonaro. Aquele que, sob pressão, espalha-se para lançar estímulos em direções diversas; para difundir pautas-isca, apostando em que o volume de suas descargas resulte num conjunto de reações difusas que embaralhe a hierarquia das gravidades.

São muitas as gravidades. Uma maior que as outras, porém. Óbvio que o Bolsonaro particularmente cafajeste dos últimos dias é produto do caso Abin. Evidente que seu último pacote de barbáries pretendeu também dissolver em boçalidades as novas revelações sobre o que seria a privatização da Agência Brasileira de Inteligência pela sua família. Nada se soube de mais comprometedor — de mais perigoso para Bolsonaro — numa semana em que galgou novos parâmetros em sua pregação antivacina.

O caso Abin: uma apuração jornalística, da revista “Época”, informou-nos que um órgão de Estado — aparelho de inteligência impessoal a serviço da Presidência — teria operado, com relatórios, para orientar a defesa do filho do presidente numa investigação relativa ao tempo em que Flávio Bolsonaro era deputado estadual. Escândalo a que se somou a notícia, pela revista Crusoé, de que haveria — dentro da agência — uma espécie de Abin do B trabalhando, à margem da estrutura convencional, pelos interesses de Bolsonaro e turma.

Então, para embaçar: onda e espuma. Também para camuflar a imposição do mundo real — seu governo, derrubando-lhe a palavra-veto, terá de comprar a vacina do Doria — à sua mistificação de macho-mito: onda e espuma.

Impressiona que ainda haja quem se surpreenda com Bolsonaro. Ingenuidade pela qual ele é gratíssimo; e que explora com engenho e arte. Por exemplo: em visita à Ceagesp, chocou os bocós liberais retardatários que, em dezembro de 2020, creem em que este governo privatizará alguma coisa. Nem a Ceagesp! Oh! Fomos traídos...

Em que planeta vivem? Como nenhum entre os limpinhos percebeu que o populista-estatista manipularia os manés liberais-só-na-economia para promover uma das facetas do grande estelionato eleitoral que aplica há quase dois anos? É como acreditar que de uma jaqueira pudesse cair uva. Como se um sujeito que engordou aboletado no sofá do Estado — um tipo que constituiu família, que ergueu bem-sucedida empresa familiar, dentro do Estado — pudesse se mover para diminuir a superfície que lhe enche e ampara a pança. Oh! Fomos enganados!

O presidente anunciou também que não montará o novo partido. Que não fundará o tal Aliança pelo Brasil; e que deverá se filiar a um já existente, decerto uma dessas legendas de aluguel que lhe assegurariam a escada formal para poder disputar a reeleição. Ah! Quem poderia imaginar que um notório depredador da democracia representativa — uma força destruidora que prosperou explorando a criminalização da política — não fosse investir na construção de um partido? Oh!

Também nos informou que Fabrício Queiroz pagava suas contas e que os R$ 89 mil que o amigo, amigo também de milicianos, depositou na conta da primeira-dama Michelle eram para ele — e que aquilo, aquela merreca, não poderia ser considerado propina. Ocorre que ninguém disse que a transação consistiria em pagamento de propina.

Como faz com frequência, Bolsonaro respondeu, com indignação, a uma acusação jamais feita. É mestre nisso; em criar uma falsa imputação, um falso problema, como o da vacinação obrigatória, e lhe responder com energia. Concebe um mundo paralelo — no qual estará sempre com a razão. Ninguém pode ser forçado a se vacinar — e assim brigará contra tirano inexistente. Com o que desvia a verdadeira questão: Queiroz foi denunciado como operador de um esquema de peculato havido no gabinete de Flávio Bolsonaro, tendo sido o mesmo Queiroz a fazer depósitos na conta da mulher do presidente. Essa é a fotografia no mundo real; a pergunta sendo: de onde veio o dinheiro depositado na conta de Michelle Bolsonaro?

Nenhum, porém, entre os atos graves encenados para diluir-distorcer a gravíssima investigação sobre a captura da Abin pela famiglia, teve maior gravidade do que o presidente da República declarar que não se vacinará. Foi o investimento desinformante mais violento em sua campanha — genocida – de dilapidação de nossa cultura vacinal. Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença. Difunde desconfiança. Atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização — atentado que não apenas chama de volta o sarampo, mas também mina as bases de uma teia que costura mesmo, na prática, a própria ideia de República entre nós.

Essa malha de confiança — que alinhava a nação (como o sistema eleitoral) — é empecilho para o autocrata tanto quanto lhe será impulso ter uma Abin, uma Polícia Federal, particular.


Carlos Andreazza: A pazuellização

Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general?

Um governo que ancorou seu negacionismo frente à pandemia num discurso de compromisso radical com a saúde econômica deveria ser obcecado por vacinar maciçamente a população. Porque só a vacinação destravará a economia.

Este, no entanto, é um governo que só criou — e cria — dificuldades para a vacinação. Na prática, o governo Bolsonaro — força regressiva, dependente de imprevisibilidades, que melhor vigorará quanto maior for a calamidade — lida com a pandemia de forma antieconômica. É um contrassenso. É, pois, a mais pura expressão do bolsonarismo, fenômeno reacionário anabolizado pela dissonância cognitiva.

A principal constituição discursiva de Jair Bolsonaro ante a peste apenas se serviu da preocupação com a economia para fabricar conflitos e difundir teorias da conspiração. Falamos de um presidente que manteve taxa de aprovação acima de 30% mesmo, no auge da pandemia, quando cultivava declarações beligerantes no cercadinho do Alvorada. Ingênuo crer que sua pregação antivacina não resultasse em aumento no número daqueles que não pretendem se imunizar.

Isso passa, contudo. Reverte-se. No caso da Covid-19, é ter as doses nos postos para que a desconfiança dos que dizem que não se vacinariam se converter em braço esticado. Sim: teremos os antivacinas vacinados. E continuarão bolsonaristas. Ok. O problema é a cisão social derivada da descrença; o eco influente da desinformação — sim, genocida — sobre outrora sólida cultura vacinal. Voltou o sarampo. A estúpida campanha antivacina produz atraso objetivo quando o estúpido é o presidente da República.

No mundo real, vários países iniciam seus programas de vacinação já neste dezembro. O Brasil não poderia mesmo formar entre os primeiros. Não é o Reino Unido. A questão é se precisaria ficar tão atrás. Há países em condições político-econômicas piores que começarão antes. Isso é produto da incompetência; da pazuellização do Brasil. O governo brasileiro é péssimo de serviço, o que foi potencializado — esta ruindade sabotadora — pela doença ideológica bolsonarista.

Meses de delinquência criaram a lama para este ambiente de caos anestesiado. De modo que o governador Ronaldo Caiado, de Goiás, deveria calibrar melhor a leitura das razões para o que diagnosticou — corretamente — como corrida maluca por vacinas. E pensar sobre quem prospera investindo na loucura.

Não há corrida maluca porque um governador — diante, por exemplo, de empecilhos forjados por uma Anvisa a serviço de um projeto de poder — tomou a frente para assegurar a vacinação dos seus. Há corrida maluca porque o governo federal — por meio de atitude sociopata — recusou-se, boicotando qualquer esforço coordenado, a comandar o processo. O governo Bolsonaro plantou o cada um por si.

Caia quem quiser na armadilha polarizadora sobre quem teria politizado primeiro; se Bolsonaro ou Doria. Políticos politizam. Claro que olham para 2022. Normal. Todos o fazem, inclusive Caiado. Com uma diferença: tudo o mais constante, só um entre os politizadores terá vacina para aplicar em janeiro. É uma diferença civilizacional.

O pânico, esta é a palavra, quem promove agora, por medo de natureza político-eleitoral, é o governo federal reativo, cujo plano nacional de vacinação — um catadão vergonhoso cuspido no papel — só existe porque obrigado, feito às pressas sob a vara de um Supremo que se deixa enganar. Como acreditar que um Ministério da Saúde inconfiável, que se prestou a cavalo de um mistificador, cavalo também sendo o Exército, e que nada planeja desde abril, seria — será — capaz de conceber um programa vacinal em semanas?

Foram meses de escolhas cretinas. A começar pela inexistência de convênios com todos os grandes produtores de vacina. Precisaríamos de todas. O governo, porém, preferiu restringir-se a um só fabricante, incapaz de atender a toda nossa demanda — e de que ficaríamos cativos em caso de alguma delonga no trâmite de aprovação de seu imunizante. Foi o que ocorreu.

Acontece. Ninguém obrigou o Brasil a se atrelar ao destino de um só laboratório. Quem dera, porém, fosse apenas esse o nosso espeto... Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general? A questão é quando. Questão — quando? — que projeta fosso de negligência em que milhares morrerão.

Nunca tive dúvida de que, havendo vacinas, o governo federal correria para comprar todas, inclusive a CoronaVac, aquela chinesa, a comunista etc. Aquela que Bolsonaro disse que não compraria. Comprará. O mundo real se impõe. Nunca duvidei de que o governo safado testaria até a tese do confisco; a surpresa sendo um macaco velho como Caiado, pazuellizado, deixar-se servir por boi de piranha da barbárie.

O mundo real se impõe. E a lei se imporá, inclusive para tornar a Anvisa bolsonarista irrelevante... A lei se imporá também ao processo de pazuellização da vida pública. O revés é o tempo perdido —sempre ele. Veja o caso da vacina da Pfizer. O Ministério da Saúde, leviano, arrotou várias dificuldades, antecipando-se para difamar um imunizante porque exigiria geladeiras especificas. E agora é o “ai, Jesus” — com Pazuello, talvez já convencido de que haja demanda, anunciando acordo para aquisição de milhões de doses antes mesmo de o contrato assinado.

Compraremos todas, qualquer que seja o preço. E esperaremos — no fim da fila. O mais caro preço. Párias e otários.


Carlos Andreazza: O garantismo de rebolação

Cinco ministros da corte constitucional brasileira se sentiram à vontade para depredar o texto que deveriam guardar

Não tenhamos dúvida de que a pressão da sociedade foi decisiva para que o Supremo votasse contra o golpe urdido — dentro do Supremo — para autorizar a reeleição dos comandos de Senado e Câmara numa mesma legislatura. Matou-se a pretensão golpista de Davi Alcolumbre, mas não sem que aqui se reforce a vergonha de um presidente de Poder que abandona o mandato vigente para costurar uma presidência futura, ademais interditada por lei. Ceifou-se também a chance de Rodrigo Maia surfar a onda.

Não há o que comemorar, porém. Cinco dos 11 ministros da corte constitucional brasileira se sentiram à vontade para — distorcendo a semântica — depredar o texto que deveriam guardar. Cinco dos 11 ministros, alguns dos quais considerados garantistas, não se acanharam em expor o molejo oportunista do garantismo de rebolação hoje havido no STF.

Rebolam todos, entretanto. Ou quase todos. Muitos dos que agora se impuseram como originalistas — protetores do que versa a palavra constitucional — sendo os que, no ano passado, contorceram o verbo para encontrar na Constituição brecha que encaixasse a prisão após condenação em segunda instância. Não faltam exemplos outros.

Gilmar Mendes, relator da matéria da hora, não escondeu o método em seu voto-cabe-tudo: “O afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover objetivos constitucionais de elevado peso normativo”. Difícil é achar ministro — todos decerto seguros de serem promotores dos mais virtuosos refinamentos constitucionais — que já não se tenha baseado nessa fórmula tudo-pode. Trata-se de manifestação cujo endosso teria —e tem — efeito carta branca nas mãos de juízes que não raro se movem como agentes políticos, mas que se querem merecedores da fé devotada aos santos.

Em suma, ignorar o que diz a Carta como forma de, confiando na condução dos iluminados, libertar o sentimento, o sentido não expresso, da Carta. Na prática, ignorar o que diz a Carta, o que pretendeu o constituinte, para que objetivos político-eleitorais de elevado peso antirrepublicano sejam tratados como saudáveis mutações constitucionais por togados, cujo abuso de poder os transformou em ditadores do regime democrático.

Quem lê o voto de Mendes quase tem vontade de o agradecer por ainda não serem ele e os seus supremos os que elegem as mesas diretoras do Congresso. O ministro nos avisa, condescendente, que pretendia mesmo mudar a regra do jogo e que não lhe faltam meios para fazê-lo à revelia do texto constitucional; mas que continuariam sendo os parlamentares a eleger o comando das Casas.

É preciso ser duro com o que se tentou armar no Supremo. Um golpe contra a Constituição da República. Um golpe que consiste em declarar inconstitucional o texto constitucional — com o argumento de cevar o texto constitucional.

Um golpe urdido há mais de ano, nos últimos meses à custa de um país de todo paralisado, que tem como gênese a convicção de que se poderia lastrear um arranjo político, a partir do Supremo, fraudando a Carta. A partir do Supremo, a subversão da Carta! O — como o nomeei no artigo passado — golpe de Alcolumbre; que corpo de golpe não teria, que não passaria de fetiche de moleque autocrata, sem que ministros do STF, verdadeiros despachantes, o tivessem anabolizado por meio de leituras messalinas da Constituição.

Diz-se — e sem o devido escândalo — que ministros do STF fariam cálculos políticos ante o que seria um dilema; como se fossem moderadores de apetites autoritários do futuro. Assim, porque avaliariam que a dupla Alcolumbre e Maia cumpre bom papel em frear o ímpeto golpista de Jair Bolsonaro, seria seguro, pensando num bem maior, estender-lhes os períodos na presidência das Casas legislativas. E então teríamos a seguinte equação arbitrária: para evitar um presumido golpe bolsonarista amanhã, aplique-se um golpe já.

É grave. A prostituição do pacto social assentado pelo constituinte; que faz ver que a progressiva depredação de nossos fundamentos institucionais, de que a eleição de Bolsonaro é a febre maior, plantou não raposas no supremo galinheiro, mas cupins. O STF carcomendo-se por dentro, enquanto do lado de fora crescem os que o querem derrubar — muito mais volumosos sendo os que, considerando-o uma estrutura inconfiável, voltada ao cultivo dos próprios interesses, não se incomodariam com seu empastelamento.

Como defender a importância do equilíbrio republicano e a virtude da separação entre Poderes independentes, da ponderação garantida pelo balanço entre eles, ante um Supremo infiltrado por grupos de interesse e que se acostumou a responder com gambiarras? Como defender a concertação da República, a tessitura garantidora de que o Estado não nos oprimirá tanto, num país em que ministros de corte constitucional conseguem extrair autorização de onde há vedação explícita, por consequência projetando, para deleite dos autoritários, um tribunal que, manipulando o ordenamento para fins casuísticos, enfraquece sua a razão de existir?

O Supremo precisa se proteger — se defender — do próprio Supremo.


Carlos Andreazza: O golpe de Alcolumbre

Não tem vírgula para controvérsia de reeleição de presidentes da Câmara e do Senado. Não pode

Está marcado para a próxima sexta, dia 4 de dezembro, o início do julgamento — no plenário virtual do Supremo — de uma ação por meio da qual o PTB questiona a constitucionalidade da reeleição (qualquer uma, mesmo aquela prevista na Constituição) de presidentes da Câmara e do Senado.

Não é banal que a coisa se dê no plenário virtual, em que os ministros somente depositam os votos. Sem enfrentamento de mérito. Sem debate. É o paraíso — a arena dos sonhos — para que se consolide o golpe, golpe contra a Constituição Federal, urdido, sem muita cerimônia, por Davi Alcolumbre.

Golpe que o sujeito costura desde meados de 2019, agora finalmente à custa de um Parlamento paralisado; que — sequestrado por disputas de poder antecipadas para muito além de qualquer padrão de irresponsabilidade da política brasileira — nem sequer consegue cuidar do Orçamento de 2021.

Para que fique claro: o Brasil não está parado, com uma pandemia a corroê-lo, em decorrência das eleições municipais. Isso é desculpa. E é mentira. O país está travado porque tem um governo incompetente, incapaz de propor agendas e formular políticas públicas; e porque o Congresso, até anteontem a engrenagem que fazia algo andar, foi contaminado pela endemia sucessória, agravada pelo vírus da incerteza. Terá ou não sucesso o golpe de Alcolumbre, de resto a mexer num xadrez de expectativas de poder ainda a ecoar longamente no Parlamento?

Obra do golpe de Alcolumbre. Golpe pelo direito de se reeleger à presidência do Senado numa mesma legislatura; contra o quê, sem margem para interpretação rebolativa, é expressa a Carta que se tenta violar. Está lá, no parágrafo 4º do artigo 57. Não pode. Não tem vírgula para controvérsia. Golpe.

Daí por que seja tão importante — para o êxito golpista — escapar da discussão de mérito. Porque isso equivaleria a escapar do que versa a Constituição. Porque bastaria que um ministro a abrisse, passando-lhe os olhos, para que tivéssemos um destaque e o caso, deixando a imobilidade muda do plenário virtual, fosse para a deliberação do colegiado. Ou seja: para que a tara de Alcolumbre fosse contida.

Mas não. O STF integra o jogo político; e isso significa atalhar a Lei Maior. Nesse caso, para fugir da apreciação do mérito. Não poderia ser diferente num tribunal cheio de agentes políticos. Que fazem cálculos típicos de um operador político. Logo, se os togados avaliam que o arranjo com Alcolumbre e Maia (que surfaria a onda para ser também beneficiado) serve bem ao equilíbrio da República, ambos se concertando — segundo consideram os supremos — para frear os ímpetos autocráticos de Jair Bolsonaro, por que não encontrar uma solução casuística, por que não erguer um puxadinho oportunista e fulanizado, que lhes permita continuar à frente das casas legislativas?

Contra o temor de um hipotético grande golpe bolsonarista, um golpe de verdade, um golpinho virtuoso, impingido via Senado e chancelado pela corte constitucional. Que tal? E como não projetar que o STF, deixando-se penetrar pelo que supõe jeitinho pontual e por boa causa, estará forjando as condições para o arrombamento de reeleições infinitas no Parlamento?

A estratégia golpista é engenhosa; e terá como fundamento — tudo assim indica — o Supremo liberando ao Congresso, como se matéria interna corporis, o condão de decidir sobre as eleições de suas mesas diretoras.

O STF lava as mãos, pautado pelos interesses da política. Adotará — ministros já vazaram a tática — a postura cínica, covarde, de alegar que a ação do PTB consistiria numa espécie de consulta prévia; a respeito, pois, de algo ainda não ocorrido, um caso hipotético, sendo impossível, por falta de concretude, tratar do mérito. Balela! Mas também puro adiamento; sendo questão de tempo até que se tenha de deparar com uma chuva de reclamações, quando o golpe já estiver aplicado, e o tribunal for obrigado a se lembrar da Constituição.

O STF lavará as mãos. Se entender — já entendeu, todos entendidos — que o assunto é de alçada do Parlamento, dirá que o desejo de Alcolumbre poderá prosperar driblando a única maneira republicana de postular o direito à reeleição numa mesma legislatura: uma emenda constitucional — para a qual seriam necessários três quintos do Congresso. Se decidir, portanto, que Alcolumbre pode chegar lá sem uma PEC, por meio de um golpe mesmo, dirá que lhe bastaria providenciar uma revisão do regimento interno do Senado; para o que precisaria de maioria simples entre os pares.

Ah, os pares... Alcolumbre os trata como bocós. Os senadores, contudo, não protestam. Talvez até gostem do balé desse golpe sui generis; dado que endossam a agenda personalista de um presidente do Senado que, para conseguir a prerrogativa de se reeleger, sumiu do Congresso, tirando o pé de qualquer bola dividida e abandonando a Casa ao apagão. Um presidente do Senado que, para não desagradar ao Supremo de que tanto depende, escondeu-se de ser presidente do Senado. Um presidente do Senado que abandonou a presidência que formalmente exerce para lutar, ao custo do Parlamento de hoje, por uma presidência futura.


Carlos Andreazza: A torcida de Bolsonaro

O governo torce pela segunda onda

O governo de Jair Bolsonaro é muito ruim, do que deriva um país paralisado, anestesiado, suscetível a qualquer desvio-isca de atenção, de súbito chocado com a revelação, surpresa só na terra dos incautos, de que a tal moderação do vice-presidente — fã do torturador Ustra e para quem não haveria racismo no Brasil — nunca passou de cálculo político por meio do qual se distinguir do presidente e seduzir as manchetes.

Mourão, um descartável, carona de chapa a ser trocado por qualquer Kassab, é a frustração possível — a falsa — num país que vegeta e que, portanto, habituou-se a ver um general da ativa como cavalo para que o único ministro da Saúde possível a Bolsonaro exercesse o cargo: o próprio Bolsonaro.

Para que não se pense que o misto de submissão e incompetência de Pazuello seja exceção no forte apache, veja-se o caso do titular da Casa Civil, de loas tão cantadas por haver liderado uma intervenção federal no Rio de Janeiro cujas escolhas, por efeitos práticos para segurança, só resultaram em que as milícias tivessem tranquilidade para se expandir sobre territórios do tráfico enfraquecido.

Um país paralisado, que só agora descobre que a presença de militares no governo, pelo menos esses que lá estão, uma coleção de ajudantes de ordens de Sílvio Frota, jamais significou qualidade de gestão e compromisso com a democracia. Nada teremos aprendido com o general Villas Bôas e sua tentativa de intimidar o Supremo em 2018.

Este péssimo governo é eficientíssimo em promover a dilapidação das instituições republicanas — e que não pensem os do alto-comando que estarão livres as suas armas.

Um país paralisado por um governo muito ruim, que envelheceu rapidamente, que vai cansado antes mesmo da metade, e cuja política econômica, outrora ao menos voluntarista, nem mais chega a oferecer trombadas — o que pressuporia a ocorrência de algum movimento. Não há movimento. Só desculpa. Um país paralisado de todo. Condição em que já estava quando a peste baixou sobre nós.

Ao contrário da propaganda feiticeira liberal-guedista, que tenta imputar efeitos retroativos ao vírus, o Brasil já tinha travado quando a pandemia se impôs; daí por que, findo o estoque de iniciativas herdadas de Temer, até Rogério Marinho e seus tarcísios, os que ainda andavam, passaram a inaugurar qualquer meia dúzia de quilômetros de asfalto. O blá-blá-blá das reformas — que não avançam (desde 2019) porque projeto não há — sendo apenas a face mais visível de uma administração que vai perdida; e que tem como símbolo um Ministério da Economia inchado e engessado, entregue a um marqueteiro, notável palestrante, tão pretensioso quanto inexperiente em gestão pública, cuja credibilidade erodida se afere nos já inexpressivos impactos de suas bravatas.

É mirando o castelo de cera de Guedes, diante do qual o bolinho de areia de Braga Netto parecerá engenharia de estadista, que se capta o melhor retrato deste governo; o que tem, à frente da pasta em que se empilharam as maiores responsabilidades, um poderoso ex-ministro em atividade.

O governo Bolsonaro é hoje o auxílio emergencial. E só. Um programa de natureza provisória, que lhe caiu ao colo para se tornar ao mesmo tempo dependência e constituição; donde pouca dúvida deveria restar sobre a prorrogação da assistência para além de dezembro. Esta será a agenda, a que garante a existência do governo, daqui até o final do ano: assegurar a rolagem do auxílio adiante, até que se desembaracem as eleições na Câmara e no Senado, em seguida ao que teremos, ao custo do teto de gastos, e com CPMF, o novo Bolsa Família.

Tudo será mais fácil se houver a segunda onda do vírus entre nós — gatilho para a extensão do orçamento de guerra. Havendo dinheiro, serão mais dois anos de campanha eleitoral legitimada pelo combate à pandemia.

O governo Bolsonaro não tem corpo para a normalidade. É como a segurança institucional ofertada por general Heleno. Nem projeto nem competência para executar. Para existir, precisa do ambiente de exceção, gerado artificialmente pela forja de conflitos e teorias da conspiração, ou imposto por um evento como a pandemia. Precisa de crises. A peste foi um presente.

A circulação do vírus, o caráter imprevisível do bicho, sustenta este governo. Mantém agudas todas as condições para que Bolsonaro, golpista essencial, alimente-se como líder sectário e amarre ainda mais a parceria oportunista com o Centrão; a costura populista pelo único interesse do presidente: a reeleição. O governo torce pela segunda onda.

Seria o paraíso. A garantia do chão de instabilidade. Terreno para cultivar, por meio da pregação antidistanciamento, a batalha com governadores, ao mesmo tempo fato novo para lavar o discurso contra as vacinas e passar a admiti-las, e escada para camuflar a incapacidade de formular o tal Renda Cidadã e justificar a continuidade do auxílio, empurrando para amanhã — questão de tempo — a queda do teto de gastos.

Um país paralisado por um governo muito ruim — de um presidente, um populista-autoritário, que prospera no caos e tende a ser altamente competitivo em 2022. Governo ruim — muito ruim — não é governo morto.


Carlos Andreazza: Segundas ondas

Será erro subestimar Bolsonaro à luz do que expressam as urnas

A eleição municipal será o menor dos problemas de Bolsonaro. Há exagero em nacionalizá-la, em responsabilizá-lo diretamente pelo derretimento daqueles que apoiou; talvez com o intuito — politicamente legítimo — de lhe colar derrotas. Ok. É do jogo. Ele perdeu. Os candidatos pelos quais pediu foram mal. Mas que não se leia na fotografia projeção de fraqueza. Será erro subestimá-lo — senhor da máquina federal — à luz do que expressam as urnas.

Será erro, aliás, não contar com a aceleração do populismo bolsonarista como resposta ao que manifestaram as urnas. Chegarei lá.

A experiência da pandemia foi a grande eleitora. Haveria um ensinamento aí. A sociedade escolheu não tomar riscos, numa espécie de ressaca de 2018 antecipada pelos efeitos da peste. Mas essa não é lição para um sectário personalista como Bolsonaro; para quem só uma questão interessa: qual a carga dos fracassos de aliados sobre sua reeleição?

À análise política cabe avaliar até que ponto 2020 condicionaria 2022. De partida: dificilmente a peste estará entre nós daqui a dois anos, mas respostas a seu flagelo, como um Bolsa Família turbinado, provavelmente sim. Não é pouco, dada a natureza imediatista-utilitarista do voto. E a aposta de Bolsonaro permanecerá a mesma. A única que pode fazer: defrontar-se novamente com Lula, ou um cavalo seu, e forçar o eleitor a escolher — de novo — entre rejeições.

Alguém dirá que haveria outra lição para o presidente desde as urnas: a inexistência de estrutura partidária a cobrar preço alto, sendo um equívoco supor que as circunstâncias lava-jatistas de 2018 — o auge da criminalização da política — se repetirão sempre. Essa reflexão, porém, importa para uma Zambelli e outros parasitas. Não para Bolsonaro. Ele não é líder de movimento orgânico baseado em representação política. É o corpo de fenômeno reacionário autocentrado, que despreza a democracia representativa, que depreda o sistema partidário, e que até pode beneficiar algumas de suas franjas, ou muitas, como há dois anos, mas que é ele e só ele, para ele e apenas ele.

Fala-se na força revigorada do centro emergindo em 2020. É um falso poder; esperança deforme. Ao menos por ora, já que sem canalização. Bons resultados — do DEM, por exemplo — aos quais não corresponde a ascensão de figura capaz de dar cara nacional aos números. Quem é o líder de centro-direita? De centro-esquerda? Sem esses nomes, e não é óbvio que surjam, e presos à busca cafona por um Biden brasileiro, os que se opõem a Bolsonaro, enquanto se engalfinham por rotular uns aos outros, só terão a seu favor a torcida para que seu governo, muito ruim, piore.

Será essa provável piora, contudo, suficiente para derrotá-lo? Ou, em dois anos, haveria como promover poderosa empresa populista que, dando poder de consumo à miséria, empurrasse a explosão fiscal para frente? A pandemia, tão servida como desculpa, desculpa continuaria sendo.

Das urnas em 2020, também saem robustos, partidos como PSD e PP, siglas sem identidade, cuja portentosa capilaridade prática — pergunto — mais facilmente se associaria a um projeto de centro para vencer Bolsonaro e tomar-lhe a cadeira, ou a um programa de Bolsonaro, já sentado no trono, por fazer jorrar renda no Nordeste?

Não existe moderação em Bolsonaro. Há conveniência. A fase populista nunca se opôs ao autoritário essencial. O populismo serve ao autoritarismo. O populismo serve à reeleição, a partir da qual o autocrata poderá se desenvolver desamarrado. Havendo grana, não lhe faltarão sócios.

Bolsonaro não tem como operar na normalidade — o que equivaleria a seu perecimento. Precisa de crises. O chamado Centrão sabe e (mesmo assim) fechou com ele. Não será excesso escrever que a pandemia lhe deu segurança. Não será excessivo afirmar que uma segunda onda lhe garantiria a musculatura competitiva. Seu governo é basicamente o auxílio emergencial. Esse é o seu problema; não a eleição municipal perdida por meia dúzia com quem fez lives: assegurar que haja dinheiro para lhe bancar o populismo, manter os parceiros satisfeitos e impulsionar um governo caótico à reeleição. (Não é impossível —fracassando o golpe de Alcolumbre — que logo tenha um presidente da Câmara para chamar de seu.)

O recrudescimento da doença —já disse Guedes —imporia a prorrogação do auxílio. Seria, pois, o caso de o esfomeado brasileiro torcer pelo agravamento da circulação do vírus; de modo a ter a segunda onda de arroz à mesa. Seria também o caso de desconfiarmos de o governo torcer pelo recrescimento da pandemia, com o que bancaria a própria existência —de resto defendida a popularidade do presidente. Faz sentido.

Um estado de calamidade longevo para um governo permanentemente calamitoso. Gatilho para alimentar a guerra contra governadores, limpar o campo para admitir a vacina e chancelar a rolagem da situação orçamentária excepcional; que prorrogaria o auxílio, aliviando o liberal-guedismo de explicitamente romper com o teto, além de lavar —com a escusa da crise derivada da peste — as cores aberrantes da incompetência em gerir o país.

Populistas, autoritários, incompetentes e irresponsáveis são eleitos (e reeleitos) o tempo todo. As cartas estão postas. Não sejamos os negacionistas.