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Carlos Andreazza: Liberdade de expressão seletiva

É o espírito do tempo que emana de uma sociedade avessa ao contraditório

A ação autoritária que resultaria na censura ao especial de Natal da produtora Porta dos Fundos — mais uma exposição de força de mais um imperador togado — foi movida pelo Centro Dom Bosco de Fé e Cultura. A mesma instituição que, em março de 2018, fora vítima de uma blitzkrieg — à porta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — contra a distribuição de um jornal, “O Universitário”, cujos delitos se materializavam em discutir criticamente a questão de gênero, abrigar uma entrevista com Olavo de Carvalho e falar de Jair Bolsonaro com aprovação.

Escrevi, neste O GLOBO, um artigo a propósito, “O indivíduo ausente”, que ora cito: “naquela sexta-feira, dois jovens foram empastelados, escarrados, barbaramente impedidos de fazer circular uma publicação e chamados de fascistas por difundirem conteúdo que em nada — absolutamente nada — afrontava a lei brasileira, isso enquanto os agressores destruíam exemplares do jornal (com apoio de ao menos um professor) a não mais que 20 metros da porta de uma universidade”.

A PUC se omitiria a respeito, com o que — assim compreendi — endossava a selvajaria. O Centro Acadêmico de Comunicação Social — sem surpresa — abraçou a iniciativa criminosa imediatamente. O mesmo centro acadêmico que — apostaria — terá agora repudiado a liminar por meio da qual o desembargador Benedicto Abicair, em nova exibição da magistrocracia que nos dirige, censurou o filme produzido pelo Porta dos Fundos.

Com uma só canetada, sob motivação religiosa num Estado laico, o doutor — ao afrontar o princípio constitucional da liberdade de expressão — legitimou (premiou) a ação terrorista que, no último 24 de dezembro, como expressão de repulsa àquele especial de Natal, lançou bombas contra a sede da produtora; uma intervenção criminosa reivindicada com a pretensão amoral de quem se entende num manifesto político. Foi esse ato de horror para intimidar que o magistrado chancelou — consequência indireta de uma obra-prima da inconstitucionalidade, que flexibiliza um direito, o da liberdade de expressão, que tem, conforme já assentado pelo Supremo Tribunal Federal, preferência em eventuais conflitos com outras garantias fundamentais.

O senhor Abicair — segundo nos lembrou reportagem deste jornal — é o mesmo desembargador que, relatando, em novembro de 2017, um processo no qual o então deputado federal Bolsonaro era réu em decorrência de declarações acusadas como homofóbicas e racistas, votou a favor de um recurso do hoje presidente da República sob a seguinte linha de argumentação: “Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja. Gostar ou não gostar. Querer ou não querer, aceitar ou não aceitar. Tudo é direito de cada cidadão, desde que não infrinja dispositivo constitucional ou legal”.

Não tardaria, felizmente, até que o STF — na figura de seu presidente, Dias Toffoli — cassasse a liminar e, pois, a censura. O mesmo Dias Toffoli que é — ele mesmo — um agente censor recente.

Ou já nos teremos esquecido do inquérito autoritário, aquele, de março de 2019 (e ainda em vigor), estabelecido para investigar a existência — assim, bem ampla e vagamente — de fake news, ameaças e “denunciações caluniosas, difamantes e injuriosas” contra membros do Supremo e seus familiares, instaurado de ofício, como obra da vontade de Toffoli, sem objeto de apuração definido e que, na prática, resultaria, pouco depois, em abril daquele ano, na imposição de censura, pelo relator Alexandre de Moraes, sobre a revista “Crusoé” e em função de reportagem incômoda para o presidente da corte?

O mesmo ministro Alexandre de Moraes, despachante de censura, que, em voto primoroso, de março daquele confuso 2019, escreveu que o “direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias”. Que tal? Uma aula, por exemplo, aos que que defendem o direito à livre sátira sobre a fé cristã, mas que reagem ao mesmo princípio quando ilustrado em Maomé.

Este pequeno conjunto, breve amostra de graves incoerências, seleta de como rebolam os democratas de ocasião, é bom retrato do país em que vivemos, o da insegurança jurídica como desdobramento menor de uma sucessão de ondas que testam o rochedo em que vão fincados os marcos da democracia; eficaz radiografia do espírito do tempo que emana de uma sociedade avessa ao contraditório, hostil ao dissenso, e cuja defesa do valor da liberdade — cuja adesão à liberdade de expressão como direito fundamental inegociável — resta condicionada à direção que o vento ideológico, essencialmente oportunista, imprime à biruta de convicções generalizantes e frouxas em que, esvaziados de individualidade para discernir, nos inflamos.


Carlos Andreazza: Bolsonaro e o déficit da Presidência

O presidente mente como estratégia, para testar o campo, para medir apoios, para aferir o pulso dos seus

Basta de mistificação. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha — o maldito fundão — é lei. A de número 13.487, de 2017. O texto, no artigo 16, é explícito: o “Fundo é constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral (...)”

Repito: é lei. Já foi sancionada. Não está em debate. E nada tem a ver com Jair Bolsonaro. É matéria impessoal. Qualquer proposta de orçamento em véspera de ano eleitoral deverá contemplar previsão para aquele fundo. Seria assim — igualzinho — se Fernando Haddad tivesse vencido. Se cabo Daciolo estivesse na Presidência: seria assim. Será assim, novamente, em 2021. Qualquer que fosse (for) o governo precisaria (precisará) incluir destinação de valores para este fim. O governo Bolsonaro o fez. E enviou ao Parlamento.

A discussão ora havida — uma polêmica artificial estúpida, que investe na confusão e escapa do que importa — é sobre o valor dessa dotação; e sobre se o presidente pode ou não vetá-lo. Lembremos... Depois de muita atividade legislativa, e do surgimento influente da ideia de elevar o montante para cerca de R$ 4 bilhões, o Congresso — dobrado pela reação da sociedade — por fim definiu a tunga em pouco mais de R$ 2 bilhões, a mesma quantia prevista pelo governo; ou seja: por Bolsonaro. Ele poderia vetá-la? Sim. Para que não reste dúvida: sim, poderia vetar o valor estabelecido.

A pergunta é outra, contudo: que sentido faria o presidente vetar uma dotação que ele mesmo propusera?

Nenhum. Né? Mas é aí, na ausência mesmo de razão, que começa a enrolação; a vergonhosa manipulação dos fatos e do que versam os códigos pelo presidente e seus bate-paus. Um padrão já mapeado e que se baseia na mentira como método — mentira logo instruída e ministrada via WhatsApp etc. Bolsonaro mente. Quer se desvincular, para efeito de percepção popular, do sistema de que faz parte e — sempre criminalizando a atividade política — empurrar a responsabilidade exclusivamente contra o Parlamento. Foi assim, em grande medida, que erigiu a eficiente farsa de sua persona antiestablishment.

O presidente mente como estratégia, para testar o campo, para medir apoios, para aferir o pulso dos seus. Mentir, desinformar — é como compreende “preparar a opinião pública” para quando, afinal, sancionar a dotação bilionária para o fundão. Bolsonaro precisa enganar — ou tentar — porque um de seus pilares de sustentação mais importantes, aquele (instável) lavajatista, é hostil à estrutura partidária (à democracia representativa) e aos mecanismos públicos de financiamento dessa máquina. Daí por que jogue para sua rede que, se vetasse aquela linha do orçamento, incorreria em crime de responsabilidade — um gatilho para que, segundo sua versão, fosse vítima de um processo de impeachment. Pura balela. Ou teríamos o incrível evento do crime de responsabilidade em decorrência de infração à lei inexistente...

A lógica elementar aterra a cultura da desinformação difundida pelo próprio Bolsonaro: se a lei está para ser sancionada, é claro que pode ser vetada. Se está para ser sancionada, e se pode ser vetada, lei vigente ainda não é. Oh!

Vetar é prerrogativa do presidente. Vetar é opção legítima plenamente assegurada à função de chefe do Executivo; aquele que decide — que precisa decidir — e cujas decisões não raro deságuam em impopularidade. Se, porém, neste caso, dado o histórico de seu discurso contrário ao que representa o tal fundo, vetar — decidir — significa também o risco de ser entendido (pelos seus) como cometendo estelionato eleitoral, e se esse é (e é) um grande dilema (paralisante) para Bolsonaro, um governante que só sabe se comportar como candidato em campanha, eis o que sobra (inclusive aos que não lhe votaram): a expressão de um presidente cujo déficit de Presidência é alarmante.

Eis o que falta: um governante capaz de explicar à população de que maneiras a lei o limita e obriga, e por que, afinal, caímos nessa arapuca de financiamento público de campanha eleitoral. Esse que sempre foi o maior problema; o erro fundamental, o que importa aqui e do qual toda a mistificação corrente deriva: aquela ocasião, ainda em 2015, quando o STF — legislando, jogando para a galera, e festejadíssimo por muitos entre os que hoje praguejam contra o fundão — declarou, sem avaliar consequências, sem estudar qualquer possível modulação, sem pensar em aperfeiçoamentos do modelo, a inconstitucionalidade do financiamento empresarial de eleições.

Dinamitou-se o prédio sabendo que outro teria de ser erguido ali — e sem qualquer projeto de edificação para ocupar o terreno, o que costuma resultar em engenharia pior, paraíso para a construção de um puxadinho.

O que os bem-intencionados pensavam que viria no lugar?

O problema — toda a desgraça — não está em quanto de dinheiro público será gasto para bancar eleição; mas que eleição, no século XXI, seja bancada por dinheiro público.


Carlos Andreazza: A histeria lavajatista

A histeria lavajatista sobre a implementação do juiz de garantias —ótima figura jurídica — em nosso ordenamento ocultou outros pontos relevantes, aperfeiçoados ou incluídos pelo Parlamento, e sancionados pelo presidente, no chamado pacote anticrime; sobretudo aqueles ligados ao instrumento da colaboração premiada, ferramenta importante, mas cuja juventude, legislação nascida em 2013, merecia alguns graus de maturidade.

O pacote os trouxe. Não o proposto por Sergio Moro, esvaziado também com a intenção política de lhe diluir a identidade do ex-juiz. Mas o costurado pelo Congresso e chancelado por Jair Bolsonaro, um bom conjunto, que impõe necessários limites à lei de delações. Por exemplo: que depoimentos de delatores não possam, per si, sustentar medidas cautelares nem denúncias.

É sabido que houve excessos nos usos desses conteúdos delatados, sem qualquer outro elemento de corroboração, para colocar indivíduos —não interessa o quão criminosos — na cadeia. É sabido que muitas investigações se acomodaram — como que apoiadas numa muleta — na palavra de um (encrencado, em busca de se safar) contra outro (não raro nem sequer investigado), disto resultando fragilidades nas acusações.

“Ah! Mas isso é um ataque ao combate à corrupção! Vai acabar com a Lava-Jato”.

É o escambau! Basta deste embuste de ouvir —toda semana —que qualquer mudança proposta pelo Parlamento bota em risco a luta contra a corrupção. Isso virou um mantra de fanáticos que outra coisa não fazem senão defender a estrutura do próprio poder. Ouço esse papo, de Lava-Jato ameaçada, desde 2014 —e nunca o combate à corrupção retrocedeu.

O lavajatismo não dita —não pode ditar — o ritmo da vida pública neste país. Não pode controlar nossos humores. Não pode — porque popular —raptar a independência da imprensa. E não se pode admitir a retórica influente de que fazer críticas —ainda que as mais duras — aos operadores da Lava-Jato equivalha a ser a favor da corrupção. O que é isso? Estamos criando uma casta de intocáveis?

Os diálogos revelados pela Vaza-Jato estão aí para lembrar que não há santos nesta ceia. Nem Moro. Se a entrada da figura do juiz de garantia em nosso ordenamento, já prevista no texto do novo CPP, foi acelerada —e foi — como reação política ao tipo de magistrado que ele representa, aquele que se associa à acusação, e se essa pancada no hoje ministro foi avalizada, conscientemente, pelo chefe presidente, problema deles. Isso não desqualifica o instrumento, ainda que haja problemas na forma de implementação e dúvidas sobre sua regulamentação.

Valerá para processos em curso? Não deveria. Sendo, de todo modo, desonesto intelectualmente sair gritando — com base no que ora há —que a mudança atenderá aos interesses de Flávio Bolsonaro. Pode vir a atender?
Mais provável é que não. Fiquemos em estado de alerta.

É desonestidade intelectual, porém, deparar-se com uma figura como a do juiz de garantias e —com fundamento nessas pendências — sair bradando que representará um abalo na guerra contra a corrupção. Quero saber por quê. Por que atrapalharia o advento de um magistrado que controle o processo — ministrando diligências e cautelares — para assegurar que direitos não sejam violados? Só atrapalharia a quem quisesse extrapolar.

É mentira que o juiz de garantias fincaria uma nova instância na tramitação de processos. É mentira também que a defesa — que o investigado — poderia escolher o juiz de garantias que lhe acompanharia a ação. A quem interessa esse terrorismo?

O aperfeiçoamento da legislação —inclusive a relativa ao instituto da delação premiada —serve para minimizar as áreas cinzentas em que se dão abusos e onde se abrigam, portanto, as verdadeiras ameaças às investigações. Se vamos mesmo permanecer cativos do fetiche segundo o qual a corrupção é o maior problema do Brasil, que ao menos gozemos num cativeiro iluminado.

“Ah! Mas como ousa sugerir que a corrupção não é o maior problema do país!?” Não estou sugerindo. Estou afirmando. O maior problema do Brasil é o tamanho do Estado e sua ineficiência. O maior problema do Brasil é a incompetência derramada no aparelho estatal. Diminua o Estado, reduza o corpo da máquina — e também a corrupção cairá. A corrupção está na superfície da máquina pública. Diminua o Estado —e nenhuma Lava-Jato será capaz de combater a corrupção com melhores resultados.

Mas quem, entre os justiceiros alarmistas apontadores de riscos contra o combate à corrupção, muitos dos quais heróis aboletados na banha estatal, quer mesmo diminuir o Estado? Existe a indústria da corrupção, tremenda e histórica. Tanto quanto há — e cresce — a jovem indústria do combate à corrupção; que também precisa de carne.


Carlos Andreazza: Weintraub é uma ideia

Bolsonaro é hábil gestor de zumbis

Especula-se sobre uma reforma ministerial e a queda de Abraham Weintraub. Não sei se este é o intento do presidente. Sei que a campanha contra o ministro da Educação tem por fonte — por cérebro e motor — a ala ideológica do governo, a que dá formulação e discurso ao bolsonarismo, e que ocupa território privilegiado, falando ao ouvido de Jair Bolsonaro, no Planalto. Sei também que este grupo não age — jamais agiu em quase um ano — sem o aval do presidente; e que nunca rachou. Terá sido a primeira vez?

Não faltam elementos a expor a fervura do óleo na panela amiga em que se quer empanar o ministro. Isso não significa, porém, que Weintraub cumpra mal a missão que lhe foi designada.

Bolsonaro estimula os conflitos internos. Há método na forma como multiplica inseguranças entre auxiliares. Ninguém estaria tão firme. O vaivém de sua palavra — o modo como provoca confrontos inclusive entre colaboradores os mais graduados — tem como meta também desautorizá-los. Ele o faz em público. Distribui derrotas. O mais forte no núcleo duro governista é o menos fraco.

Já escrevi, nesta coluna, sobre “a lógica do fusível” com a qual o presidente gere ministros. O fusível é um dispositivo cuja existência consiste em ser um anteparo condenado a queimar para que queimado não seja o sistema; para que protegidos restem governo e governante. Bolsonaro não hesita em atropelar acordos — firmados por delegados seus, sob sua chancela — se puderem ser entendidos como triunfos em excesso da agenda de um assessor.

Terá sido assim — sob o espírito do “não se pode ganhar sempre” — que dinamitou o envio ao Parlamento da reforma administrativa costurada por Paulo Guedes. Foi assim que não mobilizou nem sequer minuto contra a diluição — a perda de identidade — do pacote anticrime de Sergio Moro; isto enquanto articulava para secar a independência lavajatista do ministro da Justiça, o popular ex-Moro, e transformá-lo no que ora é: espécie de advogado do bolsonarismo.

Com poucas exceções circunstanciais, auxiliares — mesmo os de primeiro escalão — estão no governo para se desgastar. O presidente não os poupa. Coloca-os em campo, como para-raios, sob as descargas das intempéries políticas, para que sejam eles, e não ele, os eventuais fulminados pela tempestade; não tendo pena de inutilizar um subordinado caso a agenda deste —autorizada por ele — desenvolva-se mal e represente risco de escalar para ameaçá-lo.

Isso não quer dizer, contudo, que os queimados sejam imediatamente descartados. Bolsonaro é hábil gestor de zumbis. Há também uma dimensão militar em sua estratégia: manter um cinturão de gordura, uma camada de esvaziados (Onyx Lorenzoni), fanfarrões provocadores menos (Damares Alves) e mais nocivos ao país (Ricardo Salles, Ernesto Araújo e o próprio Weintraub), e enrolados (Marcelo Alvaro Antonio); bois de piranha conservados para o exercício de assombrar (e distrair) os críticos, notadamente a imprensa, mas cujo propósito adiposo seria, por distância, escudar o presidente.

Assim pensa Bolsonaro: “Se não conseguem nem sequer derrubar o ministro do Turismo, muito longe de me abalar estarão.”

Nada disso significa — repito — que Weintraub cumpra mal sua missão. Ele é um executivo. E executa. Opera sob a dinâmica da guerra cultural, do combate ao inimigo, aquele agente do establishment encravado na máquina estatal, cuja derrota só será possível com a destruição da máquina estatal. Weintraub veio para destruir. E entrega resultados.

Por que, então, a campanha por derrubá-lo?

Afora o fato de que choques ceifadores internos sejam normais na dinâmica revolucionária, a blitz da ala ideológica contra o ministro deriva de ele trabalhar com algum grau de concepção econômica liberal. Quer diminuir o tamanho do ministério e ousou se mover para asfixiar a inexpressiva TV Escola. Mexeu numa entre as tantas tetas abocanhadas pelos pançudos jacobinistas, que consideram que a batalha consiste em destruir sem necessariamente reduzir, ocupando os espaços e os aparelhando. Em suma: destruir sem dieta, enquanto engordam. A revolução dos reacionários tem fome. Quer assegurar a boquinha.

Essa é a razão por que se investe — desde dentro do Planalto — contra Weintraub. Se ele tombar, entretanto, tudo indica que outro com o mesmo objetivo devastador terá lugar. Enquanto os próprios bolsonaristas coziam o antecessor Vélez Rodriguez, adverti para que aqueles perplexos com sua gestão não comemorassem — porque a chance de que viesse alternativa pior era imensa. Não deu outra. Repito a advertência agora.

Este 2019 já está perdido em matéria de Educação. Mais um. Outros anos natimortos virão. Não importa o ministro. Nada se pode erguer sobre um chão cuja instabilidade é projeto de governo. Weintraub é o espírito do tempo. Vai, fica: ele permanece. Weintraub é uma ideia.


Carlos Andreazza: Barbas de molho

A pesquisa Datafolha é boa para o ministro da Justiça a ponto de colocá-lo (novamente) em risco

Os números da última pesquisa Datafolha são bons para Jair Bolsonaro. Indicam que a escalada de reprovação do governo teve ritmo sustado. A sangria foi estancada. Ainda com impopularidade em andar elevado; mas estabilizada. É notícia relevante. Isto porque não se pode esperar que o presidente tenha altos níveis de aprovação.

Ele não é um conciliador. Não tem o perfil daquele que amalgama sentimentos para, por exemplo, eleger-se em primeiro turno. Trata-se de alguém que cinde; que, com sucesso comprovado, fundamenta o discurso no confronto, que fala para grupos específicos — e que aposta na polarização radical como condição garantidora dos votos daqueles que, sobretudo, rejeitam seus adversários.

Este é o lugar de alguém que, ademais governante, tende a ser desprezado por cerca de 35% do eleitorado, aprovado por algo como 30% — e que investe em atrair, numa circunstância de disputa eleitoral extremada, a maioria entre os que avaliam o governo como regular e que têm pavor, no caso, do PT. Ou seja: Bolsonaro deseja — precisa — enfrentar, em clima de guerra, Lula ou seu cavalo da vez; e teme, por falta de recursos para o debate político, alguém como Luciano Huck.

Note-se que a rejeição ao governo é especialmente forte entre mulheres, negros, desempregados, pobres e nordestinos. Registre-se que este mesmo governo — percebido (não sem razão) como elitista — pagará, pela primeira vez, o décimo terceiro salário do Bolsa Família; movimento que pretende abraçar o cidadão pobre do Nordeste. Uma jogada político-eleitoral ambiciosa, cujo eventual sucesso se medirá nos próximos levantamentos.

Não deixa de ser curioso que a economia seja a grande responsável por domar a impopularidade do governo. Houve significativo aumento na taxa de aprovação da equipe econômica. Logo a área menos afeita aos interesses do presidente — aquela que delegou ao Posto Ipiranga, o ministro Paulo Guedes, quase que com porteira fechada; o quase ficando na conta das vezes em que Bolsonaro agiu deliberadamente para atrapalhar, em defesa de interesses corporativos, na reforma da Previdência, e ao impedir, num grave erro de cálculo político, que a reforma administrativa fosse enviada ao Parlamento na semana retrasada.

Seja como for, será ele — o chefe — a colher os louros. Apesar de Bolsonaro e em benefício de Bolsonaro, há uma sensação de melhora nos ares da economia — e é essa a sensação que alivia a pressão sobre o presidente. O homem tem sorte.

Ainda que timidamente, e sem que se possa descartar que nos armemos para mais um voo de galinha, a modesta retomada na geração de empregos (mesmo que informais) e os números do PIB (mais o que projetam para o futuro do que os dados em si) mobilizam uma expectativa positiva e acariciam o humor da população; pulso que se pode aferir no fato de que 53% entre os pesquisados achem que sua própria situação melhorará. Como o cidadão otimista não come volume de PIB, mas carne, firmo-me no ceticismo. Como não minimizo a influência da (depressão) política sobre a economia, firmo-me na prudência.

Gente graúda do Ministério da Economia, no entanto, já lida (reservadamente) com crescimento econômico de 3% em 2020. E fala-se em chegar a 2022 para além dos 4% — lugar em que, assim se estima, só muito improvavelmente Guedes não entregaria a reeleição a Bolsonaro.

Mas: o que Bolsonaro entregaria a Guedes? Ingratidão em curto, médio ou longo prazo?

Para os melhores interesses de seu projeto autocrático de poder, protegerá os seus liberais econômicos — ao menos até a eleição — da fome por sangue da ala jacobinista do governo? Ou os dará antes, capacidade de investimento retomada, à sanha daqueles que dirigem o Palácio do Planalto e que estiveram no cérebro das operações que derrubaram Bebianno e Santos Cruz, que engessaram Mourão e que cooptaram, para a gramática de guerra reacionária, o outrora moderador general Heleno e o até há bem pouco independente Sergio Moro, convertidos ambos ao bolsonarismo também por medo de tombar?

Moro, aliás, deveria botar as barbas de molho. A pesquisa Datafolha é boa para o ministro da Justiça a ponto de colocá-lo (novamente) em risco. Como explicar que a taxa de aprovação do governo em matéria de combate à corrupção — pilar fundamental da persona de Bolsonaro, área sensível ao imaginário bolsonarista — caia pesadamente, mas que a avaliação daquele objetivamente responsável por tal enfrentamento se mantenha estável e altíssima?

Nada cola em Moro, aprovado por impressionantes 53%. Isto enquanto os escândalos do episódio Queiroz e do laranjal do PSL, entre outros, vão integralmente para as costas do governo; assim como se a população identificasse a existência de problemas no combate à corrupção apesar do melhor empenho do herói Moro, espécie de entidade que pairaria acima até do mito Bolsonaro.

Nada cola em Moro. Nem o governo que integra. Barbas de molho, doutor.


Carlos Andreazza: Paulo Guedes está irritado

Talvez já não se sinta um superministro

As revoltas recentes na América Latina, sobretudo no Chile, têm servido como desculpa para justificar tanto o ímpeto autocrático do bolsonarismo — o recrudescimento, por exemplo, do discurso que legitima algo como um novo AI-5 caso evento parecido ocorresse no Brasil — quanto as dificuldades do governo Bolsonaro, especialmente em matéria econômica.

Diga-se que ninguém se valeu mais deste recurso — da muleta do quebra-quebra chileno —do que Paulo Guedes.

As rebeliões no continente, aliás, iluminaram o que havia muito estava nu: que o ministro jamais poderia ser agente educador-moderador do presidente-imperador, e pelo fato de que o Posto Ipiranga sempre esteve muito mais próximo da mentalidade bolsonarista, com sua vocação para o conflito e a ruptura, que do lugar de equilíbrio institucional fetichizado por empresariado e mercado financeiro.

As rebeliões no continente — à luz do que manifestam nossos governantes — deveriam nos lembrar de que não há uma tradição democrática no Brasil, e que os limites definidos pela democracia tendem mais a incomodar que confortar. Guedes está irritado. Reage não se opondo — não raro oferecendo tortuosos argumentos — aos que surfam a tentação de atribuir os percalços da agenda reformista liberal ao que seriam excessos da democracia. Seria mais fácil com menos — já nos ensinou Carlos Bolsonaro.

Nas palavras de Guedes, somente na semana passada, as convulsões na América Latina tentaram autorizar uma aberração inconstitucional — excludente de ilicitude em operação de Garantia da Lei e da Ordem — e aliviar a carga de uma constatação: a de que seu programa de reformas estruturais parou. Por ordem do presidente: parou.

Guedes está irritado. Talvez pense em Moro — o ex-Moro. Talvez já não se sinta um superministro. É natural que procure uma narrativa em que se escorar. (Que se utilize de uma fundamentada em instrumento de exceção: aí é quando as circunstâncias expõem os indivíduos.) A versão escolhida depositou sua credibilidade nas mãos de Bolsonaro; em até quando o presidente endossará o texto segundo o qual a “bagunça” no continente seria o motivo por que mandou travar a reforma administrativa.

Guedes prometeu demais. Anunciar metas ambiciosas, sob a lógica do setor privado, costuma cobrar preço alto na administração pública. A expectativa política, gerada desde dentro, era imensa. O país zeraria — neste 2019 — o déficit das contas públicas. Havia outras promessas para já. Sublinhe-se: não cumpridas. O pacote de privatizações — reconhecidamente — avança com mais agruras que o previsto. A reforma tributária foi entregue a um secretário inepto, que tudo centralizava, e cuja queda impôs ao ministério que iniciasse o trabalho do zero. E a da Previdência, tocada sob a tal nova política que encanta Guedes, chegou a bom termo tanto quanto fez envelhecer prematuramente o governo. Ainda não se recuperou o ar, e já vem outro ano eleitoral...

A frustração é evidente. A irritação, materializada em praguejamento autoritário, é consequência. O caldo entornou. Mas ninguém —nem no governo nem em grande parte da imprensa — quer se encontrar com o problema de que Guedes se alavancou em excesso (para curtíssimo prazo), subiu o sarrafo à altura inalcançável; e não entregou.

É óbvio que isso faz aumentar a pressão e alimenta os adversários, inclusive os internos. É óbvio que faz subir o fogo em que o populismo bolsonarista cozinha o liberalismo econômico que supôs ser possível prosperar sem liberalismo político e reformar um Estado ora tocado por um projeto autocrático de poder.

Talvez se queira desfilar com a fantasia de que está tudo bem, tudo sob controle, até o carnaval. Depois de a Mangueira passar, porém, será necessário voltar à claríssima entrevista que o ministro deu à repórter Ana Clara Costa, publicada neste GLOBO , no último domingo, para enfrentar a dor, a ardência, da mensagem.

Guedes, transparente, fala no risco de o Brasil reproduzir a Argentina; nisto contidas uma real possibilidade — a de seu plano, sem a célere implementação das reformas, não resultar em crescimento sustentável e, pois, fracassar — e uma ameaça (ou não seria um bolsonarista): o de a esquerda voltar, como o kirchnerismo no país vizinho.

Não há como ler a entrevista — um longo lamento — senão com pessimismo. É esquisito. Seus melhores momentos se desdobram numa superfície temporal impossível, indefinível. O ministro coloca sua gestão da economia num tempo inexistente, espécie de limbo em que estaríamos sempre atrasados. Isto porque o triunfo de sua agenda — conforme expressa o próprio Guedes — dependeria de rapidez no avanço das reformas. E esta rapidez já não veio. É ele quem diz. A projeção de crescimento que faz —1% em 2019, 2% em 2020, 3% em 2021 e 4% em 2022 — configura Inês morta , dado que ancorada em aceleração que não houve. É angustiante.

Guedes está irritado. Terá cansado?


Carlos Andreazza: O presidente da República contra a imprensa

O presidente Jair Bolsonaro falou ontem, referindo-se à administração pública, que tem dificuldades seríssimas em muitas áreas. Nós sabemos.

Aliás, nesta ocasião, referiu-se ao Tribunal de Contas da União como se parte de sua mesma equipe; como se não fosse o TCU um órgão de controle externo, que opera com autonomia. Não se trata de novidade. Já estendera essa visão privatizadora (para si) do Estado, por exemplo, à Polícia Federal – que enxerga (ou deseja) como uma instituição subordinada a seu governo, e não como um organismo de Estado com autonomia funcional. É assim mesmo. Bolsonaro ainda não entendeu – nunca entenderá – a ideia de República.

Por isso, claro, tem também dificuldades seríssimas em compreender o papel da imprensa e a impessoalidade republicana. Muitos dos atos de flagrante inconstitucionalidade perpetrados pelo presidente derivam de seu inconformismo em não haver sido eleito para imperar, com mandato para moldar o Estado de acordo com suas vontades, afetos e desafetos.

É comum que governantes não gostem de jornalistas e reclamem da atividade jornalística. Em Jair Bolsonaro, no entanto, esta hostilidade escalou. Integra um discurso. Constitui-se mesmo num dos pilares do projeto de poder autoritário bolsonarista. Como a lógica sectária que fundamenta o fenômeno personalista do bolsonarismo exige adesão incondicional, toda e qualquer instituição que exerça algum grau de independência será uma ameaça a ser emparedada.

O bolsonarismo não aceita – não admite – autonomia que não a sua.

Isto serve para o Parlamento, para o Supremo; e também para a imprensa. Que deve ser desqualificada, ter a credibilidade artificialmente esvaziada, sufocada – para que o governante, líder populista, faça prosperar a farsa de que o filtro intermediário jornalístico é prescindível, descartável, e que ele pode falar ao povo diretamente ou por meio dos canais a seu serviço. Afinal, como sabemos, o presidente – um governante – não mente...

A cruzada personalista de Jair Bolsonaro contra a Folha de S. Paulo – e usando o aparelho de Estado para tanto – não é contra o jornal; mas contra o jornalismo e, portanto, contra a liberdade de imprensa. Não se pode calar diante disto.

Não se pode calar ante um presidente que constrange empresários com alertas sobre anunciar em certos jornais e emissoras. Isto é crime de responsabilidade.

Ao cumprir uma promessa de imperador eleito e excluir a Folha – sem qualquer base técnica, a partir de inaceitável questão pessoal – de um processo de licitação para fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa, o presidente não atentou somente, e gravemente, contra a impessoalidade republicana, mas turbinou, valendo-se novamente da máquina estatal, sua campanha autocrática contra a atividade jornalística e, por consequência, contra o Estado Democrático de Direito.

Não interessa que Jair Bolsonaro se sinta perseguido pela imprensa; vítima do jornalismo. Ele é o presidente. Fala como presidente. Age como presidente. Não existe Jair Bolsonaro, o homem e seus desafetos, quando se expressa via (musculatura da) máquina federal.

Já passou da hora de uma medida cautelar – pedagógica – sustar esse processo licitatório e colocar o presidente e suas vontades imperiais no cercadinho dos limites da República.

Estamos ainda ao 11º mês do primeiro ano do governo Bolsonaro. Nunca, desde a redemocratização, tal volume de ataques à imprensa – por um governante, o próprio presidente – foi disparado. Difícil supor que não vá piorar.


Carlos Andreazza: O bagaço liberal

Para que reste logo assentada a constituição deste escriba, aquilo que dá regência a este texto: não acredito em liberalismo econômico sem liberalismo político. Não numa democracia. Para que fique ainda mais claro, com aplicação prática: não acredito na vitalidade – na viabilidade – de um projeto de reformas liberais do Estado que não tenha os princípios da democracia liberal como um valor inegociável.

Tampouco creio ser possível, no mundo real, atrair investimentos – investimentos, não especulações – para um solo obviamente instável, inseguro; chão cujo desequilíbrio é forjado artificialmente por uma fábrica de crises institucionais que tem centro no próprio presidente da República.

Quem botará dinheiro – para valer, para ficar – nisso aqui?

A rigor, objetivamente, desconfio do interesse de o bolsonarismo, fenômeno autocrático, investir num programa liberal na economia – algo estrutural, com corpo de longo prazo – para além da geração das condições básicas mínimas para um voo de galinha capaz de assegurar a reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Não será preciso muito... Dado o fosso em que nos afundamos, uma breve reação na curva da geração de empregos faria boa parte do serviço.

Argumento nenhum desmonta a minha suspeita – com alicerce histórico – de que a intenção bolsonarista, nem um pouco original, seja usar o liberal econômico para conquistar alguma descompressão fiscal, algum fôlego para gastar, para fazer obras; e depois: tchau. Não seria novidade. É o que os mais espertos entre os populistas fazem.

Muito mais grave do que a recessão econômica é a depressão política que nos ata, pelo menos, desde 2013. É difícil supor que a primeira possa ser superada – com consistência, com fundamentos – sem que resolvamos a segunda. Eu diria: é impossível. Pergunte-se, portanto: será este governo – que opera em guerra constante, que planta conflitos como alimento, que está em campanha permanente, que radicaliza, que avança no racha do “nós contra eles”, que é a própria antipolítica – apetrechado para vencer uma doença política sem precedentes em tempo democrático (e da qual talvez seja a mais alta febre)? Ou seria vocacionado para ardê-la ainda mais?

Como não citar, a propósito, a fábula bolsonarista recente do leão e as hienas? O leão! O presidente leão. O rei da selva. Rei da selva – e (ao mesmo tempo, num arranjo improvável) vítima. Ele, o dono do pedaço, impedido de imperar plenamente por uma concertação golpista de hienas – as próprias instituições da República, os instrumentos de mediação e fiscalização; incluída a imprensa. O maldito establishment que não deixa o homem reinar acima dos marcos republicanos e da democracia representativa.

Para que não haja dúvida: o cenário – divulgado por Jair Bolsonaro em vídeo – expressa real inconformismo ante a teia impessoal que regula o ímpeto do governante por se espalhar. Para que não haja dúvida: as hienas são a institucionalidade – os freios e contrapesos que limitam o abuso de poder.

Não tem como dar certo.

Na já célebre entrevista à jornalista Leda Nagle, aquela em que falou em recurso a algo como um novo AI-5, Eduardo Bolsonaro declarou também que o que faz um país forte não é um Estado forte; mas indivíduos fortes. Belo, né? Concordo. Há, porém, uma armadilha totalitária na formulação. Vejamos. Quem fala em novo AI-5 fala numa medida de exceção que, obrigatoriamente, suprime – cassa – garantias individuais. Certo? Quem fala em novo AI-5 fala, pois, em Estado forte; obrigatoriamente. Fala, por óbvio, em Estado forte na mão – obrigatoriamente – de indivíduos fortes; porque alguém precisará operar a máquina forte. Certo?

Daí por que se pergunte: quais são os indivíduos fortes de Eduardo Bolsonaro, os que controlariam o Estado? Os leões da família. Governantes fortes.

Isso tem passado; e não é bonito.

Podem me chamar de pessimista. Prefiro o lugar do prudente; do cético. Não importa. Tenham-me na conta do pessimista. Há, contudo, inegável lastro histórico na análise que proponho. Não existe liberalismo econômico sem liberalismo político. Não na democracia. É a história que ensina. O primeiro, sem o segundo, é o paraíso para o autocrata. Não acredito em liberalismo econômico em terra de leão. Mas acredito em liberalismo econômico na boca do leão; sendo sabido – e me desculpo por imagem tão franca – por onde sai o que pela boca entra.

Alguém duvida de que liberal – por ora instrumento necessário – também seja hiena, um inimigo, sob a mentalidade bolsonarista? A história – sempre ela – ensina. A história ensina também que não terão sido poucos os liberais que, caindo no conto do autoritário liberal, legitimaram e financiaram projetos autocráticos de poder. Projetos autocráticos de poder que não tardariam, chupada meia laranja liberal, a descartar o saco liberal todo como bagaço.


Carlos Andreazza: A eleição delirante

Desqualificar Bolsonaro pelo que não é só nos afastará da pergunta urgente, do mundo real: ele tem competência para governar? Não

Bolsonaro não é fascista, e sua eleição não imporá um regime de exceção. Isso é confortável delírio na boca de perdedor nunca capaz de compreender o adversário, e desespero sem vergonha de quem, representante de um partido para cujo projeto de permanência no poder pilhou-se o Estado, ora se apresenta como merecedor de um voto moralmente superior. Aliás, a pregação do deputado como nazistão serve de gatilho libertador para que muitos constrangidos com a roubalheira lulopetista possam agora votar no PT maquiados de “ele não” e olhar desde cima a forma como os bárbaros, os que não votam no cavalo de presidiário, jogam o país na incerteza.

Que tal botar a bola no chão, baixar a pretensão de que seja possível votar bem em 2018 e entender que a democracia brasileira está desqualificada não por causa de Bolsonaro, mas em decorrência do longo processo de depauperação da política que o tornaria imbatível?

Não sejamos oportunistas. O sujeito não vem para destruir direitos nem para aterrar as instituições — não mais do que os lulopetistas, os que sucatearam a institucionalidade com a sindicalização da máquina pública e com o embuste do tal golpe, e que insistiram numa candidatura impossível apenas para alimentar a narrativa de Lula como vítima, perseguido político, inimigo de juízes e procuradores por cuja cultura jacobinista, afinal, são responsáveis. Ainda assim, sobreviveremos. A democracia sobreviverá. A questão é outra.

Bolsonaro é autoritário e iliberal, defensor de nicho corporativo e de passado avesso ao reformismo, com um histórico de manifestações reacionárias e de realizações inexistentes, que encaixou discurso conservador, moralizador e voluntarista, projetando ser, uma vez eleito, aquilo que jamais foi, em função de quem já se forma uma nova corte, de extração collorida, com familiares como interlocutores privilegiados e uma órbita gulosa e influente de lobistas, e a respeito de quem, portanto, só uma pergunta se deveria fazer — a única que não se faz: tem competência para governar? Alguém é capaz de desenhar o programa bolsonarista de gestão para o país? Ou a agenda será exclusivamente o combate à corrupção, como se tal fosse o principal problema (está longe de ser)? Falo do mundo real, aquele em que as pessoas precisam de emprego e em que o risco não é de venezuelização nem de ascensão do Hitler, mas de se eleger uma nova Dilma.

Em vez de a histeria que anuncia o provável futuro presidente como aquele que virá para cassar a democracia, melhor seria empenhar esforço em compreender o que é orgânico fenômeno político e as limitações de quem o materializa. A ascensão de Bolsonaro, por exemplo, pode ser explicada pelo comportamento de Haddad no segundo turno, dedicado a convencer o eleitor de que, luloposte do líder preso de um projeto partidário de poder que assaltou o Estado por 13 anos, de súbito encarna a esperança democrática do país.

Enquanto se tenta enfiar esse desrespeito à inteligência alheia goela abaixo do brasileiro, Bolsonaro se explica: é o guardião dos sentimentos antilulopetista e antipolítica. Não apenas. A constituição de seu mais antigo discurso — o que radicalizou o senso de urgência à pauta da segurança pública — é aula de engajamento. O deputado jamais se expressou publicamente senão para defender um dos mais sensíveis interesses daqueles a quem pede voto: a propriedade privada. Aí incluído o que se pode chamar de patrimônio imaterial e que abarca família, religião e educação; conjunto de valores caríssimos a uma sociedade que é difusamente conservadora, mas que tem sido desprezada pela imposição de uma agenda elitista-progressista que em nada atende às necessidades mais básicas das gentes que pisam no chão e que, no ambiente da política partidária, une e fulmina PT e PSDB.

Não que Bolsonaro tenha simplesmente identificado vitrines muito óbvias no mercado eleitoral e então exposto seu produto ali. Não. Ele sem dúvida reconhecera o potencial desses espaços, mas não eram óbvios nem pareciam vagos quando os encampou. Grande parte do fenômeno que representa emana disto: o deputado já estava ali quando a consciência social brasileira moveu-se para lá. Não é exagero dizer que seja criação de uma militância espontânea que o descobriu naquele lugar e que passou a recortar suas falas, aquelas em defesa de valores tradicionais, dando-lhes molho pop, a própria origem do “mito”. Esse perfil foi criado por seus admiradores na internet a partir da natureza beligerante da atuação que desenvolveu na Câmara — e ele apenas o assumiu. O Bolsonaro que conhecemos é a incorporação da forma como interpretado por seus potenciais eleitores.

Não é um meme, porém. Ou não somente. Mas a expressão ressentida de uma revolta popular gestada lentamente, a do pai que nunca sabe se a filha chegará em casa. Xingar o mensageiro, pois, é ofender o mesmo cidadão, então virtuoso, que no passado elegeu FHC e Lula. Desqualificá-lo pelo que não é só nos afastará da pergunta urgente, a do mundo real, a da ressaca encomendada: Bolsonaro tem competência para governar?

Não.