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Ascânio Seleme: Presidente enfermo, precedentes

É justa a preocupação de muitos com a saúde do presidente Jair Bolsonaro. O vai-e-vém dos boletins médicos informa pouco. Sabe-se que o presidente passou por uma cirurgia bem sucedida de reconstrução do intestino, reassumiu rapidamente o mandato, mas em seguida teve febre e náuseas, depois melhorou e passou a despachar do hospital. Aí piorou de novo, suspendeu os despachos e em dois dias melhorou. Depois piorou outra vez e teve febre de novo, seguido de pneumonia bacteriana. Na sexta, melhorou, comeu gelatina e tornou a despachar. Difícil dizer como estará amanhã. Sua volta a Brasília teve dois adiamentos. Era para ele sair na semana passada, depois sairia amanhã, agora fica internado até quinta.

Não é por outra razão que as redes sociais estão infestadas de boatos sobre a cirurgia de Bolsonaro. Alguns desses boatos falam em doenças, mas a maioria discorre sobre teorias conspiratórias. Estranho? Nem um pouco. Fake news é modelo de ação política bem conhecida da turma de Bolsonaro. E também de seus adversários de esquerda, claro. Não seria diferente com nenhum outro recém eleito presidente. Imaginem como seria com Lula, se ele fosse internado dias depois de tomar posse de seu primeiro mandato. Seria um deus-nos-acuda, com redes sociais ou sem elas.

O Brasil já passou por algumas experiências difíceis de presidentes em hospitais. A mais dramática delas foi a internação de Tancredo Neves, primeiro presidente civil depois da ditadura, na véspera de sua posse. Os mais velhos se lembram muito bem dos 36 dias de agonia de Tancredo no Hospital de Base, em Brasília, depois no Incor, em São Paulo. Tancredo passou por sete cirurgias. Todas as tentativas foram feitas para que ele superasse um leiomioma, câncer de intestino. Até médicos americanos especialistas foram trazidos para inutilmente tentar salvar a vida do presidente Tancredo.

No começo, o câncer foi diagnosticado como uma diverticulite. Depois soube-se que os médicos mentiram a pedido do próprio enfermo que não queria assustar a nação. Não é trivial ter um presidente internado em condições difíceis de saúde. Toda uma gigantesca máquina se movimenta em torno dele. Em alguns casos, o país pode parar esperando a melhora do convalescente. Foi assim com Tancredo. O governo Bolsonaro também está parado esperando o seu retorno. A reforma da Previdência só segue para o Congresso após a sua volta.

Os casos de Tancredo e Bolsonaro são absolutamente distintos. Tancredo foi internado e acabou morrendo porque escondeu um câncer que se tivesse sido tratado antes poderia ser curado. Bolsonaro sofreu um atentado a faca que quase lhe tirou a vida. Foi tratado com cuidado e rigor desde a primeira hora e seguiu sua campanha até se eleger presidente. Sua internação agora é desdobramento da primeira etapa do tratamento iniciado quando do ataque. Normal.

Normal também a preocupação do país com a saúde do seu presidente. Toda a transparência que tem sido dada à evolução do seu quadro clínico parece não ser suficiente. Talvez seja o caso de os médicos virem a público para dar satisfação formal aos brasileiros. Muitos acham que médicos, sobretudo os de São Paulo, falam demais e gostam de holofotes. Discordo. Médico tem que falar. Boletins oficiais e palavra de porta-voz muitas vezes apenas agravam a tensão.


Ascânio Seleme: O risco Bolsonaro na estreia

O governo enfim vai começar. Na volta do presidente da sua operação, no início da semana, começa para valer a administração Bolsonaro. Até a semana passada, com o Congresso não empossado e com o presidente na contagem regressiva para a terceira intervenção cirúrgica, o que se viu foi um jogo de espera. Enfim será dada a partida para o primeiro governo declaradamente de direita desde 1985. Seus projetos querem mudar a cara do país. Os dois principais, a reforma da Previdência e o pacote anticrime, são vitais para marcar o sucesso ou o fracasso da nova administração.

Normalmente, o primeiro mês de qualquer governo é de articulação para aprovar gente sua no comando das casas do Congresso, de medição da firmeza do terreno que se vai pisar, de adaptação. Bolsonaro também teve essa iniciação, embora de modo precário, por ter decidido governar sem fazer nomeações políticas, sem atender a grupos e partidos. Além disso, acabou sendo paralisado pelo escândalo causado pelo filho Flávio Bolsonaro e o seu amigo, motorista e assessor Fabrício Queiroz.

Mesmo assim, Bolsonaro dá início efetivo ao seu governo com ainda muita ficha para gastar. Os novos presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, foram o que melhor poderia acontecer a Bolsonaro. Pode parecer paradoxal, mas o presidente que prometeu varrer para a lata de lixo a velha política deve agradecer por ter um veterano no comando da Câmara. Por outro lado, ter escapado de Renan Calheiros no Senado é um trunfo para um início sem tempestades.

O céu é de brigadeiro também em razão dos perfis de Maia e Alcolumbre. Ninguém pode chamá-los de progressistas, no velho sentido dado à palavra pela esquerda. Não. Ambos são políticos de centro-direita, liberais e conservadores. O presidente da Câmara já explicitou este seu papel publicamente, mas nem precisava.

Alcolumbre será obviamente um presidente do Senado sem muita força, mas fiel. Por ser fraco, ele também não complica. Mas é tido como um bom articulador. E o papel dele e de Rodrigo Maia será fundamental na aprovação das reformas que o governo quer fazer. Serão eles os donos da pauta no Senado e na Câmara, que decidirão em última instância a tramitação dos projetos. E essa é uma vantagem e tanto no jogo político.

Na Câmara, Maia terá força de sobra para fazer propostas do governo tramitar com tranquilidade. O deputado teve mais votos na eleição para a presidência da casa do que os necessários para aprovar emendas constitucionais. Obviamente que este desempenho não representa aprovação automática na hora das votações, até porque partidos como o PT, que apoiaram Maia para presidente da Câmara, não votam nem amarrados nos projetos de Bolsonaro. De qualquer forma, respaldo político ajuda muito na hora de negociar.

Na entrevista que deu na terça-feira, ao receber o ministro da Economia para tratar da reforma da Previdência, o presidente da Câmara mostrou um otimismo que surpreendeu até mesmo a Paulo Guedes, que espera uma economia de R$ 1 trilhão em dez anos. Pelos cálculos de Maia, a economia vai crescer 6% nos primeiros 12 meses após a aprovação da reforma. O deputado não explicou que métricas usou para alcançar estes resultados.

Outro otimista, o presidente do Senado também deu seu apoio incondicional à reforma da Previdência e disse que pode aprová-la em três meses. Com os principais líderes do Congresso ao seulado, o novo governo pode, enfim, começar a trabalhar para cumprir sua missão de ser uma espécie de governo Temer revigorado, reformista e liberal, mas com respaldo eleitoral.

Mas ainda resta um problema, e grande. O ministro Paulo Guedes disse que a decisão final será tomada obviamente pelo presidente e acrescentou que “ele tem o cálculo político dele” para bater o martelo numa ou em outra direção. E esse é o risco. Bolsonaro exige que mulheres tenham tratamento diferenciados e chegou a propor idade mínima mais baixa, 62 para homens e 57 para mulheres. Se o presidente pensar como um político populista, e não como estadista, a reforma pode ficar pequena.


Ascânio Seleme: Rodrigo Maia, o segundo

Rodrigo Maia tornou-se na sexta-feira a segunda pessoa mais importante da República, atrás apenas do presidente. Nenhum ministro, nem o vice-presidente podem rivalizar o poder que ele concentrou em suas mãos ao ser eleito para um terceiro mandato consecutivo na presidência da Câmara. No Senado, Renan perdeu para um novato que terá tantos problemas na condução dos trabalhos da casa que dificilmente conseguirá fazer política com a liberdade que terá Rodrigo Maia.

No final do ano passado, durante um debate realizado pelo GLOBO no Rio, Rodrigo disse ser a melhor opção para o presidente Jair Bolsonaro na Câmara. “Sou um liberal na economia e um conservador nos costumes”, afirmou o deputado. Bolsonaro pode entender a eleição do deputado do DEM como uma vitória, afinal Rodrigo era mesmo o melhor nome para conduzir a pauta do novo governo. Mas ainda é cedo para festejar.

Articulado, bom negociador, maduro e experiente, Rodrigo sabe o que quer, planeja bem quase todos os seus passos e mantém em sigilo a sua própria agenda. Sua eleição resultou de uma negociação impressionante, vista nesta amplitude talvez apenas uma vez antes, quando em 2001 o então deputado Aécio Neves conseguiu se eleger presidente da Câmara ao promover uma avalanche de traições partidárias, levando para o seu partido, o PSDB, diversos deputados de outras agremiações e obtendo a maioria que consolidou uma eleição improvável. Rodrigo teve votos de praticamente todos os partidos representados na Câmara, PT inclusive.

O fato de ser liberal e conservador ajuda o governo, mas não o torna um aliado incondicional. Na verdade, Rodrigo já mostrou mais de uma vez ao longo de seus dois mandatos anteriores na presidência da Câmara que tem ideias próprias e, mesmo sendo filho de um político importante, sabe caminhar sem o apoio de muletas. E, mais importante, conhece o tamanho das suas pernas quando desafiado a dar passos largos. Num momento crucial da história do Brasil, evitou ajudar a empurrar o presidente Michel Temer para o impeachment, no episódio da JBS, mesmo sendo ele o principal beneficiário do seu afastamento.

Logo depois de eleito, Rodrigo disse em entrevista para a Globo News que não tocaria a pauta econômica do governo federal pensado apenas na União. Disse que vai ouvir todos os lados, governadores e prefeitos inclusive, para tentar alcançar, segundo ele, um pacto que atenda a todos os interessados na saúde econômica do país. E sobre a Previdência, disse que cabe a ele e não ao governo determinar o tempo da votação da reforma na Câmara.

Também não deu mole ao ministro da Casa Civil, Onix Lorenzoni. Disse não acreditar que o ministro tenha trabalhando contra ele em razão do número de votos que teve e que o elegeram no primeiro turno, a menos que Onix fosse incompetente. O presidente da Câmara foi explícito ao condenar a manobra conduzida pelo candidato de Onix na eleição da presidência do Senado contra Renan. O interessante é que Onyx é do seu partido. Parece que Rodrigo Maia já elegeu seu principal adversário no governo.

De uma coisa se pode estar certo em relação ao presidente da Câmara, ele sabe o que quer e por onde deve ir para obter os resultados que precisa. Se o que ele quer será bom para o Brasil? Pode ser, pode não ser. O que importa é que o deputado se fortaleceu, ficou grande, ganhou autonomia e passará a dividir o poder com o presidente da República. O que significa que ele pode ser uma pedra no sapato do governo Bolsonaro, mesmo sendo explicitamente liberal e conservador.

PS: Dois pontos. 1) As cenas de golpes e contragolpes vistas no Senado na sexta-feira foram muito mais do que constrangedoras. Foram dignas de filme, tamanha a inverossimilhança. 2) O constrangimento da senadora Leila do Vôlei era inteiramente contrário da voluntariedade do aloprado Jorge Kajuru. A TV Senado vai bombar.


Ascânio Seleme: Nossa democracia é sólida

Hoje, apesar do discurso eleitoral do novo presidente, a democracia brasileira continua viva

Recebi uma mensagem de boas festas do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) em que, além de saúde e paz, ele desejava um 2019 “sem retrocessos na nossa frágil democracia”. Com a cortesia habitual, Chico expressava um sentimento bastante comum entre quadros da esquerda nacional, o temor de que o governo Bolsonaro possa causar ruptura constitucional que represente dano à democracia brasileira. Com todo respeito que o deputado merece, preciso discordar dele. Nossa democracia é sólida e já comprovou sua força inúmeras vezes.

A primeira grande prova de estresse da democracia nacional foi vencida logo no primeiro minuto após o seu renascimento, antes mesmo do último general-presidente deixar o Palácio do Planalto. A internação do primeiro presidente civil depois da ditadura na véspera da sua posse resultou numa madrugada tensa, que foi ultrapassada de acordo com o estabelecido pela Constituição. O vice tomou posse. Em seguida, pouco mais de um mês depois, o presidente internado morreria, e o vice assumiria de vez o poder. Justamente o vice que traíra os generais, saindo do partido que apoiava a ditadura e ajudando a derrotá-la. Mesmo assim, nenhum passo atrás foi dado.

Alguns anos mais tarde, o Brasil produziria uma nova Constituição, rompendo com todos os dogmas e preceitos militares impostos na Carta anterior, que tinha sido escrita em gabinete a pedido e orientada pelos militares que detinham o poder. Ao promulgá-la, o presidente da Constituinte a batizaria de Constituição Cidadã e diria ter ódio, ódio e nojo, da ditadura que se encerrara apenas três anos antes. Outra vez, nenhum recuo, nenhuma ameaça. A democracia que se reinstalara recentemente no Brasil seguia seu roteiro e perseverava. Os novos generais que comandavam as Forças Armadas respeitavam e participavam da nova vida nacional.

O Brasil provaria outras vezes que era um novo país. O segundo presidente civil, e o primeiro eleito pelo voto popular, tomaria o poder confiscando a poupança nacional e em seguida se enredaria num mar de lama que só seria visto de maneira igual anos depois, na era petista. Foi abandonado pelos poucos parlamentares que o apoiavam e acabou sendo afastado do seu cargo pelo impeachment, um instrumento constitucional usado pela primeira vez na História do país. E não ocorreu retrocesso.

Ao longo dos anos, os governos empacotaram inúmeras propostas de controle da inflação sem sucesso. Alguns, como o do confisco das poupanças, causaram enormes danos à economia nacional, outros geraram esperança antes de resultarem em enorme frustração popular. Todos os brasileiros perderam inúmeras vezes por estes pacotes mal amarrados, os pobres perderam mais. Os muitos cenários de caos econômicos que se sucederam não foram suficientes para causar solução de continuidade na vida democrática.

Mais adiante, na eleição do primeiro presidente operário do país, a transição foi tão democrática quanto festiva. O país dava um passo importante na consolidação de suas instituições, tinha balizas bem definidas pela Constituição que nem mesmo um presidente de esquerda poderia ultrapassar. E esse presidente nem tentou avançar o sinal. Fez um governo social democrata com foco magnificado na distribuição de renda. Seu êxito quase se perdeu pelo escândalo do mensalão. Mas o país ultrapassou mais este revés e a democracia seguiu sólida adiante.

E ainda haveria um outro megaescândalo seguido de novo impeachment que geraram uma divisão jamais vista entre os brasileiros. Mas nenhum passo atrás foi dado. Hoje, apesar do discurso eleitoral do novo presidente, a democracia brasileira continua viva. Tanto aquele discurso do então candidato a presidente quanto o temor agora manifestado pelo campo derrotado na eleição refletem apenas retórica. No primeiro caso, para mostrar distância do PT. No segundo, para manter a esquerda unida em torno de um inimigo comum.

A democracia brasileira é forte e vencerá outra etapa. A vida nacional seguirá seu rumo. Se o presidente tiver êxito, poderá ser eleito para um segundo mandato ou fazer seu sucessor. Se fracassar, perderá a próxima eleição. Se atentar contra a Constituição, será afastado, como outros já foram, e o vice ocupará o cargo. Se o vice cair, o presidente da Câmara assumirá o poder e convocará novas eleições. É isso o que prevê a Constituição. E será assim que o país seguirá construindo a sua História.


Ascânio Seleme: Bolsonaro e Pantaleão

Tratar a atividade civil com a lógica militar é caminho aberto para sérios transtornos que podem resultar em fracasso

Um governo quadrado, balizado por regras, princípios e ordenamentos militares, cercado por cones e arrumado na forma, com as limitações decorrentes, não será necessariamente um bom governo. É garantido que seja um governo chato e careta, mas isso não lhe garante êxito. Ao contrário, excesso de regras pode gerar sombra e perturbar a visão do todo. Se Jair Bolsonaro deixar-se engolfar pelo controle militar na forma de governar, pode se sentir à vontade e em casa, mas com certeza não estará nem um milímetro mais perto de quem o elegeu nem terá assegurado sucesso para sua administração.

O presidente tem que exercer de maneira civil o controle do governo e o comando das Forças Armadas. Bolsonaro foi eleito para o mais importante cargo brasileiro, cem vezes mais importante do que o de chefe do Exército, por exemplo, que é cargo do segundo escalão. As contenções militares das atividades civis conferem somente tranquilidade para quem as organiza. Vejam a posse do presidente na terça-feira passada. Foi um espetáculo bem organizado, mas diante da ênfase que se deu à segurança, o público de Bolsonaro foi retido a uma distância profilática do seu mito, o que acabou retirando um pouco de calor e emoção da solenidade. Mas os militares que organizaram a festa ficaram tranquilos.

O pensamento linear dos militares, sua disciplina, o inquestionável respeito que dão à hierarquia produzem ordem, nenhuma dúvida. Não haverá gente melhor para organizar uma marcha, um bom desfile, uma ordem-unida. Sua competência tampouco pode ser questionada nos quesitos de gestão e comando. Os militares são treinados para obedecer, e alguns a mandar. Seu êxito nos quartéis é claro como o dia. Tudo funciona num quartel militar. Nada se encontra fora do lugar. De um modo geral, seus orçamentos são cumpridos com rigor. O que é bom.

Talvez por isso, muita gente associe militar com eficiência e êxito. Trata-se de um evidente engano. Os militares funcionam assim porque ordem não cumprida resulta em punição, que vai da advertência até a cadeia. Na administração pública civil a história é bem diferente. Não que a desobediência seja regra, mas frequenta todos os gabinetes, até mesmo os do terceiro andar do Palácio do Planalto. A certeza da impunidade, já que o servidor é estável e demiti-lo é tarefa próxima do impossível, confere ao servidor civil uma independência que não se vê nos quartéis.

Generais podem ser bons comandantes, mas não são necessariamente bons políticos. Em geral não o são, e pelas mesmas razões que os fazem eficientes no comando da tropa. São duros, gostam de bradar (vejam o juramento de posse do vice-presidente general Mourão, que parecia estar se dirigindo à tropa), são disciplinadores, não aceitam respostas negativas e quando dão uma ordem exigem que ela seja cumprida. Mas governar é fazer política. Tão importante quanto saber mandar é ter cintura e maleabilidade para saber ceder e eventualmente perder.

Um bom militar é organizado e capaz de enfrentar dificuldades que resolverá sempre de acordo com os padrões. Um bom exemplo é o personagem principal do livro “Pantaleão e as visitadoras”, de Mario Vargas Llosa. O capitão Pantaleão Pantoja se vê na condição de organizar uma escala de visitas de prostitutas ao quartel que comandava e que estava isolado no meio da selva peruana. Os soldados precisavam das visitadoras, e Pantaleão fez com disciplina e a lógica militares uma escala de encontros amorosos.

Todos ficaram felizes, soldados, prostitutas e também o comandante Pantaleão. Os generais-ministros do presidente Bolsonaro são pessoas honradas, preparadas e capazes de exercer as tarefas para as quais foram escalados com competência e honestidade. Mas têm que cumpri-las com a ótica civil, que significa saber ouvir, compartilhar poder, respeitar o antagonista, arejar o ambiente. Não cabe no governo a alternativa Pantaleão. Os problemas civis têm de ser resolvidos de maneira civil.

O ministro Onyx Lorenzoni disse ontem, ao tomar posse na chefia do Gabinete Civil, que este vai ser um governo de diálogo, e que vai surpreender por isso. Um excelente recado para todos os seus pares. Sobretudo os militares. O governo é civil, embora seu chefe seja um ex-militar. Tratar a atividade civil com a lógica militar é caminho aberto para sérios transtornos que podem resultar em fracasso.


Ascânio Seleme: Que socialismo, presidente?

O discurso no parlatório, Bolsonaro parecia um candidato em campanha e exagerou no tom

Jair Bolsonaro fez um discurso mais político e popular no Parlatório. Parecia um candidato em campanha. E, como sempre ocorre nesses casos, exagerou no tom e no conteúdo. Dizer que estava ali para libertar o Brasil do socialismo não foi apenas retórica, foi discurso para quem queria ouvir isso mesmo. Mas era bobagem. Primeiro, de que socialismo falava Bolsonaro? Do herdado de Michel Temer? Se fazia referência aos governos petistas, chegou atrasado, seu antecessor já havia mudado a direção do governo para a linha que o empossado escolheu seguir. E mesmo os governos dos ex-presidentes Lula e Dilma nunca foram socialistas. Foram sociais democratas com foco na distribuição de renda. Ponto final.

No tom, foi além do ponto ao fazer fora do script a referência à bandeira brasileira. Nem tanto ao repetir o mantra de que a bandeira brasileira jamais será vermelha, mas ao dizer que só ficaria vermelha com o seu sangue na defesa das cores verde e amarela. Exagerou e a plateia adorou. Aliás, público como aquele não queria um discurso que não fosse nesse tom. Bolsonaro entendeu isso e falou da família brasileira que vai defender de nefastas ideologias. Usou e abusou de ataques à esquerda, afinal por que mesmo ele estava ali?

No ponto em que falou de libertar o Brasil do socialismo, citou ainda o gigantismo estatal e o politicamente correto. Ponto polêmico que seria bom explicar melhor. Porque o politicamente correto é uma evolução e significa evitar o uso de linguagens ou ações que sejam excludentes. E Bolsonaro disse no Congresso que governaria sem discriminação. Em outros pontos do discurso, o presidente repetiu com palavras diferentes, mais inflamadas e de maneira mais direta, o que já havia dito ao tomar posse.

Bonito mesmo fez a primeira dama, com um discurso não previsto em linguagem de sinais. Foi elegante, simpática e emocionou até mesmo a moça que ao seu lado fazia a leitura dos discurso de libras de Michele. Agradou ao público e ao marido, que agradeceu com uma bitoca. Escorregou uma única vez, ao citar apenas um dos três filhos do marido, o vereador Carlos. Pode gerar ciúmes, e esse é o tipo de sentimento insondável que é melhor não provocar.


Ascânio Seleme: Ofensa à imagem e sonegação

Uma portaria da Receita Federal, de 12 de novembro passado, autoriza a divulgação em seu site de dados e nomes de contribuintes acusados de terem cometido crimes contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social e cujas representações para fins penais tenham sido encaminhadas ao Ministério Público Federal. O documento deixou de cabelo em pé advogados tributaristas em todo o país. Alegam eles que, embora tenha foco na transparência da informação, a divulgação de uma lista de contribuintes investigados tem por objetivo constrangê-los, forçando-os ao pagamento do volume em litígio para encerrar a persecução penal. Com a quitação da suposta dívida apontada pela Receita, o processo termina.

Segundo um advogado, “além de poder configurar ofensa à imagem do investigado e até mesmo violação ao princípio da presunção de inocência, a portaria promove uma verdadeira coação para a quitação de débitos que ainda poderiam ser objeto de discussão judicial”. A Receita tem razão em querer apressar o andamento de processos para recolher aos cofres públicos impostos devidos e não pagos. Esse é o seu ofício. Oferecer dados de eventuais sonegadores ao Ministério Público Federal também faz todo sentido, afinal é tarefa do MP zelar pelo patrimônio e pelos bens públicos. O que parece exagerado é divulgar os nomes dos contribuintes suspeitos e os crimes pelos quais são acusados.

Certamente haverá sonegadores e fraudadores na primeira lista com mais de 400 nomes de pessoas físicas e jurídicas divulgada pela Receita há duas semanas. O que os advogados defendem é que todos deveriam ter direito a defesa antes de serem expostos publicamente. A Receita, contudo, não está quebrando o sigilo fiscal dos acusados, já que a lei do sigilo estabelece que não é vedada a divulgação de informações relativas a representações fiscais para fins penais. Por isso, torna público nomes e sobrenomes de pessoas e empresas brasileiras acusadas de sonegar impostos, falsificar ou adulterar documentos públicos, importar ou exportar mercadorias proibidas, fraudar a Previdência, entre outros crimes tributários.

Se essas pessoas físicas e jurídicas estão se defendendo das acusações, não se sabe. Esta informação não consta das representações fiscais encaminhadas ao MP. Pela primeira lista divulgada no site da Receita, sabe-se apenas o nome da pessoa física, a data do envio da representação e a “tipificação do ilícito”, ou seja, o crime pelo qual o indivíduo está sendo acusado. No caso de pessoa jurídica, acrescenta-se os nomes dos responsáveis pelos crimes dentro da empresa, sejam eles sócios, gerentes, administradores ou contadores.

Para ser legal publicar nomes de empresas e pessoas acusadas de ilícitos fiscais, é imprescindível que se tenha absoluta certeza de que elas são mesmo criminosas. A primeira lista não garante esta certeza. Tem de tudo nela, companhias grandes como a Mendes Júnior e a Braskem, pequenas empresas como o Centro Odontológico do Povo, de Cuiabá. Há também dois municípios: Jaciara, no Mato Grosso, e Carnaíba, em Minas Gerais. O documento joga pedra em pessoas físicas como Geni Pereira Felizardo, de Londrina, acusada de “iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”.

Na lista da Receita de representações fiscais para fins penais encaminhadas ao Ministério Público aparece o próprio Ministério Público. Duas vezes. Na primeira representação, o MP é incriminado por elaborar, distribuir e fornecer documento falso ou inexato, por adulterar ou falsificar nota fiscal, por omitir informação ou prestar declaração falsa e por iludir, no todo ou em parte o pagamento de imposto devido, o mesmo crime da Geni acima citada. Na segunda representação, o MP vai investigar se o MP prestou declaração falsa às autoridades fiscais e se omitiu em documento público ou particular declaração que nele deveria constar ou nele inseriu declaração falsa. A presença do MP torna a lista ainda mais insegura.


Ascânio Seleme: Uma chance à direita

Muitos ficaram preocupados, outros assustados, alguns horrorizados com a eleição de Jair Bolsonaro. Quase todos tinham bons argumentos para explicar seu sentimento de pânico. Afinal, o presidente eleito já havia muitas vezes manifestado seu desprezo pelas instituições da democracia. Da própria democracia ele fez pouco caso. Seu modo de ver a vida cotidiana também deixou muitos brasileiros de cabelo em pé. O deputado que disputava a Presidência mostrou que temas do comportamento já consolidados na sociedade poderiam sofrer retrocessos.

Os que o elegeram conheceram muito bem sua agenda ao longo da campanha. Seu discurso de direita, conservador nos costumes e liberal na economia, foi amplamente divulgado pela mídia e expressado pelo próprio Bolsonaro e seu grupo. Não havia dúvida alguma sobre quem se estava elegendo. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o futuro presidente foi chancelado pela maioria dos eleitores. Não há, portanto, como lhe negar o direito de governar de acordo com o programa pelo qual foi eleito. É legítimo. E aos brasileiros que discordam dele resta fazer crítica e oposição.

Discordar e criticar não significa desprezar. Bolsonaro não deve ser desprezado. Seus modos não agradam? Tem que se acostumar a eles. Seu discurso parece pequeno? Melhor aprender a conviver com ele (lembre-se da Dilma). Sua agenda incomoda? Incomoda a muitos mas não à maioria. Os que se opõem ao presidente eleito devem combatê-lo, mas de maneira legal, institucional e democrática. Pode reconfortar a estes o fato ao qual já me referi aqui antes, um presidente sozinho nada pode.

Para aprovar qualquer pauta, como a da redução da reserva indígena Raposa-Serra do Sol (da qual recuou ao perceber a dificuldade em aprová-la), e outras tão polêmicas quanto esta, terá de negociar com o Legislativo e com o Judiciário. Em última instância, terá de discutir também com a sociedade, que já provou que tem meios e sabe se exprimir e se fazer ouvir. O Brasil também será ouvido através do Congresso e dos tribunais. E o brasileiro poderá sempre recorrer aos seus maiores aliados, as instituições da nossa já sólida democracia, que não permitem aventuras.

De qualquer forma, nas últimas três décadas, de Itamar Franco para cá, o Brasil vem sendo governado por matizes diferentes de centro ou centro-esquerda. Pela primeira vez desde então, o país voltará a experimentar um governo de direita. Sendo essa a vontade da maioria dos eleitores, não há outro jeito a não ser dar uma chance para ver o que pode resultar desta experiência. No campo econômico se conhece bem o caminho, já percorrido antes por outros países. Menos gastos, possivelmente menos impostos, privatizações, uma reforma previdenciária inevitável. Mas também menos direitos trabalhistas, menos concessões a empresas, uma busca incansável do equilíbrio fiscal.

Nas demais agendas, muitas delas de combustão espontânea, o governo também terá de se movimentar muito, negociar mais ainda, para tocá-las adiante. Em todas as pautas, tantos as econômicas quanto as de costumes, Bolsonaro sairá na frente porque vem legitimado pelo voto. E os que se opuserem a elas, e que não são poucos, terão que defender suas ideias nos campos apropriados, os plenários do Legislativo e do Judiciário. Têm também as ruas. Mas, mesmo nas ruas, não custa nada se opor civilizadamente a Bolsonaro.

Do lado do novo governo, já se ouviu inúmeras vezes que o jogo será jogado no campo democrático. Bolsonaro disse isso mais de uma vez depois de eleito. O general Heleno, o mais importante e respeitado oficial general do Brasil, repetiu a mensagem na semana passada numa entrevista a Pedro Bial. Para o vice, general Mourão, este discurso já virou um mantra. Não que precisasse, mas considerando o que já foi dito no passado pelo próprio Bolsonaro, reassegurar a democracia não atrapalha.

Para erros e malfeitos, existem o Ministério Público, a Polícia Federal, e diversas outras instâncias de fiscalização e controle. Bolsonaro será escrutinado como foram todos os presidentes antes dele. Na verdade, já está sob escrutínio no caso do Fabrício Queiroz, o assessor de seu filho Flávio que depositou dinheiro na conta da sua mulher, e o da sua assessora/personal trainer. Da parte de quem informa, o brasileiro pode esperar vigilância. Cabe a jornalistas acompanhar, investigar e analisar todo e cada passo do governo e de seus membros. O Brasil tem uma imprensa combativa, justa e honesta, que critica duramente, mas que também sabe reconhecer acertos.


Ascânio Seleme: Yo no creo en brujas

O problema é a desilusão que Bolsonaro pode causar

Há quem acredite em médiuns. Houve quem acreditasse em João de Deus. Há quem acredite em salvadores da pátria. E houve quem acreditasse em mitos. Enganar crédulos é tarefa aparentemente fácil, sobretudo quando para estes resta pouca ou nenhuma esperança. Seja qual for a dor, do corpo ou do espírito, haverá sempre quem se apresente com a fórmula mágica para curá-la. Foi assim que o canastrão de Abadiânia enganou milhares de pessoas por 40 anos, oferecendo soluções “milagrosas” para doenças que a medicina e a ciência não conseguem curar. Em troca de apalpadelas aqui e ali.

João de Deus construiu uma reputação de tal maneira sólida que mesmo os que ouviam insistentes rumores de que ele abusava de pacientes preferiram não acreditar. Por isso, também centenas de vítimas do médium sentiam-se pouco à vontade para denunciá-lo. O caso dele se assemelha ao do czar da fertilização, o médico Roger Abdelmassih, condenado a 181 anos de cadeia pelo estupro de algumas dezenas de pacientes. Famoso, respeitado como o João de Abadiânia, o Roger de São Paulo só foi desmascarado quando a primeira paciente veio a público denunciá-lo. Depois, encorajadas, surgiram dezenas.

No plano político ocorreu o mesmo com o ex-presidente Fernando Collor, que encantou o Brasil anunciando que limparia o país de funcionários públicos com supersalários. Depois, aproveitando-se da péssima fama do então presidente José Sarney, jurou que higienizaria o país da corrupção e que mandaria prender todos os políticos corruptos. Foi assim que consolidou a imagem de que era mesmo o homem fadado a levar o Brasil para o lugar de glória a ele reservado no panteão das nações. Foi o primeiro presidente a ser afastado por corrupção.

Arrisco a dizer que nem mesmo o primeiro grande mito da Nova República, o presidente Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse, teria condições políticas de cumprir as promessas feitas na condição de primeiro presidente civil depois da ditadura. “Vim para promover mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais”, prometeu ele no discurso da vitória no Colégio Eleitoral, de 1985. Sarney, que herdou o seu mandato, conseguiu, com o apoio de uma Constituinte soberana, cumprir apenas a mudança política.

O que temos hoje, a duas semanas da posse do presidente Jair Bolsonaro, é um país que novamente acredita ter encontrado o homem que vai limpá-lo de um passado repleto de políticos de velhas práticas, de corruptos, do jeito petista e emedebista de governar, roubar e prestar favores. O Brasil pariu um novo mito. Mais da metade dos eleitores votou em Bolsonaro com a esperança de que ele cumpra o papel que pregou na campanha, que governe com pessoas honestas e que exerça o seu mandato de maneira ilibada e transparente.

O problema é a desilusão que ele pode causar. Pessoas que geram grandes expectativas, como foi o caso de João de Deus, Abdelmassih e Collor, causam grande decepção em seus seguidores fiéis quando caem trançados em suas próprias pernas, atrapalhados em seus malfeitos. Bolsonaro corre enorme risco de desiludir os brasileiros. Antes de tomar posse, já se viu enredado na questão dos repasses do assessor de seu filho Flávio Bolsonaro com dinheiro coletado de outros funcionários do gabinete. Se fosse só o filho, já seria grave, mas parte desse dinheiro foi parar na conta da sua mulher, o que é gravíssimo.

Há pouca coisa mais velha na velha política que Bolsonaro jurou combater do que desviar recursos de funcionários de gabinete parlamentar. Parece que foi isso o que Flávio Bolsonaro fez usando como repassador o policial militar Fabrício de Queiroz, que contratou como motorista mas que remunerava como assessor. A prática funciona assim: um servidor designado pelo parlamentar cobra parte do salário dos demais servidores e repassa os recursos arrecadados para o chefe. Uma prática ilegal e imoral empregada em larga escala no Congresso e nas Assembleias, principalmente pelos parlamentares do baixo clero.

Fim das trevas
A data a ser comemorada é o 13 de outubro. Foi nesse dia, em 1978, que o presidente Ernesto Geisel promulgou a emenda constitucional nº 11, que revogou o AI-5 e todos os demais atos contrários à Constituição.


Ascânio Seleme: A mão que afaga

As redes sociais, que ajudaram a produzir grandes mudanças no cenário político nacional e mundial nos últimos anos, também são usadas rotineiramente para alavancar empresas, marcas e produtos. Ninguém tem dúvida de que saber usá-las de maneira eficiente representa um ganho competitivo em qualquer atividade. Na política, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi amplamente favorecido pela manipulação das redes sociais pela sua equipe de campanha e por seus amigos esquisitos, como os espiões da Rússia. No Brasil, Jair Bolsonaro quase ganhou no primeiro turno pela avalanche que produziu no WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram na última semana, e que afinal confirmou seu favoritismo no segundo turno.

Redes são usadas para construir reputações. No caso de políticos, dourando perfis, impulsionando candidaturas. No caso de empresas, procurando associar marcas e produtos a questões positivas, do bem, que falem ao coração das pessoas. Na política, elas também podem ser usadas para produzir efeito contrário, torpedeando candidaturas adversárias. Foi o que a campanha de Bolsonaro fez com uma eficiência invejável com a campanha de Fernando Haddad. A candidatura do PT foi destroçada pela artilharia inimiga. Na eleição de 2014, com menos redes, mas com amplo apoio das comunidades digitais, o PT fez o mesmo com a candidatura de Marina Silva.

Está claro que o mesmo instrumento que alavanca, sustenta ou elege pode também derrubar, desmilinguir ou destruir uma reputação, uma candidatura, uma marca. O caso do cachorro morto por um segurança do Carrefour em Osasco é um bom exemplo de como as redes podem causar problemas graves para uma instituição. O episódio ganhou as redes, se espalhou pelo país, causando uma comoção, e ultrapassou as fronteiras nacionais, impactando a marca Carrefour até mesmo na França, seu país sede. O estrago para a marca do hipermercado é inestimável.

Na política, há também um exemplo francês de como as redes podem destruir programas ou propostas de governo, impedir ações governamentais ou até mesmo reduzir a confiança de um governante. Emmanuel Macron, presidente da França que assumiu o governo em maio do ano passado com apoio de 65% da população, hoje tem entre 25% e 32% de aprovação dos franceses, segundo diversos institutos de pesquisa. Pela sondagem do Ifop encomendada pela revista “Paris-Match”, a revolta dos coletes amarelos que param a França, depois de duas semanas, derrubaram a popularidade presidencial para 30%.

O episódio francês guarda muita semelhança com as jornadas de junho de 2013, que abalaram o Brasil e fizeram despencar os índices de apoio aos políticos no país. Tanto na França quanto aqui, as manifestações que aos poucos cederam lugar ao ódio, foram organizadas pelas redes sociais num movimento aparentemente sem líderes. Macron e Bolsonaro foram eleitos com o auxílio das redes sociais. O então candidato francês, em 2017, contratou a empresa de tecnologia eleitoral Liegey, Muller & Pons, que coletou dados de todas as sedes de regiões na França e criou um algoritmo para mostrar por onde deveria caminhar a campanha. E aí entraram as redes e os voluntários.

Por isso, o verso “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, de Augusto dos Anjos, não poderia ser mais atual. Todos estão sujeitos aos solavancos do caminho, mas o sacolejo provocado pelas redes é muito maior.


Ascânio Seleme: Trabalho não é caso de polícia

Não é novidade para ninguém que a natureza do trabalho mudou muito, sobretudo nos últimos dez anos. Com as revoluções da automação e da informação, trabalhar da maneira tradicional, dentro de uma linha de produção ou num escritório, tornou-se quase um luxo. A natureza do trabalhador também está mudando, e muito rapidamente. Empresas procuram cada vez mais gente fora do balcão tradicional. Querem profissionais reconhecidos mais pelas suas habilidades humanísticas do que técnicas, com competências subjetivas, mais difíceis de se reconhecer e avaliar.

Na Califórnia, a Zume, uma pizzaria controlada inteiramente por robôs, que fazem a massa, montam e assam a pizza, virou um sucesso de tal ordem que um banco investiu US$ 375 milhões na ideia , e a empresa já vale no mercado US$ 2 bilhões, antes mesmo de se multiplicar. Uma pizzaria dessa não precisa de pizzaiolo, mas de gente que tenha ideias que a ajude a crescer e se transformar. A McKinsey Consultoria fez uma pesquisa em que revela que empresas que diversificam seu quadro de pessoal são mais competitivas e faturam mais.

Um estudo feito pela Desire2Learn, empresa criada para ajudar outras a aprender melhor num mundo tecnológico, mostra que a Inteligência Artificial mudou substancialmente o perfil dos profissionais que grandes empresas procuram. A formação tradicional e mesmo a graduação superior se tornam menos relevantes. As grandes empresas de tecnologia, por exemplo, preferem investir em quadros de perfis diversificados que venham de bootcamps, aqueles cursos imersivos e ultrarrápidos que dão habilidades tecnológicas a pessoas de outras áreas, do que em técnicos graduados que pensam dentro da caixa.

Essa nova forma de ver o trabalho, de acordo com a Desire2Learn, em que são mais valorizadas as pessoas capazes de fazer apenas o que seres humanos fazem, como pensar criativamente, saber tomar decisões, usar a empatia para envolver equipes, ser adaptável a circunstâncias, é vital já a partir de agora. O trabalho mudou, se sofisticou, o mundo mudou. No Brasil não deveria ser diferente. Mas aqui, pelo menos no que diz respeito ao governo que se instala em janeiro, o tema trabalho foi relegado a plano secundário. Esquartejado em vários ministérios, teve uma de suas partes, a que cuida da organização sindical, transformada em problema de polícia.

O novo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ao explicar o fatiamento do Trabalho, disse que ele ficará majoritariamente no Ministério da Justiça, sobretudo “aquela secretaria que cuida das cartas sindicais, que foi foco de problema”. O xerife, quer dizer, o futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, disse tratar-se de “um setor em que houve muita corrupção no passado; o objetivo dessa transferência é que, sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça, possamos eliminar qualquer vestígio de corrupção”. Nenhuma dúvida, trata-se de um problema. Tanto que um ministro do Trabalho foi demitido recentemente por esta razão.

Mas, francamente, se todos as repartições públicas que tiveram algum foco de problema ou corrupção no passado forem transferidas para a Justiça, não fica um, meu irmão. Bolsonaro pode realizar o milagre de operar com o Ministério reduzido ao do Moro. A questão do trabalho não deveria ser esta. O novo governo precisa estar fundamentalmente preocupado em como gerar empregos no Brasil. E mais, como ajudar a gerar empregos modernos num mundo moderno. Claro que mão de obra rápida e barata, para ocupar a multidão brasileira de desempregados, é ainda mais urgente. Mas o mundo avança na velocidade da informação, e o Brasil parece preocupado em olhar apenas o retrovisor.

É evidente que manter o Ministério do Trabalho não significa aumentar a empregabilidade. Do jeito que é tocado, ele só garante o emprego do ministro e dos seus assessores. Mas, não adianta, resta o problema grave do desemprego. Tão grave que é assunto cotidiano mesmo num país rico e desenvolvido como os EUA. O presidente Trump é obsessivo com o tema, o que talvez lhe garanta a reeleição. Num país como o nosso, com 12,4 milhões de desempregados e com outros 15,3 milhões vivendo na extrema pobreza, segundo a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, trabalho é coisa tão séria que sua gestão deveria estar alocada no gabinete do presidente da República.


Ascânio Seleme: Preparando-se para o melhor

Não vai ser tarefa trivial fazer oposição ao futuro governo Jair Bolsonaro, diz o ex-prefeito de São Paulo e candidato derrotado a presidente Fernando Haddad. A chance de o novo governo ir bem é grande, segundo ele, o que tornará ainda mais desafiador o papel dos partidos de esquerda, como o PT. Fernando Haddad passou os últimos dias dando palestras e conversando com pessoas em Nova York. Numa dessas conversas, o ex-candidato disse que a economia mundial emite sinais de que vai melhorar, o que pode impactar positivamente o Brasil e seu governo a partir do ano que vem.

Outro aspecto importante do governo de Bolsonaro serão as privatizações, já anunciadas pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo próprio presidente eleito. “Eles vão vender ativos, estatais, e vão fazer dinheiro, muito dinheiro”, disse Haddad. Se este dinheiro for bem empregado, o governo certamente apresentará resultados, o que lhe dará inclusive melhores condições de governar com sucesso. “Não podemos dar de barato que o governo Bolsonaro vai fracassar”, disse. Isso significa, em outras palavras, que a oposição terá de encontrar meios de fazer sua mensagem
preponderar, o que não será fácil.

Fernando Haddad insistiu no assunto numa palestra na Columbia University. Ele disse que a oposição não pode torcer para o governo dar errado e com isso ganhar o poder. A melhor coisa do mundo, segundo o ex-candidato, é ganhar de quem está indo bem. “A gente tem que trabalhar com a hipótese de eles darem certo. E de a gente dar mais certo do que eles”, disse na palestra “Brazil Talk”. Haddad tem toda razão. Além dos sinais de melhora da economia global, a perspectiva de um novo ciclo do petróleo injetar energia no setor produtivo brasileiro é muito grande, e lentamente já vem ocorrendo.

Mais importante que isso, contudo, foi o gesto de boa oposição que ele deu ao dizer que não se deve torcer contra o governo que será instalado em janeiro. Fazer política, na sua visão, é um exercício em que se tenta provar ser capaz de governar de maneira mais eficiente e produtiva que o adversário. Isso não significa que Haddad não tema retrocessos políticos durante o governo Bolsonaro. Ele os teme, como disse em Nova York e inúmeras vezes no Brasil, antes e depois da eleição de Bolsonaro. Mas a questão mais relevante agora será o que fazer ao longo dos próximos quatro anos para retomar o poder em 2022.

O exemplo dos Estados Unidos, onde Donald Trump era dado como presidente de um único mandato, é sempre lembrado quando se trata de Bolsonaro. Primeiro, porque o brasileiro tenta se parecer com o líder americano, depois, porque sua campanha foi parecida com a do republicano e, finalmente, em razão da taxa de chance de sucesso de seu governo. Ninguém hoje pode afirmar que Trump não se reelegerá. Ao contrário, suas chances são enormes. E, no Brasil, um cenário como esse tem tudo para ser construído, de acordo com a visão de Haddad.