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Ascânio Seleme: A Terra é plana

Eles são milhares, alguns dizem que são centenas de milhares, eles afirmam ser milhões. Os terraplanistas estão em todos os lugares, mas nasceram e cresceram nos Estados Unidos. Eles acreditam franca e abertamente que a Terra é plana e que o mundo inteiro é enganado por interesses escusos de governos e instituições multinacionais que sustentam que o planeta é redondo, circula em torno do sol e gravita numa galáxia também em permanente movimento. Dizem que também satanistas, maçons, judeus e o Vaticano patrocinam a ideia errada de que a Terra é redonda.

Para os terraplanistas, o mundo é um disco, uma espécie de pizza coberta por uma cúpula de vidro, onde o sol e as estrelas são imagens criadas e exibidas numa espécie de display gigantesco acoplado à cúpula. E está parado. Onde? Não sabem dizer. Existe inclusive uma associação que congrega essas pessoas, a Flat Earth Society (Sociedade da Terra Plana), que organizou, em 2017, a Primeira Conferência Internacional da Terra Plana, realizada em Raleigh, na Carolina do Norte.

Há ainda centenas de sites e blogs de terraplanistas que espalham nas redes sociais a sua certeza. Eles dizem que as imagens feitas do espaço e que mostram a Terra como uma imensa bola de gude azul são falsas. Garantem que a Terra é plana sem oferecer qualquer evidência nesse sentido e reclamam quando são chamados de lunáticos. Por isso, talvez, existam até mesmo sites de encontros românticos de terraplanistas. Para agregar pessoas consideradas no mínimo esquisitas e que podem ser rejeitadas pelas demais.

Antes deles, muitos não acreditaram que o homem foi mesmo à Lua. Os terraplanistas dizem que os astronautas, todos eles desde antes de Neil Armstrong, são atores que participam de uma enorme conspiração contra a verdade. Afirmam também que os cientistas são comprados para afirmar o contrário do que acreditam. Dizem até que “essa gente” inventou os dinossauros para contar a história da colisão de um asteroide com a Terra há 66 milhões de anos. Se acreditassem nos dinossauros, confirmariam a tese do asteroide, da Terra redonda e, puf, sua teoria iria para o espaço.

Aliás, os terraplanistas também não acreditam em espaço. Alguns afirmam que vivemos numa espécie permanente de “Truman Show”, o filme em que um homem vive uma realidade simulada desde o seu nascimento. Sua vida é um show de TV acompanhado no mundo inteiro. Todos sabem que Truman Burbank, estrelado por Jim Carrey, vive num mundo falso, menos ele. Os que acreditam nesta teoria imaginam que todos os seres do planeta vivam numa realidade simulada e que alguém, fora da cúpula de vidro, nos manipula e se diverte conosco.

Há um documentário na Netflix chamado “A Terra é plana”, que mostra em detalhes este universo bizarro em que os terraplanistas vivem. Para quem tem tempo, é um bom entretenimento de pouco mais de uma hora e meia.

Não se tem notícia no Brasil de terraplanistas. Mas há outros grupos bastante curiosos de pessoas que acreditam em coisas tão sem sentido quanto a teoria da Terra plana. Há em todos os níveis da sociedade nacional aqueles que não acreditam que houve um golpe militar no Brasil em 1964. Dizem que o presidente João Goulart foi destituído democraticamente do seu cargo. Muitos dentre estes afirmam que nem mesmo ditadura houve no país entre o ano do golpe e 1985. E há ainda os que garantem que não existiu tortura no Brasil, apesar das milhares de provas em contrário.

Outro grupo exótico, recém-descoberto no Brasil, é formado por indivíduos que dizem que o nazismo e o fascismo foram movimentos políticos de esquerda. Contra todas as evidências e provas históricas, teimam em afirmar que os nazistas eram esquerdistas porque seu partido se chamava Nacional Socialista. Não dá para dizer se esta turma é ingênua ou ignorante. A diferença entre os brasileiros e os terraplanistas americanos é que estes ainda recolhem fundos para fazer uma jornada até a borda da terra. Os brasileiros que não acreditam no golpe, na ditadura, na tortura e ainda afirmam que Hitler era um esquerdista psicopata já estão viajando há tempo.


Ascânio Seleme: Bolsonaro e filhos pensam e agem como um bloco

As posições deles são resultado de um pensamento único, elaborado ao longo de anos

A queles que ainda pensam ser possível separar o presidente Jair Bolsonaro de seus filhos, mesmo que apenas na gestão do país, é melhor ir logo tirando o cavalinho da chuva. Os Bolsonaro são um bloco único, monolítico, inseparável e inquebrantável. Suas posições são resultado de um pensamento único, elaborado ao longo de anos, e nenhum dos seus membros sobrevive sem os demais, explica Dado Salem, economista, mestre em Psicologia do Desenvolvimento e sócio da Psiconomia, empresa especializada em gerir questões complexas e sensíveis envolvendo famílias e negócios.

Salem fez um estudo sobre a família do presidente tomando por base entrevistas que cada um deu ao longo dos anos e suas manifestações nas redes sociais. Com esses elementos e com o apoio de um relatório contendo as nuvens de palavras mais repetidas por cada Bolsonaro no Twitter, elaborado em 2016 pela cientista política Mariana Cartaxo, foi possível escrutinar a raiz comum do raciocínio de Jair, Flávio, Carlos e Eduardo.

Os Bolsonaro são o que Salem chama de “família simbiótica indiferenciada”. Eles pensam, sentem e agem como um bloco. São vulneráveis quando separados e se sentem ameaçados pelo mundo externo, o que os torna ainda mais fechados. Têm tendência ao isolamento e possuem uma enorme capacidade de deteriorar relações muito rapidamente. São governados por suas reações emocionais ao ambiente e acabam gerando neles próprios uma previsível ansiedade crônica.

Em famílias assim, o pai não toma qualquer decisão sem ouvir os filhos. O que parece ser o caso de Bolsonaro. Seus filhos, por sua vez, detestam os que se aproximam demais do pai, sobretudo se enxergam nessa aproximação uma tentativa de manipular o patriarca. No caso da família em questão, os filhos têm ciúmes dos que se aproximam para ganhar luz e aparecer aos olhos do público. E torpedeiam sistematicamente o intruso.

Cada um dos filhos cumpre um papel no bloco. O Zero Um, Flávio, o mais velho, é o conciliador e o diplomata, que busca interlocutores para o grupo. “Normalmente é assim que funciona em famílias simbióticas, ao primogênito é dada essa função”, diz Dado Salem. O problema na família Bolsonaro é que Flávio acabou queimado logo na largada. O Zero Dois, Carlos, é o queridinho, o mais ligado ao pai. Tão ligado que acaba confundindo seu próprio papel, queria ser ele próprio o pai da família, o presidente da República. O Zero Três é o “intelectual”, o formulador do bloco, e como tal é respeitado pelos demais.

Nas famílias simbióticas indiferenciadas não existe separação emocional entre seus membros. Eles não são bem desenvolvidos como indivíduos. Sua reatividade emocional é intensa e pode ser disparada por qualquer faísca. Essa característica explica a demissão do ministro Bebianno e o mal-estar criado com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. Um elo sustenta o outro, sempre. As relações externas normalmente geram angústia e ansiedade em seus elementos. Para aliviar a tensão, essas famílias geralmente tendem a ser ainda mais unidas e indissolúveis.

A leitura das nuvens de palavras produzidas a partir das suas manifestações nas redes comprova a tese do ideário único. Mariana Cartaxo apurou que as palavras que mais aparecem nos discursos de cada um dos membros do clã são muito parecidas, e três são repetidas por todos os membros da família: “Brasil”, “Contra” e “PSOL”. No caso de Flávio, que até o ano passado era deputado estadual no Rio, a palavra “Polícia” também tem destaque. Desnecessária qualquer explicação.

O resultado dessa simbiose, segundo Dado Salem, é o que todo o Brasil já viu, as decisões de Jair Bolsonaro atendem prioritariamente ao arranjo do grupo familiar. O presidente não governa sozinho, governa com seus filhos. Os ministros e demais assessores compõem o ambiente, mas quem manda são pai e filhos.

Um alerta: o Zero Quatro vem aí. Pesquisa de seu perfil nas redes revela que Renan, 21 anos, estudante de Direito, está crescendo com a mesma retórica, os mesmos slogans e os mesmos ranços dos irmãos e do pai. A única coisa que os separa dos irmãos são as mães diferentes. Mas esse é um detalhe que não significa muita coisa no universo absolutamente masculino dos Bolsonaro. Por isso também a Zero Cinco, Laura, de 8 anos, jamais emergirá.


Ascânio Seleme: O homem mais odiado do Brasil

O título um dia foi de Paulo Maluf, no Colégio Eleitoral de 1985, quando ele disputou a Presidência com Tancredo Neves, que era o símbolo da redemocratização brasileira. Depois, foi de Fernando Collor de Mello, no auge da CPI que resultou na sua cassação por corrupção. Antes, Collor já havia experimentado o ódio nacional ao congelar todas as contas bancárias dos brasileiros. Mais recentemente, coube ao deputado Eduardo Cunha o troféu de mais odiado do país. Ele era unanimidade nacional. Sua cassação e posterior prisão foram festejadas de Norte a Sul.

Durante todo o ano passado e boa parte do ano anterior, o homem mais odiado do Brasil foi o então presidente Michel Temer. O “Fora, Temer!”, que nasceu de uma contestação petista ao homem que conspirou contra a presidente Dilma e ajudou a arregimentar os votos necessários para o seu impeachment, acabou se espalhando e viralizou em todos os setores da sociedade. Ao deixar o governo, Temer tinha a aprovação de apenas 7% dos brasileiros. O que significa que 93% rejeitavam o presidente.

Sua prisão na quinta-feira passada pode ter servido para atender à gana que se tinha em Temer, mas não deixou o país melhor ou aliviado. O país não melhora com a prisão de ex-presidentes. Não melhorou com a prisão de Lula. Não vai melhorar agora. Tampouco dá para respirar aliviado, porque essa não foi a última mazela da nação. O Brasil está repleto de mazelas. Inclusive algumas novas, recém-incorporadas ao cardápio nacional. Mas claro que a sensação de satisfação com instituições como a Lava-Jato aumenta com esses episódios.

Há muitos outros homens públicos que atraem o ódio dos brasileiros. Alguns, como o senador Renan Calheiros e o deputado Aécio Neves, entram na mesma categoria de Maluf, Collor e Temer. E Lula. Esses dois são odiados porque respondem a inúmeros inquéritos por corrupção que não caminham porque param no Supremo Tribunal Federal. O brasileiro se sente afrontado com impunidade, e os dois parlamentares são ícones da impunidade. Sérgio Cabral passou da fase do ódio. As pessoas o enxergam como uma piada ridícula, tamanha a sua volúpia por dinheiro público. E, depois, porque ele está preso e vai mofar na prisão.

Como eles, algumas instituições também atraem a ira do brasileiro. Câmara e Senado, em primeiro lugar. O STF em seguida. O ódio à política é sócia do desamor pela corrupção, por isso o Congresso é tão atacado em todos os seus flancos. O mesmo pode-se dizer sobre o STF. As pessoas esperneiam e atacam o Supremo sempre que ele decide em favor daquilo que os brasileiros enxergam como relaxamento na caça aos corruptos.

Foi o que se deu na semana passada, quando o STF decidiu que caixa dois é crime eleitoral e deve ser julgado pela Justiça Eleitoral. A lógica que levou a esta decisão nem vem ao caso. O fato é que, aos olhos da maioria, seis dos 11 ministros (cinco foram contra) votaram para paralisara Lava-Jato, paralisaras investigações dos casos de corrupção que levaram dois ex-presidentes para a cadeia. Por isso, muitos hoje odeiam o STF como odeiam o Congresso.

O problema, ou o perigo, é quando o ódio à instituição se fulaniza. Hoje, em larga medida, as pessoas personificam seu ódio ao Supremo nas figuras dos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Gilmar, sobretudo. E o assédio que esses juízes sofrem há muito tempo passou do limite tolerável. Os ministros não são criminosos como os presos da Lava-Jato. Por isso, Toffoli instaurou inquérito para investigar a origem dos ataques ao STF. Quer corretamente proteger a integridade física dos ministros. Das demais integridades, cada um que cuide das suas.


Ascânio Seleme: O traficante e o presidente

Onde estava o serviço de segurança do Palácio do Planalto que não conseguiu enxergar um dos maiores, se não o maior, traficantes de armas do Rio morando a cem metros do presidente Jair Bolsonaro? Parece impossível ter ocorrido, mas ocorreu. Bolsonaro foi o candidato mais votado no primeiro turno, em seguida eleito presidente, e nenhum agente da Presidência bateu na porta do ex-sargento Ronnie Lessa para tomar informações? Pelo jeito, a segurança não deve ter averiguado nenhum dos vizinhos do presidente eleito. Se averiguou, apenas ouviu e nada checou.

Não conheço outras palavras para designar esse tipo de conduta que não descaso e incompetência. Alguém consegue imaginar este nível de insegurança ser oferecido a Donald Trump, Emmanuel Macron ou a Theresa May? Ou a um hermano como Mauricio Macri ou Sebastián Piñera? Nunca, em tempo algum, um presidente americano seria submetido a este risco. Imaginem Ronald Reagan morando a cem metros de Pablo Escobar. Nos EUA, a varredura da vizinhança ocorre ainda na campanha eleitoral. O FBI dá proteção total ao candidato que pode ser eleito presidente do país.

No caso de Bolsonaro, a atenção deveria ser redobrada, já que pouco antes ele fora alvo de um atentado. Ao ir para o segundo turno, todo seu entorno deveria ser checado, rechecado e higienizado. Se isso tivesse sido feito, Ronnie Lessa teria sido preso ainda em outubro do ano passado. Se não preso, ao menos isolado e investigado para se entender como um sargento reformado com salário de R$ 6 mil poderia ocupar aquela casa. A única explicação seria o próprio Bolsonaro dizer que Ronnie era amigo, e a segurança não precisava se preocupar. Como ninguém acredita nesta hipótese, pode-se tratar o episódio como de incompetência aguda.

As autoridades do Ministério Público e da polícia sabem que, ao prender Ronnie Lessa, não chegaram apenas ao assassino da vereadora Marielle Franco; alcançaram também um megatraficante de armas que há anos abastecia o crime organizado e as milícias do Rio. Além de explicações da segurança presidencial, outras questões deverão ser respondidas no decorrer da investigação. A primeira e mais importante delas, por que um executivo do tráfico de armas do porte de Ronnie Lessa agiu pessoalmente no assassinato de Marielle?

É preciso saber quantas pessoas Ronnie Lessa já executou e entender qual o critério que ele usava para agir pessoalmente como na morte da vereadora. Os responsáveis pelas investigações também precisam descobrir quantas armas em quantos carregamentos Ronnie já trouxe para o Rio. Quais as rotas que usava e quem lhe dava apoio. Tão importante quanto saber quem mandou matar Marielle é saber o modo de operação da super quadrilha do ex-sargento.

Um homem feliz
Não há pessoa mais feliz hoje no Rio de Janeiro que o ex-senador Lindbergh Farias. Denunciado por ter supostamente recebido R$ 4,5 milhões em vantagens indevidas da empreiteira Odebrecht nas campanhas eleitorais de 2008 e 2010, Lindbergh seria objeto de um escrutínio semelhante a de outros políticos que foram julgados na Justiça comum, alguns pela Lava-Jato. A maioria foi condenada, e muitos estão presos, como o ex-presidente Lula. Graças à decisão do STF de mandar para a Justiça Eleitoral todos os casos que possam ser identificados como caixa 2, o ex-senador pôde respirar aliviado. Seu caso foi mandado para o TRE do Rio. Ufa, deve ter dito o indigitado.

O ex-senador sabe, como explicou ontem ao GLOBO o procurador Rogério Nascimento, que a Justiça Eleitoral não tem meios nem quadros para fazer uma eficiente investigação sobre as denúncias de corrupção que pesam contra ele. Justiça Eleitoral serve para fiscalizar e organizar eleições, para tomar medidas urgentes durante o pleito e evitar crimes como boca de urna ou abuso do poder econômico. Nunca para investigar, no nível de acuidade necessário, caso como o de Lindbergh, onde supõe-se que favoreceu a Odebrecht durante suas gestões na prefeitura de Nova Iguaçu para receber propinas usadas em campanhas.

Alguém tem dúvida de que a decisão do STF de mandar para a Justiça Eleitoral casos de caixa 2 abre um enorme flanco no combate à corrupção? Lindbergh não tem.


Ascânio Seleme: O zelador e o pastor

Crivella vem fazendo nos últimos meses uma gestão de formiguinha

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, gosta de se apresentar como zelador, um homem que cuida da cidade e das pessoas. Segundo ele, não dá para o prefeito-zelador estar fora da cidade em momentos como o da segunda-feira, quando um dilúvio se abateu sobre São Paulo. Covas já viveu outros episódios estressantes na sua curta gestão de um ano. Viu um prédio de 20 andares no Centro desabar depois de um incêndio e um viaduto cair no meio de um feriado.

Não tem dia fácil ou tranquilo na administração, diz Covas, que estava em Berlim quando a tempestade inundou São Paulo, tendo de voltar às pressas para a cidade. Apesar de tanto aborrecimento, Bruno Covas deve ser candidato à reeleição. Confia que terá apoio do governador João Doria e de todo o seu partido, mas jura que ainda nem pensou em trabalhar politicamente sua candidatura.

De acordo com ele, o melhor a fazer é exercer bem o mandato. “Trabalho pela reeleição é trabalho de prefeito”, diz. Hoje, a prefeitura tem menos secretários ligados a partidos do que em janeiro de 2017, no início da gestão de João Doria, a quem Covas substituiu. O prefeito acha que lotear o governo atrapalha mais do que ajuda. Tempo de TV, segundo ele, não ganha eleição, como bem demonstrou seu aliado Geraldo Alckmin no ano passado.

Enquanto isso, no Rio, o prefeito Marcelo Crivella inaugurou, 19 meses antes do pleito, a luta por um segundo mandato. Ele restabeleceu as secretarias de Turismo e Meio Ambiente, que disse serem desnecessárias quando tomou posse. O movimento serviu para selar um pacto com o ex-governador Francisco Dornelles. Com a nomeação de dois quadros, o PP apoiaria a reeleição de Crivella. Tudo normal, tudo de acordo com a velha política.

(Aqui um parêntesis. Engraçado o prefeito revalorizar o turismo na semana seguinte ao anúncio de que vai encerrar a subvenção para o carnaval.)

O prefeito, que também está dando cargos ao Solidariedade, pavimenta o caminho para a campanha pela reeleição. Nenhuma dúvida de que ele é um dos favoritos, e não só por estar exercendo o cargo. Crivella vem fazendo nos últimos meses uma gestão de formiguinha, nas palavras de quem conhece a administração pública municipal.

Ele está inaugurando pracinhas, coretos, quadras de esporte, bicas d’água. Com fala mansa, conversa de pastor e amigo, Crivella procura ser íntimo da dona de casa, do dono da venda, do líder comunitário. Este trabalho, associado ao apoio de novos partidos e à bênção da comunidade evangélica, faz de Crivella o candidato a ser batido no ano que vem.

Os adversários mais óbvios são o ex-prefeito Eduardo Paes, os deputados Marcelo Freixo, Alessandro Molon e Martha Rocha, e o secretário Pedro Fernandes. Para Paes, primeiro, é preciso ver se investigações em curso não o inviabilizam. Molon, se não apoiar Freixo, pode ser candidato pela Rede. O PDT pode lançar a deputada Martha Rocha. O secretário Pedro Fernandes pode ser o candidato do governador pelo partido que Witzel escolher. As únicas garantias são que o MDB está fora e Freixo, dentro.

Contra fiscal
O deputado estadual Alexandre Freitas (Novo) protocolou ontem na Assembleia Legislativa do Rio um projeto de emenda constitucional que submete aos deputados a escolha do procurador-geral de Justiça e do defensor público geral. Pelo projeto, essas autoridades, depois de eleitas pelos seus pares e antes de serem nomeadas pelo governador, devem ser aprovadas pela Alerj. A ideia não apenas subverte a autonomia dada pela Constituição a essas instituições. Ela tenta colocar freios no Ministério Público e na Defensoria e, se aprovada, pode provocar retrocesso no processo fiscalizatório.

Dizer que os procuradores e defensores têm muito poder para explicar a emenda não vale. Se este fosse de fato o problema, melhor seria ir ao Congresso Nacional e discutir amplamente essas questões. Tentar “solução” parcial, em âmbito estadual, pode parecer rancor ou vingança. Curiosidade: a proposta foi apresentada no dia seguinte à entrevista coletiva sobre a prisão dos suspeitos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes convocada pelo governador Wilson Witzel; como todos sabem, o MP se recusou a participar da pajelança.


Ascânio Seleme: O autoatentado de Bolsonaro

É assustadora a desenvoltura com que as pessoas falam de um hipotético afastamento do presidente da República, mal completados dois meses de seu mandato. A cada semana o tema ganha mais corpo em conversas nas ruas, nas casas, nos restaurantes, nos escritórios, nos consultórios, nos táxis. Na praia. O assunto pode invadir o Congresso a partir de amanhã, ao fim do recesso de carnaval. Se já não invadiu.

Nunca um presidente conseguiu queimar tanto capital político trazido das urnas em tão pouco tempo como Jair Bolsonaro. Nem os dois presidentes brasileiros efetivamente afastados do poder nos últimos 30 anos estavam tão mal assim cedo. Dilma Rousseff foi reeleita e inaugurou seu segundo mandato com apoio popular e parlamentar, e seguiu assim até a descoberta de suas pedaladas. Fernando Collor, o homem que sufocou o país ao congelar as contas bancárias dos brasileiros, só perdeu apoio quando suas maracutaias tornaram-se públicas.

Tampouco Michel Temer, que chegou ao Palácio pela via indireta e com o país dividido, estava atolado no segundo mês de seu mandato tampão. A hipótese de cassação do mandato de Temer só foi cogitada depois daquela conversa cavernosa no Palácio do Jaburu com o empresário Joesley Batista. Lula e Fernando Henrique também foram objeto da mesmo especulação. Mas Lula, no terceiro ano do primeiro mandato, no auge do mensalão. E FH na discussão da emenda da reeleição, acusado de comprar votos no Congresso. Nenhum ao final do 2º mês.

Hoje, as pessoas falam abertamente sobre o impeachment de Bolsonaro. E por quê? Porque o presidente deu margem, deu corda, alimentou e segue alimentando a discussão sobre seu próprio futuro. Cada besteira dita por ele multiplica o debate sobre o seu afastamento. Somente nesta semana, por duas vezes o presidente espantou os brasileiros, mesmo aqueles que votaram nele com convicção. O Twitter do carnaval e a declaração de que a democracia só existe porque as Forças Armadas querem causaram estupefação no país.

Mas, por mais grosseiro e equivocado que tenham sido o post do“goldens-hower” e o discurso da democracia, não se configurou até aqui qualquer elemento legal para o afastamento do presidente. Tampouco se reúne por ora motivação política para o seu impeachment. Mas isso não impede que as pessoas falem. Frases ouvidas nos últimos dois dias: “Ele não vai concluir o mandato”; “Bolsonaro não aguenta muito tempo”; “Não chega ao fim do ano”; “Os militares não vão deixar ele continuar”.

Está cada vez mais claro que o presidente precisa parar de fala reproduzir tanta bobagem. Se continuar atentando contra si próprio a cada dez dias, Bolsonaro poderá acabar encontrando o seu destino. Deu para ver que as coisas vão mal pelo semblante do ministro Augusto Heleno ao tentar explicar o último discurso infeliz do chefe. Heleno era, até há pouco tempo, um homem feliz. Nos dias seguintes à posse, sua fisionomia era de encantamento. Hoje, o ar é de desilusão.

Nem mesmo o sempre bem-humorado vice-presidente Mourão consegue esconder o desconforto com Bolsonaro. O homem que deveria ser o dono da última palavra, tem que ser seguidamente corrigido por subordinados e assessores. A palavra do presidente virou a penúltima, lamentavelmente. Mourão e Heleno são os dois que fazem as conclusões do governo, tentando encontrar interpretações favoráveis aos equívocos presidenciais


Ascânio Seleme: Carnaval de Itamar e Bolsonaro

(“Tô no meio da rua, tô louca. Tô no meio da rua sem roupa. Tô no meio da rua com água na boca, vestida de rebeldia, provocando a fantasia”) Caetano Veloso

A história é quase inacreditável. Experimente contar seus detalhes para um jovem na casa dos 20, 25 anos. Ele vai dizer que é carnaval, e você bebeu demais. Um presidente da República dançando num camarote da Sapucaí com uma modelo sem calcinha? Conta outra. E pior, fotografado de um ângulo em que toda a intimidade da moça ficou exposta ao lado de um presidente em êxtase. Mentira? Claro que não. Você sabe que não. Era assim o carnaval do Sambódromo dos anos 80, 90 e início dos 2000. Uma alegria devassa insuperável.

No dia seguinte, os jornais estamparam a foto do presidente Itamar Franco com a modelo Lilian Ramos, alguns nas suas primeiras páginas. O que fez o presidente? Nada. Não acusou a moça, não ficou irado, não veio a público atacar a permissividade do carnaval. Ao contrário, à noite ligou para Lilian e tentou iniciar um romance com a moça. Não colou. A modelo queria apenas a publicidade da companhia presidencial num desfile da Sapucaí.

Outra história inacreditável vimos na noite de terça-feira, no Twitter do presidente Bolsonaro. A cena escatológica distribuída por ele entre seus 3,6 milhões de seguidores mostra como Bolsonaro pensa, ou como pensa pequeno. Imaginar que aquelas imagens representam os blocos do carnaval é não enxergar um palmo à frente de seu nariz. Não precisava ir às ruas para entender como funcionam os blocos, bastava ficar meia hora assistindo à GloboNews.

A nudez dos tempos de Itamar era dona absoluta do espetáculo das escolas de samba. Havia até um adereço chamado tapa-sexo, que era uma peça minúscula que se encaixava não sei bem onde e que deixava protegida de olhos alheios apenas a genitália da mulher que o portava. Além das bundas totalmente desnudas, os seios também eram livres para se manifestar como bem entendessem. O Brasil inteiro assistia àquela desabusada nudez desfilando nas telas da TV.

Hoje, não. Dois ou três pares de seios nus foram tudo o que se viu nos dois dias de desfile da Sapucaí. A nudez na Avenida era absolutamente aceitável, como hoje é aceitável a seminudez da garotada nos blocos. O discurso é o da liberdade, do meu corpo, minhas regras, do não é não. E, portanto, tudo é saudavelmente possível. Cada um sai como quer e, com algumas raras exceções, todos e todas são respeitados por todos.

A nudez nas escolas aos poucos desapareceu devido a críticas de que as mulheres eram exploradas. As mesmas vozes que no passado criticavam a nudez das passistas e rainhas das baterias hoje apoiam a liberdade individual de cada mulher se vestir ou se despir como bem entender nos blocos ou fora deles. Nada contra, pelo contrário. Impossível discordar ou não apoiar incondicionalmente todas as campanhas de afirmação e valorização da mulher.

Ontem, as meninas das escolas de samba estavam sendo usadas pela indústria do carnaval, e sua nudez era gratuita e permissiva. Hoje, com um importante gap geracional, a nudez das meninas dos blocos ou do uso do corpo feminino pela mulher de acordo com as suas regras é uma questão de afirmação de gênero.

As duas lógicas devem ser entendidas como expressão de sua época. Se no passado a nudez podia ser chamada de vulgar e machista, hoje pode ser considerada rebelde, libertadora e feminista. Com objetivo igual, os dois movimentos percorreram ou percorrem caminhos inteiramente distintos para alcançá-lo. Portanto, é justo afirmar que o vista-se de 20 anos atrás tem o mesmo significado do dispa-se de hoje em dia.

Da mesma maneira, a homossexualidade se expressa e se reafirma nos blocos. Normal e saudável. Uma festa como o carnaval serve para todo tipo de exaltação. Tente se lembrar de um só carnaval em que você não viu manifestações de afeto gay despudoradamente livres. Foi sempre assim. E continuará sendo assim, quer o presidente do Brasil queira ou não. Hoje, aliás, o amor LGBTQIA+ não precisa do carnaval para se mostrar. O que Bolsonaro fez foi explorar um detalhe tão pornográfico quanto mínimo e insignificante da festa, escancarando mais uma vez suas limitações sociais e cognitivas.


Ascanio Seleme: Geddel chora todos os dias na Papuda

Visitas, uma vez por semana. Sexo? Se houver companheiro (a), uma vez a cada mês

Não deve ser mesmo fácil viver na Papuda, o presídio de Brasília. Lá, como nas demais penitenciárias brasileiras, o despertar nunca é livre. Todas as atividades acontecem sempre em horários determinados. Não há comida fora de hora, com exceção das pequenas porcarias que podem ser compradas na cantina da casa no limite de R$ 100 por mês. Sol, apenas uma vez por dia. Visitas, uma vez por semana. Sexo? Se houver companheiro (a), uma vez a cada mês. As limitações são tão absolutas quanto óbvias. Por essas e outras, o ex-ministro e ex-deputado Geddel Vieira Lima chora todos os dias.

Tem gente no presídio que se comove com as lágrimas de Geddel, mas nem por isso ele tem qualquer atendimento especial ou regalia dentro da cadeia. Há também os que tentam tirá-lo daquela agonia diária. Seu vizinho de cela, o empresário e ex-senador Luiz Estevão já chegou a chacoalhar Geddel para interromper seu choro. Uma vez gritou com ele. “Você é bandido, Geddel! E bandido não chora!”, como contou o jornalista Ricardo Noblat. A bronca não adiantou nada, o detento continua chorando, quase sempre na hora de dormir, mas também já foram relatadas crises de choro ao longo do dia.

Geddel está preso na Papuda desde julho de 2017 por atrapalhar investigações contra a J&F. Dois meses depois, descobriu-se o seu bunker em Salvador com malas e caixas contendo R$ 51 milhões em espécie. A sua história é parecida com a de muitos outros políticos como ele. Empresário, com poder local importante, vira político, vai fazendo uma escalada na atividade até se eleger deputado federal e depois virar ministro. Geddel foi ministro de Lula e Temer. Pelo que contam as denúncias do Ministério Público, ele cresceu política e financeiramente sempre às custas de dinheiro público.

O choro de Geddel pode ser comparado ao desabafo do ex-governador Sérgio Cabral. Claro que Cabral tem uma contabilidade jurídica paralela, quer livrar sua mulher da cadeia. Para o caso dele, propriamente, admitir que cobrou e recebeu propina não ajuda em nada. Já está condenado a mais de 200 anos de prisão e nada poderá mudar isso. Faz sentido, portanto, e é razoável aceitar o argumento de Cabral de que a decisão de abrir tudo também serve como uma espécie de catarse, em que ele se livra de um peso e passa a respirar normalmente.

Cabral admitiu publicamente ser ladrão. Deu como desconto a desculpa do vício pelo poder e pelo dinheiro, mas disse que roubava, sim, cobrava propina, sim. Ele não precisava ter dito nada. As provas levantadas nos diversos casos em que já foi julgado falavam por ele. Por isso, está condenado a mais de dois séculos de prisão. Mas Cabral preferiu falar. Embora, tecnicamente, o fato de ele abrir o verbo servir também como uma delação, não dá para negar que a admissão da culpa serviu a Cabral como o choro serve a Geddel.

Ufa, que alívio. Essa frase soa falsa na boca de Cabral. O gesto, que tem o poder de ajudar Adriana Ancelmo a se livrar de uma condenação, colabora para a sensação de falsidade. Mas no íntimo, no fundo de Sérgio Cabral, é claro que haverá alívio decorrente de deixar a questão emergir. Na psicanálise, esse tipo de desabafo é considerado fundamental para a superação de um trauma, de uma perda. A pessoa que se desembaraça de uma culpa ao assumi-la sente-se leve e, paradoxalmente, protegida. Passa a sentir uma sensação de que nada mais poderá alcançá-la, já que revelou voluntariamente a sua pior parte. Está livre, embora no caso de Cabral o paciente siga preso.

O choro de Geddel serve para o mesmo propósito, apesar de o alívio da tensão gerado neste caso ser parcial e ter curta duração. Ao contrário da sensação de alívio permanente que Cabral passou a sentir depois de abrir o jogo, o fato que produz um episódio de choro volta sempre a incomodar, por isso Geddel chora todos os dias. Enquanto o episódio não estiver amplamente resolvido no íntimo de Geddel, ele continuará derramando um pouco de mágoa junto com suas lágrimas diárias.

Resta saber se o choro de Geddel e a autoflagelação de Cabral significam algum tipo de arrependimento. Como exemplo, são excelentes.


Ascânio Seleme: Carnaval azul e rosa

O primeiro carnaval da era Bolsonaro vai desafiar a pauta de costumes conservadora do novo governo. Não resta dúvida de que a bagunça organizada prevalecerá nos milhares de blocos que vão entupir as ruas das cidades. E nela, nem sempre meninos vão usar azul e meninas tampouco vestirão apenas rosa. Vai ser o de sempre, mas um pouco mais abusado, até como forma de responder à nova ordem.

No Rio, 509 blocos vão sair ao longo desta e da próxima semana. Em São Paulo, serão 516 blocos. O PIB do carnaval paulista será de R$ 1,9 bilhão contra R$ 2,1 bilhões do Rio. Quer dizer, ninguém fará economia na folia, embora no Rio a prefeitura do bispo Crivella se afaste cada vez mais dos foliões. Dá para antecipar que a irreverência não vai poupar Bolsonaro, Witzel, Doria ou quem quer que seja. Vai sobrar para todo mundo.

Essa é a grandeza do Brasil. Não importa quem está no comando, o país segue seu destino com seu jeito debochado. Foi assim sob FH, Lula, Dilma e Temer. Foi assim durante a ditadura. Seguirá assim com Bolsonaro. O Brasil é muito grande, é difícil encontrar um buraco que o engula. E, quando dá, faz pouco caso de quem acha que pode tudo. No carnaval é sempre assim.

E aí, muita gente aproveita a onda para tirar uma casquinha, posicionando-se contra o conservadorismo da nova turma. A campanha publicitária de carnaval da rede de fast-food Burger King é muito eficiente na comunicação, embora use argumentos que devem escandalizar a ministra Damares. Na peça que está no ar e é chamada de “Poliamor”, a menina Bá come dois sanduíches ao lado de seus dois namorados, Gui e Vini. E pergunta por que escolher um se ela pode ficar com os dois.

Há também quem credite ao novo governo o resultado comercial positivo do carnaval deste ano. Para o inventor do Camarote Número 1, o empresário José Victor Oliva, que está investindo R$ 10 milhões na Sapucaí este ano, a mudança do clima político no Brasil e no Rio vai ajudar o carnaval.

Para Oliva, o sucesso é maior ou menor se o Rio e o Brasil estiverem mais confiantes. “A receita do camarote vem a reboque do que acontece na cidade e no país, e este ano já dá para ver que está muito melhor”. Do ponto de vista de Oliva, que aposta em Bolsonaro, o Brasil estava “muito largado; perdemos muito tempo com besteira e bobagem, com o politicamente correto, enquanto a bandidagem ria e agia”.

Ter a casa em ordem é importante, sem dúvida, sobretudo em grandes eventos. Embora no carnaval, como no réveillon de Copacabana, a segurança nunca tenha sido um problema —“há uma comunhão espiritual em torno da festa que reduz a violência”, na visão de Oliva —, quem vem de fora não sabe disso. Por essa razão, sinais em favor da segurança, segundo ele, são eficientes e estimulam o turismo.

Mesmo sendo berço de irreverência quase juvenil, o carnaval não tem idade nem nacionalidade. Para a Sapucaí vem gente de todos os estados do Brasil. Do exterior vêm principalmente os que gostam de Ibiza e outros destinos que conjugam sol e balada. Para eles, o carnaval do Rio é “perfeito”, diz José Victor Oliva. “Trata-se da maior festa do mundo realizada no verão da cidade mais bonita do planeta”.

É assim que a banda toca. O carnaval deste ano vai atender a todos os gostos.


Ascânio Seleme: Concessões de Bolsonaro

O ministro demitido muito provavelmente tem razão

O governo Bolsonaro parece ter dado uma boa afrouxada na sua anunciada política de moralidade e de combate intransigente à corrupção. Há sinais nesse sentido bastante claros. O primeiro e mais eloquente deles foi a decisão de fatiar o pacote anticrime, retirando do corpo principal da proposta a tipificação do crime de caixa 2. Mais grave foi o ministro da Justiça admitir que fez a concessão atendendo demanda de parlamentares. Um dos ícones anticorrupção do governo, Sergio Moro acrescentou que “crime de caixa 2 não é corrupção”.

Caixa 2 é pior do que corrupção, porque o dinheiro desviado dos cofres públicos não vai para o bolso de quem o roubou, mas sim para financiar ilegalmente partidos políticos e campanhas eleitorais, manipulando a vontade do eleitor. Se corrupção é crime, caixa 2 deveria ser considerado crime hediondo. Por outro lado, o governo que se elegeu prometendo mudar a forma de fazer política, não se submetendo a partidos e políticos, na primeira proposta enviada ao Congresso cedeu à vontade dos parlamentares.

Alguém poderia dizer que é assim que se governa e que Bolsonaro caiu na real. Verdade, governar é saber ceder. O problema é que, para aprovar leis contra milicianos e traficantes, o governo abriu mão da lei que alcançaria corruptos. Não dá para saber se os eleitores do presidente Jair Bolsonaro perceberam, mas parte substancial do compromisso assumido com eles durante a eleição foi abandonada. E este não foi o único episódio na linha de concessão à corrupção do governo.

O caso que culminou na demissão de Gustavo Bebianno do Ministério é outro exemplo de como Bolsonaro age erraticamente nessa questão. Numa das conversas com Bebianno tornadas públicas pela revista “Veja”, onde se refere ao laranjal do seu partido, o presidente sugere que o ministro estava jogando o caso no seu colo. Não reclamou do crime, mas sim de que poderia sair respingado. Bebianno explicou que cada diretório do PSL cuidava das suas próprias contas. Disse que no caso de Pernambuco, onde uma candidata do partido ganhou R$ 400 mil para a campanha e obteve apenas 274 votos, o responsável era o deputado Luciano Bivar (PSL-PE).

O ministro demitido muito provavelmente tem razão. Bivar licenciou-se da presidência nacional do partido entregando-a provisoriamente a Bebianno para concorrer a uma vaga na Câmara por Pernambuco, seu estado. Lá, quem dá as cartas no PSL é Bivar. E o que fez Bolsonaro? Brigou com Bivar? Detonou o deputado com o auxílio do seu filho nas redes sociais como fez com Bebianno? Nada disso. Antes mesmo de a poeira baixar, chamou o deputado pernambucano para almoçar com ele no Palácio do Planalto. Ao chegar para o almoço, terça-feira, Bivar disse aos jornalistas que a questão era “tão pequena que nem merecia seu comentário”.

Outro envolvido no laranjal, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, não teve sequer seu nome citado pelo governo ou seu porta-voz. Ele foi acusado por uma mulher usada como laranja em Minas Gerais de ser o principal beneficiário dos desvios do fundo partidário destinado ao PSL no estado. A ex-candidata Cleuzenir Barbosa disse ao jornal “Folha de S. Paulo” que Álvaro Antônio, presidente estadual do PSL, usou dois assessores para tentar convencê-la a transferir dinheiro da campanha para uma gráfica com a qual não tinha feito nenhum serviço.

E o que aconteceu? Nada. O ministro do Turismo, que não tem desavenças com filhos do presidente, segue ministro. Ao que parece, o governo vai aguardar as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público para só então tomar uma decisão sobre o seu futuro. Nesse ponto, o novo governo é a cara de quase todos os que o antecederam.

Simbolismo
O presidente fez bem ao atravessar a Praça dos Três Poderes e levar pessoalmente a proposta de reforma da Previdência aos presidentes da Câmara e do Senado. Foi um gesto que dá a dimensão da importância do projeto entregue por Jair Bolsonaro a Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. O movimento também pretendia servir para reduzir um pouco a temperatura da crise gerada pela demissão de Bebianno e a divulgação dos áudios das conversas entre ele e Bolsonaro. Nesse caso, não se pode dizer que o objetivo foi alcançado.


Ascânio Seleme: Pai Permissivo

Pai permissivo detesta enfrentar seus filhos. Desde muito cedo faz todos os gostos dos meninos, mesmo quando racionalmente reconheça que deveria agir de modo contrário. Teme que as crianças se irritem com a negativa, façam uma cena e lhe tirem a tranquilidade. Esse homem é um egoísta que não quer problema e faz qualquer concessão para evitar conflito. Seus filhos são mimados e crescem com uma autonomia inadequada para suas idades e capacidades cognitivas. São meninos-problema e serão homens-problema.

O pai permissivo é um covarde por natureza. No fundo, ele tem medo dos filhos. No começo, é medo de se incomodar com o que julga ser bobagem, e vai deixando os filhos agirem como bem entenderem. Com essa lógica medrosa, permite que esses jovens cresçam sem controle e se tornem homens que desrespeitam limites. Daí, o pai começa a ter medo físico dos filhos.

Como o pai permite tudo, ou não se importa com nada, os filhos acabam tendo seu desenvolvimento psicoemocional descompensado. Sua capacidade de interagir em casa e na rua, sobretudo na rua, é balizada por essa permissividade. Esses meninos ficam autoritários, brigões, não aceitam não como resposta. Suas habilidades sociais são reduzidas, qualquer faísca é capaz de provocar reações bruscas, burras e algumas vezes brutais.

Esses meninos são normalmente arrogantes. Acham que podem tudo, afinal cresceram num ambiente em que tudo podiam. Muitos filhos de pais permissivos já quebraram empresas que herdaram da família. Como qualquer coisa que fizessem era abençoado pelo pai, envelheceram sem conhecer as suas próprias limitações e, acreditando saber mais do que de fato sabem, acabaram destruindo patrimônios. Esse é apenas um dos muitos problemas de arrogância gerada desde o berço.

Se meninos mimados podem quebrar a empresa do pai permissivo, imaginem o que serão capazes de fazer com uma nação se forem filhos do seu presidente. O modo com que o filho Carlos Bolsonaro age no governo do pai sugere ter tido esse tipo de criação permissiva. Ele faz o que lhe dá na telha e que se danem os incomodados. E, pior, o pai passa a mão na sua cabeça.

No primeiro dia de governo aquela carona patética que pegou no Rolls-Royce presidencial já mostrava até onde poderia ir. Um pai não permissivo diria: “Sai daí, menino. Que bobagem é essa?” Mas, não, Jair Bolsonaro fez nada e desfilou sorridente ao lado da mulher com aquela criatura estranha sentada sobre o encosto do banco traseiro do carro.

O ataque ao ministro Gustavo Bebianno na véspera de o governo enviar ao Congresso sua proposta de reforma da Previdência poderia ser tomado como sinal de demência. Mas, na verdade, parece tratar-se da tão banal quanto burra arrogância de filho de pai permissivo. E pior, se deu na hora em que o presidente voltava para o Palácio, no momento de maior tranquilidade de um governo que já havia começado conturbado com a bagunça de outro filho.

É difícil acreditar que Carlos agiu orientado pelo pai. A menos que o pai seja ainda mais cego e tapado que o filho. Não acredito. O fato é que, graças a desenvoltura desmedida de uma pessoa que sempre pôde tudo, o presidente Jair Bolsonaro se deixou engolfar por uma crise. Uma crise criada por uma birra de um filho mimado.


Ascânio Seleme: Boechat tratava igualmente o presidente da República e o guarda de trânsito, e deixará ouvintes órfãos

Era impossível ouvir Boechat sem rir de uma ou de muitas de suas tiradas, depende do quanto tempo você ficasse ouvindo o seu programa

Além de um grande jornalista, um excelente comentarista e um extraordinário apresentador, sobretudo de rádio, Ricardo Boechat era um cara muito bem-humorado. Seu programa matinal na rádio BandNews FM era onde ele melhor extravasava seu enorme senso de humor. Ele conseguia fazer graça mesmo de coisas seriíssimas, como os sucessivos escândalos do mensalão e da Petrobras.

Era impossível ouvir Boechat sem rir de uma ou de muitas de suas tiradas —depende do quanto tempo você ficasse ouvindo o seu programa que era transmitido diariamente ao vivo. Boechat entrava ao ar cedo, em rede, e, depois das 10h, era mais solto, extrovertido e bem-humorado, quando ficava no ar apenas para os ouvintes do Rio de Janeiro.

Mas esse humor que o distinguia dava rapidamente lugar ao escracho, quando Boechat narrava as torpezas do cotidiano. Seu humor de altíssima qualidade rapidamente cedia espaço à ira de trovão que o jornalista soltava sempre que ele julgava que a situação merecia.

Boechat então não tinha papas na língua. Atacava impiedosamente quem quer que fosse, do presidente da República ao guarda de trânsito, que fazia uma “blitz canalha para levantar um trocado” engarrafando vias da cidade. Usava a linguagem que o leitor usaria no seu dia a dia, e isso acrescentava tonalidades de verdade e honestidade ao comentário de Boechat. “Pau neles”, costumava dizer, antes de desfiar rosários de ataques ao malfeitores públicos e privados que apareciam no noticiário comentado diariamente por ele.

Com a bagagem que tinha, recolhida em tantos anos no colunismo do jornal impresso brasileiro, Ricardo Boechat era daquele tipo de gente que sabe de tudo. Ele conseguia tratar de qualquer assunto com a mesma desenvoltura, aquela que a rádio exigia. Podia ser temas como orçamento do submarino nuclear construído pela Marinha ou custo de um saco de pipoca vendido na porta de um cinema. De todos os eles, Boechat tirava uma sacada própria, uma observação inusitada, uma derivação exclusiva para os seus ouvintes, leitores, telespectadores.

Dizer que ele era um jornalista e tanto é pouco. Boechat era uma figura e tanto. Seus companheiros na rádio vão sofrer muito para superar a sua ausência. Seus ouvintes certamente terão o sentimento da orfandade a partir de hoje.