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Ascanio Seleme: Marieta e Tonico

Jornalistas são atacados pelos que apoiam Bolsonaro, que nos acusam de sermos petistas, e pelos petistas, que nos chamam de fascistas

Jornalistas sabem muito bem que Marieta Severo tem toda a razão quando afirma ser muito doloroso receber ataques gratuitos de pessoas mal informadas. Numa entrevista ao GLOBO, Marieta diz que, nos seus 53 anos de profissão, ela e seus colegas trabalharam com dignidade, honestidade e doação. E que de uma hora para outra tudo virou de cabeça para baixo. Marieta estava se referindo aos ataques que a classe vem recebendo de maneira sistemática desde a eleição de Jair Bolsonaro.

Durante a campanha e depois da eleição, Bolsonaro e seus aliados produziram um discurso de demonização, para usar palavra de Marieta, contra artistas, partindo de um pressuposto falso, de que eles ganham dinheiro público em troca de apoio político ao PT. Mentira. Fake news. Claramente a maioria apoiou Lula e se posicionou firmemente contra o impeachment de Dilma. Também foi com Haddad contra Bolsonaro. Mas essa era uma opção política legítima, nada a ver com o dinheiro captado com o apoio da Lei Rouanet para produzir cultura.

Não é de hoje que artistas são molestados em redes sociais, quando não pessoalmente, por pessoas que discordam das suas posições políticas. A própria Marieta já passou por isso antes da eleição de Bolsonaro. Um dos casos mais conhecidos é o de Chico Buarque, parado há alguns anos numa rua do Leblon por pessoas que o ofenderam apenas por ele apoiar Lula. Ele foi chamado de comunista, o que é ridículo, e sugeriram que se mudasse para Cuba, o que é patético.

Os artistas podem contar com a solidariedade dos jornalistas, que passam por este mesmo tipo de constrangimento todos os dias. A diferença é que jornalistas são atacados por ambos os lados. Pelos que apoiam Bolsonaro, que nos acusam de sermos petistas, e pelos petistas, que nos chamam de fascistas e nos acusam de sermos bolsominions. Esquizofrênico? Bota esquizofrênico nisso. Jornalistas, como artistas, são dignos, honestos e se entregam diariamente para levar ao seu público informação de qualidade que o ajude a tomar decisões no seu dia a dia.

Tonico Ferreira, um dos grandes nomes do jornalismo da TV Globo, aposentou-se em abril por não suportar mais os ataques que sofria sempre que saía para fazer uma reportagem de rua em que houvesse aglomeração. Não conheço jornalista mais tranquilo, amável e equilibrado do que Tonico. Um gentleman. E mesmo ele, que nos seus mais de 50 anos de jornalismo (40 de TV Globo) sempre tratou respeitosamente todos os lados da política, foi agredido até por pessoas que o conheciam.

Numa entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, Tonico diz que a agressividade contra os repórteres lhe tirou o prazer do ofício. E cita o exemplo da cobertura da prisão de José Dirceu. Ao entrar ao vivo na Globo, depois de negociar com pessoas do PT que conhecia, foi interrompido por gritos e cartazes colocados entre ele e a câmera com dizeres contra a TV Globo. Quem já não viu cena semelhante na TV? Mas houve ataques piores contra repórteres. E ainda os há. “Toda manifestação é um problema de segurança para jornalistas, pode ser do Bolsonaro ou do PT, quando junta gente, se você cai, todo mundo dá um pontapé anônimo”, disse Tonico à “Folha”.

Lembram-se de Caco Barcelos sendo agredido por servidores públicos que faziam manifestação em frente à Alerj? E não foi apenas verbalmente, Caco foi agredido fisicamente. Jogaram sobre o repórter e sua equipe garrafas, caixas, cones de trânsito, tudo o que estivesse ao alcance das mãos. Por pouco não ocorreu uma tragédia, e justamente quando ele dava voz aos manifestantes que afinal o agrediram. E por quê? Porque os manifestantes, mal informados, estavam simplesmente ecoando o discurso diuturno de Lula contra a imprensa.

Durante o processo do impeachment de Dilma e ao longo do julgamento do ex-presidente no caso do tríplex, Lula e simpatizantes acusaram a imprensa de perseguir o PT, o mesmo que hoje fazem seguidores de Bolsonaro. Informar virou perseguir no dicionário político. Em janeiro deste ano, Lula discursou no Teatro Oi Casagrande durante manifestação de artistas e intelectuais contra a sua prisão. O ex-presidente fez os habituais ataques à imprensa, colocando na nossa conta a responsabilidade pelo seu descaminho e o do PT. Quem o ouvisse poderia achar que fomos nós, jornalistas, que saqueamos a Petrobras. Lula foi aplaudido de pé. Por todos, inclusive pelos artistas.


Ascânio Seleme: Igreja x Estado

O que se viu esta semana em Brasília foi um gesto de submissão de um presidente eleito

Um dos melhores nomes que circularam na mesa de ministeriáveis do presidente eleito, Jair Bolsonaro, o de Mozart Neves Ramos, para a Educação, foi bombardeado e expelido pela bancada evangélica. Com todo respeito aos evangélicos e aos fiéis de qualquer outra denominação, a questão não é religiosa, e não pode ser. O Estado brasileiro é laico por determinação constitucional. Significa que seus governantes não se subordinam a nenhuma instância religiosa. Não foi o que aconteceu na indicação do futuro ministro da Educação.

Mozart Ramos foi vetado, esta é a palavra correta, pela bancada evangélica, e antes de nomear seu substituto, o presidente eleito pediu o aval de Silas Malafaia, pastor pentecostal de uma igreja ligada à Assembleia de Deus. Malafaia apoiou e festejou a indicação do filósofo colombiano Ricardo Vélez Rodriguez. Os evangélicos do Congresso também gostaram do novo nome, um conservador de direita que comandará o Ministério da Educação levando em conta o conceito da Escola sem Partido.

Três homens influenciam Jair Bolsonaro. Onyx Lorenzoni, Paulo Guedes e Olavo de Carvalho. Todos indicaram ministros. Onyx chegou a chamar um pelo nome antes mesmo de ele ser anunciado pelo presidente eleito. Guedes nomeia quem quer e gasta no máximo uma hora explicando ao seu chefe por que este vai para o BC e aquele para o BB. Olavo nunca se encontrou com Bolsonaro e falou com ele pelo telefone apenas três vezes, segundo entrevista que deu para a repórter Natália Portinari. Mesmo assim, já nomeou dois ministros.

Depois do chanceler antiglobalista, ele recomendou Vélez Rodriguez, especialmente pelo seu perfil conservador. Olavo não é burro, sabe que Escola sem Partido é uma miragem. Ele disse na entrevista ao GLOBO que primeiro é preciso se conceituar o que é isso e como se manifesta o esquerdismo nas escolas e universidades, para depois tentar produzir um projeto de lei que delimite sua abrangência. Segundo ele, o ideal seria conceituar o movimento como Escola sem Censura. Num post em rede social, Olavo disse que na sala de aula o professor deveria expor sua opinião e opinião oposta.

O fato é que, no Brasil, 87% da população é cristã, e pelo menos um quarto deste contingente frequenta serviços religiosos. Talvez por isso, pelo espetacular tamanho do rebanho que dominam, líderes religiosos muitas vezes se julgam justos o suficiente e capazes o bastante para dizer que rumo todos devem tomar, inclusive os que não professam a mesma fé ou que não professam fé alguma. E assim vetaram Mozart Ramos, que era a primeira escolha de Bolsonaro, mas se lixava para a Escola sem Partido.

A bancada evangélica sempre exerceu influência sobre governos, mas nunca a ponto de apor vetos a ministros. Houve ministros indicados pelo grupo mesmo nos governos petistas, mas jamais se soube de um nome escolhido pelo presidente que acabasse sendo retirado por determinação religiosa. O que se viu esta semana em Brasília foi um gesto de submissão de um presidente eleito. Fazer consultas a partidos e bancadas da sua base ou que representam sua orientação ideológica faz sentido e é do jogo democrático. Ouvir e aceitar um não publicamente é que são elas.

Mais de 20% dos brasileiros frequentam cultos religiosos pelo menos uma vez por mês. Na Itália, 11% da população vão a algum tipo de missa, contra 3,5% na Grã-Bretanha e apenas 1% na Suécia. Agora, imaginem um pastor, um bispo ou um grupo político ligado a igrejas evangélicas vetando um ministro em Estocolmo. Pois é. E o Brasil assim vai se modernizando.


Ascânio Seleme: Crimes de ódio, lá e aqui

Os números são impressionantes. Os crimes de ódios relatados nos Estados Unidos cresceram 17% de 2016 para cá, e vêm aumentando de maneira regular e consistente desde a eleição do presidente Donald Trump. No ano passado, 7.100 crimes desta natureza foram registrados, sendo que três em cada quatro ocorreram por questões raciais ou étnicas. Religião e orientação sexual são as outras duas motivações mais importantes de crimes de ódio, segundo relatório do FBI publicado na quarta-feira pelo jornal The New York Times.

Os dados divulgados estão com certeza subestimados. Apenas 12,6% das delegacias e outras instituições policiais relataram ao FBI crimes de ódios em suas jurisdições. Os departamentos de polícia de Miami e Las Vegas, por exemplo, não notificaram um caso sequer em 2017, o que é claramente impossível. Por outro lado, crimes que ficam apenas no campo da agressão verbal ou física muitas vezes não são sequer denunciados pelos agredidos, que não acreditam que a sua notificação vá resolver alguma coisa.

O elemento que causou o aumento expressivo nesse tipo de crime foi a crescente tensão política no país desde a posse de Trump. Nenhuma dúvida sobre a enorme mudança de clima, em se comparando o governo do presidente Barack Obama com o do seu sucessor. Os Estados Unidos pularam de um estado de espírito tranquilo e quase passivo, sob Obama, para um de permanente excitação, com Trump. O exemplo americano pode ser muito útil no Brasil, que, em 45 dias, inaugura novo governo que, sob todos os aspectos, quer se parecer com o de Donald Trump.

Um chefe de estado que transpira intolerância, como é o caso do presidente americano, contamina todo o tecido social. Se o presidente pode ser agressivo e destilar ódio, por que o cidadão não pode? A pergunta é ridícula, mas ela é sistematicamente feita nos Estados Unidos por pessoas suscetíveis, de perfil psicológico frágil e limitadas cognitivamente. E as respostas aparecem nesses dados coletados pelo FBI.

O presidente eleito do Brasil vem moderando de maneira consistente seu velho e conhecido discurso de ódio e intolerância. Se Bolsonaro tivesse mantido o mesmo tom, correríamos altíssimo risco de ver prosperar no país a mesma onda que atravessa os Estados Unidos desde a chegada de Trump. Também arriscamos trilhar o mesmo caminho se o futuro presidente tiver uma recaída e retomar seu antigo e antiquado perfil, hipótese que não pode ser de maneira alguma descartada. É cedo para dizer que Bolsonaro mudou.

São raras no Brasil agressões geradas por motivação política, como a do atentado contra o próprio Bolsonaro e o assassinato do petista Moa do Katendê. O que temos por aqui, e em abundância, são as agressões de natureza racial e de gênero, e os crimes em razão da orientação sexual do agredido, que são quase banais no Brasil. Esses crimes podem aumentar ainda mais se o futuro líder da nação não consolidar esta sua mudança de estilo.

Não discriminar e não deixar que se discrimine qualquer um e em nenhuma hipótese. Repudiar a agressão e o agressor. Deter, julgar e prender o agressor. Promover práticas de inclusão, investir, apoiar e priorizar as minorias. Bolsonaro deverá não apenas suavizar o seu discurso, mas efetivamente mudá-lo. O brasileiro saberá agradecer um sinal de grandeza de seu presidente. Mesmo os que o apoiam, os que votaram nele, e que são hoje a maioria no Brasil, vão aceitar e aplaudir um líder mais moderado.


Ascânio Seleme: Nomear, delegar, demitir

Segundo especialistas em gestão, delegar é uma das mais importantes qualidades do líder

O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, não precisou mais do que 40 minutos para convencer o presidente eleito Jair Bolsonaro de que Joaquim Levy era um bom nome para presidir o BNDES.

O fato de Levy ter trabalhado nos governos de Lula e Dilma, e de Sérgio Cabral, no Rio, não impediu que seu nome fosse aceito. Ao ser questionado se a indicação não implicava um recuo do discurso de campanha, Bolsonaro disse que confia em Guedes e que Levy não responde a nenhuma acusação ou denúncia. Neste episódio, o presidente exerceu na plenitude sua capacidade de delegar.

Bolsonaro escolheu Guedes e entregou a ele a responsabilidade de montar toda a estrutura abaixo dele e ao seu redor. Além de Levy no BNDES, o futuro ministro vai indicar o novo presidente do Banco Central e preencher inúmeros outros cargos com pessoas que exercerão o controle da economia e sobre as quais estará amparado o futuro do país. Você pode achar que se trata de muita delegação de autoridade. É, pode ser. Mas também é demonstração de confiança no subordinado e de reconhecimento de suas próprias limitações.

Segundo especialistas em gestão, esta é uma das mais importantes qualidades do líder. A professora Ylana Miller, do Ibmec, disse numa entrevista ao GLOBO, de agosto de 2014, que delegação é “atitude de gestores que incentivam a participação ativa da equipe sem receio de suas contribuições serem melhores do que as dele”. Bolsonaro nunca escondeu isso, sobretudo quando o assunto é economia. Apelidou Paulo Guedes de Posto Ipiranga e disse em diversas entrevistas que não entende do assunto.

O presidente eleito também entregou ao futuro ministro da Justiça plenos poderes para nomear livremente os principais postos da sua área, como o de diretor-geral da Polícia Federal e de seus superintendentes estaduais. Da mesma maneira, Sérgio Moro terá autonomia para decidir os rumos da política de segurança pública. O juiz da Lava-Jato já disse que não aceitaria o cargo se não tivesse essa liberdade.

Mas é verdade que Moro entendeu para onde o vento sopra e já defende posições que sempre pertenceram ao seu novo chefe. Com o respeito que o presidente eleito merece, o ministro indicado deu todos os sinais de que sabe qual programa venceu a eleição e qual será o seu papel na aplicação desse programa ou na sua delimitação. Sérgio Moro poderá ser um bom ministro se conseguir realmente colocar limites em questões cruciais como o porte e o uso de armas de fogo.

Outro ministro que terá poderes excepcionais será o futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Além de acumular as funções administrativas da sua pasta, que significa rever e aprovar todos os documentos que chegam ao Palácio requerendo a assinatura do presidente, Onyx comandará a política do governo. Será o articulador das ações do Executivo no Congresso e o negociador oficial com parlamentares, partidos ou bancadas.

De seus entendimentos daqui até o fim de janeiro vão sair os novos presidentes da Câmara e do Senado. Numa entrevista na terça-feira, ele chamou o ex-presidente do PSL Gustavo Bebianno de ministro. Embora depois tenha se justificado, dizendo que quem nomeia obviamente é Bolsonaro, o gesto de Onyx foi deliberado. Ele não apenas chamou de ministro como indicou a pasta que Bebianno iria ocupar, a da Secretaria-Geral da Presidência.

Nem Fernando Henrique, que era menos centralizador do que Lula e muito menos do que Dilma, deu tanta carta branca aos seus ministros. Pedro Malan, que dirigiu a economia nos seus dois mandatos, tinha liberdade para agir, mas a decisão final de questão mais importante era do presidente. Tampouco o superpoderoso Clóvis Carvalho, ministro da Casa Civil, teve total autonomia. Embora o reputasse como o segundo em comando, FH não hesitou quando precisou deslocá-lo do Planalto.

Delegar é uma qualidade que Bolsonaro já mostrou ter. A dosagem dessa delegação pode parecer exagerada à primeira vista. Talvez seja mesmo e deva-se ao fato de nunca um presidente eleito ter chegado a este momento com tantas pontes queimadas. O seu despreparo também contribui para o processo de distribuição de responsabilidades. Mas o fato inarredável é que o presidente é Bolsonaro. E cabe a ele nomear e demitir ministros. Inclusive os mais poderosos.


Ascânio Seleme: Saber perder

Ao longo da campanha que acabou por elegê-lo presidente da República, Jair Bolsonaro deu sinais de que não sabe ganhar. Mesmo liderando todas as pesquisas por larga margem, denunciou diversas vezes que havia tentativas de fraudes eleitorais e atacou sem cessar a mais eficiente urna eletrônica em uso em todo o mundo. E esses ataques seguiram até a véspera do segundo turno. Difícil dizer como vai reagir quando perder alguém que não sabe ganhar.

A primeira derrota do presidente eleito aconteceu antes mesmo de ele assumir seu novo cargo. E se deu porque ele resolveu se intrometer no assunto ao pedir ao Senado que não aprovasse o reajuste do Judiciário que vai causar impacto anual de R$ 4 bilhões nas contas públicas. Bolsonaro foi provocado por um repórter, poderia ter ficado calado, mas não só respondeu como fez a recomendação. Agiu corretamente, apesar de ao final ter perdido a votação, pois terá de lidar com o resultado do aumento salarial dos juízes no ano que vem. Não se omitiu, ponto para ele.

Mas o fato é que ele perdeu a primeira votação antes mesmo de inaugurar seu governo. E, pior, perdeu com dez votos de senadores que oficialmente o apoiam e vão fazer parte de sua base parlamentar a partir de 2019. Antes da votação do reajuste, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, defendia fazer uma “prensa” no Congresso para aprovar sua agenda, e um dos filhos do presidente chegou a falar em “tratorar” o Legislativo. Bobagem, deputados e senadores não temem a fúria de presidentes, querem seus favores, e podem até fazer trocas. Mas grito não resolve.

O presidente do Senado, Eunício Oliveira, que não se reelegeu, disse ao jornal “O Estado de S. Paulo” que não lhe incomodou ter ignorado o pedido do presidente eleito. “Não me importo se Bolsonaro vai gostar ou não”, afirmou Eunício, responsável pela colocação do aumento do Judiciário na pauta. O senador denunciou ainda uma tentativa de constrangimento que sofreu em outro episódio. Segundo Eunício, Paulo Guedes teria dito a ele “ou você vota a Previdência ou o PT volta”. A informação não foi checada, mas, se existiu, confirma mais uma vez que é preciso cuidado para que a falta de jeito não vire marca registrada do novo governo.

O bom-senso recomenda cautela e muita saliva no tratamento das questões com o Congresso. Para cumprir uma de suas principais promessas de campanha, erradicar da prática governamental a troca de cargos por votos, Bolsonaro terá que negociar muito mais do que qualquer outro presidente antes dele. Com o famoso “é dando que se recebe”, um governo iniciava os entendimentos para aprovação de suas propostas com a maior parte dos votos necessários já consolidada. Sem ele, cada nova pauta começará a ser negociada do zero.

Nos próximos quatro anos, Bolsonaro vai ganhar um bom número de causas e perder outro tanto. Será fundamental ao novo presidente saber perder. A derrota pode ser dura e difícil, mas terá de ser engolida e digerida pelo novo presidente. Só assim poderá mostrar grandeza e exercer bem o cargo que o brasileiro lhe confiou. Um presidente não pode tudo, perder faz parte da sua rotina. Até sexta-feira, a primeira derrota tinha sido bem deglutida.


Ascânio Seleme: Forças e poderes

O presidente eleito Jair Bolsonaro dividiu sua estadia em Brasília em visitas aos três poderes civis e às três forças militares. A visita ao Congresso foi institucional, e Bolsonaro cumpriu adequadamente seu papel de novo líder da nação. Com a Constituição na mão, disse que o documento é o norte da democracia. Verdade que não cabia manifestação distinta, todos estavam ali para comemorar os 30 anos da Carta.

Reuniu-se protocolarmente com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli. As imagens do encontro e, depois, na rápida fala à saída, mostram um Bolsonaro tenso, olhar fixo no horizonte. Toffoli recomendou diálogo permanente do presidente eleito com o Legislativo e o Judiciário. E Bolsonaro respondeu com grandeza, concordou com o ministro e disse que vai procurá-lo antes de tomar algumas iniciativas, em favor do entendimento. No fim do seu périplo pela capital, foi ao presidente Michel Temer para outro encontro formal.

Menos protocolares e mais animadas foram as visitas aos chefes militares. O primeiro a receber o presidente eleito foi o ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, que ofereceu um almoço a Bolsonaro na terça-feira. No mesmo dia, visitou os comandantes da Marinha, almirante Eduardo Bacellar Leal Ferreira, e do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Ontem, ele tomou o café da manhã com o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato. Nenhum dos três tem status de ministro.

Com boa vontade, pode-se dizer que foram encontros naturais; afinal, Bolsonaro é capitão reformado do Exército e reuniu-se com os seus velhos companheiros. Se tivesse permanecido na força, cumprido uma carreira acima da média e sem anotações por indisciplina, poderia ele próprio ser hoje um general. Mas não se tratou de simples convescote entre amigos.

Conversa entre amigos seria se o professor Fernando Haddad tivesse sido eleito e fosse visitar a Universidade de Brasília na sua primeira visita à capital. Não teria maior importância, além de sinalizar a favor da educação. A visita de Bolsonaro ao ministro da Defesa e aos chefes da três forças serviu para anunciar decisão importante e com uma deferência que somente os militares receberam na Esplanada dos Ministérios.

Na entrada da visita ao ministro da Defesa, Bolsonaro disse que os orçamentos das Forças Armadas não serão contingenciados. Segundo o presidente eleito, este é um reconhecimento por tratarem com zelo recursos públicos e “pelos brilhantes serviços que prestam a todos no Brasil, em especial nos tempos difíceis que a nação atravessa”. Os serviços que as Forças Armadas prestam são conhecidos, o que não se sabe é como elas podem ser úteis neste momento difícil do país.

Definitivamente, esta não foi uma boa fala do presidente eleito. Primeiro, se for para descontingenciar recursos, os prioritários deveriam ser os da saúde, da educação e da segurança pública, nunca os das Forças Armadas. Depois, mais importante que liberar dinheiro para Exército, Marinha e Aeronáutica, é resolver o déficit previdenciário dos militares, que representa metade de todo o buraco do setor.

Outra decisão anunciada no estilo Bolsonaro, dizendo tratar-se de ideia a ser consolidada, foi o deslocamento do general Augusto Heleno para o Gabinete de Segurança Institucional, abrindo espaço para outro oficial na Defesa. Aparentemente para um almirante, Bolsonaro sugeriu numa entrevista na sede do comando da Marinha. O único problema dessa mexida é convencer um general a se subordinar a um almirante, de resto, mudança de última hora é da natureza das transições.

Bolsonaro lembrou que é oriundo da carreira e que os militares terão lugar de destaque em seu governo. Nada de novo, isso já se sabia antes da eleição, o que lhe dá legitimidade. O problema não é colocar general ou coronel no gabinete, mas sim dar tratamento especial com recursos públicos ao Ministério da Defesa e aos departamentos militares em detrimento dos civis. As questões civis atingem a todos os brasileiros e merecem atenção prioritária do novo governo. As militares, não.


Foto: Beto Barata\PR

Ascânio Seleme: Montando o governo

A redução do número de ministérios no governo de Jair Bolsonaro não vai resultar necessariamente em queda importante das despesas orçamentárias. Se a Esplanada ficar com 17 pastas, o novo governo terá extinto 12 dos 29 ministérios hoje existentes. Será um bom símbolo de austeridade e de empenho no enxugamento da máquina e na diminuição do Estado, mas é preciso muito mais do que isso para que as contas públicas sofram impacto.

Com 12 ministros a menos, o Estado poderá cortar em cargos de assessoramento e secretariado no máximo uns 300 postos, nada mais do que uma vírgula no oceano de 630 mil servidores civis ou mais de 320 mil militares na ativa no Brasil.

O que Bolsonaro vai fazer, a grosso modo, é reagrupar setores do governo que foram divididos ao longo dos anos para abrigar aliados dos que detinham o poder. Por isso, as funções distribuídas nos ministérios criados sem necessidade não deixam de existir em razão da sua reunião sob comando único, apenas perdem status. No governo Lula, o Estado chegou a ter 37 ministérios, com Dilma foram 39, todos entregues a partidos da base.

Era uma forma de comprar o apoio eo voto desses partidos no Congresso Nacional. Não que essa tenha sido uma invenção petista, mas nos seus governos chegou no ápice. Nos ministérios, além dos cargos remunerados que ocupavam, os partidos podiam fazer negócios. E faziam. Muitos quadros das legendas que apoiavam o governo acabaram na cadeia em Curitiba.

Mas este é outro caso, o que importa agora é a montagem do novo governo e como a redução de ministérios chinfrins e a construção de superministérios pode ajudar o novo presidente. Primeiro, é importante levar em conta que alguns desses agrupamentos à primeira vista parecem exagerados.

Os poderes que serão conferidos ao superministro da Economia, por exemplo, vão requerer de Paulo Guedes superpoderes intelectuais e uma capacidade fora do comum de administrar seu tempo. E o ganho que se pode obter desse arranjo é discutível. Para alguns especialistas, até temerário. Já se tentou antes e não deu certo.

Outros superministérios, como o da Justiça, que será tocado por Sergio Moro, fazem mais sentido e representam um ganho político e institucional importante. Sem qualquer dúvida o combate à corrupção e ao crime organizado terá um símbolo, que será uma das caras mais conhecidas dos brasileiros, a de Sergio Moro. E contra bandido, símbolo que tem muito mais significado, como a estrela do xerife.

Para enxugar a máquina, reduzir o tamanho do Estado e gastar menos, Bolsonaro terá de diminuir as atribuições do governo, estatizar empresas públicas e em seguida demitir servidores. Mas isso não se faz assim, com uma canetada, ou com um plano de demissão voluntária. Estudos terão de ser feitos e tomarão tempo. Reduzir ministérios apenas não adianta. Fernando Collor teve 12 ministérios, mas o Estado ficou do mesmo tamanho.

O simbolismo ajuda, cria empatia, mostra determinação. Mais importante, contudo, é a decisão de Bolsonaro de não nomear pessoas indicadas por partidos políticos e sim quadros técnicos. Se ele conseguir resistir daqui até janeiro à pressão que já está sofrendo, poderá dizer que cumpriu sua primeira promessa de campanha. Mas ainda falta muito tempo.


Ascânio Seleme: O PT voltou

Não durou muito a frente democrática proposta pelo PT durante o segundo turno, como tentativa de reunião de partidos e lideranças de centro e centro-esquerda para se opor à candidatura de Jair Bolsonaro. Dois dias depois da derrota nas urnas foram suficientes para Fernando Haddad perder o centro da mesa para Gleisi Hoffmann, a estrela vermelha substituir a bandeira verde -amarela, e o discurso radical tomar o lugar do diálogo para o entendimento.

O PT retomou o seu ímpeto e, pelos primeiros movimentos depois de domingo, já dá para dizer como vai ser a sua oposição ao governo Bolsonaro. Será feroz. Dura e feroz. E, como sempre, o partido vai usar e abusar de palavras como ódio, intolerância, violência, entreguismo, fascismo. Suas lideranças já falam, dois meses antes da posse do presidente eleito, como se vivêssemos no limiar do apocalipse. E o tom é exatamente igual ao que o PT promete atacar.

Em 2014, quando o derrotado Aécio Neves pediu ao TSE a cassação da chapa vitoriosa de Dilma Rousseff e Michel Temer, o PT acusou o tucano de mau perdedor e antidemocrático. Agora, ataca o recém-eleito presidente com a franqueza do péssimo perdedor. Parlamentares discursam na Câmara e no Senado repetindo serem donos de “milhões de votos dos brasileiros que votaram no PT e contra o fascismo”. O líder do partido, deputado Paulo Pimenta, anunciou que vai “resistir ao consórcio Temer/Bolsonaro”.

O partido, que já mandou subir outra vez as placas de “Lula livre”, também anunciou que vai fazer “dura oposição ao projeto da reforma da Previdência”. E, nem precisaria anunciar, sabe-se que se oporá a privatizações, ao corte de gastos e a toda medida que signifique redução do Estado. Embora ainda defenda a “frente ampla democrática”, é claro que o PT voltou a ser o PT. Sua pauta está de volta e sua forma de fazer oposição, reinaugurada.

O modelo petista de se opor aos governantes, bem conhecido de Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique e Temer, não poupa adjetivos e tampouco se preocupa com boas maneiras. Apesar de quase sempre passar do tom, a oposição do PT não deixa dúvidas, não tergiversa, vai direto ao ponto. E o ponto petista normalmente é entre a canela e a linha de cintura. O fato novo é que agora quem vai levar as caneladas também costuma dar as suas.

Apesar da virulência, não resta dúvida de que a oposição petista ao governo Bolsonaro deverá fazer bem à democracia. Até agora, apesar do discurso de Ciro Gomes, oposição mesmo só o PT tem feito. E Ciro, além de Bolsonaro, fará oposição ao PT. O que será meio esquizofrênico. Você pode dizer que é cedo para se opor, e eu sou obrigado a concordar; afinal, o novo governo nem começou ainda. Mas é assim que a política funciona. Muitos foram derrotados por Bolsonaro, PSDB, MDB, PDT, Rede e outros. Mas o PT foi o último. Por isso faz sentido ser o primeiro a ir para a oposição.

Claro que o novo governo terá que buscar alianças para aprovar as suas pautas. A agenda econômica, com reformas importantes, será objeto da permanente artilharia petista. Nessa pauta, contudo, com o apoio de PSDB, Novo e Centrão, Bolsonaro tem chances de atropelar a oposição e aprovar muita coisa. Já em outros pontos que serão objeto de medidas do novo governo, o PT poderá atrair partidos ou parlamentares em número suficiente para frear Bolsonaro.

A oposição a medidas como a que o senador Magno Malta tentou aprovar ontem na CCJ do Senado, que qualifica como terrorismo ações de grupos como o MST e o MTST e criminaliza os manifestantes, terá obviamente maior adesão. Certamente, o PT também terá parceria de centro robusta no combate a possíveis projetos que mexam com leis que regulamentam as relações sociais ou que alterem questões de costume já debatidas pela sociedade.

O fato é que governo sem oposição pode muito. E isso é ruim. Oposição fraca ou inibida, como a liderada pelo PSDB durante os governos petistas, permite que o governo navegue em velocidade acima da legal, onde medidas são aprovadas de roldão, sem debate, sem que se conheça o contraditório. Melhor uma oposição dura, mesmo que ela signifique confronto sistemático ao governo, que oposição nenhuma.


Ascânio Seleme: O brasileiro pode contar com a imprensa

Cada movimento do novo presidente será divulgado, analisado e criticado pelos veículos brasileiros

Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente pela vontade da maioria da população brasileira e ganhou o direito de exercer o mandato que lhe foi conferido, sem qualquer questionamento político ou legal. A partir de agora deve ser chamado de presidente eleito, e do dia 1º de janeiro até o fim do seu mandato será o presidente do Brasil. Desde já, todos os seus passos e suas decisões deverão ser acompanhados, debatidos e virados do avesso pelos mesmos cidadãos que o elegeram e pelos que votaram em seu adversário. Para isso, os brasileiros podem contar coma imprensa de seu país. Bolso na rose rá vigiado e fiscalizado.

Esse é o papel dos jornalistas e do jornalismo. Desde a redemocratização, coma eleição de Tancredo/ Sarney, todos os presidentes do Brasil foram objeto de fiscalização permanente da imprensa. Nenhum deles, nem mesmo o primeiro eleito pelo voto direto, foi poupado pelo olhar crítico e independente dos jornalistas. Dois presidentes brasileiros foram afastados de suas funções pelo Congresso Nacional. Ambos foram objeto do escrutínio sem trégua da imprensa. Não será diferente com Bolsonaro. Cada movimento seu será divulgado, analisado e criticado pelos veículos brasileiros.

O Brasil assiste ao início da jornada de poder do presidente eleito coma incerteza que ele mesmo criou durante a campanha e até antes, ao longo dos seus múltiplos mandatos de deputado federal. Uma pesquisa do Datafolha, divulgada no sábado, mostra que a agenda dos brasileiros nem sempre se assemelha à de Bolsonaro. Se apoiam o combate mais rigoroso ao crime, querem (55%) que a venda de armas seja proibida. Por outro lado, afirmam (74%) que a homossexualidade deve ser aceita por todos e defendem (59%) salários iguais para homens e mulheres nas mesmas funções.

Mais do que isso, o brasileiro preza a sua democracia. Para 69%, é a melhor forma de governo. Apenas 13% disseram ao Datafolha, no dia 5 de outubro, que ditadura é melhor. Como o presidente eleito já disse que apoia a ditadura, é importante saber que os brasileiros, inclusive a maioria dos que votaram nele, pensam de maneira distinta. E quem afinal manda no país são os seus cidadãos. Ao lado dos cidadãos é que estará a imprensa.

Esse alinhamento natural não significa que jornalistas serão oposição ao presidente eleito. Claro que não. Este não é o papel da imprensa, quem faz oposição são partidos políticos. E oposição não faltará a Bolsonaro, embora esteja claro que ele vai conseguir fazer uma maioria parlamentar para governar. O papel da imprensa é informar. Quem cria os fatos que serão divulgados e criticados são os mandatários políticos. Esses merecem respeito, mas com eles não pode haver alinhamento.


Ascânio Seleme: Um país fraturado

Quem vencer a eleição presidencial de hoje terá que governar um país fraturado. Além da tarefa gigantesca de redirecionar o país para fora da crise econômica e em direção ao futuro, recuperando a confiança de investidores e parceiros comerciais, o novo presidente terá de provar que reúne não apenas os votos, mas também a esperança dos brasileiros.

O presidente, que sairá das urnas com pouco mais da metade dos brasileiros ao seu lado, dificilmente conseguirá convencer a outra metade com o discurso do “governarei para todos”. Não importa se Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad, quem for eleito hoje terá enorme dificuldade para reconstruir todas as pontes dinamitadas ao longo da campanha e atrair o outro lado.

Bolsonaro passou a vida atacando a esquerda e a todos os que não se alinhavam com suas convicções de extrema direita. Como petistas conseguirão superar a bravata que o candidato fez no Acre, ao dizer que iria “metralhar a petralhada”? Tampouco será esquecido o discurso para a militância em que o capitão ameaçou prender e banir “os vermelhos”. Suas ofensas pessoais a membros de partidos de esquerda também serão sempre lembrados.

Nas ruas, uma minoria sentiu-se empoderada e passou a agredir até fisicamente militantes do outro lado. Pelo menos um petista foi assassinado em razão da sua preferência política. Amparados pelo discurso do líder, eleitores de Bolsonaro mais barulhentos passaram a dizer coisas absurdas nas redes sociais, algumas que já foram até mesmo tipificadas como crime. Ofensas a minorias, gays, índios, negros e também a mulheres fizeram parte de sua retórica de difícil cicatrização.

Do outro lado, Haddad e o PT atravessaram a campanha chamando Bolsonaro de fascista, nazista, homofóbico. Todos os candidatos que se aliaram ou foram eleitos ancorados no nome do candidato do PSL foram engolfados pelo discurso petista. A militância, menos compromissada e mais descuidada que o candidato, ultrapassou o limite e passou a se referir também aos eleitores do adversário como fascistas e nazistas.

Reaproximar estes dois polos será a mais árdua missão do presidente que conheceremos hoje. Não é fácil vislumbrar Bolsonaro convencendo eleitores de Haddad e tampouco Haddad cativando os anti-petistas que apoiaram o capitão. Quem sair vencedor das urnas esta noite terá sido democraticamente eleito e deveria merecer o respeito e as felicitações dos derrotados. Seria assim num país menos dividido que o nosso. Já foi assim no Brasil.

Desde a redemocratização, apenas um presidente eleito começou seu mandato sendo odiado pela porção do país que derrotou. Foi Fernando Collor, que atacou Lula abaixo da linha da cintura durante a campanha. Claro que Collor também colaborou e ampliou o ódio contra ele entre os seus próprios eleitores ao confiscar a poupança dos brasileiros.

Fernando Henrique, Lula e mesmo Dilma foram eleitos e iniciaram seus mandatos em paz. Lula teve forte oposição no episódio do mensalão e Dilma acabou cassada no caso das pedaladas fiscais. Apesar de os dois episódios estarem amparados pela lei e pela Constituição, Lula nega a existência do mensalão, e os petistas chamam de golpe o impeachment de Dilma. Foi aí que nasceu no petismo o estado de ódio, que em Bolsonaro cresce desde o seu primeiro mandato de deputado.

Embora sejam remotas as chances de sucesso de uma tentativa de reunião dos brasileiros, os dois candidatos juraram nestes últimos dias que querem pacificar o país. Bolsonaro disse na sexta-feira que fará um “governo de conciliação”. Haddad, também na sexta, pregou “um governo de união nacional”. Por sorte, o eleito vai ter obrigatoriamente de buscar esse objetivo. Caberá ao novo presidente reduzir o ódio que ele mesmo construiu entre os seus adversários. Qualquer movimento que faça nesse sentido amenizará o clima político que promete ser muito tenso nos próximos quatro anos.


Ascânio Seleme: Exemplo para o Brasil

A tentativa de explodir bombas nas casas dos ex-presidentes Bill Clinton e Barack Obama e na sede da rede de TV de notícias CNN é um bom exemplo para o Brasil no limiar de inaugurar um governo de extrema direita. Terrorismo não é novidade no cotidiano dos Estados Unidos. Atentados praticados por inimigos externos, como os ataques de 11 de setembro de 2001, ou por grupos de casa, como a explosão de Oklahoma City, são objeto de permanente e obsessiva vigilância da Inteligência e das forças policiais americanas.

Os atentados malsucedidos de ontem, contudo, têm outra característica. Foram fomentados, mesmo que indiretamente, contra pessoas e instituições sistematicamente ofendidas pelo presidente Donald Trump. Não falha um dia, desde que assumiu a Casa Branca Trump ataca sem trégua a imprensa, e sobremaneira a rede CNN e o jornal “The New York Times”. Os membros do Partido Democrata, dos ex-presidentes Clinton e Obama, também são objeto da fúria presidencial.

Trump chegou a dizer que os democratas apoiavam e poderiam estar por trás da caravana de refugiados centro-americanos que há dez dias marcham em direção à fronteira dos Estados Unidos. Há dois dias, a polícia explodiu um pacote-bomba enviado para a casa do bilionário George Soros. No início deste mês, Trump acusara Soros de financiar manifestantes que se mobilizaram contra a indicação do conservador Brett Kavanaugh para Suprema Corte.

Trump é um fomentador de ódio entre os americanos. Os que se deixam convencer por sua retórica podem se tornar potenciais agressores de “inimigos” e, no limite, terroristas amadores capazes de fazer barulho como o que se ouviu ontem e na véspera. O pior inimigo dos Estados Unidos pode ser o seu principal líder, se levadas em consideração as suas seguidas manifestações de onde emanam rancor e espírito de vingança.

No Brasil, poderemos viver experiência que tem tudo para ser parecida. O candidato Jair Bolsonaro, líder das pesquisas e que está muito próximo de ser eleito presidente da República, destila seu ódio aos adversários, que não vê como competidores, mas como inimigos a serem varridos do mapa. Foi o que ele disse naquele discurso de domingo, endereçado aos manifestantes a favor da sua candidatura concentrados na Avenida Paulista.

Bolsonaro disse que “os vermelhos” (referindo-se ao PT e demais partidos de esquerda) se enquadram ou serão presos ou banidos do Brasil. Uma falácia, claro, mas muito perigosa. Ainda no primeiro turno, em Rio Branco, o candidato empunhou um tripé de câmera de vídeo como se fosse um arma e, apontando para frente, disse que era hora de “fuzilar a petralhada” do Acre. Sinal mais claro não há. Bolsonaro, eleito, terá de imediatamente moderar o seu discurso ou acabará criando monstros como aqueles que ontem tentaram explodir bombas em Nova York.

Não começou no domingo, nem no primeiro turno, Bolsonaro tem usado o discurso do ódio muito antes de se lançar candidato a presidente da República. Era olhado como figura exótica, ultrapassada, que não representava perigo para um país consolidado e de instituições sólidas. Muito mais do que uma vez, o deputado enalteceu a ditadura, a tortura e sempre banalizou a morte dos inimigos. Políticos ou militantes de esquerda, bandidos ou traficantes, são todos iguais aos olhos do capitão candidato.

Do outro lado da cerca, o PT também estimulou o ódio a adversários ao longo dos anos finais de seus quatro governos, sobretudo durante o período em que se encaminhou o impeachment da ex-presidente Dilma e a prisão do ex-presidente Lula. Os que defendiam a saída da primeira e o encarceramento do segundo eram chamados de fascistas, nazistas, entreguistas. Não escapou ninguém. Juízes, políticos, partidos, jornalistas, não importa, bastava não condenar o impeachment e a prisão para ser objeto da ira petista.

O Brasil piorou muito ao longo dos últimos anos. E tem tudo para caminhar ainda mais rapidamente para o fundo do poço. Não dá para imaginar o futuro governo apenas pela pauta econômica ou social. Estas agradam a uns e desagradam a outros. A qualquer uma o Brasil sobrevive, doído, mas íntegro. O problema é quando se alcança o nível da intolerância, onde adversários passam a ser inimigos. E inimigos que precisam ser eliminados.

P.S. O Brasil, cada vez menos inteligente e mais mal-humorado, ficou pior ontem. Morreu o jornalista Raymundo Costa.


Ascânio Seleme: Olhe bem para o Rio

Com a eleição presidencial praticamente decidida a favor de Jair Bolsonaro, convém o eleitor olhar para o que está ocorrendo em seu estado. No Rio, a chance de termos Wilson Witzel no Palácio Guanabara é enorme. Recém-chegado no processo político, ele se apresenta como o novo, o homem de fora da caixa, o antissistema. E se traveste também como a versão local do capitão-candidato.

Witzel tem o apoio do prefeito Marcelo Crivella e de seu partido. O PRB anunciou sua adesão à candidatura do ex-juiz na sexta-feira passada. O prefeito do Rio e toda a igreja do seu tio bispo Macedo apoiam também Bolsonaro para presidente. Teremos, então, se Witzel ganhar a eleição no domingo, 28, um alinhamento singular entre as três esferas de poder.

Você acha que este alinhamento seria bom para o Rio? Não sei. Mas vale a pena fazer algumas observações do que pode significar este alinhamento para lá de programático e ideológico. O que viveremos no Rio com Witzel governador será um grande arranjo administrativo em que estarão de mãos dadas três líderes conservadores, de conceitos morais e comportamentais ultrapassados pela história.

Mais do que isso, a conjunção desses três governantes pode resultar na construção de um estado em permanente beligerância. Se a proposta de Witzel de abater bandido armado soa como música nos ouvidos de Bolsonaro, a sua implantação poderia resultar num aumento dramático de tiroteios e voos de balas perdidas, sobretudo na Região Metropolitana.

Apesar de o candidato a presidente negar apoio formal ao ex-juiz, a proposta dos dois para a área de segurança é parecida. Querem colocar em prática uma lei do Velho Oeste americano, a de atirar primeiro e perguntar depois. Não sei como o leitor vê isso, mas está claro que o eleitor quer melhorar muito a sua segurança e já votou no primeiro turno a favor de medidas drásticas para conter a criminalidade. Ocorre que há uma diferença enorme entre o que prega um candidato e o que ele pode efetivamente fazer em razão dos inúmeros embaraços legais e constitucionais.

O leitor pode dizer que um alinhamento automático, por afinidade política e ideológica, resultará em benefícios para o estado. Pode ser. Mas isso não significa que desalinhamento signifique prejuízos para os interesses estaduais. A história mostra que, havendo ou não afinidade política, os interesses do Rio podem ser protegidos por entendimento superior ao da pauta partidária.

No passado, apesar das muitas divergências políticas, governantes conseguiram manter íntegros os interesses em favor do Rio. Desde a coabitação de Brizola e Collor, o Rio soube muitas vezes ser pragmático para que mesmo desajustes de ideias e propostas de gestão não atrapalhassem o estado. Foi com Collor que Brizola conseguiu financiar a Linha Vermelha, por exemplo. E não havia maior distância ideológica no país dos anos 90 do que a que separava aqueles dois governantes.

Anos depois, Rosinha Matheus governou o estado em permanente tensão com o governo federal na gestão de Lula. Rosinha, todos sabem, é mulher do também ex-governador Anthony Garotinho, que foi eleito pelo PDT com apoio do PT. O exemplo prova que alinhamento automático não é tudo. E que afinidades políticas podem desaparecer com o tempo. Garotinho também manteve uma constante guerra com o governo de Fernando Henrique Cardoso.

O Rio, na hipótese de em janeiro termos Crivella na prefeitura, Witzel no governo e Bolsonaro na Presidência, será um estado de pensamento único. Também sobre isso deve refletir o eleitor. Interessa ter este alinhamento onde não existe o contraditório, a diversidade e a complementaridade de ideias? Talvez a alma mais conservadora do Rio entenda que sim. Saberemos isso muito brevemente.

O resultado, se essa for mesmo a vontade do eleitor, transformará o Rio num dos estados mais rígidos do país em setores onde ele sempre foi vanguarda, sobretudo na cultura e nas questões do comportamento. Seremos uma Santa Catarina mais miscigenada, um Paraná com mais calor, um Rio Grande Sul de sunga. Isso pode não ser ruim. Mas será que é bom?