ascânio seleme

Ascânio Seleme: A dimensão do presidente

Todos os movimentos do presidente na reforma foram para oferecer privilégios

Não seria difícil para Jair Bolsonaro ampliar ou manter estável ao invés de ver diminuir o respaldo que recebe do cidadão brasileiro. Depois de seis meses de governo, o apoio incondicional ao presidente limita-se a 33%, um ponto percentual a menos do que tinha no mesmo período o ex-presidente Collor, o mais odiado do Brasil (Temer não aparece na pesquisa DataFolha). Bolsonaro foi eleito no auge de um ciclo de desgaste da esquerda brasileira. Capitalizar essa desilusão política deixada pelo PT de Dilma e Lula seria possível se ele conseguisse sedimentar uma posição de centro direita ou de direita, sem radicalismo.

O que se viu foi o contrário. Penso que erram os que dizem que Bolsonaro está fazendo o que o seu eleitor esperava dele. Ele fez uma campanha com um discurso radical, é verdade, mas foi eleito por um eleitorado bem mais equilibrado. Os radicais estão com ele, mas para ter 55,13% das urnas, o presidente recebeu votos que pertenciam ao PSDB, ao MDB, ao DEM e a outros partidos que gravitam no centro e em seus arredores. Todo o centro estava ávido para apoiar Bolsonaro e com ele governar.

E os eleitores de centro e centro direita também queriam acreditar que o capitão se estabilizaria depois de eleito. Qualquer um com mais de uma dúzia de neurônios poderia apontar este como o melhor caminho. Ninguém, além da turma raiz de Bolsonaro, esperava que o discurso radical virasse forma de governo. Não se pode, contudo, acusar o presidente de estelionato eleitoral. Ele disse que era isso mesmo o que faria, embora a maioria não acreditasse porque a alternativa era muito mais óbvia e inteligente.

Há quem afirme que Bolsonaro radicaliza para reduzir sua constante perda de popularidade e guardar pelo menos o apoio de parcela da população que se identifica com esse radicalismo. Desconfio ser o contrário. O presidente nunca tirou o pé do pedal que impulsiona e alimenta seu discurso radical. É com o pé embaixo, e por causa dele, que Bolsonaro perde seguidamente apoio e vai se isolando. E o pior para qualquer um nessa posição é que o círculo mais próximo, formado por parentes, amigos e o cordão dos puxa-sacos não o deixa ver o cerco se fechando.

Todo mundo sabe como começa um processo de isolamento. O seu desfecho também é conhecido, com o apequenamento da imagem e a deterioração da credibilidade do protagonista. Bolsonaro não precisaria ser prolixo ou caprichar na oratória para evitar o isolamento. Mesmo sendo tosco (o brasileiro não se incomoda com isso, como se viu no passado recente; tem gente que até prefere um presidente com a sua cara e seu jeito), Bolsonaro conseguiria manter-se em patamar alto em qualquer pesquisa se tivesse maleabilidade política, mesmo mantendo sua pauta conservadora. Não falo em aceitar jogo sujo ou deixar roubar. Me refiro ao nobre fazer político, vital para qualquer democracia.

Diante de um quadro em que a cada dia fica mais limitado, o presidente joga para a sua plateia de fiéis e de certa forma governa pensando exclusivamente nela. Alguém pode dizer que a reforma da Previdência atinge a todos e não mira nenhum grupo específico. Sim, mas a reforma em curso foi capturada pelo Legislativo e hoje é muito mais de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre do que de Jair Bolsonaro. Além disso, Bolsonaro tem mais atrapalhado do que ajudado. Todos os movimentos do presidente na reforma foram para oferecer privilégios. Foi assim com os militares, com PMs e bombeiros, e agora com policiais federais, rodoviários e agente penitenciários.

O presidente ganharia muito mais se parasse de jogar para a sua galera. Mostraria grandeza se tentasse ser justo. Se, por exemplo, e apenas por exemplo, ao pedir privilégios aos policiais, mencionasse também professores, garis e motoristas de ônibus. Ou se ignorasse todas as pressões e jogasse para o Brasil, trabalhando para aprovar a reforma necessária, incondicionalmente. Aliás, grandeza é a marca dos maiores presidentes do Brasil. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foram grandes. Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek foram grandes. Jair Bolsonaro, por ora, tem a dimensão de Fernando Collor.


Ascânio Seleme: Bolsonaro traidor

O presidente do Brasil perdeu mais uma disputa no Congresso. Dessa vez na comissão que aprovou o relatório da reforma da Previdência. Depois de ser chamado de traidor por policiais civis, federais e rodoviários e por agentes penitenciários, Jair Bolsonaro correu para tentar mudar o teor do relatório de modo a garantir proteção a estes também. Era tarde demais. O relator da reforma ignorou o presidente e a comissão retirou da reforma apenas policiais militares e bombeiros, até porque esta fatura cairá na conta dos estados.

Tratando o Congresso sempre de forma intransigente e reiterando que não negocia com parlamentares por entender que negociação política é loteamento de cargos, o presidente achou que bastavam dois telefonemas a líderes de partidos aliados e uma postagem em rede social para resolver o problema. Quebrou a cara. Sorte do Brasil. Imaginem do que ele seria capaz se soubesse negociar e tivesse habilidade política.

O apoio ao presidente veio de apenas alguns fiéis e dos partidos de esquerda. PT, PCdoB, PDT, PSOL e Rede votaram a favor de estender um regime complacente também aos policiais. Votaram assim, não por convicção, mas para torpedear o projeto da reforma. E o quadro pitoresco que se viu foi Jandira Feghali defendendo no plenário da comissão o mesmo que Jair Bolsonaro pregava em redes sociais e entrevistas: mais privilégios especiais.

Jair Bolsonaro é um presidente corporativo. Pensa e age como se governasse apenas para militares. Mesmo assim, alguns oficiais das Forças Armadas também já o vêem como um desertor da causa, ou como um desaglutinador. Em seis meses, comprou briga com metade dos quatro estrelas que colocou no governo, e agora ouve sem reagir o filho Carlos atacar o seu general mais antigo, o ministro Augusto Heleno. Difícil enxergar onde ele quer chegar. Por vezes parece que trabalha sem tática, sem objetivo. O relator da comissão, Samuel Moreira, lembrou que a reforma sozinha não basta, cabe agora ao governo tocar seus projetos.

Passada a reforma, o governo vai precisar do Congresso para aprová-los. Hoje, Congresso e Palácio estão em campos distintos. Tanto que a reforma que anda não é a de Bolsonaro nem a de Paulo Guedes, é a reforma previdenciária que o Congresso produziu. Depois de mexer duas vezes no comando da articulação política no meio da discussão da reforma, Bolsonaro deu posse na quinta-feira ao general Luiz Eduardo Ramos no comando da Secretaria Geral. Nas palavras das repórteres Bela Megale, Naira Trindade e Jussara Soares, “Ramos terá de construir um bom relacionamento com o Congresso, mas não tão próximo a ponto de gerar desconfiança de Bolsonaro e seu entorno”

É exatamente isso, o novo ministro da articulação política vai ter que andar no fio da navalha para não cair. Vai ser obrigado a negociar sem ter protagonismo. Será refém dos desmedidos ciúmes que os filhos têm do pai, das instruções obtusas do guru de Richmond e da intransigente mania do pai de não fazer concessões a políticos. Será um ministro que pela natureza da sua função terá que prometer muito, mas que em razão das suas amarrações palacianas terá pouco ou quase nada para entregar.


Ascânio Seleme: Errar e seguir errando

Todo mundo sabe que o presidente da República tem enorme dificuldade para se expressar com clareza. Por vezes ele diz uma coisa pensando estar afirmando outra. Jair Bolsonaro tem mais problemas quando tenta exprimir uma sentença longa. Eventualmente ele emprega palavras fora do seu contexto e comete erros vernaculares. Além disso, tem dicção ruim e vícios de linguagem que tornam os finais das suas falas repetitivos. Seu desconforto oral é ainda mais evidente quando ele não domina o assunto. Mas sexta-feira passada ele passou por cima de todas essas questões para dizer que errou na condução da articulação política do governo.

Ao explicar por que retirou do ministro Onyx Lorenzoni a condução da pauta política, Bolsonaro disse: “Depois que a gente faz as coisas, a gente plota que podia ter feito melhor ou não ter cometido aquele erro”. O presidente admitiu que estava errada a divisão de tarefas que fez no Palácio, e que voltar ao modelo do governo de Michel Temer era a melhor alternativa. Faz sentido, em parte. O modelo do governo anterior, ao qual Bolsonaro disse estar retornando, era de negociação permanente com o Congresso das pautas de interesse do governo.

Bolsonaro tem ainda mais obrigação com sua pauta do que Temer. O ex-presidente não tinha programa próprio, foi eleito vice sob uma agenda petista. Seu projeto, quando assumiu a Presidência, foi baseado no documento Ponte para o Futuro, com o qual tentara antes salvar o mandato da sua antecessora Dilma Rousseff. Bolsonaro, ao contrário, tem um programa de governo. Com ele foi eleito e por ele foi incumbido de governar o país. Não batalhar pelo seu êxito pode parecer traição aos olhos de quem o colocou no Palácio.

A prática até aqui adotada, de entregar tudo ao Congresso e deixar que deputados e senadores se entendam e resolvam como achar melhor, pode parecer democrática porque valoriza o Poder Legislativo. Mas não é. Ela é resultado de uma mistura de preguiça com medo. Preguiça, porque negociar exige muito trabalho e noites mal dormidas. Medo, porque uma derrota do governo pode soar — e, de verdade, soa — como derrota do presidente. A desculpa de não negociar para não trocar cargos por votos é esfarrapada. Por quê? Porque ninguém governa sozinho. E porque existem muitos quadros excelentes no Legislativo que podem governar muito bem. Caso do ex-deputado Rogério Marinho, por exemplo.

Nesse aspecto, Bolsonaro fez muito bem ao reconhecer que errou e que vai adotar o modelo do governo anterior. Mas, como toda ação política tem pelo menos dois lados, cabe ressaltar que a escolha do novo interlocutor com o Congresso parece inteiramente equivocada. Um governo com tantos propósitos polêmicos como o de Bolsonaro deveria ancorar-se em um nome forte e de prestígio junto aos parlamentares para tentar tocar sua pauta. Se Onyx, ex-parlamentar de quatro legislaturas, não era adequado para a função, o que dizer do general da ativa Luiz Eduardo Ramos, novo ministro da Secretaria de Governo?

Por favor, não vale alegar que o general tem experiência porque foi chefe da Assessoria Parlamentar do Exército no Congresso. Quem conhece a atividade dos assessores parlamentares de ministérios, estados e de outras instituições no Congresso sabe que dois anos na função não servem para nada. O fato de Ramos ser amigo de Bolsonaro ajuda mais do que sua experiência congressual. Claro, se Ramos chegou ao posto de general de Exército, última etapa da carreira militar, é um homem preparado, experiente e articulado. Mas isso não lhe confere capacidade para articular e negociar sob pressão permanente. Sabe-se por experiência histórica que fazer política não é o forte de generais.


Ascânio Seleme: Moro ganhou um palanque no Senado

Sergio Moro saiu praticamente ileso da audiência da Comissão de Constituição e Justiça do Senado em que prestou contas dos vazamentos de diálogos seus com o procurador Deltan Dallagnol. Apesar de ter sido colocado nas cordas com socos e murros de alguns senadores da oposição, foi socorrido com afagos e tapinhas nas costas por outros que apoiam o governo ou apenas se opõem ao PT. O que se viu foi um embate político, e nele o ministro saiu ganhando. Mesmo que restem dúvidas sobre a correção das mensagens que trocou com Dallagnol, Moro saiu do Senado politicamente protegido.

O debate que se viu foi mais uma vez entre parlamentares do PT, ou próximos ao PT e ao escândalo da Petrobras, e os demais. Além daqueles ligados a partidos tradicionais de centro e centro direita, estiveram ao lado de Moro os senadores dos novos tempos. E esses abusaram da gentileza. O fato é que houve tempo e espaço para cada um atacar ou defender a Lava-Jato. Embora os que atacaram dissessem estar mirando na conduta do juiz, o que se viu foi um fogo sem trégua contra a operação que prendeu políticos e empresários, como Lula e Marcelo Odebrecht.

Talvez por isso, o embate tenha pendido a favor de Moro. O que se sabe, e o que não mudou e não mudará mesmo que se consiga comprovar a veracidade dos diálogos hackeados, é que os governos do PT foram corruptos. Não há qualquer dúvida de que o PT e partidos aliados assaltaram os cofres da Petrobras durante a gestão de Lula. Nenhuma dúvida também de que esses assaltos prosseguiram sob Dilma e só foram interrompidos pela operação Lava-Jato. Esse é um dado irrefutável. Por isso, foi difícil aos senadores encontrar caminho para mostrar que Moro agiu de maneira a prejudicar o PT ou afastá-lo do poder.

Não se conseguiu solidificar a acusação de que houve conluio entre Moro e os procuradores contra Lula ou o PT, mesmo que alguns senadores tivessem adotado um bom caminho e uma retórica poderosa. As respostas de Moro, ecoadas pelos seus aliados no plenário, encaminhavam a questão sempre para outro lado. E foi impossível impedi-lo. O ex-juiz chegou a indagar de um senador se ele estava sugerindo soltar todos os presos e devolver o dinheiro confiscado das contas dos corruptos, citando Renato Duque, ex-diretor da Petrobras, que teve 2,7 milhões de dólares e 20,5 milhões de euros recuperados pela operação em um banco de Mônaco.

A sessão foi comedida, apesar de alguns momentos mais agressivos. Em um deles, Moro chegou a se negar a responder, dada a hostilidade da assertiva do senador Humberto Costa (PT-PE). Mesmo nas poucas ocasiões em que esteve mais acuado, Moro se comportou com gentileza. Frustraram-se os que esperavam respostas mais duras e contundentes do ex-juiz. Em nenhum momento ele colocou na mesma frase as palavras Lula e corrupção. Ou PT e corrupção. Pelo que me recordo, aliás, ele mencionou o Partido dos Trabalhadores apenas uma vez. E não desqualificou o partido nem mesmo quando um senador do PT tentou envolver a sua mulher no caso, perguntando se ela trabalhou para alguma empresa de petróleo.

Oito dos 54 senadores membros da CCJ, titulares ou suplentes, foram citados pela Lava-Jato. Mas nem esses conseguiram constranger o ex-juiz. Alguns foram até favoráveis ao ministro. Renan Calheiros (MDB-AL), que não é da CCJ mas participou da audiência, tampouco teve êxito ao tentar tirar Moro do seu ponto de equilíbrio. Renan, que responde a 11 inquéritos no Supremo Tribunal Federal, sendo que oito deles dizem respeito à operação LavaJato, extrapolou seu tempo, passou por cima da autoridade da senadora Simone Tebet (MDB-MS), que presidia a sessão, mas não conseguiu encurralar Moro.

Moro insistiu em chamar a divulgação dos diálogos de “sensacionalista”, repetiu inúmeras vezes que as conversas que manteve com Dallagnol foram corretas e que não julgou com parcialidade. Não respondeu, ou se escusou de responder, quando perguntado se também suas ações na Lava-Jato não foram sensacionalistas. Moro saiu-se bem, nenhuma dúvida. A audiência serviu para ele como um palanque, de onde saiu maior do que entrou. Mas é cedo para dizer que “a montanha pariu um rato”, como sugeriu. Ainda vai se ouvir muito barulho em torno desta questão. A próxima etapa será na Câmara.


Ascânio Seleme: Silêncio profano

O presidente do Sindicato Rural de Rio Maria (PA), Carlos Cabral Pereira, foi assassinado no final da tarde de terça-feira passada, abatido com um tiro na cabeça quando voltava de moto para casa. Cabral é o terceiro sindicalista morto na cidade desde 1985. Todos perderam a vida em razão de questões fundiárias. Ele próprio já havia sido objeto de um atentado, em 1991, quando foi alvejado na perna. Rio Maria fica na região conhecida como Bico do Papagaio, que abrange o norte do Tocantins, o leste do Pará e o sudoeste do Maranhão, onde se acumulam histórias de violência no campo.

Apesar de ser parte de uma estatística macabra que comove o Brasil desde 1988, quando o seringueiro e sindicalista Chico Mendes foi assassinado em Xapuri, no Acre, a morte de Cabral quase passou despercebida. Dos poderes constituídos, apenas o Ministério Público Federal se manifestou. Por dever de ofício, anunciou que vai acompanhar as investigações da morte do sindicalista. Não se ouviu uma palavra sequer do presidente da República ou de seus ministros da Justiça, da Agricultura e dos Direitos Humanos.

De Jair Bolsonaro não devia se esperar qualquer manifestação mesmo. O presidente defende um campo armado para que os proprietários possam defender suas terras a bala. Mas por que as ministras Damares Alves e Tereza Cristina não se manifestaram? Damares é ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e Tereza chefia a pasta da Agricultura. Também nada se ouviu de Sergio Moro. Talvez porque o ex-juiz estivesse no meio do seu inferno particular, que começou a arder no domingo com as revelações de seus diálogos com o procurador Deltan Dallagnol.

O Estado brasileiro sempre se manifestou em assassinatos de outros sindicalistas, líderes e ativistas rurais e religiosos, como o padre Josimo Tavares e a irmã Dorothy Stang. O governo mudou, o Estado mudou, tem outro caráter. Mas o que se verificou agora, com a morte de Carlos Cabral, é que ONGs também mudaram, assim como os partidos políticos que sempre se posicionaram a favor do sindicalismo rural e, obviamente, contra a violência no campo.

O PT praticamente ignorou o assassinato. Apenas o senador Paulo Rocha (PT-PA) foi à tribuna falar. Talvez porque seja paraense como o sindicalista morto. Mesmo assim, ele se referiu a dois fatos ocorridos no seu estado no mesmo dia. Em primeiro lugar, segundo o portal Senado Notícias, Rocha fez referência a uma ordem de despejo contra 212 famílias que ocupam fazendas em Eldorado dos Carajás. Só depois referiuse ao sindicalista morto. Talvez o silêncio do PT deva-se ao fato de Cabral ter apoiado Bolsonaro na eleição do ano passado.

De ONGs que apoiam trabalhadores rurais também pouco se ouviu nestes últimos dias. Pode ser que estas organizações não tenham dado a atenção que o caso merecia porque Carlos Cabral estava envolvido em uma ocupação ilegal das terras indígenas dos apyterewa, que também estão invadidas por outros grupos. Mas era uma ocupação coletiva, feita por trabalhadores sem espaço para plantar. Sua morte pode estar ligada a esta invasão.

Apesar de liderar trabalhadores sem-terra, somente o MST regional se manifestou lamentando a morte de Carlos Cabral em nota assinada pela “coordenação estadual” da organização no Pará. Não aparece nenhum nome para se associar ao do ruralista morto. Da mesma forma, nenhuma palavra se ouviu de João Pedro Stedile, o líder nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Outros tempos, outra orientação política.

Sete ruralistas foram assassinados na região de Rio Maria desde o início do ano por questões fundiárias. O silêncio em torno dessas mortes é quase profano.


Ascânio Seleme: Ministros que poderiam ser

Quem teria lugar de honra no governo e seria páreo duro para Damares Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo

Para não dizer que apenas Bolsonaro é capaz de chamar ministros esquisitos para o governo, vale lembrar algumas figuras que fizeram História no Brasil e que poderiam muito bem compor a equipe atual. Já houve quase tudo no cenário da política nacional. Teve um ministro que preferia fazer poesias a governar, outro mais belicista do que qualquer membro do ministério atual. Nos primórdios da nova democracia brasileira, um ministro inventou um vernáculo para o idioma pátrio. Mais recentemente, surgiu outro que, embora fosse brasileiro, falava português tão mal quanto o colombiano que foi ministro da Educação. Para não amolar o leitor, vou fazer uma lista breve, apenas com os grandes destaques. Aqueles que teriam lugar de honra no governo e que seriam páreo duro para Damares Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo.

O Imexível . O número um, o que não faltará em lista alguma, mesmo daqui a cem anos e 25 novos ministérios, é o saudoso Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho de Fernando Collor de Mello. Magri criou uma nova palavra no idioma nacional ao dizer que era “imexível” no Ministério, quando começaram a surgir as primeiras denúncias contra ele. Um dia, o ministro levou prostitutas para uma reunião da OIT na Suíça e deixou-se fotografar ao lado delas. Mais tarde, explicou assim o fato de ter recebido propina para facilitar liberação de recursos do FGTS: “O dinheiro caiu do céu”. Mas a melhor foi a explicação que deu ao ser flagrado levando seu cachorro ao veterinário num carro de serviço do ministério: “Meu cachorro é um ser humano como outro qualquer”. Magri causaria inveja em Damares.

O ministro bomba . Dentro desse governo que se diz “armamentista”, Roberto Amaral cairia como uma luva. Ele foi ministro de Ciência e Tecnologia do governo Lula. Numa de suas primeiras declarações, logo depois da posse em janeiro de 2003, o ministro disse à BBC que o Brasil deveria dominar a tecnologia da bomba atômica. Imaginem que maravilha, que alegria para Jair Bolsonaro, ter entre os seus um ministro desse calibre. Roberto Amaral vivia mais no mundo da lua do que o ministro astronauta Marcos Pontes. Ele seria um representante brasileiro no exterior à altura do chanceler Araújo, não deixaria uma ponte em pé.

O texano . Muito antes de Ricardo Vélez Rodríguez aportar na Esplanada dos Ministérios falando um português difícil, complicado, houve outro que soava como estrangeiro. Trata-se de Mangabeira Unger, guru de Ciro Gomes, que fala português com sotaque de americano do Texas. Mangabeira disse em 2005 que o governo Lula era o mais corrupto da História do Brasil. Dois anos depois, convidado por Lula, assumiu a Secretaria de Assuntos Estratégicos dizendo que havia no país “uma nova vanguarda vinda debaixo”. Seria sócio fácil da turma atual.

O encrenqueiro . Teve um ministro no governo Dilma que comprou uma briga com parlamentares de tamanho que nem Paulo Guedes conseguiria enfrentar. Cid Gomes, então ministro da Educação, disse que a Câmara tinha entre 300 e 400 achacadores. Convocado para se explicar no plenário, foi chamado de mal educado pelo presidente da casa, Eduardo Cunha. Respondeu que preferia ser mal educado a achacador. O bate-boca foi generalizado. Os deputados do PT, que deveriam apoiá-lo, o abandonaram no confronto dentro do plenário. Ele saiu de lá para ser demitido por Dilma pelo telefone.

O rei da gafe . Ricardo Barros, ministro da Saúde de Temer, se notabilizou pelas suas inúmeras gafes. Certa vez, Barros disse que os homens vão menos ao médico porque trabalham mais do que as mulheres. Depois sugeriu que a maioria dos pacientes que procura a rede pública de saúde apenas “imagina” estar doente. Mais adiante afirmou que faltava dinheiro na Saúde por causa da “incapacidade” dos brasileiros de pagar impostos. Finalmente, chamou o mosquito aedes aegypti de indisciplinado. “Se o mosquito se comprometesse a picar só quem mora na casa, seria fácil”. É ou não é um concorrente de peso para Weintraub?

Os dançarinos . Dois ministros de Collor protagonizaram a primeira história de amor de membros do primeiro escalão do governo que se transformou em assunto nacional. Zélia Cardoso de Mello, ministra da Economia, e Bernardo Cabral, da Justiça, dançaram ao som de Besame Mucho, coladinhos, em demonstração pública de afeto, numa festa em Brasília ,enquanto o país ruía pelo caos econômico gerado pelo confisco capitaneado por Zélia. O romance começou numa reunião ministerial, quando Cabral mandou um bilhetinho para Zélia enaltecendo a beleza das pernas da colega. O caso foi constrangedor para ambos porque Cabral era casado. Não há paralelo no governo casto de Bolsonaro, o que pode ser considerado uma oportunidade.

Lula livre
Se as exigências formais, técnicas e legais já estão cumpridas, Lula deve ser transferido imediatamente para prisão domiciliar. Se as condições exigirem o uso da tornozeleira, Lula terá de usá-las. Como ele, dezenas de milhares de brasileiros continuam presos, apesar de já terem atingido todos os critérios para a sua libertação estabelecidos pelo Código do Processo Penal. Muitos desses homens e mulheres já cumpriram penas integrais e continuam presos. Sempre foi assim no Brasil, mesmo durante a gestão do ex-presidente.

Aliás
Por que João de Deus, o médium que abusou de algumas dezenas de mulheres em Goiás, está preso numa sala do estado maior da PM de 120 metros quadrados? Seguramente tem mais espaço e conforto do que Lula.

Casa ainda não
O ministro Paulo Guedes mora desde o início do ano em um hotel de Brasília. Aos amigos, diz que só vai se mudar para um endereço permanente, uma casa ou um apartamento, quando a reforma da Previdência for aprovada. Julga que por ora sua situação no governo é provisória.

Cumprindo promessas
Bolsonaro mandou ao Congresso projeto liberando compra e uso de armas de fogo de potência e em número nunca imaginados. Também encaminhou proposta reduzindo multas de trânsito, inclusive para quem circular com crianças soltas dentro dos carros. Por portaria, liberou 197 agrotóxicos, mais de um por dia. O governo diz que o presidente está cumprindo promessas de campanha. Não me lembro de Bolsonaro ter prometido tomar medidas que garantidamente aumentassem o número de brasileiros mortos a cada ano.

Até que ele ia bem
O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, ia bem, se destacando naquele mar revolto que Bolsonaro arrumou ao seu redor. Aí assinou o projeto das cadeirinhas, no qual afirmou que multas para quem transportar crianças soltas no carro são “exageros punitivos”.

Não é ser bom
O caso de Rodrigo Caio, zagueiro do Flamengo, mostra bem como pensam alguns brasileiros. O jogador foi hostilizado pela torcida do São Paulo, seu ex-time, porque disse que fora ele e não o adversário, já advertido com cartão pelo juiz, que pisara sem querer no pé de um outro jogador caído. Ficou com fama de “bonzinho” e foi tripudiado logo pela torcida do São Paulo, uma espécie de Fluminense paulista. Para esses, não é bom ser bom ou bonzinho.

Falando sozinho
Não quero me intrometer em assunto que cabe mais ao Carlos Mansur do que a mim, mas será que vale mesmo pagar salário de R$ 1 milhão ao português Jorge de Jesus, novo técnico do Flamengo? E o Neymar? Bom, melhor deixar o Neymar pra lá.

Cartórios
A Secretaria da Fazenda municipal mandou mensagem contestando teor de nota publicada aqui na semana passada. Segundo a secretaria, os cartórios têm, sim, obrigação legal de identificar guias de ITBI falsificadas. Afirma que há inúmeros casos de “falsificações grosseiras” que poderiam ser observadas com uma simples análise superficial. O caso está na Justiça, porque o município quer cobrar dos cartórios o dinheiro não arrecadado em razão dessas falsificações.


Ascânio Seleme: Projeto da morte no trânsito

Mais uma vez o presidente Jair Bolsonaro mostrou que só faz o que lhe dá na telha. Suas duas visitas ao Congresso em menos de dez dias, que muitos viram como um gesto de boa vontade, só ocorreram em razão de pautas políticas próprias. Na primeira, foi celebrar o humorista Carlos Alberto de Nóbrega, em homenagem proposta pelo deputado Alexandre Frota (PSL-SP). Na segunda, antes de ontem, foi levar um projeto de lei para a análise dos parlamentares. Um dos mais nefastos projetos já apresentados ao Congresso, que muda regras para condução e educação no trânsito.

A proposta de lei erra em todas as linhas. Primeiro, por que aumentar a validade do documento de habilitação? Pelo preço? Não faz sentido. O projeto deveria priorizar a fiscalização dos cursos de motorista. Também nada significa retirar a obrigatoriedade do uso de farol nas estradas. Apenas aumenta o risco nas pistas. Da mesma forma, é risível estabelecer que, em veículos de empresas, multas só podem ser dadas se o motorista não for identificado.

Há pontos ainda mais perigosos, como o de reduzir a gradação da penalidade para motociclistas que transportarem cargas em dimensões e peso acima do normal. Se você vir uma motocicleta conduzindo um armário, tudo bem, não é tão grave, segundo o projeto. Veículos com defeitos de fábrica poderão continuar circulando, e sua documentação não pode ser negada pelos órgãos oficiais, mesmo que o erro seja no funcionamento do freio. É ridículo.

Dobrar de 20 para 40 o volume de pontos para cassar a carteira de motorista infrator é convite à infração. Propor não multar mais motorista que não usar cadeirinha de segurança para transportar crianças é criminoso. A cada ano, 134 crianças de até 9 anos deixam de morrer por usar o equipamento. O presidente quer também acabar com os equipamentos eletrônicos de multas, os famosos pardais. “A multagem (sic) eletrônica vai deixar de existir para o bem dos motoristas do nosso Brasil”, disse o presidente, fazendo demagogia barata com a vida dos brasileiros.

Tão criminoso quanto o artigo da cadeirinha, que chocou o país e deve ser derrubado pelo Congresso, é o que acaba com o exame toxicológico de larga janela para candidatos a motorista profissional ou para a renovação da carteira. Esse exame, que vigora desde 2017, analisa geneticamente os candidatos e determina se fizeram uso de substância tóxicas nos 90 dias anteriores. Se o resultado for positivo, a habilitação é negada ou cassada.

Os números provam a eficiência da lei em vigor. Dados oficiais mostram que veículos pesados, que representam apenas 4% da frota nacional, são responsáveis por 38% dos acidentes nas estradas e 53% dos acidentes com vítimas fatais. Em média, 30% dos caminhoneiros usam drogas estimulantes para dirigir em longos percursos. Segundo a Polícia Rodoviária Federal, houve queda de 38% nos acidentes nas rodovias federais no primeiro ano da lei do exame toxicológico que o projeto de Bolsonaro quer agora revogar.

As seguradoras estimam impacto negativo de cerca de R$ 200 bilhões por ano na economia do país com acidentes de trânsito. Só no primeiro ano da lei, reduziu-se em mais de R$ 70 bilhões a perda econômica derivada de acidentes. Estima-se que o exame toxicológico salvou a vida de 56 mil pessoas apenas nas regiões Sul e Sudeste em dois anos. No mesmo período, 2,2 milhões de motoristas profissionais ou candidatos tiveram suas habilitações cassadas ou negadas.

Presidentes vão eventualmente ao Parlamento levar emendas constitucionais, como a da reforma da Previdência. Projetos de lei são quase corriqueiros e dispensam a presença presidencial na sua apresentação. No ano passado, só a Câmara aprovou 149 deles. E por isso, para defender o elenco de barbaridades contidos no seu projeto, Jair Bolsonaro fez esta visita inusitada ao Congresso na terça-feira.

Houve gente dizendo “oba, o presidente está dando sinais de reconciliação com o Congresso”. “Começou a fase de distensão”, afirmaram outros. Nada disso, o que se viu foi um homem cumprindo sua agenda política, falando apenas com o seu público. Ele fez um gesto a caminhoneiros e a motoristas profissionais, como se estes, aliás, não tivessem filhos.


Ascânio Seleme: Ninguém tem culpa, nem memória

Se fossem levadas a sério as declarações dos políticos brasileiros, jamais encontraríamos uma pessoa sequer para responsabilizar pelas mazelas nacionais. O país tem 13 milhões de desempregados, mas a culpa não é do PT de Lula e Dilma, não é do MDB de Michel Temer, nem da turma nova que chegou agora com Bolsonaro. A economia não anda, ou anda para trás, mas não há culpados. Os dedos desses apontam para todos os outros. Os dedos dos outros indicam todos estes. E o país soçobra.

Sobre o desemprego, o ministro da Economia, Paulo Guedes, manda colocar na conta do PT. “Isso é coisa do passado. Vai cobrar do Lula e da Dilma”, Guedes gosta de repetir. É verdade também que nestes cinco meses de governo não se conseguiu registrar nenhum sinal alentador na economia que pudesse estimular investimentos e gerar novos empregos. Ao contrário. Do outro lado, o PT acusa o governo Bolsonaro por bater recorde de desemprego. Esqueceu que a estagnação econômica teve início no governo Dilma, chegou a melhorar sob Temer, mas voltou a degringolar. E, como se vê, ninguém tem culpa.

Ao novo governo cabe explicar por que, mesmo com o clima superfavorável pós-eleição, a economia estancou no primeiro trimestre, registrando PIB negativo. A explicação é a do dedo apontado. Para o PT. Mas, como não se conseguiu a confiança da população, e muito menos do mercado neste início de governo repleto de problemas, começam a ser discutidas soluções que o ministro Guedes diz não serem mágicas, mas são claramente emergenciais. Ele falou, por exemplo, em liberar o Fundo de Garantia para colocar R$ 20 bilhões na economia. Trata-se de medida de quem olha para frente e vê tempestade. Parece desespero. Pode não ser, mas parece.

Nas questões ambientais e rurais ocorre a mesma coisa. Nunca a floresta amazônica esteve tão desmatada, e a culpa não é do PT, nem do MDB, muito menos da turma dos novatos PSL e correlatos. Segundo eles próprios. O novo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, diz que desmatamento é histórico, e o que seu governo quer fazer é abrir novas fronteiras de negócios para o Brasil. Diz isso, mas age como se fosse um representante da bancada ruralista e da indústria de agrotóxicos dentro do governo. Já a turma do passado ataca o ministro e diz que o novo governo vai destruir o que resta das florestas nacionais. Os volumes de queimadas e abate de árvores na Amazônia brasileira cresceram nos primeiros dois anos do governo Lula, em seguida caíram para voltar a crescer na gestão de Dilma.

O senador Paulo Rocha (PT-PA) ocupou a tribuna do Senado semana passada para acusar o governo Bolsonaro de ter parado a reforma agrária. Deve ser verdade, essa claramente não é questão que interesse ao novo governo. O curioso é como um parlamentar do PT, ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), acusa terceiros de não fazer reforma agrária depois de 14 anos de governo petista. O partido, que deveria ter zerado o estoque de trabalhadores sem-terra, assentou menos gente no governo Dilma do que na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Em 2016, Dilma assentou 1.686 famílias, contra 101 mil em 1998, no primeiro mandato de FH, ou 136 mil em 2006, no governo Lula.

A saúde no Brasil está sucateada, mas ninguém é culpado. Claro que a deterioração de hospitais e postos de saúde, umas das maiores tragédias nacionais, vem sendo operada há anos, governo após governo. O que ocorre agora é mais uma vez o festival de “não é comigo”. Petistas cobram investimentos do novo governo, mas negligenciaram da mesma forma o setor. De 2002 a 2012, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), mais de R$ 90 bilhões destinados por Orçamento para a Saúde não foram gastos pelos governos de Lula e Dilma.

Na educação, bem, na educação já sabemos que o que vinha mal seguirá mal e tem tudo para piorar. A única medida até agora anunciada pelo novo governo é o corte, ou o contingenciamento, se preferirem, nas universidades federais. E a famosa “responsabilidade não é minha” segue em frente. Todos querem fazer crer que a culpa é dos outros. Ou que ninguém tem culpa. Na verdade, o que falta nesta turma é memória. Todos são culpados.


Ascânio Seleme: Bolsonaro, o infiltrado

Algumas poucas vezes ao longo dos seus primeiros cinco meses de governo o presidente Jair Bolsonaro surpreendeu positivamente. Sua declaração contra os que querem ir ao ato de hoje para atacar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional foi uma dessas vezes. Bolsonaro fez a afirmação durante café da manhã com jornalistas, o quinto encontro desse tipo marcado pelo presidente, e que também podem ser incluídos na sua lista de bola dentro. Quem defender o fechamento do STF e do Congresso “estará na manifestação errada”, disse. “Isso é manifestação a favor de Maduro, não de Bolsonaro”, concluiu o presidente.

Não podia estar mais correto. Os Poderes constituídos são a base da democracia. Pode-se até criticar o Supremo e o Congresso por decisões que tomarem, mas jamais pregar o seu fechamento. Os que acusam o Judiciário e o Legislativo pelos problemas de Bolsonaro estão equivocados. Os que sugerem que a saída é interromper o funcionamento das duas casas maiores são pessoas de baixa qualificação cognitiva e falam da boca para fora sem medir consequências.

O próprio Bolsonaro já atacou o Supremo mais de uma vez. Ele também defendeu, pouco antes da eleição, aumentar de 11 para 20 o número de ministros do STF. “Para equilibrar as coisas”, nas palavras de seu filho Eduardo, o ideólogo da família, sugerindo um viés de esquerda dos membros da casa. Bobagem, claro, mas enfim, era assim que os Bolsonaro pensavam no ano passado. O mesmo filho disse, algum tempo antes, que bastariam um soldado e um cabo para fechar o Supremo.

O presidente também já bateu à vontade no Congresso. Outro dia mesmo afirmou que o grande problema do Brasil é a classe política. Nesse caso o ataque era generalizado, e ele ressaltou que incluía-se dentro da citada classe problemática. Em momentos mais remotos da sua atividade política, Bolsonaro defendeu a ditadura, estado que pressupõe um Executivo forte que funcione sem fazer consultas e sem sofrer avaliações, com o fechamento ou a submissão dos outros Poderes. Esse é o problema do presidente. Ele diz uma coisa num dia e outra diferente no dia seguinte.

No café com jornalistas, o presidente disse também que, embora condene os ataques, nada impede que durante o ato “apareça um infiltrado defendendo essas ideias e usando a camisa amarela”. Quer dizer, ele condena quem ataca, mas admite que haja, no meio da manifestação a seu favor, gente gritando pelo fechamento do STF e do Congresso. Trata-se do famoso “morde e assopra”. Condena, mas não tanto assim. E, ao que parece, perdoa os que se equivocarem.

O presidente é ele próprio um infiltrado. Assumiu o comando da nação depois de anos produzindo declarações contra a democracia e a favor de qualquer barbaridade que lhe parece apropriada. Como a tortura, por exemplo. O presidente Jair Bolsonaro é um infiltrado no jogo democrático. Nenhuma dúvida. O importante é que agora, com o poder que obteve das urnas, continue produzindo considerações como aquela do café da manhã.

Jogar a favor dos Poderes constituídos é obrigação do presidente da República. Ao defender o Supremo e o Congresso, Bolsonaro estava simplesmente cumprindo uma de suas principais atribuições constitucionais. Mesmo assim pode-se dizer que, vindo de quem veio, ele fez muito bem.


Ascânio Seleme: Deixem Bolsonaro governar

Em primeiro lugar, os três filhos do presidente são os que mais atrapalham

É muito oportuna a manifestação convocada em favor do governo Bolsonaro. A palavra de ordem é ainda mais premente. Deixem o presidente governar. É evidente que há pessoas fazendo o que podem para impedir Bolsonaro de governar. E quem são essas pessoas? Em primeiro lugar, os três filhos do presidente, os que mais atrapalham e deveriam ser os primeiros a obedecer ao comando das ruas. Flávio, Eduardo e Carlos são os maiores estorvos, que imobilizam o governo desde o seu primeiro dia.

Flávio se viu envolvido em escândalo antes mesmo da posse. Por ser o mais diplomático dos três, era nele que estavam depositadas as poucas esperanças de entendimento do pai com o Congresso. A partir do episódio de desvio de dinheiro de funcionários de seu gabinete na Assembleia Legislativa e depois de conhecidas suas extraordinárias negociações imobiliárias, Flávio virou um problema, sumiu do plenário, e sua capacidade de interlocução desapareceu.

Carlos, o encrenqueiro da família, já no começo do governo implicou com um ministro e o demitiu. Era Gustavo Bebianno, o ministro de melhor trânsito com deputados e senadores, aliado do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Não poderia ter atrapalhado mais. Bolsonaro, que já tinha perdido a interlocução do filho Flávio, sem Bebianno ficou a pé no Congresso. E Carlos continua implicando com gente do governo. Basta fazer alguma sombra sobre o pai para atrair sua ira explícita.

Eduardo, o evangelista da turma, é o principal seguidor na família do eremita Olavo de Carvalho. Ambos também deveriam prestar atenção no brado dos manifestantes de domingo. Olavo é um elemento tão desagregador que conseguiu causar mal-estar até mesmo entre os primeiros aliados de Bolsonaro, os militares. É sua também a obra dupla no Ministério da Educação. Nomeou um colombiano, que chamou os brasileiros de ladrões canibais, e o seu sucessor, que em duas semanas de gestão já comprou briga com os principais agentes da área.

Olavo não deixa Bolsonaro governar. Os filhos do presidente não deixam o pai governar. Infernizam a vida do presidente, tiram seu foco, subtraem sua atenção, impedem que ele se movimente. E há outros. Parlamentares que deveriam ajudar a construir pontes para o Planalto se comportam como homens-bomba. O líder do governo, deputado Major Vitor Hugo, conseguiu ser excluído do grupo de interlocutores do presidente da Câmara ao sugerir que diálogo com Congresso se compra com sacos de dinheiro.

O pior é que eles não estão sozinhos. Quem mais atrapalha Bolsonaro é Jair Bolsonaro. No fundo, ele não governa porque não sabe governar. O resto é bobagem, discurso pobre que alimenta a militância radical. O Congresso quer afastar o presidente para continuar mamando nas tetas do governo; o Supremo não liga para o Brasil, e seus ministros só querem comer lagosta e beber champanhe; a imprensa trabalha contra porque é de esquerda. Nada mais do que retórica insana e esquizofrênica.

Ao contrário do enunciado, o Congresso vem convocando o presidente ao trabalho desde que as reformas foram enviadas para a apreciação dos parlamentares, no início do ano. Bolsonaro preferiu atacar. Acabou a velha política, sentenciou. Não disse como seria a nova, mas se negou a negociar. O resultado é uma magnífica desarticulação. A reforma da Previdência sairá, talvez menor, mas por obra e força do Congresso.

No caso do Supremo, pode-se eventualmente discordar de algumas decisões de ministros que, mesmo atendendo à lei, atropelam o senso comum. Mas não se pode negar sua essencialidade. Atacar o STF por causa de uma licitação de bebidas e comidas para serem servidas a convidados oficiais é ridículo e apequena o debate. Ou alguém acha que o cardápio é diferente no Palácio do Planalto ou no Itamaraty?

A imprensa, acusada de atrapalhar o governo por ter uma agenda de esquerda, é a mesma que foi chamada de golpista e fascista ao longo dos anos petistas. O papel da imprensa é informar. Diferentemente das redes sociais, informar sem viés. Por isso, aqueles que só querem notícias boas não se conformam com a avalanche de más notícias do governo Bolsonaro. A culpa não é de quem divulga, mas de quem produz as más notícias. A estes deve ser dirigido o grito de domingo.


Ascânio Seleme: O medo de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro está na defensiva antes mesmo de completar seis meses de governo. Ao atacar mais uma vez as investigações sobre as falcatruas do filho Zero Um no exercício de seu mandato de deputado estadual, Bolsonaro afirmou que elas não o alcançarão. “Não vão me pegar”, disse o presidente. Para se mostrar inocente, ele chegou a oferecer a abertura de seus sigilos bancário e fiscal. Foi da boca para fora, evidentemente. O curioso foi ter usado uma desculpa adotada por dez entre dez pessoas acusadas de malfeitos. Não precisava, o presidente não é acusado deste crime. Mas a declaração serviu para revelar um homem acuado, com medo.

Bolsonaro está com medo de ser pego com a mão na botija? Não. Até porque não dá para afirmar isso por ora. É muito cedo. Mas ele está tremendo de pavor de ver um filho seu, ou quem sabe dois deles, acertando contas com a Justiça. A saída possível para o Zero Um fica cada dia mais difícil. O Ministério Público já chama de “organização criminosa” o grupo que o filho do presidente montou na Assembleia Legislativa do Rio. Ele, sua mãe, o seu irmão mais novo (o que não está na política), a ex-mulher do seu pai, primos, amigos e funcionários do seu gabinete terão suas contas bancárias e suas declarações de renda escarafunchadas pelo MP e pela Polícia Federal.

No total, 55 funcionários, 12 pessoas da família Bolsonaro ou diretamente ligadas a ela e nove empresas tiveram seus sigilos fiscais e bancários quebrados por ordem da Justiça. Serão analisadas contas e declarações de renda de um período de 11 anos. Foi nesse intervalo que a mulher do presidente, Michelle Bolsonaro, recebeu cheques do assessor/motorista Fabrício Queiroz. Dinheiro que, segundo o marido dela, foi pagamento de um empréstimo que o então capitão deputado fez ao assessor/motorista do filho. Esquisito? Sim, mas tudo bem. As contas abertas podem comprovar ou desmentir esta alegação.

De qualquer forma, também não é isso que assusta Jair Bolsonaro. Pela Constituição, ele não pode ser julgado, portanto nunca será condenado, por crimes que não tenham sido cometidos em ligação direta com o exercício de seu mandato. A ele nada ocorrerá mesmo que o filho, ou os dois filhos, a mulher e a ex-mulher sejam condenados por mau uso do dinheiro público. O problema é outro. O que arrepia o presidente é a hipótese de o núcleo formado por ele e pelos filhos Flávio, Carlos e Eduardo ser quebrado. Se isso acontecer, sua integridade moral e psicológica pode ruir. E com ela o seu projeto de poder.

Escrevi aqui no final de março sobre um estudo em que o economista Dado Salem, mestre em Psicologia do Desenvolvimento e especialista em gerir conflitos familiares, mostra como são estruturadas as “famílias simbióticas indiferenciadas”. Elas agem como um bloco monolítico e que não se quebra por razões internas. São fechadas em si e agem como um ser único. Assim funcionam Jair Bolsonaro e seus três filhos políticos. A única chance de um núcleo desses se dissolver é se um dos seus vértices resolver fazer um voo solo, ensina Salem. Nesse caso, o sistema de funcionamento da família seria aliviado de sua permanente ansiedade, abrindo espaço para a entrada de outros no núcleo indivisível. O que seria a sua destruição como bloco.

Como esta hipótese não é contemplada no caso dos Bolsonaro, a alternativa do núcleo só se romperá quando e se o Zero Um for condenado. Se Flávio for afastado da família compulsoriamente, em razão do resultado das investigações, a vida da família será bruscamente modificada. Com um dos pés quebrados, o governo Bolsonaro também sofrerá consequências, avalia Salem. A saída de um dos vértices abrirá espaço para a possibilidade de relacionamentos construtivos que hoje estão fora da bolha acabarem sendo absorvidos pelo núcleo dividido. Desse ponto de vista, o resultado da investigação tem o potencial de até mudar o governo para melhor. É disso que Bolsonaro tem medo.


Ascânio Seleme: Um governo em que só a derrota interessa

Aos poucos, a República do Tiro no Pé foi se consolidando no entorno do presidente

Não passa um dia sem que a corte de Jair Bolsonaro cometa um atentado contra seu próprio patrimônio. A ação deletéria do círculo mais próximo do presidente é cruel, e em alguns casos, ridícula. Já foram escritas algumas milhares de páginas gloriosas relatando graves e disruptivos equívocos históricos que ao longo dos tempos destruíram reis, imperadores, ditadores, presidentes. Uma nova página está sendo escrita nestes dias no Brasil. Esta, porém, não tem uma gota sequer de glória. Ela é composta apenas por erros pernósticos e grosseiros.

Um elenco de erros que ultrapassa o limite do bom senso. O pacote de bobagens começou a ser oferecido já na posse, quando o filho mais mimado do presidente abancou-se no Rolls-Royce presidencial. Parecia uma coisa juvenil, sem maior importância. Não era, como verificou-se em seguida, quando o menino demitiu o primeiro ministro do pai. A partir daí, o país acompanhou atônito uma sequência de episódios capazes de arrasar qualquer reputação. Aos poucos, a República do Tiro no Pé foi se consolidando no entorno do presidente e hoje está instalada de maneira inequívoca e soberana no Palácio do Planalto.

Dos eventos que tornam difícil o trabalho dos bombeiros de Brasília, o mais impressionante é o tratamento que o governo dá à educação. Primeiro, nomeou um maluco desprovido de bom senso que iniciou sua breve jornada na Esplanada dizendo que brasileiro é um ladrão canibal quando viaja ao exterior. Depois, indicou um sucessor mão de tesoura que anunciou um corte bilionário no orçamento das universidades em nome de um revanchismo cego e tolo. Nem o mais leal bolsonarista consegue entender uma medida como esta, a menos que imagine estar assim nivelando o Brasil ao seu próprio patamar. E ache isso bom.

Na política externa, o governo tomou todos os atalhos que o manual do bom diplomata condena. Na área ambiental, nadou e segue nadando contra a maré global. Nem a China, país mais poluidor do mundo, foi tão longe no descaso com o meio ambiente. Não vale a pena falar da senhora que viu Jesus numa goiabeira, nem do cavalheiro que comprou um laranjal em Minas, ambos ministros do governo Bolsonaro.

Melhor se concentrar na política. Em menos de cinco meses, Bolsonaro teve tantas indisposições nesse campo que já está tomando café frio. Não ganhou um embate importante no Congresso. Depois de ver estraçalhada sua proposta de reforma administrativa na comissão criada para analisá-la, o governo experimentou uma derrota fragorosa ao tentar impedir que o ministro mão de tesoura fosse convocado para se explicar na Câmara. Enquanto ele dava vexame no plenário, escolas ao redor do país pararam e foram às ruas em protesto contra o governo. Nem Temer no pior de seus dias foi tão mal.

Ao lado das questões graves, há outras patéticas. Imaginem dois líderes de partidos aliados recusando chamamento do presidente da República para irem ao Palácio conversar. Os “famosos” Elmar Nascimento (DEM) e Arthur Lira (PP) agradeceram convite feito pelo líder deputado major Vitor Hugo (PSL) e não foram ouvir Bolsonaro. Caso raríssimo na história da política nacional, o Centrão disse não ao governo. Logo o Centrão, que faz das tripas coração para estar sempre ao lado de quem dá as cartas e solta as verbas.

Além disso, os três filhos continuam azucrinando. O mais velho, o 01, teve seu sigilo bancário e fiscal quebrados e antes do fim do ano estará experimentando o calor abrasador do inferno, e incendiando o governo. O mimado, o 02, agora está torpedeando os ministros Onyx, Moro e Guedes, porque não suporta nenhuma sombra maior que a sua ao lado do papai. E, finalmente, o 03 disse que o Brasil deveria ter sua bomba atômica para ser levado mais a sério. Quem não pode ser levado a sério é o 03.

E, claro, o presidente pode sempre contar com a inestimável colaboração de Olavo de Carvalho, a cereja no topo do bolo. Se os filhos afastam do pai os ministros políticos e técnicos, Olavo afugenta os militares. O perigo do isolamento de Jair Bolsonaro é real. Para quem faz tudo para parecer que somente a derrota interessa, o caminho para o fracasso não poderia estar mais aberto e desimpedido.