Day: junho 18, 2020

Bolsonaro é responsável pelo avanço da pandemia no país, diz Política Democrática

Editorial da revista da FAP critica atuação do presidente e chama atenção para a onda de desinformação

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

É clara a responsabilidade do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no avanço da pandemia no país, segundo editorial da 20ª edição da revista mensal Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). “A julgar por suas declarações, a batalha sanitária foi dada por perdida, o quanto antes, melhor, a qualquer custo em termos de vidas, para reforçar o combate na frente, ilusória, da economia”, diz o texto.

Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!

A revista pode ser acessada, integralmente e de forma gratuita, no site da FAP. De acordo com o editorial, em poucos meses, o Brasil passou de uma situação de segurança relativa, na qual as deficiências estruturais eram compensadas pela atuação do SUS (Sistema Único de Saúde) e pela clareza das autoridades sanitárias, para epicentro da doença no mundo, no caminho célere em direção ao caos.

O editorial da revista Política Democrática Online destaca que não haverá recuperação econômica enquanto perdurar a pandemia. “Mas, para jogar o peso do governo na estratégia suicida da temeridade, a arma utilizada é a desinformação. Primeiro, na subestimação das consequências, ainda pouco conhecidas, de uma nova enfermidade”, critica.

A segunda estratégia do governo é o que o editorial chama de demolição de toda tentativa de estabelecer barreiras sociais para retardar a contaminação. A terceira, diz o texto, é a apologia dos falsos remédios milagrosos, com o intuito de tranquilizar a população. “Finalmente, na tentativa, imediatamente baldada, de amenizar as estatísticas sanitárias. No mínimo, como se não houvesse consequências graves, uma atitude infantil, como a reação das crianças, que fecham os olhos ao enfrentar uma injeção”, lamenta.

“Há uma segunda frente de combate no Brasil e nela também campeia a desinformação: a defesa do Estado Democrático de Direito”, alerta o editorial da revista Política Democrática Online. “A Constituição está acima de todos; a disciplina e a hierarquia subordinam as forças estaduais aos governadores eleitos; apologia da ditadura é crime; a Federação não é hierárquica; e, no dia em que o presidente tiver o poder de determinar o que o Judiciário pode investigar, a democracia terá cedido lugar ao império da ditadura e da corrupção”, afirma.

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Washington Fajardo discute cidade em webinar Reinventar o Rio de Janeiro

Arquiteto vai interagir com o público em transmissão ao vivo pelo site e Facebook da FAP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O arquiteto e urbanista Washington Fajardo vai discutir com o público, nesta quinta-feira (13), das 19h30 às 21h, pontos importantes da cidade na segunda das nove webinars da série Reinventar o Rio de Janeiro, realizada pelo Cidadania 23 do município com apoio da FAP (Fundação Astrojildo Pereira). A entidade vai fazer a transmissão ao vivo, aberta a todos os interessados, em seu site e em sua página no Facebook.

Gargalos da cidade do Rio de Janeiro, como o poder das milícias e sua atuação em diversas esferas, e caminhos para solucioná-los serão levantados durante a discussão. Editorial do jornal O Globo da última terça-feira (16) cita a preocupação de Fajardo. “O Rio está num fio da navalha, podendo virar uma Nápoles facilmente, onde nada é feito sem participação de mafiosos”, alerta ele, no texto.

De acordo com a organização da série de webinars, o objetivo dos debates online é mobilizar lideranças para interferir nas discussões e possíveis intervenções sobre o futuro do Rio de Janeiro. A ideia, conforme divulgado, é manter o comprometimento do partido de buscar sempre melhorias para a cidade, mesmo no período de isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus. Webinar evita a aglomeração física de pessoas no mesmo local e possibilita grande participação online de interessados.

A série de webinars Reinventar o Rio de Janeiro começou na última terça-feira (16) e seguirá até o dia 14 de julho, com discussões sobre crise fiscal do Rio de Janeiro, saúde, segurança, desigualdade, pobreza, programas sociais, ética e política, sempre às terças e quintas-feiras, das 19h30 às 21h.

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Valor: Carta de ex-ministros chama governo de ‘anticientífico’

Ex-titulares do Meio Ambiente apelam a governadores e prefeitos, STF e PGR por ações para conter a destruição de biomas e as ameaças a indígenas e quilombolas

Por Carolina Freitas, Valor Econômico

SÃO PAULO - Nove ex-ministros do Meio Ambiente brasileiros lançaram uma carta aberta em que denunciam o governo Jair Bolsonaro como “anticientífico”. Eles apelam a governadores e prefeitos, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e à Procuradoria-Geral da República (PGR) por ações para conter a destruição de biomas e as ameaças a indígenas e quilombolas.

O documento é assinado por Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, José Carlos Carvalho, Izabella Teixeira, Marina Silva, Rubens Ricupero, Sarney Filho e José Goldemberg.

“Vivemos inédito momento histórico de aviltamento e ameaça à democracia, de parte do próprio poder Executivo por ela constituído”, afirmam os ex-ministros. “A omissão, indiferença e ação anticientífica do governo federal transformaram o desafio da covid-19 na mais grave tragédia epidemiológica da história recente do Brasil, causando danos irreparáveis à vida e saúde de milhões de brasileiros.”

Os ex-ministros cobram do procurador-geral da República, Augusto Aras, a análise de denúncias de crime de responsabilidade supostamente cometidos pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles e evoca ainda a responsabilidade do STF de fazer cumprir os princípios constitucionais de “preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado” e da “independência entre os Poderes”.

Abaixo, a íntegra do documento:

“Carta Aberta do Fórum de Ex Ministros do Meio Ambiente do Brasil em Defesa da Democracia & Sustentabilidade

Vivemos inédito momento histórico de aviltamento e ameaça à democracia consagrada na Constituição de 1988 de parte do próprio poder Executivo por ela constituído.

A omissão, indiferença e ação anticientífica do governo federal transformaram o desafio da covid-19 na mais grave tragédia epidemiológica da história recente do Brasil, causando danos irreparáveis à vida e saúde de milhões de brasileiros. A tragédia seria ainda maior não fosse a ação de Estados e Municípios, apoiados pelos poderes Legislativo e Judiciário.

A sustentabilidade socioambiental está sendo comprometida de forma irreversível por aqueles que têm o dever constitucional de garanti-la. A destruição dos Biomas brasileiros avança em taxas aceleradas que não se registravam há mais de uma década, com aumentos expressivos de desmatamentos na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica, enquanto os órgãos ambientais e s normas federais são sistematicamente desmantelados. Povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais veem crescer de modo exponencial as ameaças aos seus territórios e às suas vidas.

A degradante reunião de 22 de abril passado é o retrato fiel desse desgoverno, com horas dedicadas a ofender e desrespeitar de maneira abjeta os demais poderes do Estado, sem uma palavra de comando para o enfrentamento da crise econômica ou superação da crise ‘pandêmica’.

A única menção à pandemia, feita pelo ministro do Meio Ambiente, não se destinou a estabelecer conexões entre a agenda da sustentabilidade e os desafios na saúde e na economia, mas, inacreditavelmente, para se aproveitar do sofrimento geral em favor dos nefandos interesses que defende. Na ocasião, confessou de público o que pode caracterizar crime de responsabilidade, por desvio de função e poder, ao revelar o verdadeiro plano em execução por este governo que é ‘passar a boiada’ sobre a legislação socioambiental aproveitando o ‘momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID’. Causa indignação e espanto que a proposta não merecesse reprimenda em nome do decoro, nem reparo dos presentes, em defesa da moral e da honra.

Responsáveis durante décadas pela política ambiental desde a redemocratização do país, criamos este Fórum para demonstrar que a polarização e radicalização promovidas pelo governo podem e devem ser respondidas com a união e colaboração entre pessoas de partidos e orientações diferentes fiéis aos valores e princípios da Constituição.

Como ex-ministros do Meio ambiente nossa responsabilidade específica se consubstancia na valorização e preservação do meio ambiente e no desenvolvimento sustentável. Aprendemos, porém, pela dura experiência com o atual governo, que quando a democracia, a liberdade e a Constituição são ameaçadas e/ou violentadas os primeiros valores sacrificados são os relativos ao meio ambiente e aos direitos humanos.

Sem Democracia forte, não haverá sustentabilidade.

Sem sustentabilidade, não haverá futuro para nenhum povo.

Diante do exposto, solicitamos:

  • aos Ministros do Supremo Tribunal Federal que velem pelo cumprimento efetivo dos princípios constitucionais de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo ‘essencial’ à sadia qualidade de vida assim como pela independência entre os Poderes;
  • aos membros do Congresso Nacional para que, sob a coordenação dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, assegurem o controle dos excessos e omissões do Poder Executivo Federal, não permitindo a tramitação e aprovação de Projetos de Lei e Medidas Provisórias que fragilizem ou promovam retrocessos na legislação socioambiental;
  • aos Governadores e Prefeitos que, diante da situação criada pela ausência de liderança e ação prejudicial do Presidente da República, sigam firmes no enfrentamento responsável da pandemia usando de todos os recursos disponíveis, garantindo transparência máxima na divulgação dos dados e promovam políticas públicas de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável, bloqueando a escalada de destruição de nossos Biomas;

E - ao Procurador-Geral da República, que adote as medidas jurídicas cabíveis de forma firme e tempestiva para barrar iniciativas de estímulo à degradação do meio ambiente, promovidas pelo governo federal, assim como cumpra o compromisso constitucional de examinar com imparcialidade e presteza as denúncias de crimes de responsabilidade potencialmente cometidos pelo ministro do Meio Ambiente de acordo com representações protocoladas a esta PGR durante a Semana do Meio Ambiente.

Fazemos um apelo em favor de uma urgente união nacional em defesa da Constituição e da edificação de um Brasil à altura das aspirações do povo brasileiro por uma Nação plenamente Democrática, Plural e Sustentável.

Brasília 10 de junho de 2020.

Respeitosamente,
Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, José Carlos Carvalho, Izabella Teixeira, Marina Silva, Rubens Ricupero, Sarney Filho, José Goldemberg”


Igor Gielow: Resposta do Supremo evidencia falta de instrumentos de Bolsonaro

Presidente usa militares e esbraveja enquanto Judiciário mantém sua tríade nuclear

A eloquente resposta institucional do Supremo Tribunal Federal às recentes ameaças vindas do Palácio do Planalto evidencia a falta de instrumentos à mão de Jair Bolsonaro.

A decisão pela continuidade do inquérito das fake news já era esperada, mas houve uma degeneração no ambiente político entre os Poderes desde que a questão começou a ser discutida.

Uma nova cadeia de acontecimentos, iniciada na sexta (12), reforçou o peso impresso pelos ministros e ministras em seus votos.

Naquela noite, Bolsonaro divulgou uma nota coassinada pelo vice Hamilton Mourão e pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa) na qual disse que os militares não aceitariam ordens absurdas ou julgamentos políticos.

Era uma resposta à decisão provisória na qual o ministro Luiz Fux, próximo presidente do Supremo, negava a ideia de que as Forças Armadas teriam algum papel moderador —argumento torto do bolsonarismo quando quer invocar o fantasma de uma intervenção armada.

Na noite seguinte, foi a vez de fogos de artifício serem jogados sobre o STF em protesto, com uma inação da Polícia Militar punida com a destituição de seu chefe interino. Domingo, o ministro Abraham Weintraub (Educação) em ato pedindo o fechamento da corte e do Congresso.

Na segunda, na mão contrária, foi deflagrada a primeira parte da ofensiva do outro inquérito que preocupa o bolsonarismo, o dos atos antidemocráticos.

Ali foram presos os radicais do grupo 300 do Brasil. No dia seguinte, um golpe no coração do bolsonarismo militante: buscas e quebras de sigilo atingindo 11 parlamentares e organizadores da causa.

O ato contrariou ainda mais Bolsonaro por ter sido determinado por Augusto Aras, o procurador-geral e candidato a ministro do Supremo tão próximo do Planalto.

É certo que este inquérito não cita Bolsonaro, mas seus protagonistas e atos se confundem com aqueles da apuração das fake news.

Dali para uma acusação de financiamento ilegal de campanha é um pulo, e o Tribunal Superior Eleitoral que já analisa o caso é a próxima parada.

Espremido pelas acusações de desgoverno na pandemia e à espera de seus efeitos econômicos, além da crise política, sobrou a Bolsonaro, esbravejar nesta quarta (17). Falou grosso e ameaçou usar na batalha recursos legais, dos quais já dispõe e cujo uso é lícito, como ações da Advocacia-Geral da União.

Não falou em Forças Armadas ainda, muito devido à má repercussão que a nota de sexta gerou na cúpula militar da ativa.

Se sobram oficiais-generais que condenam o ativismo do Supremo, faltam os que aceitam ideias golpistas ensaiadas pelo presidente.

Observadores são mais cautelosos ao avaliar o oficialato médio, mas a falta de coesão militar atual não sugeriu até aqui ruptura de hierarquia. Resta saber o real potencial revoltoso entre as PMs: a inação de sábado fez soar alarmes.

Isso não torna os togados donos de uma razão universal, por óbvio. A transformação da corte no proverbial Posto Ipiranga da política nacional distorceu suas atribuições há anos.

Ora o STF se ocupa de legislar, ocupando o vazio do Congresso, ora transparece inconstância pelos humores políticos –caso do vaivém acerca da prisão para condenados em segunda instância.

Mesmo o inquérito das fake news é eivado de um voluntarismo de saída bastante inusual, dispensando a Procuradoria e tomando decisões no mínimo polêmicas. Mas para isso há o pleno do Supremo a corrigir distorções se algo vier a ser julgado.

Ministros da corte, contudo, sempre que podem defendem a imposição do momento histórico.

Alegam que a inação do Legislativo, cujos segmentos intestinos do centrão estão sendo cooptados por Bolsonaro, acaba por forçar os togados a uma posição mais combativa.

Isso não seria o desejável, nem o ideal, segundo eles. Mas é fato que o protagonismo do Supremo até retirou da catatonia recente Rodrigo Maia (DEM-RJ), que havia submergido após perder controle sobre o centrão.

Sobre o grupo de partidos que vem ocupando espaços, é o melhor dos mundos para eles: o embate é problema alheio.

Se Bolsonaro se enrolar de vez e perder o cargo, já estarão aninhados para a transição ao próximo hospedeiro.

Ao lado do presidente só estão os militares do governo, cada vez mais expostos, e seu entorno ideológico, crescentemente radicalizado.

A discussão sobre a demissão de Abraham Weintraub, o ministro da Educação que chamou os ministros do Supremo de vagabundos que mereciam ser presos, e agora enfrenta risco ele de ir à cadeia, é exemplar.

Ela havia sido especulada para apaziguar ânimos, mas foi esquecida, só para ser retomada após o fim de semana agitado.

Agora, está sendo postergada por pressão dos filhos presidenciais. Se efetivada, ainda mais para algum cargo remunerado em dólar no exterior, terá efeito nulo no clima.

No jargão militar, tríade nuclear é o nome dado às formas como podem ser empregadas armas atômicas, por terra, mar e ar.

A manutenção da tríade fake news-atos-TSE deixa o Judiciário como a fronteira onde o risco existencial para Bolsonaro é mais alto.

De seu lado, o presidente brinca com a bomba atômica de uma intervenção militar que, aos olhos do mundo político, parece cada vez mais uma quimera.


Vinicius Torres Freire: Plano do governo para economia pós-Covid é o mesmo, mas com fome

Decisão do BC sobre juros e Guedes sugerem arrochão e volta a regime pré-pandemia

O ministro Paulo Guedes (Economia) praticamente disse que está encerrado o programa de socorro à economia, ora em hibernação necrosante no inverno pandêmico. Agora, vai tratar de “reformas”. O Banco Central não deu sinal de que pretende se arriscar em um plano inconvencional de política monetária (de juros), como transparece no comunicado da redução da meta para taxa básica de juros (Selic) de 3% para 2,25%, nesta quarta-feira.

Em resumo, a política econômica será a mesma, a não ser em caso de desastre adicional, como insinua o BC, o que parece não estar nem na cogitação de Guedes.

A ideia básica é aprovar a emenda que permite o talho das despesas com servidores federais, tocar as concessões de infraestrutura para empresas privadas e vender a Eletrobras e os Correios, grosso modo, além de programar um Orçamento que ponha de novo as despesas no limite do teto.

O Banco Central afirmou que pode até haver nova redução da Selic, “residual”, mas há incerteza “acima da usual sobre o ritmo de recuperação da economia” na segunda metade do ano.

Além de esperar para ver o tamanho do desastre, da duração da epidemia e da retranca do consumidor, a direção do BC quer saber qual o efeito do crédito e dos auxílios emergenciais. Quer saber, como de costume, se o gasto além do teto vai ser limitado a este 2020 e se haverá “reformas”.

No entanto, mesmo as expectativas de inflação para 2021 (ora em 3,2%) estão abaixo da meta do BC (3,75%, em um intervalo admissível de de 2,25% a 5,25%), no cenário em que a Selic sobe do nível atual para dos atuais 2,25% para 3% no terço final do ano que vem e o dólar flutua pouco em torno de R$ 5. Sim, 2021, porque na prática taxa de juros básica já não teria como bulir com crescimento ou inflação neste 2020. Em tese, a Selic pode cair mais.

Mais importante do que saber da hipótese de um corte adicional de quarto de porcentagem foi o BC ter indicado que não está no horizonte uma política de juro zero. Se a Selic não vai a zero ou perto disso, não há possibilidade, na teoria padrão, de que o BC possa bulir com taxas de juros de prazo mais longo (o que poderia fazer comprando títulos do Tesouro, para o que tem agora autorização do Congresso).

De fato, é controversa a viabilidade de tal política em um país tão desarranjado quanto o Brasil. Em termos bem práticos e imediatos, note-se que as taxas de juros de prazo mais longo (cinco anos em diante) estão acima do nível em que estavam no início de março. É sinal de que há menos gente disposta a financiar o governo, que aliás está evitando pagar o preço (juro) alto. Tem coberto as contas com dinheiro do colchão e se financia no curtíssimo prazo.

Tal situação não pode perdurar por muito tempo. Ou se parte para políticas inconvencionais e/ou terá de haver um talho brutal na despesa ou vamos para o vinagre. Pressupõe-se também aqui que algum crescimento volta em 2021, bastante para recuperar ao menos metade do que vai se perder neste ano em queda do PIB, o que é apenas chute.

O que dá para saber é que, lá por setembro, não haverá auxílios emergenciais nem emprego, que a epidemia só terá terminado em caso de desastre (infecção quase geral e grande morticínio) e que não se sabe se haverá acordão entre governo e Congresso (e, pois, “reformas”), condicionado ainda ao que vai sair das investigações do Supremo sobre o bolsonarismo.

Os economistas do governo vão pagar para ver.


Zeina Latif: Escolhas arriscadas

Juros baixos foram duramente conquistados; exageros fiscais e monetários podem ameaçar

Convém o Banco Central cortar ainda mais a taxa de juros Selic? Qual o benefício vis-à-vis ao custo?

Para alguns analistas essa pergunta nem deveria ser feita, afinal a taxa de inflação corrente (1,9% aa em maio) e as projeções (1,6% para 2020 e 3,0% em 2021) estão abaixo das metas (4% e 3,75%), em meio à elevada ociosidade de mão de obra e capacidade produtiva. A decisão de corte seria óbvia.

A questão, porém, é mais complexa pelos riscos envolvidos.

Para começar, o “painel de controle” do BC está avariado. Já discuti neste espaço que a queda abrupta da inflação reflete principalmente a restrição ao consumo por conta do isolamento social, não podendo ser tomada como sinalização para o futuro. A inflação de serviços, por exemplo, mais resistente, caiu bastante (de 3,9% há um ano para 2,7%) com a contração da demanda das famílias por serviços (-62% até abril), mas poderá acelerar em breve.

Há também riscos que precisam ser levados em conta, principalmente o fiscal. Ele poderá ser mitigado com a retomada de reformas estruturais. Porém, Bolsonaro não se mostra disposto, por ora, a encarar agendas polêmicas, como a necessária reforma administrativa.

Alguns analistas defendem que a Selic baixa contribui para reduzir o risco fiscal. Porém, se os juros básicos forem percebidos como artificialmente baixos, os juros de longo prazo que remuneram a dívida pública irão subir, pelo risco de uma volta mais rápida da inflação.

Não tem escapatória: inflação bem comportada e juros baixos de forma sustentada dependem do compromisso com a disciplina fiscal ao longo do tempo.

Não se sabe o limite para o corte da Selic, mas certamente está acima do observado em países ricos ou com contas públicas mais saudáveis. Taxas exageradamente baixas podem dar dor de cabeça, pela consequente pressão sobre o dólar. Juros muito baixos em um ambiente de riscos elevados reduzem ainda mais o interesse para investimento no País, de locais e estrangeiros, incluindo o financiamento do governo.

O fato de brasileiros terem ativos no exterior, obtendo ganhos de capital com o real fraco, não implica maior disposição a investir no Brasil.

Alguns argumentam que, em algum momento, a taxa de câmbio encontraria seu novo equilíbrio, produzindo uma melhora das contas externas com a redução de gastos no exterior e o ingresso de recursos atraídos pela queda dos preços de ativos brasileiros quando denominados em dólar (“o Brasil ficou barato”, dirão os investidores). O problema é o acidentado percurso até lá, sendo que volatilidade cambial elevada é veneno para o setor privado. Não é recomendável sobrecarregar o ajuste na taxa de câmbio.

A pressão cambial exacerbada machuca as finanças das empresas nacionais, pois eleva o valor (em real) da dívida externa (para este ano, as amortizações ultrapassam US$ 100 bilhões, sendo que a taxa de rolagem foi baixa em abril) e encarece os preços de insumos (atualmente os importados têm maior participação do que no passado). A valorização do dólar machuca o crescimento do PIB no curto prazo, agravando a crise.

O risco de uma surpresa inflacionária indesejada também aumenta. O baixo repasse do dólar aos preços nos últimos anos não está escrito em pedra.

O BC indica que prefere esticar a corda, aceitando o risco de ter de subir a Selic de forma mais rápida e mais intensa no futuro. Essa não será uma tarefa fácil.

O momento recomenda cautela. Outras políticas mais potentes no momento e focalizadas têm sido eficazes para estimular o crédito, como as medidas administrativas do BC e o socorro às empresas. O consumo tem reagido ao auxílio emergencial a indivíduos, a julgar pelos dados relativos ao uso de cartões de crédito. O montante de R$ 150 bilhões é expressivo à luz da renda gerada pela metade mais pobre do País, de menos de R$100 bilhões em 3 meses, segundo especialistas como Ricardo Paes de Barros.

Juros baixos foram duramente conquistados nas ultimas de décadas. Exageros fiscais e monetários agora poderão ameaçar essa conquista.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Míriam Leitão: O pouco efeito dos juros baixos

O Banco Central cortou a Selic, dentro do esperado, e rompeu mais uma vez o piso histórico. Mas qual o efeito disso na economia? Ajudará a amenizar o custo da dívida, isso representa em torno de R$ 20 bilhões a menos de pagamento de juros. Mas o grande resultado que se busca com a queda da taxa básica é o estímulo à atividade econômica. Desde a última reunião do Copom, a previsão do PIB de 2020 saiu de uma recessão leve (-0,9%) para um tombo histórico (-6,51%) no Boletim Focus. E certamente a projeção vai piorar nas próximas semanas. Menos juros e mais liquidez oferecida aos bancos deveriam atenuar a recessão, mas até agora nada garante esse efeito. Primeiro, porque a taxa menor não tem chegado na ponta e as empresas micro, pequenas e médias não têm tido acesso às linhas que o governo criou no contexto da pandemia.

Os dados de abril vislumbram a queda livre da economia: produção industrial, vendas do varejo e serviços tiveram quedas entre 11% e 18% em relação a março. O desemprego oculto, segundo o IBGE, pode estar atingindo 17 milhões de brasileiros que não procuram emprego porque acham que não vão encontrar. Além dos que já estão desempregados. Tudo é absolutamente incerto na economia. A bolsa e o dólar estão numa gangorra. Na última reunião do Copom, o dólar estava subindo. No dia 14 de maio chegou a R$ 5,93, em 10 de junho havia caído para R$ 4,88 e ontem estava em R$ 5,24. Os ativos têm oscilado por fatores externos. Refletem a esperança de recuperação mais rápida de economias centrais, o medo da segunda onda, a expectativa de um remédio ou uma vacina. O ruído político, provocado por um governo que não sabe governar, mas adora criar confusão, é grande. Quando é levado em conta, atrapalha ainda mais a economia.

Diante dessa incerteza provocada pela pandemia, e pela incompetência do governo, reduzir a taxa de juros para níveis nunca antes vistos não vai atenuar a queda da atividade. Mas é um movimento natural diante de uma economia que está em deflação e na qual se fala a inédita palavra “depressão”. A queda dos juros tem a vantagem de tornar mais baixo o custo de uma dívida que está subindo. Essa queda da Selic começou no governo Temer, que a pegou em 14,25% e a deixou em 6,5%. No governo Bolsonaro, continuaram os cortes e, com a crise, eles se aprofundaram até os 2,25% decididos ontem. Cada ponto a menos significa teoricamente um gasto menor de R$ 30 bilhões. Mas isso se na equação tudo o mais permanecer constante. A dívida bruta tem subido, a taxa longa nem sempre tem o mesmo movimento. Além disso, como parte das reservas está investida em papel do Tesouro americano, que está rendendo menos, o custo da dívida tem se mantido constante nos dois últimos anos, em torno de R$ 380 bilhões líquidos, segundo dados do Banco Central.

O Copom disse que o corte dos juros até agora “parece compatível com os impactos econômicos da pandemia”. Apesar de ter indicado na última reunião que esse seria o corte que encerraria o atual ciclo de relaxamento monetário, no comunicado após a decisão de ontem houve uma abertura para uma nova queda, dependendo da análise que fizerem dos impactos da Covid-19 e do efeito das medidas de crédito e de recomposição da renda.

Na verdade, novas reduções dos juros não ajudam muito. O Banco Central participou há três meses do anúncio no Palácio do Planalto de medidas de socorro a empresas, como a linha para cobrir o pagamento da folha, que nunca virou realidade. Até agora, três meses depois da primeira morte, o ministro Paulo Guedes disse ontem que o governo está finalizando o programa emergencial para minimizar os efeitos da pandemia. Várias das medidas anunciadas não se tornaram realidade.

Guedes, ao falar do que ele chama de segunda onda, a da crise econômica, disse que é consequência de termos “paralisado parcialmente a nossa economia” e que isso provocou “uma recessão que pode se transformar em uma depressão se não lutarmos adequadamente”.

Guedes acha que a luta adequada é a retomada das reformas. O momento, contudo, ainda é das medidas emergenciais para evitar a morte serial de empresas. E isso se faz com projetos que não sejam apenas peças de propaganda governamental, mas cheguem aos cofres das empresas, principalmente as micro, pequenas e médias.


Carlos Melo: Sob o simples império da lei

Até por gestos e pensamentos, presidentes da República devem prezar a Constituição a que juraram defender. Não podem fazer a interpretação que lhes convém. De acordo com a lei, o guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. O título “supremo” não é mera figura de linguagem. É o STF quem arbitra o jogo das leis. Para mudar isso, só por meio de uma Constituinte – talvez.

Assim, o ministro do STF Alexandre de Moraes tem autorizado sindicâncias que atingem aliados do presidente, não por serem aliados, mas por suspeitas e indícios de estarem envolvidos com atos ilegais; não se lhes questiona a liberdade de expressão nem o direito de exercê-la, mas ações concretas que poderiam ir de encontro à lei. Moraes é experiente, tendo passado por várias esferas de poder, nesse campo. Sabe qual ferida tocar e, pelo jeito, tem causado muita dor e receio ao bolsonarismo.

Noutros governos, parlamentares, empresários e operadores políticos passaram por processos semelhantes; foram presos justamente por terem agido fora da lei. O que contou com o entusiasmo do então deputado e de seus aliados, que ora se encontram sob o mesmo rigor, o rigor da lei. Mas, agora, tudo parece causar desconforto e até desalento ao presidente, temeroso de ver ruírem as redes de enfrentamentos às instituições e a imprensa paralela criadas em seu favor e em sua proteção. Além disso, os processos podem chegar ao Tribunal Superior Eleitoral e colocar em risco o próprio mandato.

O que Bolsonaro poderia contra isso? Esperar que os envolvidos, não ele, recorram contra o que considerarem ilegal, nos termos da lei. Politicamente, acionar o Legislativo para alterar a legislação, uma vez que tenha maioria para fazê-lo – o que não tem. Recorrer à “força bruta”, dentro da lei, não pode. E, se não pode, melhor não insinuar. Presidentes da República podem muito, mas não tudo. Milhões de votos não lhes dão a voz do “povo”, apenas responsabilidade perante a lei. São eleitos, não ungidos.

*Carlos Melo, cientista político, professor do Insper


William Waack: O STF no ataque

O governo está na defensiva contra um adversário que se sente jogando em casa

“Bola no chão”, disse o general Hamilton Mourão, o porta-voz político do time dos militares no governo, referindo-se ao enfrentamento entre Executivo e Judiciário, a questão mais relevante e perigosa no momento. Ao sugerir como tratá-la, o general recorreu a uma frase da folclórica figura de Neném Prancha (1906-1976), que foi roupeiro, massagista, técnico e filósofo do futebol brasileiro: “A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca come a grama, então bola no chão”.

Mas também o time do outro lado, o do STF, parece ter adotado uma frase de outra figura folclórica do futebol brasileiro, a do técnico Zezé Moreira (1907-1998), que assim descrevia a vantagem de jogar em casa mesmo contra equipes consideradas muito mais fortes: “Lá em casa até boi vira vaca”. De fato, o STF está jogando em casa. E no ataque.

Não se trata apenas da questão dos inquéritos que o Supremo dirige e que são clássicos do “follow the money” para chegar a quem organizou e financiou ações contra instituições democráticas – a principal razão do nervosismo no Planalto. Nem do formidável arsenal de medidas com o qual o STF já vinha impondo limites ao Executivo, muito evidente quando o Judiciário definiu o papel dos entes da Federação na crise de saúde.

Ministros do Supremo, articulados a uma vasta comunidade de operadores no campo do Direito (acadêmicos, advogados, juízes, procuradores), derrubaram com notável rapidez uma interpretação do artigo 142 da Constituição favorável a colocar as Forças Armadas como uma espécie de “poder moderador” entre os Poderes. “Isso é terraplanismo constitucional”, resumiu o ministro Luís Barroso, trazendo a filosofia de Neném Prancha para o campo jurídico. Em outras palavras, sumiu a justificativa “técnica” ou “constitucional” ou “legal” para qualquer intervenção política das Forças Armadas.

Pior ainda para o time do Planalto: o do STF ganhou um reforço considerável com a postura do procurador-geral da República – que o presidente tinha constrangido em público, obrigando Augusto Aras não só a ser “técnico” nas suas ações, mas a parecer ser. E ser “técnico” neste âmbito significa que a PGR e o STF tocam juntos os inquéritos que tanto irritam o Planalto e os militares.

Em termos das personalidades envolvidas na disputa, talvez a expressão mais eloquente da grave tensão entre os poderes Judiciário e Executivo esteja na evolução das posturas do presidente do Supremo, Dias Toffoli, e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, considerado entre seus pares como uma brilhante cabeça política. Então chefe do Estado-Maior do Exército, Azevedo foi deslocado em 2018 para ser o principal assessor de Toffoli, que havia acabado de assumir a presidência do STF.

Naquela época, a ideia era promover um esforço conjunto (militares e juízes) para pacificar um delicado ambiente pré-eleitoral. Hoje, Toffoli enxerga “dubiedade” nas posturas do chefe do Executivo frente às instituições democráticas. Enquanto seu ex-assessor, atual ministro da Defesa, assina uma nota com o presidente da República e seu vice afirmando que as Forças Armadas “não aceitam a tomada do poder por outro Poder por conta de julgamentos políticos” – referência também aos inquéritos do STF, da PGR e do TSE, vistos no Planalto como ferramenta política para derrubar um governo eleito com 57 milhões de votos.

A natureza, o alcance e a profundidade das crises de saúde pública e econômica acuariam por si qualquer governo brasileiro, mas o de Bolsonaro se empenhou em agravar também a crise política, com o resultado de ter de jogar na defesa nas três. Neném Prancha definia o futebol como um jogo muito simples: “Quem tem a bola ataca, quem não tem, defende”. A bola está com o STF.


Fernando Schüler: Desafio é como distinguir demandas legitimas de transformação social da simples intolerância

A estátua de Mahatma Gandhi amanheceu coberta por uma caixa metálica, dias atrás, na Parliament Square, em Londres. O monumento foi inaugurado em 2015 para homenagear o líder pacifista indiano, mas agora há uma campanha para retirá-lo de lá sob a acusação de racismo.

Um dos colegas de praça de Gandhi é Jan Smuts, ex-primeiro-ministro segregacionista da África do Sul. Smuts também circula em uma lista de derrubamentos, mas tem merecido menos atenção. Churchill é o mais famoso da praça e já foi devidamente vandalizado.

A menção a Gandhi não vem por acaso. Valeria o mesmo para as diversas estátuas de Cristóvão Colombo queimadas ou decapitadas em cidades americanas, ou para o nosso padre António Vieira, gentilmente vandalizado no centro de Lisboa.

João Pereira Coutinho associou nosso tempo a uma certa revivescência medieval. A época pré-iluminista das inquisições. Diria que vivemos uma Idade Média mais bem educada. As multidões de hoje não se reúnem mais em praça pública para amaldiçoar algum infiel ardendo na fogueira.

As bruxas em geral queimam na internet e não importa muito a ideologia. Na vida real (ao menos por enquanto e com algumas tristes exceções), a multidão derruba apenas estátuas e vandaliza espaços públicos.

Coutinho estaria errado se a raiva popular estivesse sempre do lado certo da história. O antirracismo contemporâneo, por exemplo, na trilha de Martin Luther King. As multidões trariam consigo o germe da razão e do progresso moral. Saberiam escolher entre a civilização e o que deve ir para o lixo da história.

De minha parte sou cético. Se alguém quer entregar à multidão irada a decisão sobre proibir um filme, retirar a palavra a um orador ou derrubar uma estátua, boa sorte. Só lembre-se que um dia desses a multidão pode errar e sua fúria se voltar exatamente contra as ideias que mais prezamos. Não foram poucas vezes que isso aconteceu, e nem muito longe daqui.

É exatamente por isso que inventaram essa coisa quase insuportável chamada liberdade de expressão. Exatamente a coisa que está no centro do debate atual e que vem desafiando a nossa democracia.

Há um lado curioso nisso tudo. Nos anos 1990 muita gente imaginava que a internet iria aproximar as pessoas e melhorar o debate público. Ocorreu o contrário. Cresceu a paixão tribal no mundo do pensamento.

Numa expressão, a tecnologia nos medievalizou. Os riscos disso tudo são evidentes. O mais óbvio é a perda de referência. A incapacidade de distinguir entre demandas legítimas de transformação social, como o antirracismo, e a simples intolerância.

Barack Obama acertou na mosca pedindo que os movimentos antirracistas que incendiaram os EUA não “racionalizassem” a violência. Mencionou uma velha senhora que teve a loja de rua destruída e disse que todos sabiam como aquilo tudo estava fadado a terminar.

E arrematou: “Se queremos a justiça e a sociedade funcionando sob um código ético mais exigente, precisamos nós mesmos agir desse modo”. Obama é o cara que disse, um dia após a eleição de Trump, que a democracia era assim, um jogo de vitórias e derrotas em que todos ganham, no longo prazo. Mas pouca gente entendeu, como sempre.

Outro risco é a contaminação das instituições. Não há que se esperar muito da multidão digital. Por vezes ela irá acertar, por vezes errar, e mesmo sobre o erro e o acerto não haverá acordo. A paixão e o ódio político serão o feijão com arroz das democracias.

No Brasil atual me surpreende (em que pese não deveria) que tenhamos ressuscitado a “famigerada” Lei da Segurança Nacional, assinada pelo general Figueiredo em 1983. Para alguns, a lei que era um entulho autoritário se transformou em instrumento da democracia; para outros, que com ela simpatizavam, se tornou ferramenta do arbítrio. Num e noutro caso, o apelo indignado à liberdade de expressão.

Não deixa de ser uma perfeita imagem do nosso tempo. Não vejo chance de essas coisas mudarem, e o máximo que me permito é acreditar que nossas instituições e liderança pública não irão embarcar nesse jogo. Acreditar com cada vez menos força, confesso.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Maria Hermínia Tavares: Além do básico

A renda mínima é a base firme do sistema de proteção social

No programa Roda Viva da última segunda-feira (15), o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, observou que a Covid-19 pôs sob uma lente de aumento a espantosa pobreza do Brasil e confrontou os brasileiros com a obrigação moral e os problemas práticos de enfrentá-la.

Nessa empreitada, empenham-se algumas das melhores cabeças de economistas e sociólogos, que puseram em discussão o imperativo de um programa permanente de garantia de renda mínima para além do bem-sucedido Bolsa Família. O objetivo é incluir um segmento ainda maior dos brasileiros pobres e de precária inserção no mercado de trabalho.

Há muitas ideias sobre a mesa. Elas diferem na abrangência, na forma de operação e na relação com os programas assistenciais existentes —especialmente os maiores: o próprio Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada.

Em comum, preocupam-se com a sustentação financeira do futuro programa e com o entrosamento entre responsabilidade social e fiscal. Por esse motivo, os autores das diferentes propostas as associam necessariamente a medidas de reforma tributária.

Não resta dúvida de que, em um país com pobreza e miséria tão extensas, a garantia de renda mínima é a base firme e fundamental de qualquer sistema de proteção social que se pretenda decente. Mas ele tem, universalmente, outros componentes, como a atenção à saúde e à educação básica, que neste momento requerem reforço, além das aposentadorias e do seguro-desemprego.

A amarga experiência da pandemia revelou a força e as limitações de nosso Sistema Único de Saúde, desigual na sua cobertura estado a estado, precário no atendimento hospitalar de emergência e de maior complexidade, limitado em recursos humanos e vergonhosamente subfinanciado ao longo do tempo. A calamidade provocada pelo novo coronavírus não teria sido tamanha no Amazonas se o SUS de lá não fosse tão frágil.

Da mesma forma, será muito difícil para milhões de brasileiros escapar da pobreza se a educação pública não os tiver habilitado para ocupações de mais alta qualidade e remuneração.

A epidemia que expõe nossas mazelas sociais e os limites das políticas tradicionais de inclusão cria também a oportunidade de se avaliar em conjunto nosso sistema de proteção social. O desafio é fazê-lo com financiamento em bases sólidas. Como vem insistindo a pesquisadora Marta Arretche, da USP, no passado o país fez política social de inclusão mantendo um sistema regressivo de tributos. Hoje, não haverá avanço social possível se, ao mesmo tempo, não forem criadas formas mais progressivas de taxação.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Eduardo Rocha: Qual austeridade fiscal ou quem pagará a conta (3)?

Não há dúvida que aumentaram extraordinariamente as despesas públicas para fazer frente aos efeitos nefastos da pandemia da Covid-19, que fez diminuir a arrecadação de impostos por conta da paralisação econômica inédita. A Secretaria do Tesouro Nacional estima que o rombo nas contas públicas (União, estados, municípios e empresas estatais) deverá somar R$ 708,7 bilhões em 2020, ou 9,9% do Produto Interno Bruto (PIB). No caso do déficit nominal, que inclui os juros da dívida, deve chegar a R$ 1 trilhão e o PIB poderá ter uma queda histórica de até 10%.

A pandemia da Covid-19 aguçou, por conseguinte, o debate sobre como superar esse rombo, como garantir o futuro fiscal do Estado e qual o seu papel na retomada econômica. Para fazer frente a essas questões há o velho e batido discurso de austeridade fiscal feito pelo pensamento convencional que expressa política e intelectualmente os interesses dos grupos dominantes da economia e das finanças, cujo receituário é o liquidacionismo estatal nas esferas econômica e social.

Tal austeridade conservadora baseada nesse liquidacionismo consiste na privatização ampla, geral e irrestrita, na eliminação da regulação do Estado sobre o privado, na manutenção generosa dos privilégios fiscais (isenções, incentivos, subsídios etc.) a grupos dominantes e o corte glacial e impiedoso do gasto público nas áreas sociais sensíveis, perpetuando assim as desigualdades, injustiças e desequilíbrios regionais de desenvolvimento.

O maligno tem bela aparência. Em sua forma, a austeridade conservadora apresenta-se como o paraíso à maioria, mas, em sua essência, conserva os privilégios da minoria. Se os EUA dos anos 30 do século XX convocassem os espíritos do futuro para tirá-los da Grande Depressão e a história fosse tão malvada e enviasse o receituário de Paulo Guedes para salvar-lhes, a grande nação norte-americana não seria o que é hoje. Na história, há utopias que são verdades avançadas, mas há outras que são mentiras eternas.

O momento histórico da vida nacional está certamente cheia de riscos, mas oferece a grande oportunidade de se trabalhar dentro da própria crise para, desviando das areias movediças em que a sociedade atual corre o risco de afundar, transformar a natureza da austeridade fiscal numa outra orientação capaz de caminhar rumo à renovação da nossa República democrática.

Recuperação e sustentabilidade financeira do Estado diante das crises cíclicas inerentes ao capitalismo (cada vez mais integrado nas cadeias globais de valor) e da inédita crise causada pela COVID-19, demandam outra austeridade fiscal, de natureza democrática. É o que trataremos no próximo artigo.

*Eduardo Rocha é economista