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Vera Magalhães: Vacina em novembro

Erradicação da loucura que assola o mundo tem de começar pela eleição dos EUA

Parecia impossível que algum líder mundial fosse superar o festival de loucuras que Jair Bolsonaro protagonizou durante a pandemia do novo coronavírus, subindo em lombo de cavalo, promovendo aglomerações, indo a atos antidemocráticos, mostrando cloroquina para as emas, etc.

Mas aconteceu. Desde que foi diagnosticado com covid-19, na semana passada, Donald Trump deixou o pupilo brasileiro no chinelo em termos de impostura e inadequação não apenas ao cargo que ocupa e ao qual se agarra com unhas e dentes, mas também aos princípios básicos de civilidade e convívio público no curso de uma emergência sanitária.

O homem mais poderoso do planeta foi internado na sexta-feira com muitas dúvidas pairando quanto à data exata de seu diagnóstico, se ele promoveu eventos já sabendo que estava doente ou a gravidade do quadro antes e depois de ser hospitalizado.

À falta de transparência inimaginável para um País que se gaba de ser o berço e o guardião da democracia ocidental se somou a boçalidade desvairada.

Desesperado diante do revés da doença quando fazia questão de zombar dela, vender tratamentos mandrakes e defender e praticar comportamentos sociais irresponsáveis, Trump quis se mostrar forte.

Para isso, expôs assessores, seguranças e equipe do hospital a risco de contaminação. O carro em que ele fez o desfile patético é blindado inclusive para ataques químicos e biológicos, o que significa dizer que, se nada entra, tampouco sai. A carga viral de um presidente doente ficou toda concentrada no interior do carro, sujeitando os demais ocupantes a riscos.

A diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existem menos puxa-sacos e lambe-botas que aqui. E, quando um presidente se comporta como um moleque, há quem, mesmo entre os que o circundam, com coragem para dizer em voz alta. Foi o que fez o médico James Phillips, do hospital Walter Reed. “Eles podem ficar doentes. Eles podem morrer. Por teatro político”, atestou.

Lá como aqui este teatro que se prolonga já cobrou muito em termos de corrosão dos valores e dos marcos civilizatórios. Que um presidente decida se comportar como um bufão num debate e a comissão nacional encarregada de organizar tais eventos não deixe claro que isso não irá se repetir sob hipótese alguma é sinal de que Trump venceu mais um round e conseguiu enfraquecer mais uma estrutura que sustenta a democracia norte-americana – que, mesmo com todas as suas lacunas e falhas, é uma das mais estáveis do mundo.

Por tudo isso é vital a importância da eleição dos Estados Unidos, para o mundo e para o Brasil. A era de governantes fanfarrões calhou de coincidir com o maior flagelo humano, social e econômico que as atuais gerações – sejam as mais novas, sejam as que estão vendo antecipado seu tempo útil – irão conviver no curso de suas vidas.

A presença de figuras como Trump e Bolsonaro em postos de comando agrava exponencialmente os efeitos desse calvário. Mais de 200 mil mortos lá, quase 150 mil aqui e tanto um quanto outro seguem distraídos e distraindo os seus governados com factoides midiáticos. Lá a busca vale-tudo por uma reeleição cada vez mais difícil. Aqui a costura de terreno político com vista ao mesmo objetivo e para proteger a família presidencial, cada vez mais enredada numa trama que explicita o uso de dinheiro público de gabinetes para enriquecimento.

Não se sabe o mal que Trump ainda pode fazer, desde propagar o vírus para os que o cercam até colocar em dúvida a transição do poder caso se efetive a derrota que as pesquisas apontam. Mas é fácil analisar a importância que sua eventual saída de cena em novembro representará para começar a trazer de volta a racionalidade perdida à política brasileira. Que assim seja.


Vera Magalhães: Quando a Ciência grita

O que o recuo na propaganda do kit covid e contágio de Trump têm em comum?

A semana que passou teve dois duros golpes para aqueles que, no Brasil, usaram a pandemia de covid-19 para virarem mercadores de ideologia barata e sabotarem a resposta adequada nas áreas sanitária, médica, social e econômica. Não, ainda não se trata de responsabilização judicial, mas acredito que chegaremos lá.

As duas notícias não têm uma ligação direta, mas partem da mesma premissa: quando a Ciência grita, o negacionismo perde. A primeira é local. O Ministério da Saúde, embalado na confiança vinda da efetivação do diligente (para Bolsonaro, não para a Saúde) general Eduardo Pazuello no posto e da alta popularidade do presidente, preparou mais um desserviço à saúde pública, que deveria ter acontecido neste sábado.

Era um tal Dia D de defesa dos cuidados precoces com a covid-19, que nada mais seria que uma propaganda, pelos canais oficiais, do tal kit covid, composto por medicamentos sem eficácia comprovada, com efeitos adversos, que o restante do mundo já baniu e que aqui, sem ação nenhuma da Justiça diante de centenas de ações por crime de responsabilidade das autoridades federais, seguem sendo administrados a partir de um protocolo oficial.

A comunidade científica saiu do terreno das notas de repúdio e se organizou. Graças ao trabalho rápido do Instituto Questão de Ciência, comandado pela microbiologista Natália Pasternak, saiu do papel o Dia C de Ciência, reunindo cientistas e jornalistas na divulgação de dados e evidências sobre a covid-19, da prevenção ao tratamento, passando por vacina.

Nada menos que sete ex-ministros da Saúde, incluindo o bolsonarista Nelson Teich, participaram de um ciclo de mesas virtuais neste sábado cujo objetivo era desmascarar o obscurantismo do Ministério da Saúde.

A resposta foi tão efetiva, imediata e eloquente que a pasta de Pazuello recuou. O IQC acabou prestando um favor não só ao País, mas inclusive ao governo.

Isso porque, e aqui entramos no outro fato a que me referi no início deste texto, Donald Trump foi internado na sexta-feira com covid-19, e o rastreamento avança para mostrar um séquito de aliados, parentes e auxiliares do republicano também contaminados.

A internação de Trump veio num período bem especial: quando ele tinha acabado de criticar seu adversário, Joe Biden, no tenebroso debate de terçafeira, por usar máscara toda hora, e logo depois de ele promover um evento de campanha em que ninguém usava o equipamento de segurança e muitos caíram doentes.

Uma vez hospitalizado, vejam só, o “amigão” de Bolsonaro não está se tratando com cloroquina nem hidroxicloroquina, que desistiu de vender para os americanos e empurrou para os brasileiros.

Conclusão: quando a Ciência grita, seja na forma de eventos como o Dia C, seja na comprovação, na pele, de que desfilar sem máscara por ideologia burra é pedir para baixar o hospital, o negacionismo cai por terra.

Esta lição poderosa precisa e pode ser projetada para além do enfrentamento da pandemia e chegar às discussões sobre a tal frente ampla para combater o retrocesso bolsonarista.

O caminho é tirar o comando da mão de partidos e políticos e passálo a cientistas, acadêmicos e representantes da sociedade civil. Com ações práticas como a do IQC, dados e evidências, e coordenação com iniciativas judiciais contra os que causam prejuízos para o País.

Vale para a reação à hecatombe ambiental da dupla Bolsonaro-Ricardo Salles, para o aparelhamento do Estado e da Polícia Federal e o desvio de recursos públicos para igrejas evangélicas para fortalecer o projeto reeleitoral do presidente. Menos nota de repúdio e vetos a nomes inimigos e mais ação. Este é o caminho.


Vera Magalhães: A nova política caducou

Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados

A tira que ilustra esta coluna, do talentoso quadrinista brasileiro Pietro Soldi, é a mais perfeita tradução do que a autodenominada “nova política”, que nunca teve nada de novo e em menos de dois anos se encontra em avançado estado de necrose, legou ao País.

Brasileiros de Norte a Sul elegeram para o Executivo e o Legislativo vários espécimes de jumentos vendados, achando que revolucionariam a forma de fazer política. Mas o resultado é que estamos ensopados de café quente e sem muito sinal de que vamos conseguir reerguer a mesa que tombou e colar a louça que foi feita em cacos.

Olhemos a situação do Rio de Janeiro e de Santa Catarina. O primeiro vinha de uma sucessão de larápios que só não roubaram as pedras do calçadão de Copacabana. O segundo tinha alguns dos melhores indicadores econômicos do País e saúde fiscal relativamente boa.

Mas os eleitores dos dois Estados acharam por bem eleger completos desconhecidos, que entraram na política pela porta fácil do discurso anticorrupção, atrelados ao bolsonarismo e surfando na onda lavajatista.

Resultado: menos de dois anos depois, Wilson Witzel, cujo nome 90% dos fluminenses não sabiam nem pronunciar quando nele votaram, e Carlos Moisés, cuja foto até hoje eu não saberia reconhecer, estão a caminho do impeachment.

De Bolsonaro não é preciso falar. Já mencionei seu discurso na ONU, mais uma exibição que não deixou nada a dever à tirinha do Pietro.

E nos Parlamentos e na vida partidária, qual o saldo da tal nova política? Não muito superior. Há, sim, excelentes novos parlamentares, da esquerda à direita.

Os movimentos não partidários, como Agora, Livres, Renova BR e Acredito, aliás, contribuíram de forma mais significativa para isso que os partidos, pois enfrentaram a necessidade de formação desses jovens líderes.

Quanto às siglas, seguem perdidas na geleia geral ideológica e programática, inclusive as novas. Basta ver o episódio Novo versus Filipe Sabará. O candidato passou no tal processo seletivo, mas em seguida seu currículo acadêmico foi desmentido, se descobriu uma diferença de nada menos que R$ 3.985.000 em sua declaração de bens, e o barraco começou. Diante de tantas inconsistências, Sabará recorreu à seguinte explicação: a “ala esquerdista” (!) do Novo, representada por João Amoêdo (!!), o estaria perseguindo. Seria até engraçado, se não fosse patético. Dá-lhe coice com olhos vendados!

A divisão interna do Novo é mais um sinal claro de que não se mudam as práticas políticas apenas com slogans, sapatênis e ideias naive – como a de que não usar Fundo Partidário é sinal de virtude por si só.

Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados e de que legisladores têm mais a fazer que filminhos ridículos no TikTok ou Instagram.

Que 2020 comece a corrigir 2018 e que tiremos a venda do jumento e elejamos bons políticos para fazer política. Olha só que ideia disruptiva!


Vera Magalhães: O início, o fim e o meio

Retomada desordenada tornou decisão sobre volta às aulas mais complexa

Passados seis meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil, duas são as principais questões a mobilizar a sociedade, os governantes e os especialistas. A primeira é quando e de onde virá a vacina, e com que eficácia. A segunda, anterior, é: quando voltarão as aulas presenciais?

O Brasil é um dos países do mundo a ter ficado mais tempo com as escolas fechadas, mais uma consequência da quarentena meia boca, da falta de coordenação política para o enfrentamento da covid-19 e da retomada atendendo a pressões políticas, e não prioridades sociais ou recomendações da ciência.

As escolas fecharam já em março e houve uma imensa heterogeneidade na adoção do ensino à distância. Escolas particulares, sobretudo nos grandes centros, rapidamente passaram a utilizar ferramentas da tecnologia para chegar aos alunos confinados.

A velocidade, sabemos, não foi a mesma, nem os recursos tão abundantes, nas redes públicas e nos rincões. Os resultados serão sentidos nos anos vindouros, na forma de mais desigualdade na qualidade do ensino.

Meio ano depois, a constatação de que a perda em termos educacionais e o prejuízo emocional e social para crianças, adolescentes e universitários é imensurável e a necessidade econômica e familiar de que a rotina seja retomada afligem gestores públicos, pais, professores e profissionais da área médica e sanitária.

Isso porque a ordem dos fatores, no caso da retomada de uma pandemia, altera, e muito, o produto. Como na letra de Gita, de Raul Seixas, começamos pelo começo (a quarentena necessária), mas aí invertemos o meio (a imprescindível redução da curva de contágio) e o fim (a retomada das atividades).

E mais: além de atropelar o meio, ainda passamos à frente na fila as atividades em que os lobbies econômicos gritaram mais alto, e a volta às aulas foi ficando para trás.

E agora se formou um nó górdio: ausência de coordenação para estabelecer protocolos seguros, falta de estrutura das redes públicas para fornecer condições de higienização e distanciamento para o escalonamento de retorno dos alunos, resistência em grande ponto justificada de professores, insegurança dos pais e o medo dos prefeitos de a conta de uma eventual explosão do número de casos estourar no seu colo bem no período eleitoral.

Como se sai de um nó desse, uma vez que a vacina ainda é uma promessa distante e os prejuízos para todos vão cobrando uma conta mais pesada? De novo, é necessária coordenação nacional. Não basta Jair Bolsonaro agir como sempre como um irresponsável de arquibancada, como se não fosse ele o presidente, e ficar cornetando que as escolas não deveriam ter fechado, e que as quer abertas juntamente com os estádios.

O MEC, que nada fez de útil na pandemia toda, e o Ministério da Saúde, cujo titular acaba de passar no estágio probatório de seis meses, precisam chamar gestores municipais e definir requisitos para abrir as escolas: qual a curva de transmissão aceitável para isso? Com que porcentual de alunos elas serão reabertas? O que as escolas têm de providenciar em termos de insumo e instalações para o retorno? Como serão conciliadas as aulas presenciais e remotas? Qual a rotina de testagens para professores? Qual a estratégia de rastreamento rápido de casos por região para fechar as escolas caso comece a haver sinais de escalada de contágio?

Sem responder a essas perguntas básicas, para as quais a própria pandemia já forneceu expertise e dados acumulados, e que já deveriam estar no horizonte muito antes de qualquer retomada, ficar estabelecendo datas aleatórias de retorno segundo a conveniência do calendário eleitoral é cinismo travestido de gestão. Os estudantes são as grandes vítimas pelo fato de os adultos terem pulado a lição de casa.


Vera Magalhães: Segundo cartão amarelo

Guedes diz que cartão vermelho não foi para ele, mas está ‘pendurado’

Se o governo Jair Bolsonaro fosse uma partida de futebol seria uma pelada de várzea. Dito isso, vamos explorar a metáfora futebolística (nem para isso a imaginação pobre desse presidente incidental consegue superar o lulismo que disse que iria sepultar) usada pelo presidente.

Bolsonaro mais uma vez preferiu causar nas redes a governar. Em vez de reunir Paulo Guedes e seus subordinados na equipe econômica, cobrar um posicionamento a respeito dos estudos para o Renda Brasil, dizer o que aceita e o que não permite, pedir prazos e metas, algo que seria o mínimo que qualquer gestor com noção do próprio trabalho faria, Bolsonaro resolveu gravar um vídeo, uma das poucas coisas que sabe fazer (e ainda assim com a ajuda do filho 02, Carluxo, ou algum assessor do gabinete do ódio).

Estava na versão pistola, não naquele simulacro de paz e amor que andou encenando nos últimos tempos. Disse que não aceitava tirar dinheiro dos paupérrimos para dar aos pobres, que não permitiria a crueldade de se congelar pensões e aposentadorias e que se alguém insistisse nisso levaria um cartão vermelho.

Capitão do time da equipe econômica – que Bolsonaro fez questão de escalar como uma espécie de adversário do que chamou de “governo”, e não integrantes do mesmo escrete –, Paulo Guedes fez que não era com ele para não levar o tal cartão.

Só não se deu conta de que o expediente é inútil, o enfraquece ainda mais e tira dele a aura de craque que tinha na fase de preparação do campeonato, antes de começar essa pelada de quinta categoria que é este governo. Se não levou vermelho, ainda, Guedes já acumula dois amarelos em pouco tempo do árbitro Bolsonaro, e não adianta pedir VAR (com a escusa do meu amigo Octávio Guedes para fazer menção à sua comparação de ontem na TV).

O primeiro amarelo veio quando Bolsonaro mandou Guedes refazer o projeto do natimorto Renda Brasil. O fez em público, com direito a humilhação. O ex-posto Ipiranga pediu desculpa e seguiu o jogo. Agora o presidente deu um passa-moleque no antes intocável ministro da Economia e pareceu pouco ligar se ele achasse isso intolerável e pedisse demissão.

Só que Guedes tolerou mais essa. E por ora vai ficando. Em nome de quê, ambicionando exatamente o quê e com qual expectativa é impossível dizer. Num misto de atordoamento e ingenuidade, o ministro prefere negar a realidade posta diante de seu nariz, de que está sendo submetido pelo “capitão” (aqui não do time, mas reformado e expulso do Exército) ao mesmo corredor polonês em que foram colocados nomes como Gustavo Bebianno, Osmar Terra (que vergou e continua lá, puxando o saco), Onyx Lorenzoni (idem), general Santos Cruz, Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta e até o puxa-saco mor e clown do bolsonarismo Abraham Weintraub.

Não há gratidão, empatia, modéstia de reconhecer que não entende do assunto das pastas e delegar aos especialistas, planejamento, educação, bom senso ou sequer estratégia na maneira como Bolsonaro lida com pessoas. E aqui entra qualquer pessoa que não seja do seu sangue (mulheres vêm e vão, e estão sujeitas ao mesmo pelourinho, vide o que ocorreu quando ele pôs o filho Carlos, aos 17 anos, para derrotar a mãe, Rogéria).

Guedes só era imprescindível para Bolsonaro para vencer a eleição. Foi o cavalo de Troia no qual os corporativistas, rachadeiros, milicianos, reacionários e despreparados Bolsonaro et caterva entraram para adentrar a cidadela do mercado e do eleitor com “nojinho” do PT.

Cruzado o portão, a prioridade é se manter lá dentro. Se Guedes passa a ser visto como estorvo para isso, que queime na fogueira em que já arderam as reputações dos citados acima. Cartão vermelho para ele, sem choro nem vela.


Vera Magalhães: Mudaram as estações

Bolsonaro pode viver, em plena campanha eleitoral, a ‘ressaca’ do auxílio

O presidente Jair Bolsonaro viveu nos dois últimos meses uma espécie de “primavera” antecipada num ano para lá de tumultuado – em grande parte, graças a ele próprio, como gosto sempre de frisar.

O pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 (com exceções que faziam com que pudesse chegar ao dobro) ao longo de cinco meses foi um antídoto à queda de popularidade recorde que ele experimentara graças à pandemia e aos descalabros que cometeu em seu curso. Como a economia é, sempre, o vetor principal para que a população avalie o governante, antes e agora, aqui e alhures, Bolsonaro colheu os frutos de um dinheiro direto na mão de quem mais precisava, que evitou um colapso econômico e social ainda maior do que poderia ter sido ocasionado pela pandemia.

Medida correta, inevitável e, é sempre bom lembrar, fruto em grande parte da decisão do Congresso de contrariar o valor de R$ 200 inicialmente proposto pelo governo. Houve um “leilão” com ganho para os mais desassistidos no qual os parlamentares propuseram R$ 500 e Paulo Guedes arrematou com R$ 600.

Mas sempre se soube que o benefício era temporário e que, principalmente, o valor, polpudo em comparação com os outros benefícios sociais perenes, como o Bolsa Família, que atinge 13,9 milhões de pessoas com valores que variam pela composição familiar, mas não passam de R$ 205, era impraticável no médio prazo.

O dia chegou. O novo valor do auxílio, de R$ 300, começa a ser pago nesta semana. Pesquisa do instituto Ideia Big Data para a revista Exame mostrou que 53% da população ficou descontente com o novo valor. A despeito de grande parte dos entrevistados saber que o benefício era temporário, como seu nome já diz, haverá efeitos muito concretos na vida das pessoas.

Dados da Pnad covid, do IBGE, mostram que até julho 30 milhões de lares, ou 44% do total do Brasil, receberam alguma parcela do auxílio. É uma enormidade, representa em muitas cidades um motor importante da economia e, para muitas famílias, a fonte única de renda.

A redução da renda direta em circulação coincide com um momento de pico da inflação de alimentos. Não é outra a razão da insistência de Bolsonaro nos preços dos supermercados: ele sabe que a combinação de pessoas com menos dinheiro e comida mais cara pode rapidamente corroer a popularidade.

Além disso, o fim do amortecedor dos efeitos da pandemia vai deixar mais claro o estrago que foi feito na economia pelo coronavírus. Daí por que o presidente e seus aliados tenham voltado a martelar todo dia que a culpa pela queda do PIB e do desemprego é dos governadores, ou dos que pregaram o isolamento social e o fechamento dos estabelecimentos como medida de proteção a vidas e para evitar o colapso do sistema de saúde.

Trata-se, como sempre, de narrativa além de falsa criminosa, ilustrativa da completa incapacidade de Bolsonaro de governar numa crise (ou em qualquer situação). Mas, como sempre, essa irresponsabilidade encontra eco nos ouvidos de setores de uma sociedade traumatizada por meses de restrições em todos os campos da vida.

As pesquisas mostram um esgotamento do combustível do auxílio na popularidade do presidente. As curvas de quem o considera ótimo e bom e ruim e péssimo convergiram e hoje estão praticamente empatadas, em patamares que vão de 35% a 40%, a depender do instituto.

Com o auxílio reduzido à metade, haverá forçosamente um novo movimento dessas curvas. Como Bolsonaro é pautado exclusivamente por popularidade, vem aí uma estação de decisões atabalhoadas, atropelando a Economia, a Saúde e qualquer área da administração que ele veja como empecilho. No calendário bolsonarista, depois da primavera pode vir o outono.


Vera Magalhães: Olhando a banda passar

Pandemia segue matando, Bolsonaro se recupera, mas tema da esquerda é stalinismo

Já são mais de 127 mil os brasileiros mortos pela covid-19. Diante desse número, assim como dos que o antecederam, Jair Bolsonaro segue em sua jornada negacionista. O mais recente ataque ao bom senso se dá em declarações diárias semeando desconfiança na população quanto à necessidade e a segurança da vacinação em massa.

Enquanto isso, num planeta muito distante em que vive uma parcela da esquerda brasileira, a discussão do momento se dá entre os que defendem que o stalinismo nem foi tão nefasto assim e os que lembram o genocídio promovido por Stalin na União Soviética no século passado.

A banda de Bolsonaro passa na janela e nossa gente sofrida para tudo para discutir o passado distante.

Isso não é um fenômeno isolado, um lapso de um feriado prolongado. Tem sido uma constante desde antes da eleição do capitão e segue de forma sistemática e espantosa a cada avanço do presidente contra as liberdades, a ciência, o bom senso, as instituições e o que mais ele tiver pela frente para destruir.

E agora, quando ele se recupera nas pesquisas, ou lá na frente, quando e se chegar competitivo a 2022, a “culpa” certamente terá sido da imprensa, que “normalizou” (bocejos) Bolsonaro, e não dos adversários que não entenderam absolutamente nada do modus operandi do bolsonarismo.

A imprensa sempre denunciou que Bolsonaro era misógino, machista, homofóbico, que louvava a ditadura e aplaudia a tortura. Fez isso de forma repetitiva na campanha. E as pessoas votaram em Bolsonaro apesar ou até por causa disso, a verdade é essa.

A imprensa denuncia os abusos de Bolsonaro diariamente. É vítima preferencial deles. E a banda segue, cantando coisas de amor e fazendo populismo fiscal e político.

Não existe nenhuma organização, da centro direita à esquerda, para desmontar o discurso de Bolsonaro, oferecer alternativas a ele e, principalmente, responsabilizá-lo pela forma como sabota o enfrentamento da pandemia no Brasil.

Agora são os stalinistas do Twitter, mas já tivemos dezenas de discussões igualmente estéreis, que servem para distrair as Carolinas na janela enquanto o tempo e a banda passam.

E parcela considerável da chamada intelligentsia brasileira contribui para a distração. Há algumas semanas, uma intelectual brasileira cuja obra de denúncia do racismo e de defesa da igualdade de raças é incontroversa, Lilia Schwarcz, foi submetida ao tribunal das redes sociais por ter emitido uma opinião crítica a um filme da cantora norte-americana Beyoncé.

Em que isso ajuda na discussão sobre racismo e representatividade no Brasil ou, no sentido mais amplo, na articulação das forças ditas progressistas para se contrapor a Bolsonaro e a seu desmonte das políticas de reparação, por exemplo? Em absolutamente nada. Mas consumiu horas a fio de algumas das principais vozes da oposição e levou a historiadora a ter de se retratar uma, duas, três vezes até receber um desconfiado salvo-conduto para poder voltar a falar. Isso é absolutamente irrazoável e é a chave da nossa tragédia.

O Pantanal queima há semanas, fornecendo imagens cada vez mais tristes de morte de animais e desespero de populações locais, mas estamos sendo distraídos pelo secretário de Cultura, um dublê de canastrão de seriado adolescente dos anos 1990 e bolsominion. É uma armadilha à qual todos nós, jornalistas incluídos, são atraídos diariamente.

Enquanto as opções forem escolher o genocida mais limpinho, ou entre o pronunciamento de Bolsonaro ou Lula no Sete de Setembro, não sairemos da espiral de morte, destruição civilizatória e declínio científico, educacional, cultural e econômico em que estamos enfiados. Olhando a banda passar e esquecidos da vida.


Vera Magalhães: Patriotismo de fancaria

Bolsonaro transforma discurso de amor à Pátria em culto à personalidade

“Patriotismo significa apoiar o País. Não significa apoiar o presidente.” Diferentemente de outras frases citadas com frequência e falsamente atribuídas a pensadores, esta foi de fato escrita por Theodore Roosevelt, 26º presidente norte-americano (republicano), num ensaio de 1918 em que falava sobre Abraham Lincoln e a liberdade de expressão.

Trago a citação a este texto na véspera do Sete de Setembro, feriado nacional que será desculpa para mais um show de uso de fancaria do termo por parte de Jair Bolsonaro e seus seguidores, num truque comum a regimes de corte nacional-populista e do qual o presidente brasileiro lança mão desde que deixou o Exército pela porta dos fundos para entrar na política pela mesma via.

O sequestro do patriotismo permite ao “capitão” desde desqualificar qualquer opositor como sendo inimigo do Brasil até cunhar frases absurdas como a de que donos de supermercados deveriam demonstrar seu amor à Pátria baixando o preço dos produtos.

É essa apropriação indébita que faz com que o discurso propagandista vendido pela Secom, transformada por Bolsonaro num Ministério da Propaganda, eleja aproveitadores como “heróis” e venda uma narrativa parcial como sendo a História do Brasil.

“Nosso presente está repleto de passado”, disse a historiadora e antropóloga Lília Moritz Schwarcz ao ser questionada por mim sobre o uso torpe do patriotismo como muleta por governantes durante o Roda Viva especial da Independência do Brasil que será exibido nesta segunda-feira.

O recurso a um passado falsamente idealizado não é um expediente original do bolsonarismo. Ele é uma das ferramentas básicas por meio das quais regimes e líderes políticos autoritários constroem a mística em torno de si.

No caso do atual ocupante da Presidência do Brasil, essa narrativa inventada inclui dizer que nossa ditadura militar foi um período “mal interpretado”, como o próprio Bolsonaro fez questão de dizer para um incrédulo Al Gore nos corredores do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em 2019.

Dentro dessa falsificação, criminosos sanguinários como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra são metamorfoseados em heróis.

O mau uso do patriotismo – um conceito que, em vez de ajudar a clarear, os setores “progressistas” da sociedade preferem olhar com soberba, nojinho ou enfado – faz com que mentiras como as cunhadas por Bolsonaro para se eleger, para atentar contra as instituições e para boicotar o combate à pandemia se legitimem junto a uma larga faixa do eleitorado.

Patriotismo nada tem a ver com a versão revisitada dos “fiscais do Sarney” que Bolsonaro evocou na sua última viagem de campanha antecipada sem agenda alguma. Uma visão de amor à Pátria por parte do presidente o levaria, por exemplo, a defender a vacinação em massa e obrigatória para seu povo como um direito de todos e um dever do governo, e não uma “imposição indevida”, como fez em mais uma fala criminosa em que usurpou conceitos, dessa vez o de liberalismo, que ele desconhece completamente.

Inebriado por uma circunstancial melhora de sua popularidade à custa de mais uma ilusão, a de que de repente passou a se preocupar com os pobres graças ao auxílio emergencial, Bolsonaro vestiu o figurino populista e com ele acha que poderá escapar ileso da gestão desastrosa em áreas essenciais, como o combate à pandemia e a política ambiental, e das investidas sistemáticas que fez contra a democracia.

É preciso que os verdadeiros patriotas, aqueles que não usam a Bandeira do Brasil como abadá, pensem em feriados como o de amanhã como um momento de reflexão a respeito desse presente cheio de um passado do qual a História sem narrativa não permite sentir saudades nem orgulho.


Vera Magalhães: Bolsonaro ‘antivax’?

Discurso relativizando a necessidade da vacina é exótico até para o padrão bolsonarista

Virou lugar-comum, a cada nova excrescência dita ou praticada por Jair Bolsonaro, se dizer, em análises nos jornais ou nas redes sociais, que aquilo causa surpresa em “zero pessoas”. E é verdade, geralmente. Mas a recente e disparatada declaração do presidente de que ninguém pode obrigar ninguém a se vacinar é exótica até para os padrões bastante elásticos dos absurdos bolsonaristas.

Primeiro porque, como tratou de mostrar prontamente a imprensa, não é verdade que se vacinar ou não seja uma escolha individual.

Trata-se de uma questão de saúde pública e, como tal, passível, sim, de ser definida em lei. Tanto é assim que o próprio Bolsonaro sancionou em fevereiro uma lei que permite tornar compulsória a vacinação para covid-19 como forma de enfrentamento da pandemia.

O segundo motivo pelo qual é estapafúrdia a declaração – depois repetida com orgulho servil e propagandístico pelos canais da Secom – é econômico.

O mesmo governante que passou meses boicotando o distanciamento social e demais medidas protetivas, atitude que agravou em muito o combate ao novo coronavírus, porque isso significaria parar a economia, ignora o fato de que a única maneira de retomar as atividades completamente é vacinar mais de 70% da população e garantir a tão sonhada imunidade coletiva.

Disso dependerá a retomada da economia, que no segundo trimestre teve um tombo de 9,7%, acima do vendido pelo discurso poliana do governo. Não adianta fazer a picaretagem de tentar espetar essa conta nos governadores enquanto o presidente segue omisso, quando não jogando contra.

Brasileiros só poderão voltar a viajar para fora quando imunizados, porque hoje o consenso mundial é de que somos um celeiro de proliferação de Sars-Cov-2 descontrolado. Porque é isso que ainda somos, ainda que os números mostrem um lento e gradual recuo do contágio nas últimas semanas.

Do ponto de vista de explicação dos gastos públicos a frase de Bolsonaro é um acinte. Afinal, como ele mesmo disse na mesma frase (!) o governo está investindo bilhões na pesquisa e em parcerias para a produção da vacina. A afirmação do capitão significa dizer que está jogando dinheiro pela janela?

Isso além de tudo que foi gasto em auxílio emergencial, socorro aos Estados, etc. Só uma imunização massiva, com empenho total do governo federal para viabilizar a complexa logística para sua distribuição (aí sim, quem sabe, o general Pazuello mostre a que veio), vai garantir que se possa fechar a torneira de gastos extraordinários dos já depauperados cofres públicos.

Até tentar entender a declaração “antivax” do presidente no contexto da narrativa ideológica sem pé nem cabeça do bolsonarismo é difícil. Como alguém que faz campanha todo dia para medicamentos ineficazes para a covid-19 não conclama todos os cidadãos a se vacinarem? É consenso de médicos e pesquisadores que este é o único caminho garantido para a imunização segura contra um vírus que já ceifou mais de 120 mil vidas no País. Bolsonaro segue sua marcha da insensatez e da irresponsabilidade amparado na crença de que o respiro de popularidade obtido pelo auxílio emergencial que começa a minguar vai salvá-lo do escrutínio da História (e das urnas).

Só que a conta de algo da magnitude do que estamos vivendo chega mais cedo ou mais tarde, a despeito de qualquer estelionato narrativo. Ela já está aí, no número obsceno de mortos, na tragédia social, em traumas pessoais e geracionais, atraso educacional e recessão econômica.

Mas num país em que a população é induzida por falsários a duvidar até de registros fotográficos em nome da ideologia idiotizante, não admira que o presidente se sinta endossado para relativizar até a necessidade, sim, de todos se vacinarem.


Vera Magalhães: Corrida da toga

Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal

Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.

Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.

Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.

O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.

Aras deu parecer contrário a buscas e apreensões contra bolsonaristas no inquérito do STF. Agora, no caso Wilson Witzel, o Ministério Público Federal pediu o afastamento de um governador e ele foi acatado por um ministro do STJ de forma monocrática.

Qual a linha da PGR? Depende da circunstância e do alvo?

O próprio STJ, aliás, virou palco auxiliar da corrida pela vaga no tribunal mais prestigiado. Basta lembrar do “canto do cisne” de João Otavio de Noronha na presidência da Corte: mandar Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar por uma liminar no meio do recesso. Noronha é outro que tem a expectativa de ser agraciado por Bolsonaro.

Mais próximo do presidente está o ministro da Justiça, André Mendonça, que se transformou em tudo aquilo que Bolsonaro queria que Sérgio Moro fosse, mas o ex-juiz não quis.

A Advocacia-Geral da União, que ele chefiava antes, continua sendo uma subsidiária de sua linha de trabalho, e a pasta da Justiça virou um misto de advocacia particular do presidente e agência de espionagem de seus inimigos, em procedimento para o qual a maioria dos ministros do STF passou uma reprimenda, mas aliviou a barra do postulante a colega.

E aí há um aspecto importante: os 11 ministros do Supremo têm dado sinais ambíguos quanto à defesa da institucionalidade e aos freios necessários aos demais Poderes e a outros órgãos do sistema de Justiça.

Contêm o presidente, mas usam expedientes no mínimo duvidosos para isso. Repreendem os excessos da Lava Jato, mas seguem tomando decisões monocráticas que chocam a sociedade porque vão na contramão do esperado combate à impunidade. Defendem a liberdade de imprensa, mas abrem um precedente ao evocar a Lei de Segurança Nacional para punir ativistas – dando a senha para Mendonça fazer o mesmo com um jornalista.

O grau de degradação de todas as instâncias da vida nacional que Bolsonaro produziu com sua Presidência tóxica em um ano e 8 meses dará trabalho de corrigir. O sistema de Justiça não passará incólume a essa deliberada estratégia de destruição. Sob a complacência, quando não participação ativa, de muitos dos seus atores.


Vera Magalhães: Governador do Rio colapsou com a mesma rapidez que surgiu

Wilson Witzel é um fenômeno sui generis na política brasileira, que vem acumulando espécimes desta natureza desde 2018. Na campanha ao governo do Rio, era um ex-juiz desconhecido, algo caricato, de um partido nanico, figurante. Foi então que colou sua imagem à de Jair Bolsonaro, tentou surfar na então maré influente de juízes valentões, participou do gesto de rasgar a placa de Marielle Franco e enfrentou Eduardo Paes num debate.

Foi esse o “currículo” que levou o desconhecido cujo nome ninguém sabia pronunciar direito à vitória no terceiro maior Estado da Federação já encalacrado, com dois ex-governadores (Sérgio Cabral e até então também Luiz Fernando Pezão) na prisão, outros três (casal Garotinho e Moreira Franco) tendo feito escalas por lá, absolutamente quebrado do ponto de vista fiscal e econômico, fraturado socialmente, dominado pela violência, loteado entre tráfico e milícia.

Não que houvesse grandes opções. O adversário favorito era Eduardo Paes, que, embora não tenha sido engolfado pelo escândalo de Cabral diretamente, foi aliado do exgovernador o tempo todo de seus dois mandatos na prefeitura. Na capital do Rio o comandante é o bispo Marcelo Crivella, que transformou a cidade num experimento de política neopentecostal, levado adiante mesmo no enfrentamento da pandemia.

Alarmante é pouco para descrever a situação em que se encontra o Rio. A magnitude e a extensão da operação que afastou Witzel do cargo, prendeu políticos proeminentes, como Pastor Everaldo, e mostrou um esquema seriíssimo de fraude na Saúde em plena pandemia mostra um Estado carcomido por sucessivos grupos políticos que viram nele apenas uma casa a ser saqueada até não sobrarem nem as vigas.

Witzel não tinha projeto, não tinha noção de administração pública, não tinha partido e não tinha, agora vê-se, boas intenções. Desde o dia 1 no cargo se alternou entre declarações e ações midiáticas, brigas com Bolsonaro e encrencas com a Assembleia. A briga com o presidente e espelho político se mostrou seu maior erro, ocasionado pela ilusão de que poderia ser candidato a presidente.

Governador acidental, Witzel parece ter acreditado que era um ungido para voos maiores. A queda tão rápida quanto a ascensão ao menos corta na raiz uma carreira política de que Rio e Brasil não precisavam. E assim como ele está cheio de arrivista por aí, nos Executivos e Legislativos.


Vera Magalhães: Perdemos o trem

Documentário ‘O Fórum’ mostra Brasil deslocado do resto do mundo

O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.

Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.

O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.

A equipe do premiado diretor alemão Marcus Vetter teve acesso pleno a reuniões preparatórias de Klaus Schwab, fundador e figura central do Fórum, com sua equipe, empresários, ativistas para as duas edições que o filme retrata. Também acompanhou os bastidores, as conversas informais e as iniciativas que acontecem off-Davos, a partir do que é tratado ali.

Schwab tenta fugir de todas as formas do mico de ter de moderar o painel com Bolsonaro. Tenta passar o fardo para o presidente mundial da Nestlé, que declina gentilmente. Sua preocupação com a chegada do presidente brasileiro é mostrada em detalhes. Até que, já nos 15 minutos finais do filme, Bolsonaro entra em cena. Seu bizarro discurso de dois minutos na abertura do evento é mostrado na íntegra, com cenas intercaladas da plateia atônita e o filho 03, Eduardo, filmando tudo com cara de “meu paipai” na primeira fila.

A cena da conversa com Gore dá ainda mais vergonha quando mostrada sem cortes. Bolsonaro está na sala de café absolutamente deslocado, acompanhado apenas de Ernesto Araújo. Na conversa com Gore, além de tratar Alfredo Sirkis como seu “inimigo na luta armada”, uma mentira completa e desnecessária, ainda termina o breve e desastrado encontro dizendo que sabe quem o ex-vice-presidente norte-americano é, e não o tem como inimigo.

Em seguida Bolsonaro é abordado por Jennifer Morgan, diretora-executiva global do Greenpeace, que diz que ficou satisfeita em ouvir seu compromisso com a preservação da Amazônia. Bolsonaro não a olha nos olhos, não responde e diz só um “thank you” enfezado ao final. Em seguida, ela tira sarro com uma colega ativista por ter conversado com o presidente brasileiro, e a interlocutora ri de sua “coragem”.

É esta a imagem do Brasil que emerge de um filme que mostra ainda outros líderes mundiais em ação para mitigar os efeitos crise ambiental no mundo. “Pronta?”, pergunta Schwab a Angela Merkel. “Estou sempre pronta”, responde ela, sem a enorme entourage do presidente brasileiro (outro motivo de chacota dos organizadores).

O documentário deixa claro que as discussões sobre mudança de mentalidade de nações e empresas em relação ao meio ambiente não são acessórias, mas essenciais. Isso era verdade no pré-pandemia e será no pós. O Brasil não está no mesmo vagão de todos os demais tomadores de decisões, inclusive os investidores. Passamos vergonha e ficamos perdidos na estação junto com Bolsonaro.