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Vera Magalhães: Há espaço contra polarização Bolsonaro-PT

O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo

Existe a máxima segundo a qual eleições municipais levam em conta apenas fatores diretamente ligados aos municípios. É verdade. Mas também é impossível, sobretudo nos grandes centros urbanos, dissociar esse voto de algumas balizas nacionais.

A primeira delas neste 2020 é a pandemia. Ela não só mudou a maneira como se fez campanha como moldou a disposição do eleitor de encarar os candidatos de forma mais racional e desapaixonada. Os gestores que demonstraram responsabilidade no trato da pandemia foram reconhecidos pelo eleitor.

A segunda grande conclusão possível é que houve um resgate da política do pântano no qual ela foi jogada depois de eventos traumáticos como Lava Jato, impeachment de Dilma Rousseff, prisão de Lula, desmoralização de Aécio Neves e denúncias em série contra Michel Temer no curso de sua curta Presidência.

Esse conjunto surreal de eventos, em menos de quatro anos, permitiu que um outsider como Jair Bolsonaro virasse um Cacareco com sucesso eleitoral.

A pandemia, a maneira irresponsável com que Bolsonaro se comportou ao longo do ano e a rápida debacle de outras figuras histriônicas eleitas na sua aba levaram a que agora, apenas dois anos depois, a “nova” política fosse devolvida às redes sociais.

A terceira conclusão é o surgimento de uma nova esquerda não petista com musculatura em todo o País. PSOL, PDT, PSB e até o PC do B, com histórico de ser um satélite petista, vão avançando em várias capitais, ao passo que o PT tem a cabeça de chapa em apenas duas disputas de segundo turno – sem ser favorito em nenhuma delas.

O partido segue negando as evidências: o fato de que não fez nenhum gesto sincero e efetivo de reconhecimento de que promoveu corrupção sistêmica no governo, ao mesmo tempo em que destruiu a economia.

Por fim, a eleição mostra um espaço de reconstituição do centro, também ele dizimado em 2018. A abrangência desse centro, suas delimitações à esquerda e à direita e quem será aceito na festa do céu são questões postas desde já. O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo.


Vera Magalhães: Reocupar o centro

Mesmo premida pela pandemia, eleição 2020 pode ser início do resgate da política

Foi só na semana passada que as pessoas parecem ter acordado para o fato de que hoje tem eleição. Nos últimos dias, três debates tiraram a campanha de São Paulo da clandestinidade imposta pela pandemia e pela omissão de quem a usou como desculpa para se esquivar do seu dever de promover a discussão como combustível da democracia.

O que esses debates e as pesquisas mostraram é que, mesmo driblando as restrições do ano do vírus e privado de informações, o eleitor parece ter chegado à conclusão de que é preciso votar com a cabeça, e não com o fígado ou com o coração. As disputas municipais vão resgatando a política, feita de bode expiatório em 2018, e escanteando a nova política estridente e feita de lacração nas redes sociais.

Com o pesadelo que é aguentar Jair Bolsonaro e sua Presidência buliçosa todos os dias há quase dois anos, depois de dois governadores eleitos na sua aba defenestrados, seu partido implodido e seus náufragos boiando dispersos por legendas amorfas, parcela significativa do eleitorado que votou nele (porque votaria até no demônio para não votar no PT) parece ter acordado do transe psicótico.

No outro lado, também sumiu da praça o eleitor negacionista dos descalabros do PT, aquele que fez ouvidos moucos para uma série de revelações baseadas em fatos e provas que mostravam que houve um assalto sistemático ao Orçamento público e ao patrimônio de estatais como forma de perpetuar um projeto de poder.

Isso era razão para se eleger um deputado ligado a milícias, com a família inteira empregada na política e se locupletando dela na forma de desvio de recursos de gabinetes para engordar patrimônio, defensor de tortura, assassinato de Estado, apologista do estupro e da homofobia? Certamente não. Portanto podem guardar o blablablá da falta de simetria porque não é disso que eu falo.

Justamente porque os ventos da política sopram rápido, a rápida corrosão da imagem fake do justiceiro minou as chances de simulacros de Bolsonaro de Norte a Sul do País. O presidente, ainda enebriado por aquela popularidade transitória do auxílio emergencial no meio do ano, achou que seria bom cabo eleitoral e se jogou no palanque.

Não satisfeito em conspurcar todas as instituições em 23 meses, enfiou mais o pé na jaca ao fazer lives diárias para promover seus candidatos. O resultado? Esses e os que levaram o capitão à TV viram suas chances minguarem. Enquanto isso, o centro, humilhado nas urnas em 2018, parece ter voltado a ser um lugar de conforto para um cidadão traumatizado por morte, doença, desemprego, inflação e falta de perspectiva.

Políticos experimentados, sem histrionismo, e uma nova esquerda não-petista avançam em capitais e cidades importantes.

A lição para partidos e lideranças de centro será clara: é pela via da política que o Brasil construirá uma saída para seu impasse, como fizeram os Estados Unidos.

Não se trata de correr para achar um dublê de Joe Biden, ou perder tempo nas redes sociais com a discussão ridícula de se vai ter frente ampla ou não, e quem pode entrar nela. Mas de reconhecer a emergência de se construir pontes para o dissenso democrático, que reconheça adversários e suas pautas como legítimos e representativos de parcelas da sociedade.

É só assim que o legado de destruição do tecido social, institucional e civilizatório de Bolsonaro poderá ser superado em 2022. Ele não é carta fora do baralho, e tem dois anos para tentar construir sua sobrevivência, a depender da economia. Além disso, eleição municipal nem sempre é prévia de nacional.

Com todas as ressalvas, é alentador que tenha sido o eleitor, quietinho numa campanha quase fantasma, a apontar o caminho para superar essa distopia. A bola agora está com os políticos.


Vera Magalhães: Masculinidade frágil

Derrota de Trump e agruras do 01 abalam confiança de Bolsonaro

Jair Bolsonaro é uma cobaia ambulante para qualquer tese psicanalítica. Ontem, diante de tantos “eventos adversos graves” para si, sua família e o seu projeto político, o presidente surtou. Como sempre acontece com ele, esses surtos envolvem ao mesmo tempo decisões graves, com consequências para o País, e arroubos que funcionam mais como cortina de fumaça para tentar esconder suas fragilidades.

Vamos separar o joio do trigo. Ou o joio do joio, pois não há trigo nesse silo.

No rol dos absurdos com graves consequências para o Brasil está a decisão da Anvisa de paralisar os testes da Coronavac por conta de um efeito adverso grave com um entre mais de 13 mil voluntários dos testes clínicos da vacina desenvolvida em parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório Sinovac. Acontece que a morte desse paciente nada teve a ver com a vacina.

Sem fazer questão de esconder o caráter puramente político da decisão, que escancara o aparelhamento da agência, o presidente se arreganhou: “Mais uma que Bolsonaro ganha”.

A masculinidade frágil é um fenômeno que atinge homens heterossexuais inseguros, que precisam a todo momento reafirmar sua superioridade. Ganha? O presidente comemora vitória sobre seu adversário João Doria Jr. sapateando desrespeitosamente nos cadáveres dos mais de 162 mil brasileiros mortos pela covid-19, e especialmente no desse paciente transformado em bode expiatório.

Como esses surtos denotam justamente o contrário de “vitória”, vê-se que Bolsonaro sentiu as derrotas recentes. A começar pela de Donald Trump, para a qual passou recibo na “superterça” da alucinação. Numa solenidade oficial, buscou ajuda do infalível Ernesto Araújo para dizer que Joe Biden, a quem chamou de postulante a chefe de Estado (a negação é outra característica da psique bolsonarista) estaria ameaçando nossa soberania e, nesse caso, não bastaria a diplomacia. “Tem que ter pólvora, senão não funciona.” É de um ridículo de dar pena.

Não faltou, claro, o tradicional comentário homofóbico, também recheado de desdém com a morte. Diante das perdas para a covid-19, sapecou que temos de deixar de ser “um país de maricas”.

Até quando o Brasil terá de aguentar esse tipo de postura por parte de seu mais importante mandatário?

Para as bravatas e as grosserias que denotam a masculinidade frágil há pouco a fazer, a não ser esperar as urnas e que a onda de racionalidade que ajudou a varrer o trumpismo nos Estados Unidos sopre para cá.

Mas a paralisia da pesquisa de uma de várias vacinas que podem nos livrar do flagelo da pandemia é outra história. Nesse caso é urgente e inescapável que os que têm prerrogativa ajam. É preciso que Ministério Público da União, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Instituto Butantan ou entidades da sociedade civil tomem a frente de uma ou múltiplas ações com pedido de cautelares no Supremo Tribunal Federal para sustar a decisão da Anvisa.

Bolsonaro e o almirante Antonio Barra Torres, o bolsonarista no comando da agência, sabotam o combate à pandemia tendo como objetivo atingir um adversário político. A fala do presidente é prova cabal contra si, e nela há vários indícios de que ele recebeu informações que a agência não poderia lhe fornecer.

E o Supremo precisa voltar a conter os ímpetos letais de um presidente atordoado por derrotas políticas, como o péssimo desempenho de seus candidatos a prefeito de Norte a Sul, o fim do sopro de popularidade do auxílio emergencial, a derrota do “amigão” na América e o agravamento das evidências de crimes variados por parte de seu filho Flávio. É um pacote pesado para quem tem masculinidade frágil, mas descontar na vida da população é crime de responsabilidade.


Vera Magalhães: Nova diplomacia

Guinada dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico

Os Estados Unidos contam seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e condados e aprende sobre seu complicado sistema eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela confirmação da derrota do amigo Donald Trump.

A troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida para um tapinha nas costas.

Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.

Mas existe uma boa chance de a relação azedar em outras plagas, seja por uma reação política dos democratas aos excessos de torcida brazuca pelo adversário, seja pela mudança de discurso dos EUA no campo da política ambiental.

Joe Biden já deixou claras as restrições à maneira como o governo de Jair Bolsonaro trata os desmates e as queimadas na Amazônia, e os recuos brasileiros no comprometimento com metas climáticas, por exemplo.

Acenou com a ideia de constituir um novo fundo para a Amazônia, desde que mediante contrapartidas do governo brasileiro com políticas de preservação da floresta e fiscalização efetiva do avanço de atividades econômicas clandestinas na região.

Ainda entregue à paixão trumpista e imbuídos da crença mística de que ele venceria, não só o Itamaraty de Ernesto Araújo como o Meio Ambiente de Ricardo Salles se apressaram em recusar o dinheiro e dizer que quem manda aqui somos nós.

O prenúncio das relações entre os dois países com esse time dos terraplanistas ideológicos à frente é o pior possível. É por isso que, se fosse minimamente prático e racional, Jair Bolsonaro deveria considerar seriamente a possibilidade de trocar as peças no Ministério das Relações Exteriores (no Meio Ambiente não há nem o que falar, dado o desastre continuado que a presença de Salles provoca).

Um breve retrospecto do “legado” de Araújo, um diplomata obscuro até ser pinçado por Bolsonaro dado a seu fervor olavista, já seria suficiente para ele levar um bilhete azul num reality-show como O Aprendiz, do ídolo Trump.

Araújo se colocou à frente da tentativa de tirar Nicolás Maduro da presidência da Venezuela, e o Brasil foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como “presidente autoproclamado”. Quase dois anos depois, Maduro se diverte com as agruras de Trump e não arreda pé da ditadura que impôs aos venezuelanos. Sob o comando do chanceler, o Brasil também torceu nas eleições da Argentina e da Bolívia e no plebiscito do Chile, sempre levando de 7 a 1.

Na questão do Oriente Médio, o clã Bolsonaro e seu fiel representante no Itamaraty também fizeram balbúrdia à toa: Benjamin Netanyahu, outro “parça” do Jair, enfrenta contestações internas por acusações de corrupção enquanto se fia nos acordos de paz costurados com a ajuda de Trump para se manter como primeiro-ministro de Israel. Anunciamos com estardalhaço uma mudança de embaixada que nunca se efetivou e vamos ficar falando sozinhos, agora que Trump está de saída. Para quê? Absolutamente nada.

É hora de devolver Araújo à sua carreira obscura e o Itamaraty a alguma racionalidade, que é a tradição da nossa antes reputada diplomacia. Mas esperar algo assim de Bolsonaro é como acreditar que Trump fará uma transição decente e democrática para Biden: não vai rolar.


Vera Magalhães: Ponte aérea eleitoral

Possível vitória de nomes de centro em São Paulo e no Rio é vista como ensaio para 2022

Há muitos pontos de contato nas corridas eleitorais em São Paulo e no Rio de Janeiro. E eles são importantes variáveis para a montagem das estratégias políticas para 2022. Sim, eu concordo com os cientistas políticos, historiadores e analistas de dados que alertam que as eleições municipais seguem dinâmicas e pautas locais, e não são necessariamente reflexo das eleições nacionais anteriores nem laboratórios para as seguintes.

Mas é impossível analisar alianças e dinâmicas de eleitorado neste ano sem ter como bagagem 2016 e 2018, por diferentes razões. E sim, algumas das decisões de agora terão reflexos para os próximos dois anos.

Hoje, São Paulo e Rio têm rigorosamente a mesma configuração nas pesquisas: candidatos de centro relativamente isolados na liderança (Bruno Covas na capital paulista e Eduardo Paes na fluminense); um candidato do bolsonarismo tentando se credenciar para o segundo turno, mas enfrentando dificuldades, e nomes da esquerda pulverizada disputando entre si e podendo ficar fora da disputa final justamente por essa “canibalização”.

Covas é tucano desde sempre. Vem de uma família política e adotou um discurso de centro e de defesa da política depois da debacle da mesma em 2018. Paes já percorreu todo o abecedário político e é um dos políticos mais pragmáticos de sua geração. Tem usado a derrota surpreendente que enfrentou em 2018 para jogar um “eu te disse” na cara do eleitor arrependido.

Os dois se prepararam para enfrentar expoentes da direita no segundo turno. Nas duas cidades, a possível vitória de nomes de um centro reabilitado contra a direita é vista como um laboratório importante para uma frente mais ampla em 2022, inclusive como ensaio de aproximação com siglas de centro-esquerda e de esquerda.

A dificuldade de os bolsonaristas Celso Russomanno e Marcelo Crivella irem ao segundo turno é de certo modo surpreendente, e pode fazer os líderes nas pesquisas terem de redirecionar o discurso no segundo turno, para atrair o eleitorado de direita caso eles sucumbam. E isso adiaria as conversas para a tal frente ampla.

As agruras de Russomanno e Crivella evidenciam: 1) o caráter frágil da tal recuperação da popularidade do presidente, 2) o risco do discurso e da conduta negacionistas em plena pandemia fora das redes sociais, e 3) o refluxo da onda de se eleger completos outsiders para funções administrativas importantes. Por fim, paulistanos e cariocas assistem à mesma diáspora de candidaturas de esquerda, num sinal de que também nesse campo não será simples a união de esforços contra Bolsonaro em 2022.

São pelo menos dois os candidatos ditos progressistas que avançam em São Paulo: Guilherme Boulos, do PSOL, e Márcio França, do PSB, que parece ter acertado a previsão de que repetiria o sprint final de 2018, na disputa ao governo do Estado. O problema é que o crescimento simultâneo deles pode ajudar Russomanno a prevalecer por pouco. A disputa tende a ficar embolada até o final. No Rio, os votos de Benedita da Silva (PT) podem ser os que faltarão para Marta Rocha (PDT) se habilitar a tirar a vaga do prefeito na final. O uso sem moderação das máquinas da prefeitura e da igreja pode levar um Crivella mesmo alquebrado ao segundo turno.

Esses todos são fenômenos que transcendem a pauta e a dinâmica municipais, ainda que a decisão de voto os leve em conta. Os aprendizados que caciques e partidos tirarão dos resultados não só nessas, mas em várias capitais emblemáticas (Fortaleza é um case nacional, também) indicará se o Brasil de fato começou a sair do transe lavajatista e revanchista com que foi às urnas em 2018 para caminhar para algo mais racional de agora em diante.


Vera Magalhães: Sacudindo o refrigerante

Alheio ao precipício fiscal, Bolsonaro segue sua aposta na balbúrdia

O presidente da República é um galhofeiro. Em visita oficial a um dos Estados mais pobres do País, em plena pandemia, o máximo que seu repertório intelectual, humano, administrativo e social permite é fazer piada homofóbica com a cor de um refrigerante.

Isso um dia depois de seu ministro do Meio Ambiente, o mesmo que já carrega na capanga dois acidentes ecológicos graves, sucessivos recordes de desmatamentos e queimadas na Amazônia e o Pantanal incinerado, ter usado um apelido de humorístico mexicano para responder a uma cobrança política feita a ele pelo presidente da Câmara por outra infantilidade parecida.

Esse estado de infantilismo governamental já vem cobrando um preço alto nos excruciantes 22 meses deste governo, mas olhar a balbúrdia comendo solta quando o que se avizinha é o precipício fiscal, tão bem descrito em artigo recente aqui no Estado por Nathan Blanche, da Tendências, é ainda mais assustador.

O ministro Paulo Guedes falou em audiência virtual ao Congresso nesta semana que passou. Tentou de novo fazer o Jogo do Contente que já lhe rendeu memes e perfis satíricos nas redes sociais com previsões tão otimistas quanto furadas.

Pediu aos deputados e senadores a votação de projetos que podem ajudar, no seu entender, a destravar a academia. O que mais repercutiu, no entanto, foram seus renovados ataques ao colega Paulo Marinho.

A insistência nessa briga com um ministro de pasta claramente menos apetrechada que a poderosa Economia, além da defesa subsequente de Bolsonaro a Marinho e episódios em que a equipe de Guedes fica falando sozinha, como o do decreto revogado de estudos para parcerias público-privadas em saúde, são reveladores da tibieza do ministro hoje.

Tanto que o mercado se preocupou mais com a briga pública entre Rodrigo Maia e Roberto Campos Neto, justamente pela pauta travada, que com de Guedes. Aturdidos com a inação do governo diante da pressão inflacionária, da dívida insustentável, do desemprego recorde, da falta de saída para a reforma tributária, da iminente implosão do teto de gastos, da falta de saída para o fim do auxílio emergencial e outras bombas econômicas, investidores, economistas, banqueiros, analistas econômicos e empresários já veem Campos Neto como um sucessor possível, com menos disposição a vender quimeras e mais sobriedade para negociar o que é preciso ser feito e nunca sai do papel.

Acontece que há algo que precede qualquer eventual mudança ministerial: o presidente. Bolsonaro não está nem aí para a emergência fiscal e econômica. Isso só o abala quando e se mexe no ponteiro de sua popularidade, algo a que ele se agarra com o afinco de quem não percebe que ela nem é tão alta e nem é duradoura.

Foi o presidente que deu ordem clara a Guedes para não criar nenhuma marola de temas espinhosos enquanto durasse a eleição, porque achou que só porque voltou a ser recebido por puxa-sacos em aeroportos iria “varrer o PT do mapa”, a única questão que sua imaginação limitada é capaz de alcançar.

Não rolou, até aqui. Aliás, nem para ele nem para o PT, num sinal de que 2020, com todos os seus flagelos concretos, pode fazer o País começar uma caminhada rumo a alguma racionalidade política.

Faltam 15 dias para o primeiro turno. Enquanto isso, a Comissão Mista de Orçamento segue paralisada por uma briga intestina na capenga base bolsonarista, o que nos deixa sem política fiscal clara para 2021, um ano que não será do pós-pandemia, o que já seria um pesadelo, mas o ano 2 da pandemia.

Guedes está com a caixa de ferramentas vazia. E Bolsonaro está mais preocupado em sacudir o Guaraná Jesus e abrir para ver se espirra na cara do País. E se possível em fazer algum gracejo nojento enquanto chacoalha.

*Editora do BR Político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura


Vera Magalhães: Por W.O.

Alerta de Maia sobre prerrogativa de decidir a respeito de vacina pode ser tardio

Rodrigo Maia tem razão, em tese, quando diz que deveriam ser o Executivo e o Legislativo a definir uma política de vacinação contra o SARS-Cov-2, o maldito do novo coronavírus, em vez de passarem de novo pelo carão de ter o Judiciário fazendo seu trabalho. Digo em tese porque, de novo, pode ser tarde demais.

O chamado ativismo judicial é uma dessas pragas da política brasileira, um traço cultural que vai se agravando e tomando todas as áreas da vida nacional, da saúde à educação, dos tributos aos direitos trabalhistas, passando pelo meio ambiente, pelos costumes, por tudo.

Decorre do fato de que, graças ao cipoal de leis, muitas delas confusas e conflitantes com outras, e da velocidade com que a própria Constituição, jovem para os padrões de textos dessa natureza, vai sendo (r)emendada, o cidadão se sente quase obrigado a bater às portas dos tribunais para esclarecer controvérsias, demandar direitos ou tentar postergar obrigações.

E, na ausência dos seus vizinhos de Praça dos Três Poderes, muitas vezes os integrantes do Judiciário acabam avançando o sinal na hora de decidir, legislando em cima das leis ou das lacunas das mesmas.

A questão da vacina é paradigmática dessa barafunda. Não são poucos os dispositivos legais que disciplinam a questão da vacinação. Desde 1975 uma lei já confere ao poder público o poder de vacinar compulsoriamente a população como medida de saúde pública. A lei 6.259/75 leva a assinatura de Ernesto Geisel, um dos ídolos de Jair Bolsonaro, e estabelece que “cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”. O texto foi alterado em 2018 para estabelecer punições diferentes para quem descumprir esse caráter obrigatório. A lei estabelece, ainda, a coordenação com Estados e municípios para fiscalizar o cumprimento dessa obrigação de vacinar.

Neste ano, já no curso da pandemia, o próprio Bolsonaro assinou a Lei 13.979, que estabelece as diretrizes para enfrentamento da emergência sanitária. Diz lá que o poder público pode adotar medidas de caráter compulsório para enfrentar a pandemia, entre elas a vacinação (artigo 3.º). Diante do negacionismo, inclusive legal, praticado diariamente pelo presidente, sob o beneplácito preguiçoso e conivente do Congresso comandado por Maia e Davi Alcolumbre, era inevitável a judicialização, até porque há uma série de medidas antecedentes à aprovação de alguma das vacinas em teste que precisam ser adotadas com urgência, e também elas estão sendo sabotadas por Bolsonaro.

Maia oscila entre a postura de quem entende que o governo caminha por becos tortuosos em sua relação com as instituições e atrasa a tomada de decisões inadiáveis e a de quem busca um espaço para se aproximar do Planalto. As duas coisas são difíceis de conciliar. Ainda mais com uma sucessão da própria cadeira em curso. Cabe a ele, portanto, ser mais proativo na tomada de decisões, se não quiser receber um prato feito do STF.

Esperar por Bolsonaro nesta questão, está evidente, significa submeter o Congresso e todo o País a uma exasperante rotina de ouvir sandices como a de que teria sido melhor investir na cura que na vacina. Como se fosse só o presidente do Brasil e gênio a desejar a cura para um vírus que paralisou a vida do planeta, e isso fosse algo fácil como mostrar cloroquina para a ema. No jogo de ver quem pisca primeiro entre Maia e Alcolumbre e Bolsonaro e suas várias alas trapalhonas de ministros, o melhor para o Brasil é que Luiz Fux reúna de uma vez o plenário do STF e diga a eles o que devem fazer para não aprofundar ainda mais o buraco que já vitimou quase 160 mil brasileiros.


Vera Magalhães: Sem Ministério Público

Sob Aras, procuradoria se omite da função de fiscalizar e cobrar o governo

As ameaças de Jair Bolsonaro de dificultar a aprovação de vacinas contra o novo coronavírus pela Anvisa e sua afirmação reiterada de que o governo federal não vai comprar para fornecer a Estados e municípios e ao SUS a Coronavac, caso ela venha a ser a primeira a concluir as fases de teste de segurança e eficácia, explicitaram a completa omissão do Ministério Público Federal, sob Augusto Aras, em sua função precípua de fiscalizar e cobrar o poder público e representar a sociedade.

Essa omissão começou graças ao processo de escolha do procurador-geral da República: à revelia da própria instituição, apontado por Jair Bolsonaro justamente pelo fato de não ter se submetido à lista tríplice dos pares e depois de sucessivos encontros em palácios em que, depois, o presidente fazia questão de colocá-lo debaixo da asa e deixar claras as afinidades em defesa da “Pátria”, da “família” e sabe-se mais o quê.

De propósito, Bolsonaro tratou de manter Aras na lista dos “supremáveis”, aqueles que poderia indicar à cadeira de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Isso explica por que, por exemplo, ao pedir uma investigação a respeito das denúncias de Sérgio Moro contra o presidente, Aras tenha feito questão de incluir o ex-ministro como investigado por suposta denunciação caluniosa. Não vai dar em nada para nenhum dos dois, se depender dele, e a intenção sempre foi essa.

Mas não é só. A maneira como Aras montou a estrutura interna do MPF, centralizando nas estruturas próximas de si qualquer iniciativa de fiscalização do governo, amarrou os procuradores. Isso, conjugado com o aumento das ameaças de sanções disciplinares por órgãos, como o Conselho do MPF, funcionaram como mordaças não só para os atuantes em forças-tarefas, como a da Lava Jato, mas também em grupos antes muito ativos, como os de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, não por acaso áreas críticas para o governo Bolsonaro.

Procuradores que adotaram medidas contra o ministro Ricardo Salles foram questionados no Conselho por passarem por cima das instâncias encarregadas de fazer isso. Tentativa de censura explícita.

Agora, Aras determinou que as iniciativas quanto ao acompanhamento das ações governamentais no enfrentamento da pandemia de covid-19 fiquem a cargo de um “gabinete integrado de acompanhamento da covid-19”, ligado diretamente ao gabinete da PGR.

Bolsonaro cometeu todos os abusos que cometeu nesta semana, ameaçando boicotar a vacina, promovendo mais um remédio sem eficácia comprovada em solenidade oficial, dizendo que tentará influenciar uma decisão da Anvisa, agência que precisa ser independente, e o que fez o tal gabinete da covid do MPF?

No dia 21, o tal gabinete encaminhou a todos os procuradores, pela rede interna de e-mail, uma mensagem contendo o “resumo da coletiva de imprensa do Ministério da Saúde” e um “comunicado interministerial” do Ministério das Comunicações listando todas as iniciativas do governo no enfrentamento da pandemia. Apenas isso.

A atuação do grupo como mero porta-voz do Planalto revoltou os procuradores, que responderam à mensagem dizendo que esperavam que, na rede da instituição, se informasse o que o MPF pretende fazer para cumprir seu papel constitucional de representar os interesses da sociedade brasileira, nessa questão das vacinas, que vai caminhando para se transformar num grave impasse entre entes federativos.

A capitulação de um órgão que a Constituição fez questão de deixar desvinculado dos três Poderes justamente para assegurar sua independência é um sinal eloquente da redução do espaço democrático. Ela se dá muito concretamente em diferentes frentes. Quando a reação vier, e se vier, poderá ser tarde demais.

*Editora do BR político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura


Vera Magalhães: Tânatos

Só Freud explica a pulsão de morte que emana de Bolsonaro em plena pandemia

Não há outra explicação, a não ser a pulsão de morte descrita por Sigmund Freud em sua teoria, para um presidente de um país no qual quase 160 mil pessoas morreram em menos de um ano usar uma cerimônia oficial para, numa só tacada, divulgar desinformação sobre vacina e vender mais um medicamento sem eficácia científica comprovada, sem nenhum dado que ampare a “descoberta”.

A teoria das pulsões aparece pela primeira vez na obra de Freud em 1920, mas ganha contornos culturais, sociológicos e políticos nove anos depois, quando ele publica O Mal-Estar na Civilização. Neste texto ele descreve a dicotomia entre as pulsões do indivíduo – a pulsão de vida (Eros) e de morte (Tânatos) – e as expectativas da sociedade (ou da civilização).

Bolsonaro age movido a pulsão de morte desde os primórdios de sua curta passagem pelo Exército, em toda a sua carreira de defensor de tortura e assassinato nos porões e, agora, como promotor de caos no enfrentamento da pandemia de covid-19.

Se não, qual a justificativa para um presidente adotar um tom de pura picuinha e dizer explicitamente que, sob suas ordens, a Anvisa, uma agência que tem o dever de fiscalizar e regular a política de saúde, pode atrasar a aprovação de vacinas ao sabor das disputas político-partidárias que ele insiste em antecipar?

Qual a explicação para que, 116 anos depois da Revolta da Vacina, o Brasil esteja mergulhado, por obra e graça do presidente e de seus acólitos, num pântano de desinformação e calhordice em que se propagandeia de forma irresponsável que alguém (Quem? Os governadores? A polícia? Vozes da cabeça dos malucos?) vai invadir a casa de pessoas e vaciná-las à força com substâncias vindas da China (a mesma que, insinuam eles, criou um vírus em laboratório para subjugar o mundo) sem comprovação científica?

No mesmo evento em que usa mais um órgão de Estado, a Anvisa, como aparelho de suas intenções mesquinhas, o presidente dá voz ao ministro-astronauta para promover mais um medicamento sem eficácia científica comprovada em nenhum estudo sério do mundo, como sendo capaz de, nas fases iniciais da covid-19, reduzir a carga viral.

Para isso, o ministro em questão promete para dali a alguns dias (quando?) os estudos que supostamente corroboram a irresponsabilidade, ao mesmo tempo em que usa gráficos chupados de um desses bancos de imagem públicos da internet para mostrar a suposta eficácia. Garganteia diante de um chefe aparvoado que o que deveria ser um estudo de anos foi feito em quatro meses.

Tal show de mistificação, num país que não estivesse anestesiado pelos absurdos cotidianos e impunes, seria contraposto imediatamente pelo Ministério Público, pelo Judiciário, pelo Conselho Federal de Medicina e a comunidade científica, em uníssono. Com a exigência de apresentação imediata de dados, sob pena de punição.

Aqui, o contraponto fica por conta de cientistas usando suas redes pessoais para cobrar o ministro, jornalistas científicos fazendo o mesmo e, talvez, alguma representação de partido de oposição.

O Ministério Público Federal é hoje uma instituição em que os procuradores estão calados porque temem ser alvo de perseguição (volto a isso na coluna de domingo).

Diante de cenário de terra arrasada, dá até um alívio que o Ministério da Saúde se descole do teatro da morte e anuncie convênio para comprar 46 milhões de doses de vacina do Instituto Butantã quando os estudos comprovarem sua eficácia. Resta saber se também o ministro não será admoestado pelo chefe a recuar, se o Tânatos e os delírios persecutórios decorrentes dele apontarem que ele está jogando a favor de seus adversários.


Vera Magalhães: Atrás do próprio rabo

Esquerda se perde entre pulverização de candidaturas e tribunal de 2016 e 2018

O panorama das disputas municipais mostra uma constante de Norte a Sul do País: depois de 2018, a esquerda segue dividida, com o PT insistindo em transformar a sua estratégia eleitoral de agora e de daqui a dois anos num tribunal sobre as culpas pelo impeachment de Dilma Rousseff e a posterior eleição de Jair Bolsonaro – partindo da premissa, é claro, que nem uma coisa nem outra são sua própria responsabilidade.

Por conta dessa divisão, cidades como Fortaleza e Recife assistem a uma autofagia do chamado campo progressista, abrindo espaço para o crescimento, ao menos temporário, como mostram as pesquisas, de nomes de centro-direita e direita.

Outras, como São Paulo e Rio de Janeiro, assistem à possibilidade de a esquerda simplesmente ficar de fora da disputa final por conta dessa dificuldade de unir propósitos e agendas.

O candidato petista em São Paulo, Jilmar Tatto, começa a sair do pelotão dos últimos colocados justamente quando se iniciava um movimento interno para que desistisse da candidatura para apoiar Guilherme Boulos, do PSOL.

Era evidente que um candidato petista em São Paulo não amargaria índices tão baixos quando se tornasse conhecido. Mas a questão é outra: qual o teto para o partido na cidade depois de ter perdido no primeiro turno quando governava a capital e, dois anos depois, Fernando Haddad também ter sido derrotado em terras paulistanas?

Isso deveria ter levado o PT a uma reflexão profunda de seu próprio legado nacional e local, e a propor uma candidatura que pudesse ser uma resposta a essas derrotas, e não uma reafirmação de tudo que levou a elas, como a de Tatto.

Usar o pleito de 2020, em plena pandemia, com Jair Bolsonaro tendo cruzado todos os limites dos arreganhos autoritários, para repisar as teses de que Dilma sofreu um golpe e Lula foi tirado do pleito de forma ilegítima, como fazem nomes como a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, todo santo dia, é mostrar que não se entendeu nada do cenário de 2013 para cá e se quer dar mais uma chance para Bolsonaro.

O presidente, marotamente, mandou Paulo Guedes submergir até depois da eleição. Não quer ouvir falar em nova CPMF até lá, porque pensa em “varrer o PT do mapa”, sobretudo no Nordeste.

A resposta da esquerda: brigar entre si em Estados e capitais que hoje governa e ignorar a pandemia e a responsabilidade de Bolsonaro sobre ela. O que importa é uma disputa particular para ver se será o lulismo ou o cirismo a largar na frente para 2022, ainda que à custa de redução do espaço nacional da esquerda como um todo.

Fica evidente que um campo político está desnorteado quando se vê, por exemplo, que o fim de semana é tomado por dois “atos”: de um lado, os movimentos negros “cancelando” Fernando Haddad por conta de uma piada sem graça com suposta conotação racista – a despeito do que o petista efetivamente tenha feito como ministro, prefeito ou acadêmico em relação ao combate ao racismo.

De outro, uma campanha virtual de militantes petistas para banir do Twitter o jornalista Samuel Pancher – que nos últimos meses tem feito um trabalho muito acurado de expor as mazelas bolsonaristas por meio de vídeos mostrando o presidente em todo o seu esplendor atentatório à democracia – só porque ele “ousou” opinar que há traços antidemocráticos também no PT.

Com tal grau de interdição do espaço de dissenso e tamanha incapacidade de discutir a sério o longo e tortuoso caminho que nos trouxe até aqui, o campo que vai do centro (que incorre nos mesmos erros e tem ainda menos relevância) à esquerda vai ficar correndo atrás do próprio rabo e esperando por anos até voltar a ter aderência no conjunto da sociedade, para além das bolhas.


Vera Magalhães: Suprema bagunça

Tudo é lamentável no caso André do Rap, síntese dos nossos vícios recentes

É inútil tentar explicar à grande massa da opinião pública o intrincado novelo legislativo, interpretativo e jurídico que permite que, num intervalo de um dia, um ministro do Supremo Tribunal Federal mande soltar um dos mais perigosos traficantes do País, e outro mande prender. O que salta aos olhos, nesse caso, é a barafunda da mais alta Corte de Justiça do País, uma situação que vem sendo construída a muitas mãos, tijolo a tijolo, ao longo dos últimos anos.

O sabor das conveniências e os alinhamentos de ocasião, políticos e jurídicos têm levado a que o STF aja, sistematicamente, de maneira disforme, disfuncional e, sobretudo, política.

Então, houve um momento em que o vento soprava a favor do punitivismo, e por ele se guiaram antes históricos garantistas.

Veio a Lava Jato, que, por alguns anos gozou de prestígio similar na Corte, mantendo a tendência anti-impunidade e levando a que a operação tivesse confirmadas quase todas as suas principais (e até as mais polêmicas) decisões.

A maré virou, e não adianta negar, depois do impeachment de Dilma Rousseff. Foi só ali, depois de o axioma de Romero Jucá (aquele do acordão com o Supremo, com tudo) se tornar conhecido, que os hoje propalados reparos à Lava Jato vieram à baila e o assim chamado garantismo voltou à moda entre os togados.

A ponto de o tribunal se ver cindido em dois. O grupo antilavajatista colecionou vitórias na gestão Dias Toffoli e graças à composição da Segunda Turma, mas agora o comando trocou de mãos.

Só que os alinhamentos e o movimento do pêndulo não são tão simples. À frente da Corte está Luiz Fux, alguém que não goza de popularidade interna nem entre os antilavajatistas nem particularmente entre os apoiadores da operação.

Há ainda ministros que não jogam fechados em nenhum dos times, como Marco Aurélio Mello, pivô do lamentável episódio André do Rap, a enigmática Rosa Weber e Alexandre de Moraes, que tem sido mais independente em relação a esses grupos.

Além disso, a saída de Celso de Mello e a decisão de retornar ao plenário do STF as questões referentes a inquéritos e ações penais vão necessariamente reconfigurar estratégias e alianças.

Este é o pano de fundo político que permitiu a que se chegasse a um papelão nacional como esse da soltura de André do Rap.

Cheira a cinismo de advogados louvarem o caráter “técnico” da decisão de Marco Aurélio. Mesmo a análise fria do que mandou a lei anticrime, e que agora está consignado no Código de Processo Penal, recomenda deixar para o juiz singular decisão de revogação de prisão preventiva, quando não justificada pelo Ministério Público ou autoridade policial.

Ainda que fosse tecnicamente correta, a decisão não se sustenta diante da periculosidade do traficante e o risco – agora confirmado, com sua óbvia fuga – de sua soltura. E não adianta vir com firulas jurídicas: é, sim, papel do STF zelar pela ordem pública, e não se espera de um magistrado da Corte suprema que esteja de prontidão para, a qualquer cochilo de prazos do Ministério Público, conceder liminar com esse teor num sábado pré-feriado.

O jogo de gato e rato iniciado entre os ministros depois da decisão e de sua revogação por Fux, com direito a indignidades de troças quanto ao penteado do presidente da Corte, é sinal de que foi longe demais o esgarçamento da institucionalidade na cúpula do Judiciário.

É este o retrato do Poder com o qual a sociedade vem contando para, vejam só, colocar freios no presidente com pendores autocráticos. Enquanto uma ala da Corte está confraternizando com ele e opinando sobre indicações para o Supremo, a outra está se engalfinhando numa disputa infantil enquanto um criminoso perigoso foge nas suas barbas. Aterrador.


Vera Magalhães: A construção de bunkers

Como Bolsonaro minou o combate à corrupção para proteger a família

Bastou se aproximar do Centrão, da ala fisiológica do MDB e dos ministros antilavajatistas do Supremo Tribunal Federal que Jair Bolsonaro, logo quem, passou a ser visto por setores da política (os mesmos acima, diga-se) e até da imprensa como alguém imbuído da disposição de construir pontes.

Trata-se de uma leitura entre cínica e ingênua de uma realidade bastante clara aos olhos de quem quiser ver. Bolsonaro continua onde sempre esteve: avesso à ideia de qualquer composição a não ser as de ocasião, que lhe permitam lograr seus intentos na política e proteger a si e aos filhos da perigosa aproximação das garras da lei quando esticaram demais a corda da ruptura institucional e/ou foram com sede ao pote demais nos recursos públicos a que tiveram acesso nas suas longas carreiras políticas dotadas de todos os vícios de um clã tradicional brasileiro.

Eduardo Bolsonaro, o “03”, conhecido por ser dos menos brilhantes da família, deixou claro o jogo nas redes sociais, com direito a erro de português: “Não é arrependimento, é espertise (sic) de mudar de estratégia pois o plano original fracassou”.

Não precisa desenhar. O plano original era fazer as instituições se curvarem diante de uma tropa golpista, “antiestablishment”, como adorava se gabar o “estrategista” Filipe G. Martins. A pandemia foi o gatilho para colocar o plano original em marcha, com direito a uso de terroristas como Sara Winter, que agora se diz decepcionada, e seus 30 gatos-pingados.

O fracasso constatado pelo ex-quase-embaixador veio do próprio STF, que colocou freio aos delírios autoritários de Bolsonaro.

A “espertise”, assim com “s”, talvez, além de desconhecimento da língua, aponte um ato falho: o filhote quis provavelmente fazer menção à esperteza de mudar de time para evitar o tão temido impeachment e frear as investigações que chegavam perto de Flávio (rachadinhas e aumento de patrimônio), do próprio Eduardo (gabinetes do ódio, aumento de patrimônio), Michele (depósitos em dinheiro da família Queiroz e dinheiro de doações desviado para programa assistencial da primeira-dama), Carlos (rachadinha, aumento de patrimônio, fomento a atos golpistas, gabinetes do ódio) e de si próprio (aparelhamento da Polícia Federal, responsabilização pelo agravamento do enfrentamento da pandemia e participação em atos antidemocráticos).

Construção de pontes? Faz-me rir, faz-me engasgar, pedindo licença a Chico Buarque para usar seus versos tão precisos.

Bolsonaro tem por figuras como Renan Calheiros, Toffoli, Gilmar Mendes, Kassio Nunes e Ciro Nogueira o mesmo apreço que por Sérgio Moro, Gustavo Bebianno, general Santos Cruz, Luciano Bivar, Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Paulo Guedes, Bia Kicis, Carla Zambelli ou Jorge Oliveira: nenhum. Assim como já fez com vários desta lista, pode descartar os demais se disso depender sua sobrevivência e a dos seus.

O presidente tem na covardia e na insegurança alguns de seus traços de caráter mais notórios, bem como o pouco apreço à gestão e o instinto destruidor de tudo aquilo que signifique construção de marcos institucionais, conquistas de minorias e legados civilizatórios.

O que Bolsonaro constrói com afinco, além de um robusto patrimônio na forma de imóveis comprados com farto uso de dinheiro vivo oriundo de gabinetes, é um bunker no qual se abrigar e abrigar mulher e filhos.

Disso decorrem a indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, a troca de Moro por André Mendonça, as mudanças no Coaf, a tentativa de interferir também na Receita e, agora, a escolha de Kassio Nunes para o STF.

A ponte (pinguela, no caso) pode bem ser implodida depois que por ela passar o último Bolsonaro, pouco importando quem for deixado para trás.

*Editora do BR Político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura